Por Alfredo Sternheim
O
começo do fim
Na década de 70, em
alguns anos o Cinema da Boca respondeu por mais de 50% da produção brasileira.
Uma demonstração cabal da força da iniciativa privada e que se fazia ouvir,
tinha suas lideranças nas discussões oficiais sobre a condução do nosso cinema,
a luta por melhores condições. É o que aconteceu, por exemplo, no 1º Congresso
da Indústria Cinematográfica Brasileira, em outubro de 1972, no Rio de Janeiro.
Na ocasião, foram discutidas amplas medidas para acirrar a evolução do nosso
cinema. Produtores como Oswaldo Massaini e Alfredo Palácios levaram suas
sugestões. O primeiro defendeu limites para a importação fácil e desenfreada
das produções. O segundo, após apresentar um resumo das lutas realizadas até
então pelo desenvolvimento do cinema nacional, enfatizou medidas para elevar a
rentabilidade dos filmes em nosso mercado e algumas medidas favoráveis ao
exibidor, como isenção de impostos para os cinemas que ocupassem espaços
ociosos com aulas e divulgação de nossos filmes. “A técnica de recuperação do
público, em todo o mundo, vem se fazendo com o abandono de salas de grande
lotação e a multiplicação de salas menores”, disse na ocasião. Hoje, está
provado que ele estava com a razão.
Porém, nem ele e nem
outros cineastas, técnicos ou artistas da Boca que lá estavam vislumbraram algum
perigo na Embrafilme, que já estava no terceiro ano de sua existência. Ela foi
criada sem consultas prévias à classe cinematográfica em setembro de 1969,
através de um surpreendente decreto da junta militar que presidia o Brasil em
substituição ao General Costa e Silva, que havia sofrido um derrame. O objetivo
inicial parecia ingênuo e nobre: estimular a exibição de nossos filmes no
Exterior, comercialmente ou em certames e festivais. O resto – ou seja, a
regulamentação de nosso mercado, os incentivos para a nossa indústria –
continuaria sendo gerenciado pelo INC, o Instituto Nacional de Cinema.
Só que, em pouco tempo,
a conduta da Embrafilme foi mudando. A empresa, com personalidade jurídica de
direito privado, mas vinculada ao Ministério de Educação e Cultura (que na
época tinha como titular o coronel Jarbas Passarinho), gradativamente adquiriu
mais força, tornou-se uma concorrente da iniciativa privada. Ao mesmo tempo, o
INC ia sendo esvaziado, perdia as suas atribuições. Na área da produção, o favor
fiscal que permitia às distribuidoras e importadoras co-produzirem filmes
brasileiros por suas escolhas foi objeto de alteração. A partir de uma lei,
passou-se a exigir que os depósitos nesse sentido fossem realizados em nome da
Embrafilme, que teria, daí em diante, autoridade para autorizar ou não a
co-produção. Nesse clima, ficou patente, como registra a imprensa da época, que
o cinema feito no Rio de Janeiro era bem mais favorecido que o de São Paulo.
Surgiram até protestos oficiais como os do Sindicato da Indústria
Cinematográfica de São Paulo, presidido então por Alfredo Palácios.
Quando a empresa passou
a atuar como distribuidora, ela se diferenciou das demais, dando generosos
avanços sobre a receita. Dessa maneira passou a atrair os produtores.
Consequentemente, sem poder competir com esses fartos avanços, as
distribuidoras independentes, que trabalhavam exclusivamente com filmes nacionais,
foram sendo esvaziadas. “O poder da decisão, até então, estava em nossas mãos.
Havia mais rapidez entre a concepção e o lançamento de um filme”, lembra o
cineasta Fauzi Mansur, que se estabeleceu na Boca a partir de 1968. Nesse tempo
todo ele logrou construir sólida
atividade não só de diretor, mas também de produtor e distribuidor. Nessa área,
junto com mais dois sócios, criou a Alpha Filmes. “Mas a Embra não atrapalhou
tanto, não. Isso porque nos foi possível fazer acordos com a empresa para
muitos lançamentos”, acrescenta Fauzi. Já João Callegaro tem opinião oposta. “A
Embrafilme atrapalhou todo o cinema nacional. Principalmente o de São Paulo.
Corrupção passiva, clientelismo, panelinhas e até ideologias estapafúrdias
condicionava a concessão dos financiamentos”.
