Capítulo 2- O Golpe de Mestre
Por Matheus Trunk
Início de 1964.
Virgílio Roveda tem dezenove anos e deixa a casa dos pais em Vacaria, interior
do Rio Grande do Sul. Ele deixa o estado natal pela primeira vez. Ex-soldador,
ferreiro e mecânico, seu sonho profissional não está na indústria
automobilística. Antes, o jovem também serviu o Exército Brasileiro. Mas logo
percebeu que passar o dia inteiro no quartel não era a sua praia. Seu sonho era
audacioso. Ele queria trabalhar com cinema. Ser artista? Não. Roveda não
desejava isso e não tinha o tipo físico de galã. Magro, franzino e um tanto
tímido, Gaúcho queria atuar atrás das câmeras. Essa era sua obsessão desde
quando ele matava as aulas noturnas no antigo segundo grau. Tudo por causa do
bendito cinema. Mas Roveda não era o único que trocava as aulas pela sétima
arte. Os colegas Darci e Ênio também perdiam horas e horas nas salas de cinema.
Os testes macabros: Virgílio Roveda e Mojica ao fundo. Acervo pessoal de Virgílio Roveda |
“Eu não ia ao colégio e ficava vendo filmes. Assim, fui assistindo trabalhos de diretores europeus como Buñuel, Godard, Fellini, Bergman. Eu via tudo isso ainda em Vacaria”. Na cidade, existiam duas salas de cinema: o Guarani (com uma programação interessante) e o Real (mais dedicado aos faroestes). No início dos anos 60, a cidade tinha apenas 30 mil habitantes. Nesse período, poucos devem ter ido tanto às salas de cinema da cidade como Gaúcho e seus amigos. Um filme que chamou a atenção do jovem foi Viridiana, do diretor espanhol Luis Buñuel. O cinema autoral europeu chamava bastante a atenção dele. As produções comerciais norte-americanas não despertavam tanto interesse. Um pensamento começou a brotar na cabeça de Roveda: “Preciso fazer esse troço: cinema”. Ser mecânico de automóveis não estava no plano de Virgílio por muito tempo. Era um empregado temporário que fazia o jovem auxiliar financeiramente os pais e irmãos.
O contato com a
produção cinematográfica brasileira acontece com as chanchadas e clássicos como
O Cangaceiro, de Lima Barreto. Um
filme nacional que causou impacto no jovem é O Pagador de Promessas, do cineasta Anselmo Duarte. Este
longa-metragem recebeu a Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 1962. Foi um
dos primeiros filmes nacionais a serem premiados no Exterior. Ainda em sua
terra natal, o mecânico consegue ter acesso a outras cinematografias
latino-americanas. A referência eram as produções musicais argentinas
estreladas pelo cantor Carlos Gardel e os filmes mexicanos do comediante
Cantinflas. O músico Miguel Aceves Mejía era outra estrela internacional nos
anos 60. As películas rancheiras estreladas pelo ídolo fizeram um sucesso
estrondoso no Brasil. Tanto que diversas duplas sertanejas nacionais começaram
suas carreiras inspiradas em Mejía. Roveda também assistiu aos trabalhos do
cantor no saudoso Cine Guarani. Infelizmente, os dois cinemas da cidade que o
técnico e amigos frequentavam não existe mais.
Centro da pequena Vacaria (RS) nos anos 1960: Virgílio Roveda nasceu nessa cidade em 02/08/1945. Acervo Clicrbs |
Roveda percebe que está perdendo tempo permanecendo em sua terra natal. Decide então lançar-se numa aventura e ir para o Rio de Janeiro. Consegue carona com um amigo caminhoneiro. Na época, a cidade era tida como a capital cultural do país. O jovem sulista partido com bom humor. Seria fácil conseguir alguma ocupação na Cidade Maravilhosa. Cheio de energia, Gaúcho topava qualquer negócio. Até mesmo uma ocupação mais humilde. Como ele não tinha cara feia. Levou do Rio Grande apenas uma muda de roupas.
Bate na porta das
produtoras cinematográficas tentando alguma oportunidade. Vivia-se o período
posterior ao Golpe Militar. Grande parte da classe artística brasileira estava
frustrada. A maioria das produções estava parada. Gaúcho fracassa em sua
primeira tentativa. Frustrado e com pouco dinheiro, acaba comendo pouco e tendo
de dormir na praia. “Eu tinha uma grana controlada. Não dava para fazer grandes
coisas”.
