Por Nuno César Abreu
Com
produção de Manoel Augusto “Cervantes” Sobrado Pereira (Maspe Filmes), sempre
cuidadosa e bem trabalhada (para os padrões da Boca), Jean Garrett realiza,
nesta segunda metade dos anos 1970, três filmes que confirmam sua reputação de
cineasta atente, estetizante e hábil para desenvolver narrativas.
Exercitando-se em gêneros diferentes, explica o suspense em Excitação (1977), arrisca o
cinema-catástrofe em Noite em chamas
(1978), e “acerta a mão”, no erótico Mulher,
mulher (1979), um grande sucesso de público, com algum afago da crítica.
Por
sua formação em fotografia e experiência em fotonovela, que funciona
praticamente como um story board – a articulação de uma narrativa pelo
encadeamento das fotos fixas (“planos”) -, Jean Garrett tinha uma educada visão
de enquadramento, de como decupar para contar uma história. Na Boca, tal
capacidade representava um grande capital, pois, lá, saber conduzir uma
decupagem era a maior demonstração de competência artística de um diretor – a
outra era controlar uma equipe. A procura de um “visual de bom gosto”
refletia-se também na fotografia, na busca de um “estilo”, não só pela escolha
do fotógrafo, como também pela exigência do projeto.
Carlos
Reichenbach revela:
O primeiro filme que eu fotografei
na Boca foi Excitação, do Jean
Garrett. Ele me convidou porque queria uma fotografia requintada. Eu lembro que
o levei para assistir Chabrol, um filme que tinha fotografia de Jean Rabier,
pra ver se era a luz que eu queria – e era aquilo que ele queria mesmo.
Garrett
gostava de participar da elaboração do roteiro de seus filmes, por acreditar
que “um bom roteiro é o começo de uma boa direção”. Não obstante, este era
justamente o elemento de seu trabalho que até seus admiradores considerava
frágil, muito embora ele tenha procurado trabalhar com profissionais bem
assentados no mercado de roteiristas da Boca e seus roteiros fossem, de certo
modo, acima da média da indústria da Boca do Lixo. Talvez estivessem, isto sim,
aquém do resultado do resultado geral do filme.
Com
roteiro de Luiz Castillini, Noite em chamas foi uma versão similar nacional de
Inferno na torre e de outros disaster movies que andaram faturando alto por
aqui – uma tentativa de se fazer um cinema-catástrofe popularesco, na
precariedade da Boca, que provocou alguma polêmica.
Segundo Luiz Castillini:
Além de ter uma boa estética,
natural dele, da experiência dele, Garrett esforçava-se para compreender e
passar a essência. Muitas vezes, ele não consegui, como nós não conseguimos,
mais por precariedade da própria estrutura da Boca ou do filme que se ia
realizar. Muitas vezes, não era possível, mas o Jean chegava aa sofrer pra
tentar passar ideias ao público. Era uma pessoa que fazia um tipo de cinema
dentro do que era possível fazer na indústria daquele momento.
Pelas
intenções estéticas, pelo esforço em buscar um resultado “menos vulgar” (para
os padrões críticos da grande imprensa e do público “zona sul”), pela
determinação em obter o que se pode denominar de bom acabamento – fatura
compatível com o cinema comercial produzido pela Embrafilme -, Garrett
conseguiu, de certo modo, atravessar a barreira do “bom gosto” e assegurar,
para parte da produção da Boca do Lixo, a condição de obras eróticas. Isto se
dá principalmente com Mulher, mulher
(1979), filme baseado em roteiro escrito em parceria com Ody Fraga, que conta a
história da viúva de um psiquiatra especializado em questões sexuais, uma
mulher solitária e insatisfeita que, ao tomar contato com algumas fitas
gravadas pelo marido, que continham depoimentos de seus pacientes, começa a
transformar sua vida sexual.
O enorme sucesso de bilheteria do filme pode ser creditado, também, à atuação marcante de Helena Ramos, interpretando situações inéditas no cinema brasileiro, e ao esforço promocional que vendia como “uma mulher em busca de orgasmo”. O filme ganhou uma aura de ousadia ao explorar, sem vulgaridade, situações com densa atmosfera erótica. Uma sequencia, especialmente – Helena contracenando com um cavalo -, ganhou notoriedade, com uma ponta de escândalo.
