Por Denise Godinho e Hugo
Moura
Em uma tarde do verão de
1979, Raffaele Rossi entrou de cabeça erguida no bar Soberano. O botequim tinha
sido inaugurado em 1961 no número 155 da rua do Triunfo. Era no balcão de sete
metros de extensão, logo na entrada, que os cineastas da Boca do Lixo
paulistana se reuniam para conversar sobre cinema, o cachê da nova estrela que
perambulava nas redondezas ou o jogo de futebol da noite anterior. É verdade
que, em muitas ocasiões, o bar se estendia até a rua, porque os grupos de
frequentadores ficavam na calçada, os copos americanos repletos de cerveja em suas
mãos. O salão do fundo abrigava 12 mesas, cada uma delas rodeada por quatro
cadeiras. Ali era servido o tradicional almoço, desde o concorrido bacalhau na
brasa até o frango com polenta. O proprietário, Serafim, cuidava de manter seus
clientes entretidos com os copos cheios. De vez em quando, até arriscava um
número de mágica com o baralho engordurado que ficava em cima do balcão. Em
geral, o Soberano era parada obrigatória de técnicos, atores, diretores e
produtores que trabalhavam na região, embora todos eles se misturassem também a
prostitutas e traficantes que prestavam seus árduos serviços nas redondezas.
Raffaele Rossi não costumava frequentar o bar, apesar de trabalhar por ali
fazendo justamente cinema. O cineasta italiano era tímido e, embora conhecesse
todos, nunca tomava a iniciativa para uma conversa; como as pessoas raramente o
chamavam, ele entrava e saía do bar de cabeça baixa. Com exceção daquela tarde
calorenta.
O italiano entrou dando
passos firmes e largos sob olhares desconfiados. Afinal, ele devia dinheiro ou
favores a parte daqueles que almoçavam ali. Serafim estranhou a presença de
Raffaele no boteco, embora não tivesse nada contra ele. Todas as pouquíssimas
ocasiões em que o diretor havia consumido algo do bar, tinha pago certinho e,
ás vezes, chegava até a deixar alguma gorjeta. Raffaele deu de ombros e partiu
quase farejando mesa por mesa em busca de alguém ou alguma coisa em cada canto
o botequim. Foi lá no fundo, depois das três colunas que enfileiravam e
dividiam as 12 mesas do restaurante e, sob o barulho das conversas paralelas,
que o diretor avistou o amigo Laerte Calicchio saindo do banheiro e enxugando
as mãos nas próprias calças. Partiu como um foguete em direção a ele. Antes que
Laerte pudesse perguntar o que o amigo estava fazendo ali, já tinha sido puxado
pelo braço em direção à calçada onde outro amigo, Walmir Dias, os esperava, com
o mesmo olhar de espanto e dúvida estampado no rosto.
Raffaele partiu na
frente, em direção ao lado sul da rua, deixando no ar a ideia de que os dois
deveriam segui-lo – e foi o que fizeram. Não entendiam o que estava acontecendo
e também não podiam questionar entre si, porque o fôlego era suficiente apenas
para manter o passo apressado que o amigo impunha a eles. Quase o perderam de
vista quando entrou à direita na rua Vitória. Sacaram que estavam sendo levados
para a Empresa Cinematográfica Rossi, localizada na rua dos Andradas, paralela
à rua do Triunfo, quase de quintal com o bar Soberano.
Ele subiu os quatro
lances de escada de dois em dois degraus. Se fosse possível adivinhar o que se
passava nas cabeças de Laerte e Walmir, de certo supunham alguma má notícia.
Mas Raffaele estava sorrindo quando buscou cada um deles. Estava? Não lembravam
mais. Poderia ser um processo que alguém da Boca abrira contra ele. Afinal, não
seria a primeira vez. Laerte chegou a esbravejar para si mesmo entredentes que
não tinha mais idade para aquilo!
Raffaele parou na escada
e se arqueou, debruçando as duas mãos nos joelhos. Respirava com dificuldade e
esperava lentamente que os batimentos cardíacos voltassem ao normal. Enquanto
isso, os amigos já o haviam alcançado.
- Vamos até a sala, não é
nada ruim, eu prometo- disse ainda com a voz rouca e pausada.
Eles andaram em silêncio
alguns metros em direção à porta de madeira que dava acesso à salinha do
diretor na produtora. Era um cômodo de cerca de dez metros quadrados em um
prédio residencial, onde prostitutas disputavam espaço entre malandros,
cavalheiros neurastênicos e idosas decadentes que acompanhavam, com desprezo, o
fluxo contínuo de visitantes em seus aposentos. Não existia luxo nenhum, mas
era o que Raffaele poderia pagar. O prédio por si só fazia jus ao apelido Boca
do Lixo, mas não era pior nem melhor que outros edifícios na região. A saleta
alugada tinha documentação em dia, mas não passava de um espaço maltratado e
organizado apenas por um sofá de tecido marrom antigo na parede central e uma
mesa de ferro com quatro cadeiras. Em um dos cantos, os equipamentos eram
empilhados e cobertos por uma grande lona azul. Do outro lado, um filtro de
água feito de barro se equilibrava em um banquinho perneta.
Todos se sentaram-se à
mesa. Laerte folheou uma revista Manchete que estava à sua frente, mas não teve
tempo de apreciar uma foto ou ler uma linha de alguma reportagem, pois Raffaele
arrancava de supetão e com violência a publicação de suas mãos. Abriu a revista
e virou folha a folha, procurando algo. Dobrou-a ao meio e jogou na mesa a
Manchete aberta na página em que uma reportagem falava sobre um filme japonês
com cenas de sexo explícito que chegaria ao Brasil em breve. Laerte e Walmir se
espremeram e passaram juntos os olhos pelas linhas do editorial. O diretor
decerto se divertia com a situação quando se apoiou no encosto de uma das
cadeiras que rodeavam a mesa e passou a observar os amigos. Eles pareciam não
entender nada.
- Temos que fazer isso. É
a oportunidade de nos darmos bem!- profetizou.
Publicado originalmente
em GODINHO, Denise & MOURA, Hugo. Coisas
eróticas: a história jamais contada da primeira vez do cinema nacional. São
Paulo: Panda Books, 2012.
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