quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Memórias do setorista da Boca VII: Antônio Meliande





Foi uma Via Crucis. De Guaratiba o filho dele me deixou num terminal. Dali peguei um ônibus que demorou pra xuxu até chegar no terminal central da Barra da Tijuca. Da Barra passei por São Conrado e todos aqueles bairros nobres até chegar em Botafogo. De Botafogo peguei o último ônibus que me deixou na Praia do Flamengo. Da praia fui andando cheio de areia até o Catete. Adoro o Rio de Janeiro. Sempre quando vou no Rio fico naqueles hotéis vagabundos, baratos e decadentes do Catete. Gosto de ficar onde ficam as prostitutas, os travestis, o povão mesmo. Mas eu fui em Guaratiba, um verdadeiro fim de mundo com um objetivo: conhecer e entrevistar o cineasta e diretor de fotografia Antônio Meliande.


Na Boca ele era conhecido como Toninho ou Tony Mel. Trata-se do homem que mais fotografou longas-metragens da história do Brasil. Italiano de nascimento, seu currículo é bastante extenso. Toninho foi convidado pelo ator Tarcísio Meira para ir trabalhar na Rede Globo. Ele renovou toda a linguagem televisiva do principal canal do Brasil. Toninho foi o responsável pela luz de inúmeras novelas e dirigiu minisséries como a infantil Sandy e Júnior. Era um profissional criterioso e teve uma parceria extraordinária com o cineasta Walter Hugo Khouri. Pode-se dizer que a obra de Khouri existe o antes e o depois da entrada de Toninho. Meliande dirigiu no período erótico e depois no pornô. Mesmo assim, trabalhou com profissionalismo e nunca fez nenhuma exigência. Tratava qualquer produção com o mesmo engajamento e seriedade. 

Pode-se dizer que existia uma espécie de "Série" A de diretores da fotografia do cinema paulista do período. Nos filmes de melhor orçamento ou mais bem acabados estavam Toninho Meliande, Cláudio Portioli, Carlos Reichenbach, Osvaldo de Oliveira, o "Carcaça" e Pio Zamuner. Veteranos de primeiro escalão como Tony Rabatoni e Giorgio Attili também estavam bastante próximos. Rabatoni fez a fotografia de "Cafajestes" de Ruy Guerra, clássico do Cinema Novo. Attili foi o principal colaborador de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. Um veterano que acreditou em Mojica quando ninguém sabia quem ele era.

O cineasta Mário Vaz Filho trabalhou várias vezes como assistente de direção e continuísta com Toninho. Foi assistente do próprio Meliande quando o italiano dirigiu "Bacanal" (1980). Marinho tornou-se um diretor experimentado no período do sexo explícito. Aí foi a vez dele ter Tony Mel como colaborador em películas como "O Pistoleiro Chamado Papaco" (1986). "O Meliande é um parceiro. Mas ele era tão rápido que se você demorasse ele acabava dirigindo seu filme inteiro". Portioli era mais criterioso, demorava mais ao elaborar a fotografia. Foi o cara responsável pela maioria da iluminação dos filmes da produtora Dacar do ator, cineasta e produtor David Cardoso. Eram grandes amigos. Quando estive com David no Mato Grosso perguntei sobre o Portioli. O eterno galã ficou bastante emocionado e quase caiu no choro. David tem verdadeira adoração por ele. "A maioria dos meus amigos já morreu...Sou um camarada que vive na nostalgia, no passado. O Portioli foi mais que um parceiro. Trabalhava em filme com dinheiro, sem dinheiro. Era pau pra toda obra".

Carcaça foi o profissional mais dedicado as produções da empresa Cinedistri e tinha bastante carinho pela equipe técnica. Seu colaborador mais fiel foi Rubens Eleutério. Eleutério defende Carcaça com unhas e dentes. Quando estive com Aníbal Massaini Neto ele tomou um susto de eu perguntar sobre o Carcaça. "O Osvaldo era um técnico extraordinário. Esteve conosco várias vezes". Aníbal não gosta de dar entrevistas e não tive oportunidade de gravar um depoimento extenso dele.

Pio Zamuner era um técnico extraordinário cujo legado principal são os filmes que esteve a frente do ator e produtor Amácio Mazzaropi. "Quem sofria na mão do Pio eram os atores", afirma Virgílio Roveda, o Gaúcho, que trabalhou com ele em nove filmes do Mazza e em vários outros. Até mesmo quando Zamuner meteu-se a dirigir de maneira independente da PAM Filmes como no longa-metragem "O Sertanejo" (1979). "O Pio carregava muita produção  nas costas. Tem muito  assinado por outra pessoa que quem dirigiu no campo de filmagem foi o Pio. O diretor estava lá pra puxar papo com as menininhas do filme", diz Gaúcho. 

Podemos dizer que o diferencial de Toninho Meliande era a rapidez. Talvez por isso ele seja o fotógrafo que trabalhou na maior quantidade de longas-metragens de sua geração e de toda história do cinema brasileiro. Existe um documentário muito bom sobre ele chamado "Pau Para Toda Obra" de Daniel Camargo que chegou a ser exibido no Canal Brasil. Zamuner mereceu um curta-metragem carinhoso assinado pelo diretor paulista Thiago Mendonça. Mas ficou nisso. Todos merecem catálogos, mostras, livros, biografias, documentários. Mas grande parte desses profissionais continuam esquecidos.

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