O fato é que o cinema
nacional da Boca tinha mais agilidade, não precisava depender do tráfico de
influências e do mecenato oficial. No plano governamental, o maior apoio vinha
apenas da reserva de mercado que era, de fato, cumprida. Apesar de colecionar
muitos sucessos de bilheteria (alguns notáveis como Sinal Vermelho- As Fêmeas, Anjo
Loiro, A Superfêmea, O Homem de Itu, A Noite das Taras, Excitação,
Mulher Objeto), as adversidades se
tornavam mais intensas.
O
sexo explícito
Por volta de 1980
ninguém poderia imaginar que um famoso filme japonês seria o estopim para a
mudança drástica que ocorreu com o cinema da Boca. O lançamento comercial, por
força de um mandato judicial, de O Império dos Sentidos, colocou sexo explícito
em nossas telas. É verdade que o filme de Nagisa Oshima vinha precedido de
prêmios e elogios do exterior. Mas o público lotava os cinemas menos por
interesse artístico e mais para apreciar as genitálias das personagens centrais
em plena atividade, de acordo com a trama.
“O frágil equilíbrio
foi rompido com a potente entrada em cena do pornô explícito estrangeiro”, observou
Nuno César Abreu no livro O Olhar Pornô.
De fato, não demorou muito para alguém da Boca pensar em seguir a fórmula,
mesmo de maneira canhestra. Foi o que fez Rafaelle Rossi, em 1981, com Coisas
Eróticas. Formado por três episódios, ele inseriu cenas de sexo explícito em um
ou outro que haviam sido feitos com essa proposta. O resultado foi uma notável
bilheteria: mais de quatro milhões de ingressos vendidos nos dois primeiros
meses. E para a exibição desse e de outros filmes que viriam a seguir, surgiu a
indústria do mandado de segurança. Ou seja, como o pornô era proibido no Brasil
(daí a Censura não poder liberar nenhum filme), um único advogado impetrava
mandado de segurança, nos moldes daquele que garantiu o lançamento de O Império
dos Sentidos. Os orçamentos até previam verba para o casuísmo jurídico, típico
em um país como o nosso, onde existem leis contraditórias. Claro que esse
advogado, parente de um político de São Paulo, ganhou farto dinheiro fácil.
O curioso é que essa
mudança começou a aparecer justamente quando o Brasil lançava cerca de 100
filmes por ano. E, desses, mais de 50 eram da Boca, que ainda resistiu
bravamente a esse novo tipo de cinema. Basta examinar a lista dos títulos de
1981, no livro Dicionário de Filmes
Brasileiros, de Antônio Leão da Silva Neto: somente uns dois ou três enveredaram
por essa seara. Foi nesse ano também que surgiram propostas eróticas mais
qualificadas como O Olho Mágico do Amor,
Palácio de Vênus e Mulher Objeto, por exemplo.
Em 1982 e 1983, muitos
cineastas daquela região assinaram realizações sem nenhuma cena explícita,
porém fazendo média nos títulos e nas próprias tramas com os anseios eróticos
do público. Nessa linha estão produções como Amor, Estranho Amor que tinha Vera Fischer e Xuxa à frente
do elenco, Tensão e Desejo, A Fêmea da Praia... Mas, salvo raras
exceções, a resposta das bilheterias era menos expressiva do que antes. O
público, agora acostumado com os pornôs, talvez se sentisse frustrado enganado
pela ausência de detalhes dos pênis e das vaginas em plena atividade. Naturalmente
que os exibidores perceberam essas mudanças e, embora a reserva de mercado
continuasse efetivamente a existir, eles deixaram claro que dariam preferência aos
filmes com sexo explícito. Foi o que aconteceu.
No final de 1983 e
começo de 1984, a transformação tornou-se evidente. Êxitos como Bacanal de Colegiais, A Menina e o Cavalo e Sexo em Festa serviram para provar ao
comércio cinematográfico que o Brasil podia fazer frente à desenfreada
importação de pornôs estrangeiros. E em relação ao público, existia a vantagem:
a língua portuguesa. O palavreado chulo em meio das fartas transas tornavam
nossos filmes mais atraentes. A indústria da Boca sentiu-se, aparentemente,
mais segura, podia se manter e manter os empregos que gerava. Era o começo de
um caminho sem volta.
