Por
Nuno César Abreu
Em
meados dos anos 1970, observa-se, na produção da Boca do Lixo, uma certa
tendência (que ocorre na produção nacional em geral) de investir no gênero
policial, ainda que sem abandonar os outros gêneros – o que é coerente com seu
projeto “industrial”. O cinema (popular de massa) surgido nas manufaturas da
Boca do Lixo apropriava-se do imaginário cinematográfico do gênero, de uma
literatura popular do tipo “livro de bolso” e de casos policiais veiculados
pelos jornais populares.
Tony
Vieira foi um dos produtores que fizeram essa rotação. Na segunda metade dos
anos 1970, com o declínio do western junto ao público, Vieira passa a realizar
filmes policiais mantendo o mesmo espírito (e a mesma matéria, por assim dizer)
que movia sua produção. Inspirado em “casos verídicos”, recolhidos no meio
policial ou do jornal Notícias Populares
– que deveriam ser “fantasiados, porque o que aconteceu realmente não funciona
em cinema” – realizou um cinema simples, ingênuo e mal costurado, copiando os
clichês da produção B estrangeira, mas resistente em seu apelo junto ao público
mais carente. Se é possível dizer que o cinema da Boca guarda identidade com
quem o realiza e com o seu público, o caso dos filmes de Tony Vieira é
exemplar. Tony representava exatamente seu público, extratos do “povão” que, no
escurinho do cinema, poderiam pensar: “Isso aí tem a ver comigo”.
Em
Os violentadores (1978), um filme “policial
de fronteira”, o herói é um caçador de prêmios que faz justiça a estupradores.
Em Os depravados (1978), um policial
urbano, um bandido renega o bando e faz a sua vingança – tema recorrente nos
filmes populares (de massa). Nestes dois filmes, Tony utiliza-se de um recurso –
por ele já utilizado antes – significativo: os créditos são narrados na
apresentação. Um tiro certeiro em dois alvos: o barateamento dos custos de
laboratório e o encontro com setores de “seu público” que tinham dificuldade de
leitura.
Tony
Vieira tinha consciência do papel do filme de gênero como elemento de
sustentação da dinâmica comercial e cultural do cinema:
Eu acho que devemos
arrastar o povo para o cinema nacional, dando a ele o que está acostumado a
ver: a televisão e o cinema americano. É por isto que eu adotei esta linha de
cinema policial, saltos mortais, tiros. (...) Os Estados Unidos têm inúmeros
diretores fazendo bangue-bangue, violência, policial, certo? Nós não temos (...)
e eu procuro ficar martelando a mesma coisa. Então, nós não podemos discutir
esse assunto de filmes diferenciados, com personagens mais complexos, porque
nós não temos gênero no Brasil.
Em
1979, Tony Vieira realizou O matador sexual, baseado nos “hediondos crimes de
Chico Picadinho”. Seu compromisso com o popular é enfatizado em matéria
publicada na revista Cinema em Close Up,
especializada em produções da Boca:
O personagem de Tony
Vieira, Renê, ao contrário (de Chico Picadinho), é ágil, escorregadio, mais
para “estrangulador de Boston” do que o vulgar coitado caboclo. Este filme,
como os anteriores de Tony Vieira, visa unicamente ao divertimento da platéia. Uma
aventura policial bem contada, sem firulas, sem tentativas de incursão num
problema que a medicina ainda não resolveu. E se a ciência não resolveu, o Tony
não se arrisca. É justa a posição, desprovida de pretensões babacóides, como a
de outros cineastas conhecidos que pensam expor a mentalidade escandinava em
seus filmes e cometem o infantil erro de colocar crises morais em personagem
classe média do citado povo.
Uma
das características dos filmes do gênero policial (americano) é estabelecer os
traços psicológicos de alguns personagens, principalmente do “culpado”, e, ao
longo das peripécias, ir construindo um quase sempre misterioso desenho
psicológico da vilania, algo – um trauma – que o conduziu ao mal e, de certo
modo, justifica sua culpa no nível pessoal, muitas vezes absolvendo as causas
sociais, já que do mesmo contexto saem os heróis- detetives, policiais,
investigadores, etc. Neste filme, o personagem “tem problemas” em função de seu
relacionamento com a mãe – o que explica o texto da revista -, mas Vieira vai
direto ao ponto, sem firulas. “E se a ciência não resolveu, o Tony não se
arrisca”.
Vieira
posiciona-se firmemente na trincheira da Boca do Lixo. Ao contrário de outros
cineastas da Rua do Triunfo, ele não procura revestir seu trabalho de um verniz
cultural, ou mesmo alegar falta de recursos para uma produção mais bem acabada.
Assume corajosamente a condição de popular – que, no texto, está no lugar de “mais
verdadeiro”, “mais puro”, mais próximo do “povo” -, para marcar a diferença
entre seus filmes e outros produtores da própria Boca que pretendiam cortejar
setores intelectualizados, bem como em relação aos filmes de extração mais
intelectual que abordam o mesmo tema. Vieira posiciona-se desprovido de
pretensões babacóides e, para muitos, ele trabalhava o “popularesco”.
