Vidas dilaceradas
Dois técnicos da Boca do Lixo e a Ditadura Militar
Por Matheus Trunk
Rua Tutóia, bairro do Paraíso. Toda vez que o avô Virgílio Roveda passa por esse endereço ele sente um estranho desconforto. Sua voz fica baixa e ele pode chegar a tremer. Aos 74 anos, o baixinho, bigodudo e falastrão Roveda foi um dos técnicos mais atuantes do cinema paulista entre as décadas de 1970 e 1980. Trabalhou em mais de 60 longas-metragens nas mais variadas funções desde eletricista, assistente de câmera, diretor de fotografia e até produtor. Seu apelido na área cinematográfica é Gaúcho. Esse cognome foi dado pelo ator e cineasta José Mojica Marins, o Zé do Caixão ainda nos anos 1960. Os dois atuavam profissionalmente numa região do centro de São Paulo conhecida como Boca do Lixo.
“Eu vim da minha terra
natal (Vacaria, Rio Grande do Sul) e
trouxe uma faca de presente pro Mojica. Mas ele ficou com medo e saiu correndo.
Daí começaram a me chamar de Gaúcho, Gauchinho e fixou”, relembra rindo. Mesmo
veterano, Roveda ainda busca novas oportunidades na sétima arte. Fotografa
alguns trabalhos, mas sente dificuldade em se atualizar no atual momento do
cinema brasileiro e da cultura nacional. Ele não tem encontrado muitas
oportunidades. “Existem muitos preconceitos. Seja pela idade, pela gente ter
militado na Boca ou mesmo porque esse negócio de editais é complicado”, diz ele
com um sorriso amarelo e sem muito otimismo. Roveda é avô de três crianças:
Mariana de nove anos, Murilo e da menorzinha Maria Luiza. Seus netos não sabem.
Mas Gaúcho sobreviveu a um dos momentos mais difíceis da sua vida na rua
Tutóia. Mesmo assim, ele continua correndo atrás de seus projetos profissionais
e da vida pessoal. “Eu não gosto de falar disso. Não gosto mesmo”, fala ele
tentando mudar de assunto. “Toda vez que aparece algo sobre isso na televisão,
ele começa a passar mal. Tem vezes em que ele está dormindo e se movimenta
todo, começa a suar”, conta Norma Guirado Roveda, esposa de Gaúcho há mais de
quarenta anos.
O episódio que marcou
Gaúcho aconteceu no segundo semestre de 1973. Mas ele conseguiu vencer o
problema e seguir em frente. Já seu ex-sócio e amigo de todas as horas o
montador Roberto Leme, o Robertinho (1942-2004) não teve a mesma sorte. “O
Roberto foi o melhor amigo que tive dentro da profissão. Nós nos conhecemos no
primeiro filme que fizemos juntos: O Diabo
de Vila Velha, em 1965. Fomos de trem juntos da estação da Luz para Ponta
Grossa (interior do Paraná) onde foi
filmado essa produção. Ficamos amigos dali até eu segurar o caixão no velório
dele”.
O magricela e boa-pinta
Roberto Leme iniciou sua carreira no cinema naquele início da década de 1960.
Tinha se formado como padre num seminário onde estudou filosofia e teologia.
Mas não chegou a exercer o sacerdócio. “A irmã dele me contou que esse foi o
primeiro baque dele. O Roberto foi dispensado porque achavam que ele não tinha
vocação para ser padre. Isso o deixou profundamente chateado”, lembra Dalete
Cunha, também montadora e viúva de Roberto. Ela ficou conhecida no meio da Boca
paulista pelo apelido de Baixinha.
Mas Robertinho também
tinha vocação musical. Ele estudou piano durante dez anos e conheceu canto
gregoriano no seminário. “Eu não sabia que ele tinha tanta habilidade com
piano. Só descobri isso na nossa lua de mel que foi num navio. Ele deu vários
recitais chamando a atenção de todos. Aquelas músicas sobre o personagem do Zé
do Caixão quem compôs foi o Roberto, mas nunca deram crédito ou pagaram algum
direito musical”, rememora Dalete Cunha.