Foram muitos os
cineastas da Boca que encararam fazer filmes com sexo explícito, mas só alguns
assumiram, não se esconderam atrás de pseudônimos. Várias dessas realizações
têm histórias, ambições cênicas. Como o futurista Gozo Alucinante, por exemplo, realizado perlo falecido Jean Garrett,
com requintada fotografia de Carlos Reichenbach e cenografia do premiado Campello
Neto. Mas esses e outros méritos eram ignorados pela mídia, pela imprensa especializada
que, quando muito, simplesmente tratava com desprezo qualquer proposta nessa
linha.
Muitos diretores
apaixonados pelo cinema e dotados de cultura aderiram a esse filão porque, além
de estarem marginalizados pela política oficial da Embrafilme, que então
privilegiava mais os cariocas, acreditavam que essa fase seria passageira. Eles
esperavam um nobre retorno para o nosso cinema, capaz de possibilitar mais
diversidade. Vã esperança.
O
Fim da Boca
O Cinema da Boca do
Lixo começou a dar seus últimos suspiros na década de 1980. Para muitos, o
declínio começou com a entrada do filme pornográfico. “A desgraça da Boca do
Lixo não veio por um meio moralista, mas pela forma injusta como surgiram os chamados
mandados de segurança, um autêntico mercado paralelo que perverteu todo o jogo
de distribuição e exibição de filmes”, disse Carlos Reichenbach. “Eu tenho
certeza que por trás da invasão do cinema pornográfico no Brasil tem os dedos
das majors americanas da distribuição e exibição. Estive em países muito mais
adiantados que o Brasil, sob o crivo da liberdade de expressão, como a Holanda
e a Dinamarca; em todos eles, os filmes pornográficos eram confinados a guetos”.
Reforçando a sua opinião, ele lembra que, por força desses mandatos, “os filmes
pornográficos estrangeiros (e nacionais) invadiram todas as salas mais
frequentadas pelo público C e D, aquele que sempre foi fiel ao cinema
brasileiro. Estragaram os cinemas mais populares definitivamente, afastaram o
público que sempre gostou dos nossos filmes e deformaram os centros urbanos de
São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte com sua insânia
mercantilista. Pior, ajudaram a criar uma fama péssima para o cinema brasileiro,
sem revelar jamais que a contrapartida pornográfica nativa era de 15 para uma (quinze
filmes pornográficos estrangeiros para um brasileiro)”.
Mas é preciso lembrar
que o próprio pornô ‘mundial’, nos cinemas, agonizava ao mesmo tempo em que
crescia no mercado de vídeo. De um modo geral, a frequência às salas de
exibição havia caído, principalmente nas grandes cidades do Brasil, em
decorrência não só das mudanças provocadas pelo advento das salas de pornô, mas
principalmente com a expansão do vídeo, a queda do poder aquisitivo do cidadão
e a insegurança que passou a predominar nas ruas.
Por isso é forçoso
reconhecer que, na realidade, o próprio cinema brasileiro definhava, não apenas
o da Boca. Uma inflação altíssima (cerca de 80% ao ano) e, principalmente, a
gradual falta de cumprimento da reserva de mercado por parte dos exibidores sem
nenhuma punição ao governo (então presidido por José Sarney) acirraram esse
declínio. Naturalmente o cinema da Boca já andava prejudicado pela concorrência
da Embrafilme na distribuição. As pequenas produtoras e distribuidoras
abandonavam o cinema. Até mesmo uma empresa com a gloriosa trajetória da
Cinedistri não resistiu: a empresa criada por Osvaldo Massaini (que morreu em
1994) encerrou oficialmente as suas atividades em 17 de julho de 1992, pouco
mais de dois anos da posse do presidente Collor.
Este, em seu curto
governo, tinha dado o golpe fatal. Além de fechar a Embrafilme, encerrou as
atividades da Fundação Cinema Brasileiro (mais voltada ao curta-metragem) e do
Concine (o tímido órgão que, desde 1976, substituía o INC). Aí, sim, o nosso
cinema ficou anos sem nenhuma política legislativa, sem nenhum mercado.
Técnicos, diretores,
produtores e artistas da Boca, em sua maioria, entraram em depressão viram-se
forçados a atuar em outras profissões. Nessa luta pela sobrevivência, um
cineasta passou a trabalhar como corretor de imóveis, outro chegou a vender
fitas de vídeo para as locadoras. Um técnico tornou-se vendedor de móveis,
outro que ganhou o Kikito de Ouro sustentou a família como gerente de um bar no
interior. Isso sem mencionar os que ficaram doentes, somatizando a frustração.