Registro do início da década de 1960: Catedral de Nossa Senhora da Oliveira, no centro de Vacaria. |
A situação ia se
complicando. “Melhor regressar pro Rio Grande”, pensa. Roveda inicia a volta
para sua terra natal. Mais uma vez de carona. Por acaso, resolve ficar alguns
dias em São Paulo. Foi quando tudo mudou. Gaúcho nem imaginava, mas ele
regressaria ao Sul com o futuro praticamente assegurado na sétima arte.
O Brás é um bairro da região
central de São Paulo conhecido pelo comércio de rua. Numa tarde de março de
1965, o jovem Virgílio Roveda procurava uma camisa e uma calça por preços
populares. Queria voltar para o Sul com um guarda-roupa maior. Peregrinou pelos
estabelecimentos do bairro com o ânimo usual.
Virgílio Roveda, o Gaúcho no início da década de 1960. Ele é o terceiro da foto. Acervo pessoal de Virgílio Roveda |
Mas o pesado verão
paulistano não colaborava. A fome e a sede batiam na porta. Por isso, Gaúcho
decidiu interromper as compras para dar uma esticada em um bar. Uma pessoa
chama atenção no estabelecimento. Era um homem de quase 30 anos, barba e unhas
enormes. Vestido com um terno azul marinho e colete, o tipo chama a atenção de
todos no boteco. Conversa animadamente com os demais e dá risada de tudo.
Curioso e inquieto, Gaúcho resolve conversar com um dos companheiros do homem
de terno azul marinho.
- Amigo, quem é aquele
cara de unhas grandes?
- Você não conhece ele?
É o José Mojica Marins, o Zé do Caixão. Ele é cineasta e produtor. É famoso em
todo o Brasil.
Os olhos do jovem
sulista começaram a brilhar. Tinha achado o caminho para iniciar sua carreira
no cinema. Queria trabalhar na área de qualquer maneira. Não podia perder
aquela oportunidade. O assistente de Zé do Caixão lhe informou que o grupo iria
começar um longa-metragem em dois meses apenas. Estavam precisando de
figurantes. Dava tempo para retornar a Vacaria e juntar um valor em dinheiro.
Naquele dia, Gaúcho e Mojica foram rapidamente apresentados. Nenhum dos dois
poderia imaginar que se tornariam longos parceiros de trabalho. Ao todo,
Virgílio Roveda e Zé do Caixão trabalharam juntos em 15 longas-metragens.
Virgílio Roveda e José Mojica Marins no intervalo de filmagens de "A Quinta Dimensão", filme lançado em 1984. Acervo pessoal de Virgílio Roveda |
Mojica não lembra ao certo quando conheceu Gaúcho. “Sei que foi na época em que estávamos fazendo O Diabo de Vila Velha”, destaca o cineasta. “Estávamos precisando de atores para compor a figuração. Não importava a origem da pessoa. Lógico que ele, sendo do Rio Grande do Sul, chamou a nossa atenção, e o apelido acabou pegando. Foi inclusive Mojica quem deu o apelido que Roveda usa no meio cinematográfico até hoje: Gaúcho.
A permanência em
Vacaria foi rápida. O jovem não chegou a comentar com os pais que pretendia
seguir carreira na área cinematográfica. Disse apenas que tinha conseguido
emprego na pujante capital bandeirante. “Vacaria ficou pequena pra mim”,
argumentou. Não chegou a comentar que pretendia fazer cinema em São Paulo. Nem
que tinha conhecido o cineasta José Mojica Marins, o famoso Zé do Caixão.
A despedida da família
foi feita de maneira rápida. Seu Demétrio e dona Santina nunca pensaram que ficariam
sem rever o filho Virgílio durante quatro anos. Durante todo esse tempo, a
família no Sul não teve nenhuma notícia do jovem. Nem mesmo se estava vivo ou
morto. “Eu não faria isso novamente hoje”, relembra Gaúcho.
Com poucos pertences, o
jovem logo estava de volta à capital paulista. Sabia que iria começar a
carreira cinematográfica por baixo. Por isso mesmo, Roveda arrumou emprego numa
metalúrgica. Sabia que o cinema era uma área instável. Por isso, Gaúcho
pretendia ter um emprego fixo. Na metalúrgica, a função do jovem era construir
carrinhos de feira. A empresa ficava na alameda Nothmann, no bairro paulistano
de Santa Cecília. Para fabricar os carrinhos, era necessário usar máscara e um
avental de couro. O jovem sulista não se entendeu muito bem com os carrinhos.
Acabou ficando apenas um mês nesta função. Isso porque ele ficava mais tempo
nos estúdios de Zé do Caixão.
Este é um dos capítulos do livro “O Coringa do Cinema”, de minha autoria publicado pela editora Giostri em 2013
Um comentário:
òtimo artigo
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