A paixão pela música levou Roberto para a carreira cinematográfica. Seu
desejo inicial era ser ator. Mas acabou destacando-se na Boca por outra
atividade profissional: a finalização, a montagem. “Dizíamos que a sala de
montagem funcionava como sala dos milagres”, diz Gaúcho rindo. “A gente dizia
que o Roberto não era um montador, mas sim um relojoeiro. Porque ele era
extremamente concentrado e caprichoso no que fazia”, relembra o amigo. Os fatos
comprovam isso. Roberto montou mais de 40 longas-metragens paulistas. “Ele era
o melhor daquela geração de montadores”, opina Dalete Cunha.
Roberto Leme tornou-se
um dos técnicos mais requisitados do cinema de São Paulo. Ele trabalhou
diversas vezes com a produtora Cinedistri do produtor Osvaldo Massaini
(1920-1994). “O seu Osvaldo não gostava de filme erótico. Para ele o cinema
tinha que ser grande produção com bom acabamento e que conseguisse crítica e
público”, me assegurou há anos atrás o assistente de câmera e eletricista Miro
Reis. Com a erotização do cinema, Osvaldo Massaini conseguiu fazer algumas
verdadeiras superproduções para a época: Independência
ou Morte (1972) de Carlos Coimbra e O
Marginal (1974) de Carlos Manga. Os dois tiveram participação direta de
Roberto. “A verdade é que ele montou o Independência.
Ele foi enviado para fazer essa montagem no Rio de Janeiro”, assegura
Dalete que trabalhou ao lado do marido diversas vezes. Apesar dessa versão,
Roberto aparece como assistente de montagem na ficha técnica da produção.
Já O Marginal foi um filme policial protagonizado por Tarcísio Meira e Vera Gimenez que conseguiu ser um sucesso de crítica e público. O argumento e roteiro foram assinados pelos dramaturgos Dias Gomes e Lauro César Muniz. A trilha sonora pela dupla de compositores Roberto e Erasmo Carlos. Já Roberto Leme foi o montador e editor desta produção. Os efeitos especiais ficaram sob a responsabilidade do norte-americano Edward Drohan que veio para o Brasil especialmente para participar do filme. “Pra você ter ideia o Sílvio de Abreu que depois dirigiu novelas na TV Globo era assistente de direção. Ele ficava no meu pé o tempo inteiro para fazer as explosões, os tiros, tudo. Mas o gringo (Drohan) sabia das coisas. Não ficamos devendo em nada o cinema americano. Seu Osvaldo (produtor) gostou tanto que me chamou dentro do carro dele para me cumprimentar”, relembra o assistente de câmera e eletricista Miro Reis. Ele auxiliou nos efeitos especiais.
Robertinho também
montou duas produções do ator e produtor Amácio Mazzaropi: O Grande Xerife (1972) e Portugal...Minha
Saudade (1973). “O Mazza era o único da época que trabalhava com o som
direto. Mas ele só contratava os melhores técnicos”, garante Gaúcho que foi
assistente de câmera em nove filmes do produtor. Dalete lembra-se que uma vez
ela e Roberto encontraram-se por acaso com Mazzaropi na Praia Grande, litoral
sul de São Paulo. “O engraçado é que na vida real o Mazzaropi era uma pessoa
muito séria. Andava de terno, cabelo engomado com gel, carro de chofer. Foi
muito simpático conosco e gostava do Robertinho”.
A carreira do montador
poderia ter ido mais longe. Mas tudo mudou naquele segundo semestre de 1973.
Nem Gaúcho nem Roberto tinham militância política ou eram de alguma organização
contrária a Ditadura. Muito pelo contrário. Gaúcho e Roberto eram operários do
cinema. Não tinham ideais políticos. Os dois moravam num apartamento alugado na
rua Helena Zerrener, 104, Baixada do Glicério, centro de São Paulo. A região
sempre foi habitada por uma classe média baixa. Historicamente, os cortiços
foram comuns no bairro. O problema é que eles alugaram o apartamento de um
jovem estudante de economia chamado Pedro Camargo.
“O Roberto tinha
estudado na infância com esse rapaz. Então, um dia eles se encontraram na rua
por acaso e o Pedro chamou os dois para morarem lá. Isso porque o Roberto
contou que ele e o Gaúcho moravam nos estúdios de filmagem do Zé do Caixão.
Dormiam dentro do caixão inclusive”, explica Dalete. Pedro estudava na USP
(Universidade de São Paulo) e era suspeito de ter lutado contra a Ditadura
Militar. Logo, todas as pessoas próximas a eles eram suspeitos de serem
“subversivos” ou “terroristas”. Gaúcho e Roberto sabiam que essa possibilidade
existia.