Sobre
a experiência, diz Helena Ramos:
Passaram hortelã no meu pescoço. Eu
ria, achando aquilo tudo muito engraçado, mas depois que você vê na tela,
dependendo do ângulo da câmera...Nossa, dá a impressão realmente de uma coisa
muito forte. O que aconteceu é que o cavalo me lambeu o pescoço. Foi um
escândalo e foi um sucesso enorme também. Eu não sei se ele já gostava de
hortelã. (...) O cavalo lambia e eu achava o maior barato. Eu achava tudo muito
divertido.
O que eu não achava divertido é que
o cavalo que eu tive na infância e (com o qual) estava acostumada não era um pangaré,
mas era bonzinho, e o cavalo do filme era um puro sangue – desses de um metro e
sessenta -, mas meio nervoso. O que eu sofri com esse cavalo você não faz
ideia...E levei muita bronca do Jean. Ele me enchia o saco: “Você não para com
o cavalo em quadro”. Mas o cavalo não parava. Eu montava, segurava a rédea e,
quando estava enquadrado, pronto para rodar, o cavalo saía do lugar. Eu tive
que entrar no mar com o cavalo...Mas o Jean estava interessado em uma atriz,
uma modelo, que dizia: “Ah, eu não sei andar de cavalo”. Sabe o que ele fez?
Colocou ela no pescoço, mandou fechar o quadro no rosto dela e ficou trotando
de um lado para o outro como se ela estivesse no cavalo. (...) Der mim, ele
judiou pra caramba. Mas as coisas da vida são assim mesmo...
O
roteiro de Mulher, mulher baseou-se
no Relatório Hite, livro de sucesso
mais conhecido pela proibição que sofreu do que pelo valor documental – uma
radiografia da vida sexual da classe média americana, nos anos 1960. Ody Fraga
deve ter-se divertido em brincar com um certo feminismo que se insinuava
fortemente na vida brasileira. Talvez uma ideia a procura de um lugar.
Mulher, mulher teve um excelente desempenho comercial, mas não
escapou do crivo de seus críticos. Para Inimá Simões, Garrett teria sido
pretensioso demais para suas limitações:
O resultado foi um inventário
oportunista e desequilibrado, com diálogos horrorosos (“Eu não quero ser apenas
um receptáculo do esperma matrimonial”, diz uma personagem), ambientes excessivamente
empetecados que lembram mais um antiquário ou loja de decorações, na intenção,
talvez, de encher os olhos do espectador (e enchem, literalmente). Apesar de
referências a Reich, comentário musical erudito – Rachmaninov, Brahms etc. -,
diálogos que procuram denotar cultura (soam falsos e vazios), as imagens
guardam as intenções do “padrão” da pornochanchada. Ocorre uma atualização da
embalagem, “moderna e arejada”, de um produto obediente às injunções do mercado
– esse é o traço básico que define a produção da rua do Triunfo.
Nesta
crítica, Inimá põe o dedo na ferida, no calcanhar de Aquiles do cinema de
Garrett (para um olhar com um certo “bom gosto”): a cenografia que se confunde
com decoração, a utilização de música clássica para denotar familiaridade com
elementos da cultura erudita (culta), os diálogos que soam artificiais – mais
ainda por falta de intepretação adequada – etc. Estes podem ser pontos falhos,
sem dúvida. Mas afirmar que “as imagens guardam as intenções do ‘padrão’ da
pornochanchada parece-me um elogio. Era exatamente um “estilo” – um padrão Boca
do Lixo de qualidade – o que se buscava alcançar, articulando suas “práticas
significantes” com suas “práticas de produção”. O caminho era a aproximação,
aparentemente desencontrada, do cinema popular brasileiro com um público mais
exigente, sem perder contato com a plateia cativa.