Como
observa José Mário Ortiz Ramos, a ingenuidade do cinema de Tony Vieira era, por
assim dizer, aparente. Um sistema de sustentação do produto estabelecia-se (a
exemplo de David Cardoso), aproximando sua figura pessoal e a imagem pública
veiculada pelos personagens, articulada pela construção de um tipo de herói
informado pela própria mitologia do cinema.
Na verdade,
procurava-se a imersão no universo cultural das classes B e C, que o diretor
pretendia atingir, e pensando nesse público os filmes eram divulgados em
jornais e programas populares. Fechava-se, assim, um contorno cultural e
midiático dentro do qual seria eficaz o gênero policial com essas
características. O imaginário do cinema americano e italiano, sempre apontados
como molas-mestras desse cinema, na verdade entrava na composição de uma
constelação mais ampla, que abarcava dimensões diversificadas da vida cultural
das elites populares.
Tony
Vieira praticou um cinema naif, em que articulava pessoa e personagem, detendo
um público cativo- inclusive com fã-clube.
Matilde
Mastrangi revela:
Ele ganhou muito
dinheiro. Ganhou mais dinheiro, sei lá, que o próprio Khouri, que tinha um
filme mais...(...) Eu nunca levei o Tony a sério. Bom sujeito, mas nunca quis
trabalhar com ele. Muito fraco, pobre demais, de roteiro, de acabamento.
Ignorantão, né? Ele se achava o Clint Eastwood do Brasil. (...) Mas ele era
assim mesmo na vida pessoal. Aliás, na Boca, tinha uma turma que se achava
aquilo mesmo.
Seus
filmes tinham distribuição e exibição garantidas em cinemas populares, e ele
era um dos poucos (em companhia de Mazzaropi) astros do cinema brasileiro com
exclusiva veiculação através do cinema. Associado ao comendador Francisco A.
Soares, investidor que participava como ator secundário nos filmes, Tony Vieira
manteve, através de sua produtora, MQ – Mauri de Queiroz Produtora e
Distribuidora, uma expressiva continuidade de produção, seja como ator, diretor
ou produtor. Exercendo as três funções, realizou 11 filmes entre 1975 e 1983,
entre eles Os pilantras da noite (Picaretas sexuais) (1975), Torturadas pelo
sexo (1976), As amantes de um canalha (1977), O matador sexual (1978) e O
último cão de guerra (1979). De 1982 até sua morte, em 1987, seguindo uma
estratégia de sobrevivência abraçada por parte da Rua do Triunfo, dedicou-se à
produção e direção de filmes de sexo explícito. “Gestado, parido e soldado” na
Boca do Lixo, Tony Vieira foi um dos seus habitantes mais queridos.
Sobre ele, diz Guilherme de Almeida Prado:
Tive um contato com o
Tony Vieira, que eu gostaria de ter gravado (...). Quando ele soube que eu ia
dirigir As taras de todos nós, sentou-se comigo lá no Soberano e falou: “Você
vai dirigir um filme e eu preciso te explicar como é a direção de cinema”. E me
deu uma aula que...eu não vou dizer que estava precisando, mas foi uma aula
sensacional, com uma visão fantástica (...). Eu achei extremamente bonito da
parte dele. E era uma coisa muito sincera. Não tinha nenhuma sacanagem naquilo,
nenhuma pretensão. Ele queria realmente que eu não cometesse os erros que ele
havia cometido. (...) Era uma coisa inesperada, até pelo cinema que ele fazia.
Não dava para imaginar que ele tinha uma certa reflexão sobre aquilo.
E
depõe Luiz Castillini:
Eu gostava do Tony. O
cinema dele tinha aquela coisa ingênua e divertida, gostosa de se ver pela
ingenuidade. Hoje, não. Se a gente for ver, é um cinema...Desculpa-me o
falecido, é um cinema ruim. Na época, era uma coisa saborosa, tinha o seu
lugar. Era uma coisa kitsch, uma coisa jeca, não é? Ele tinha uma visão das
coisas que era extremamente saborosa. (...) O Tony tinha coisas assim: “Vamos
fazer um filme sobre a Máfia no Brasil”. “Legal, vamos”. Ele misturava as
estéticas, misturava tudo. Botava o bandido brasileiro assim como a gente está
acostumado a ver aí na rua e, ao lado dele, um cara com terno listrado e um
cravo na lapela. Era maravilhoso.
Este
tipo de produção cinematográfica entra em declínio juntamente com a decadência
física e social das cidades grandes (e médias), que leva ao aviltamento das
salas de cinema, e com clausura televisiva que esvazia e fecha as salas
populares de bairro e periferia. Classes populares e cinema ficaram sem espaços
sociais – na vida pública - para celebrarem seu encontro. A violência cobrou
esse empobrecimento, e alguns gêneros ficcionais – terror, suspense, policial,
etc. -, de certo modo, saíram das telas para entrar na vida.
Publicado
originalmente em:
ABREU,
Nuno César. Boca do lixo: cinema e
classes populares. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2006. Páginas 103 a
107.
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