Mas a confirmação
acabou acontecendo. Da pior maneira possível. Os dois amigos foram capturados
por duas viaturas policiais. Foram encapuzados e levados inicialmente para as
dependências do antigo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social)
localizado no largo General Osório, centro de São Paulo. Depois foram para o
DOI-CODI, órgão de repressão localizado na rua Tutóia. Foi lá que ficaram
presos. Gaúcho acredita que foram durante duas semanas. Dalete afirma que foi
uma semana. “Eles perderam completamente a noção de tempo lá dentro. Isso fazia
parte da tortura mental que fizeram com eles”.
As lembranças são as
piores possíveis. “É um pavor total. Você não tinha noção de nada: tempo,
futuro. Você só ouve gritos, gemidos. É terrível”. Nos interrogatórios, davam
um pedaço de papel e uma caneta. A ideia era que os dois dessem nomes de
pessoas que estivessem colaborando com movimentos comunistas ou esquerdistas.
Mas Roveda afirma que não conhecia ninguém que estivesse engajado na luta
política. “Eu ia colocar o nome de quem? Mazzaropi? Mojica? David Cardoso?”. Os
interrogatórios diários eram acompanhados de tortura física (socos, pontapés,
golpes, palmatória, cadeira do dragão) e morais (simulação de execução, ofensas
de baixo calão, ameaça de torturas de familiares). “Aquilo que fizeram com eles
foi brutal”, explica Dalete Cunha de maneira emocionada.
Roberto e Dalete eram
noivos quando aconteceu a prisão. O montador foi detido com uma aliança com o
nome da amada cravada no anel. “Os militares queriam saber quem era aquela
Dalete da aliança. As torturas aumentaram e mesmo assim ele não revelou. O
Roberto manteve-se firme”, relembra emocionada. Na época da prisão, os dois
foram tidos como desaparecidos. Dalete foi atrás ao irmão de Roberto chamado
Benedito que era despachante e eles passaram a correr pelos distritos policiais
da cidade atrás dos dois. “Nós chegamos a ir no IML (Instituto Médico Legal)
para abrir as gavetas atrás dos corpos deles”. A viúva afirma que a aliança e
vários pertences dos dois amigos foram apreendidos pelas “autoridades”
militares.
Dalete lembra que
Gaúcho e Roberto foram soltos num domingo. “Eles estavam física e
emocionalmente arrasados, destruídos. Acabaram indo pra casa dos meus pais onde
ficaram meses dormindo em colchonetes. Não deixamos eles voltarem para o
apartamento de jeito nenhum”. Roveda diz que a readaptação para a vida diária
não foi nada fácil. “Você sempre fica suspeitando, olhando para os cantos. Com
medo de te pegarem de novo, de viver aquilo tudo de novo. É terrível”.
Os nomes de Roberto
Leme e Virgílio Roveda estão nos arquivos do DOPS (Departamento de Ordem
Política e Social). O boletim informa que os dois estiveram prestando
depoimento no órgão entre os dias 3 e 4 de outubro de 1973 por terem ligações
com Pedro de Camargo (vulgo “Fábio” Ou “Joel”). Existem diversos Pedro de
Camargo citados nas fichas do DOPS.
Mas o único Pedro de
Camargo que tem os codinomes Fábio e Joel tem uma ficha bem extensa. Segundo os
documentos, ele nasceu em 9 de setembro de 1945 na cidade de Cerquilho,
interior de São Paulo. O órgão informa que ele usava seis codinomes: “Fábio”,
“Joel”, “Ângelo”, “Bruno”, “Magrela” e “Álvaro”. Em 27 de outubro de 1969,
Pedro foi indiciado pela Lei de Segurança Nacional por “atividades subversivas
terroristas da organização auto denominada ALIANÇA LIBERTADORA NACIONAL- ALN”.