Quanto
a ser “um produto obediente às injunções do mercado”, mais do que traço básico,
esta é a intenção do filme. A produção da Boca do Lixo, mesmo aquela com melhor
embalagem, nunca pretendeu outra coisa senão inserir-se no mercado. E, neste
caso, o esforço por um melhor acabamento ampara-se também na busca de conteúdos
culturalmente mais atraentes, visando ampliar suas possibilidades de inserção
no mercado. Embutida neste esforço estava (sempre esteve) a disputa por espaço
de exibição com filmes estrangeiros “modernos e arejados”. Além disso, a
questão de obediência às injunções de mercado – seja para negá-las, seja para
reafirmá-las – não era problema somente para os filmes da Boca do Lixo, mas
para o cinema brasileiro como um todo.
Produzido
pela Kinema Filmes de Cláudio Cunha, Jean Garrett realiza, em 1978, A força dos sentidos. Trata-se, segundo
folder promocional do filme, de uma trama de suspense “voltada para o grande
público, na qual temos o mesmo empenho artesanal que caracteriza a filmografia
de Garrett, sendo que, nesta realização, com muita habilidade, ele uniu um sexo
bastante ousado e realista a problemas psicológicos e fenômenos paranormais”.
Para seus críticos, na verdade, o filme não passava da repetição de um esquema
“com sexo e parapsicologia na exploração do orgasmo”, ao som de clássicos e com
citações literárias.
Colaborador
de Jean Garrett em vários filmes, Mário Vaz Filho (Santos, 1948) é outro
personagem que viria a circular ativamente pela Boca do Lixo a partir desse
final dos anos 1970. Diplomado pela Escola de Arte Dramática da USP, Mário Vaz
dedicou-se inicialmente à direção teatral. Seu primeiro contato com o cinema
deu-se ao participar da pesquisa para um filme sobre o marechal Rondon, um
projeto do diretor e produtor Mário Civelli. Neste trabalho, ele conhece Waldir
Kopezky, que o convida para ser eu assistente em Os três boiadeiros (1979), filme rodado na Festa do Peão de
Boiadeiro de Barretos, interior de São Paulo. Mesmo sem saber como colocar uma
claquete – até então não havia participado de uma filmagem -, Mário Vaz saiu-se
bem, porque sua experiência em teatro, no trato com atores, fez seu trabalho
aparecer. Após Os três boiadeiros,
foi convidado por Jean Garrett, que escrevera o roteiro do filme juntamente com
Kopezky, para ser seu assistente em A força dos sentidos. Depois deste filme,
Mário Vaz fez assistência de direção para Garrett em A mulher que inventou o amor e em O fotógrafo. Juntos, escrevem o roteiro de A noite do amor eterno, filme em que também dirigiu a dublagem.
Tendo
sido assistente de direção de Ody Fraga, David Cardoso, Cláudio Cunha, Luiz
Castillini, Antônio Meliande e Cláudio Portioli, Mário Vaz considera que seu
verdadeiro aprendizado deu-se nos trabalhos em colaboração com Jean Garrett:
Eu conhecia o Jean de vista, mas já
tinha tido um atrito com ele num bar. Ele me perguntou o que eu tinha achado do
filme Noite em chamas, eu respondi aquele final era meio ruim e ele não gostou.
Depois, conhecendo bem o Jean, eu vi que gostava era disso mesmo, gostava da
contestação, era um cara que a gente tinha que brigar com ele o tempo todo. Não
tinha outra, ele forçava isso. Ele não gostava de cara que adulava, essas coisas.
O Jean me chamou para ser assistente dele, pra fazer A força dos sentidos, e a
gente se deu muito bem. Eu ficava na minha, já conhecia o trabalho, a produção
era boa. Senti o seguinte: o assistente não era pra ficar dando palpite. Se ele
me perguntasse um negócio sobre uma cena, eu respondia. A gente ia ver o copião
juntos, trocava ideias. E criou-se uma relação legal. Em cinema, o Jean foi
quase um irmão mais velho, embora a gente tenha saído na porrada mesmo...No dia
seguinte, a gente já era amigo de novo.