Consta, sem
comprovação, um caso de suicídio dissimulado como morte acidental para a família
beneficiar-se do seguro de vida.
São poucos os sobreviventes do cinema da Boca. Existem alguns que estão tentando retornar ao cinema, mas apenas dois podem ser apontados com certeza, como aqueles que, de fato, se adaptaram aos novos tempos do chamado cinema da retomada, quando o realizador tem que saber também captar financiamentos através das leis fiscais: Carlos Reichenbach Filho e Aníbal Massaini Neto. Aníbal tem a sua empresa, Cinearte, sediada na Rua do Triunfo, no mesmo espaço ocupado pela Cinedistri, que seu pai criou. “O fato da Cinearte possui como sede própria todo o andar de um edifício a custos que podem ser considerados modestos justifica tudo, não é?”, respondeu Aníbal sobre a razão de permanecer na Boca.
O cineasta, que em 2004
concluiu e lançou Pelé Eterno, está
consciente das alterações, mas otimista.
“Infelizmente o tempo
passa, as coisas mudam e esperemos que num futuro próximo seja para melhor do
que, talvez, tenha sido até agora. Entretanto, o cinema nacional está aí, a
despeito de tantas resistências, evoluindo técnica e artisticamente já vistos.
Qual Fênix”.
Lições
de um passado esplêndido
O Cinema da Boca do
Lixo pode ser considerado uma lenda do século XX. Um período de equívocos e
vitórias que aglutinou inúmeros e perseverantes talentos, possibilitando uma
intensa criatividade. Dessa fase, podem-se extrair muitas lições, úteis nesse
momento em que se discutem novos rumos para o cinema nacional, em especial da
política de investimentos. “O mínimo que se espera de um filme que usou
recursos públicos é que ele obtenha condições de exibição”, declarou o cineasta
Orlando Senna, secretário do Audiovisual do Ministério da Cultura em reportagem
a revista Tela Viva, em novembro de 2004. Ele se referia ao debate sobre o
ineditismo, a ausência de viabilidade comercial, de exibição para algumas
produções feitas como benefícios fiscais, provocado por um auditoria feita pelo
Tribunal de Contas da União na conduta da ANCINE – Agência Nacional de Cinema.
A manifestação do TCU foi dura quando aponta também certo descontrole na captação
e movimentação de recursos, em especial em realizações que nunca chegaram ao
público.
Como se voltem os olhos
para o Cinema da Boca, vai se constatar que o desperdício de dinheiro raramente
ocorria. Claro, o sucesso é algo imponderável e era também naquela época. Mas
não se pode menosprezar o diálogo com o público, principalmente quando
predomina o uso de subsídios governamentais. E esse uso tem que ser debatido.
Não é justo que em um país com tantas carências como o nosso, cineastas
esbanjem o dinheiro vindo de renúncia fiscal, extraído daquilo que seria
imposta a pagar, em filmes inacabados por pura incapacidade do realizador. Ou
então, que façam dessa maneira filmes com orçamentos grandiosos totalmente
incompatíveis com as respostas de nosso mercado. Não é certo ainda que muitos
dos diretores gastem demais, por exemplo, no uso do negativo que sempre foi a
parte mais cara de um orçamento. Um filme intimista, lançado em 2004, foi feito
com 35 mil metros de negativo para ter, em sua edição final, 3.300 m de
material editado. Uma média de dez takes por um. Isso apesar de ter ótimos
atores e o sistema de vídeo acoplado, dois elementos que possibilitam evitar a
repetição inútil. Na Boca só em filmes com ação ou muita gente em cena se
gastavam, no máximo, 12 mil metros de negativo. Na média, eram 20 latas de 300
metros, ou seja, 6 mil metros para aproveitar 3 mil.
O Cinema da Boca, que
se auto-sustentava sem patrocínios, era mais racional. O Cinema da Boca era
feito de forma obstinada, com disciplina e paixão. Por isso, a sua gente, seus
realizadores, merecem todo o respeito, todas as homenagens possíveis. Essa é
apenas uma delas e que procura resgatar a obra dos diretores que lá estavam.
Publicado originalmente
em STERNHEIM, Alfredo. Cinema da Boca:
dicionário de diretores. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo: Cultura – Fundação Padre Anchieta, 2005.
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