Em 1970, ele foi novamente indiciado três vezes tendo inclusive a prisão
preventiva decretada. Ele acabou preso em 4 de novembro de 1973. No ano
seguinte foi indiciado e condenado a quinze meses de reclusão por ter passagens
por organizações militantes como VAR-Palmares e MR-8. Segundo o inquérito: “Em
janeiro de 1973, voltou ao Chile de lá trazendo 250 mil dólares que lhe foram
entregues pelo MR-8 chileno para financiar a subversão no Brasil. Dirigiu
reunião do partido na Praia Grande, no carnaval do mesmo ano”. Em 19 de dezembro de 1974 ele foi colocado em
liberdade e dois anos depois julgado e condenado pelo Conselho Permanente de
Justiça da 3º auditoria da 2º CJM em 1976. Ficou preso por dois anos e seis
meses. O mandato foi cumprido e foi colocado em liberdade em 10 de abril de
1978.
Já Gaúcho e Roberto se tornaram
sócios em 1974. Os dois fundaram a produtora Prodsul Cinema e Audiovisuais,
empresa destinada a prestação de serviços dentro da especialização de seus
sócios. Gaúcho atuava como assistente de câmera e diretor de fotografia e
Robertinho como montador. O escritório da Prodsul era sediado num dos andares
da rua do Triunfo, 173, na Boca paulista. Os dois chegaram a ser donos de uma
sala de cinema chamada Cine São Paulo na cidade de Dourado, interior de São
Paulo. Ambos também produziram dois longas-metragens (O Sexo e As Pipas de José Vedovato e A Opção: Rosas da Estrada de Ozualdo Candeias). Dalete e Roberto se
casaram no civil e no religioso numa quinta-feira, dia 5 de dezembro de 1974,
na paróquia de Santa Ifigênia, centro de São Paulo. “Foi um momento
inesquecível. Casamos pertinho da Boca para os amigos irem direto dos bares
para a cerimônia. Enchemos a igreja de gente do cinema”, lembra Dalete. Na
ocasião, Gaúcho foi padrinho, fez as fotos da cerimônia e gravou o filme.
As sessões de tortura
deixaram danos irreversíveis tanto em Gaúcho como em Roberto. O diretor de
fotografia sulista sofre de uma deficiência no ouvido até hoje. Já o montador
Roberto Leme sofreu alucinações e ficou com mania de perseguição. “O Robertinho
virou outra pessoa. Ficou violento. Mudou a personalidade dele completamente”,
garante Dalete emocionada. Tanto que o próprio casamento dos dois foi abreviado
e acabaram se separando alguns anos depois. Roberto não tinha hábitos etílicos.
Após o episódio da prisão começou a beber e atrasar-se para compromissos
pessoais e profissionais. “Ele tornou-se alcoólatra. O Roberto bebia pinga
pura. Tivemos duas filhas e aquilo foi me enchendo. Ele ficava muito
desequilibrado e passou a ser um risco para as meninas”.
O montador chegou a se
atrasar inclusive para o casamento de Gaúcho e Norma em 1979. Acabou perdendo a
chance de ser padrinho. “A Dalete acabou atrasando para o casamento e os tios
da Norma substituíram eles”, lembra Roveda rindo. Já Dalete Cunha conta outra
versão. Ela garante que a culpa do atraso não foi dela. “O Roberto foi buscar
uma câmera para gravar o casamento. Mas ele passou num boteco com um pessoal e
atrasou tudo. Ele já não estava bem de cabeça”.
Compositor, maestro,
poliglota, seminarista, montador cinematográfico. Roberto Leme acabou
encerrando sua vida sendo porteiro de um prédio. “O Roberto poderia ter sido
muito mais. Tudo acabou sendo sequela daquele triste episódio. Destruíram sua
saúde, seus sonhos, sua família e sua vida”, lembra Dalete. Passados quase 47
anos da prisão dos dois, tanto Roberto como Gaúcho nunca receberam nenhuma
indenização. Dalete entrou com um pedido num escritório de advocacia
especializado em Direitos Humanos. “A advogada que cuida do caso afirma que os
processos foram abertos. Mas até agora não obtivemos nenhuma resposta. Já fazem
três anos que entregamos os documentos que nos pediram. Mas com esse governo
infame que infelizmente está aí não tenho esperança de que aconteça alguma
coisa”, lamenta Dalete.
Especializado em
Direitos Humanos, o advogado Pablo Biondi é o encarregado do caso. Mas ele não
tem grandes esperanças. “Infelizmente, os processos estão parados já que a
Comissão de Anistia está trabalhando num ritmo decrescente. Aliás, sob o atual
governo esse quadro se agravou muito. Sem nenhuma novidade ainda”.
Publicado originalmente no site de direitos humanos A Ponte: www.ponte.org.br
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