Com
produção de Cassiano Esteves (E.C. Filmes),
A mulher que inventou o amor (1979) talvez tenha sido o filme mais
ambicioso, do ponto de vista intelectual, de Jean Garrett. Além do sensível
roteiro de João Silvério Trevisan, Garrett cercou-se de profissionais de
primeira linha, como Reichenbach, na direção de fotografia, e Eder Mazzini, na
montagem. “Um filme radical de realismo furioso, debochado e polêmico, segundo
o diretor. Um trabalho que se destacou no panorama da rua do Triunfo, com o
diretor conseguindo criar um estranho mundo por onde circula uma personagem
feminina Doralice/Talulah (Aldine Müller), desenhada com elaborados traços,
distante do imaginário padrão desses filmes”.
Em
1980, Jean Garrett cria a própria produtora, a Íris Produções Cinematográficas,
e dirige o ensaio intimista O fotógrafo
(1980). No ano seguinte, dirige Karina,
objeto de prazer (1981), uma produção de Cláudio Cunha e, em 1982, os
dramas A noite do amor eterno (1982)
e Tchau, amor (1982). A tendência ao
erótico pornográfico (ainda não explícito) que se instala no cinema da Boca do
Lixo irá refletir-se nas produções seguintes de Garrett. Sobre ele, diz Inácio
Araújo:
O Garrett era um cara que procurava
se aperfeiçoar (...) Eu fiz dois trabalhos como roteirista com ele e acho o
resultado mediano. Em parte porque a maneira como eu escrevia, que era em tons
baixos, não se coadunava com o que ele fazia. Gostava de tons altos, mas
tentava se justar ao que eu tinha escrito. E isso dava uma certa abafada no
filme, tanto em o fotógrafo quanto em Tchau, amor.
Eu gostaria de tê-lo assessorado
mais, principalmente em Tchau, amor,
com o Antônio Fagundes, que interpretava um radialista fodido, que tinha um
relacionamento com uma moça rica, filha do dono da estação. O Garrett me pediu
que fizesse a montagem deste filme, e eu fiz. Mas eu ficava com grilo por causa
da cenografia, e nisso talvez eu tivesse podido ajudar o Jean. A personagem era
uma menina bacana, rica em tradição, mas a casa dela era completamente cafona.
Como é que se produzia? Achava um cara que tinha uma casa grande e...pau na
máquina. Tinha umas coisas que sujavam a imagem...
No
universo da Boca do Lixo, Jean Garrett, com seu temperamento inquieto, traçou
uma trajetória pessoal em que são visíveis os esforços para a criação de um
cinema popular com alguma qualidade. Ele parece oscilar entre dois pólos. De um
lado, sempre procurou cercar-se da contribuição de profissionais competentes e
criativos, como Carlos Reichenbach, na direção de fotografia (Excitação, Mulher, mulher, A força dos
sentidos e outros), roteiristas como José Silvério Trevisan (A mulher que inventou o amor) e Inácio
Araújo (O fotógrafo), pessoas que – é
interessante notar – participaram do cinema “marginal” da Boca do Lixo do final
da década de 1960. De outro, a referência (estética e profissional) de Jean
Garrett (e de outros menos talentosos da Boca) parece ter sido o cinema de
Walter Hugo Khouri, tanto devido aos temas – erotismo, psicologismo,
insatisfação sexual, o extra-sensorial -, quanto às ambientações e à busca de
um tratamento cinematográfico coerente – cortes, enquadramentos, timing.
Embora
alguns filmes de Khouri tenham sido produzidos por produtores da Boca do Lixo,
seu cinema certamente não se enquadra no padrão ali criado. Sua competência
artesanal e o conhecimento técnico e artístico, reconhecidos por consenso, além
do cinema existencial, intimista, filosófico e permeado de erotismo que fazia,
foram, contudo, tomados como referência por uma linhagem paulista voltada para
o cinema erótico. Além disso, Khouri encarnou, malgrado ele, a discussão entre
a esquerda e a direita nos anos 1960 e 1970 a respeito do “filme de autor”. O
cinema de Walter Hugo Khouri parece ter sido o paradigma do cinema autoral para
grande parte dos trabalhadores da Boca do Lixo.
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