Bastidores do rádio, parte V de VII: Rádio Nacional
Por Renato Murce
Seleção e transcrição:
Matheus Trunk
Fomos para a Rádio
Nacional em julho de 1945. Aqui começo, então, o capítulo que aquela grande
emissora merece. A Rádio Nacional foi a própria essência do rádio no Brasil por
cerca de duas décadas. Desde a sua fundação, em 1936, começou a assumir a
liderança das transmissões artísticas. Essa liderança consolidou-se. Não mais a
perdeu até a década de 1960.
Teve início então o seu
declínio, numa descida impressionante e lamentável. Os ouvintes, até hoje, não
podem compreender como aconteceu. Nós, porém, que lá trabalhávamos, sabemos
muito bem as caudas dessa derrocada.
Inaugurada em 1926, sob
os auspícios do vespertino A Noite,
jornal então popularíssimo, dispunha, ainda, de outros órgãos de divulgação,
como A Noite Ilustrada e Carioca, revistas muito bem aceitas pelo
público. Davam uma larga cobertura às atividades da PRE-8. Começou logo a se
destacar, embora lutando durante cerca de quatro anos com as outras estações,
pois a Mayrink Veiga liderava o sem-fio desde 1934.
Passou ela, no entanto,
para a órbita governamental em 1940. A Rádio Nacional, anexada às Empresas
Incorporadoras ao Patrimônio Nacional, assumiu o primeiro lugar entre as rádios
do Brasil. E se manteve de maneira desacatadíssima durante mais de 20 anos. Mas
com essa transformação de empresa particular em “repartição pública”, criou-se
uma situação para seus artistas e funcionários. Não sabiam que terreno se
situavam: continuaram como comerciários, descontando para o IAPC como tal. E
como servidores públicos, servindo a uma repartição do governo. E essa
dubiedade não se definiu pelos tempos afora.
Até os dias de hoje,
quando muitos já se aposentaram, continuamos comerciários. Em todos os
movimentos em favor dos inativos, nós, praticamente, “não existimos”. Acham que
quem não foi servidor público (e nós, oficialmente, não o somos, apesar dos 26
anos de serviço na Rádio Nacional), não tem direito a nenhum aumento, a nenhum
reajuste. Como se nós também não tivéssemos os nossos problemas, e bem sérios,
para não falar em nossas necessidades, mais sérias ainda.
Isso, porém, não foi
culpa da Rádio Nacional, mas dos inúmeros diretores que por lá passaram. Não
moveram uma palha para legalizar essa posição dúbia dos seus auxiliares.
Feita essa digressão,
não direi de ordem reivindicatória (porque não vai adiantar nada), voltemos a
falar da Rádio Nacional propriamente dita. Foi um padrão de emissora. Não só
para o Brasil, mas até mesmo para toda a América Latina. Chegando, em pouco tempo,
a suplantar a célebre Rádio El Mundo, de Buenos Aires, tida como insuperável.
Tendo em seu cast o que
de melhor havia no meio artístico da nossa terra, além de colaboradores
experimentados e compententíssimos, a Rádio Nacional, de certa época em diante,
não precisava lutar por uma liderança. A cada dia mais se afirmava. Dois anos
depois, em 1942, tomou conta de quase todos os aparelhos receptores. Lançou
então sua primeira novela: “Em Busca da Felicidade”.
Estava com o prestígio
consolidado, e assim se manteria por muito tempo. Graças a uma equipe fabulosa
de produtores e um cast artístico da mais alta qualidade. Encontrávamos ali
nomes como: Lamartine Babo, Almirante, José Mauro, Haroldo Barbosa, Paulo
Tapajós, Fernando Lobo, Nestor de Holanda, Giuseppe Ghiarone, Alizro Zarur,
Oracine Franco, Ilka Labarte, Léa Silva, professora Lúcia de Magalhães, Paulo
Roberto, Ary Barroso, Lourival Marques, J. Rui, Max Nunes, Mário Faccini, Pedro
Anísio, Hélio do Soveral, Mário Lago, Saint-Clair Lopes, Oduvaldo Viana, Dias
Gomes e Gastão Pereira da Silva. Maestros da envergadura de Radamés Gnatalli,
Romeu Ghipsman, Léo Perachi, Lírio Panicali, Alceu Bochino, Alberto Lazzoli,
Alexandra Gnatali, Escole Vareto, Chiquinho e mais alguns.
Antes, porém, de
começarmos a contar as possíveis razões da queda da Rádio Nacional, deixemos de
lado a nossa memória. Vamos nos valer de um bem feito catálogo que a grande
emissora publicou para distribuir aos clientes e amigos.
Em 12 de setembro de
1956, comemorou ela com grande pompa seus gloriosos 20 anos de existência.
Pairava a radiosa esperança da breve instalação da TV Nacional, prometida pelo
Sr. Juscelino. O memorável despacho era de 18 de julho daquele ano. Chegou-se,
até, a importar todo o material da melhor qualidade para aquele evento. Sou
admirador do Sr. Juscelino, em que reconheço grandes méritos. Dei-lhe o meu
voto. Julgo-me insuspeito para atribuir-lhe, em parte, a decadência da
Nacional. Mas ele numa atitude, para nós, incompreensível, vetou posteriormente
a TV Nacional.
Constava o seguinte: o
Sr. Assis Chateaubriand vislumbrou o risco que correriam as Emissoras
Associadas (a concorrência de uma TV). A nova TV Nacional levaria para as suas
antenas toda aquela incomensurável força e o amplo know-how que sempre
demonstrara. Assis Chateaubriand ameaçou o então presidente da república:
iniciaria e desenvolveria uma campanha política contra o seu governo. Faria
isso através de sua grande rede de emissoras de rádio, TV e jornais. Razões
políticas, portanto, devem ter influído no gesto do Sr. Juscelino. Quando o
material chegou à Rádio Nacional, foi encaminhado para Brasília. Está lá até
hoje. Choveram promessas de mandar buscar outros transmissores. De promessa em
promessa, a coisa foi caindo no esquecimento. Assunto encerrado.
Vale reproduzir
pequenos trechos do discurso com que o diretor da Nacional, na época o Sr.
Moacir Arêas, se dirigiu ao público, sob o título de “O Salto para o Futuro”.
“Ao folhear a última
página deste livro, o leitor deverá ter uma noção, ainda que apenas em largos
traços, do que é hoje a Rádio Nacional...Como broadcasting a sua curva
ascendente perde-se no infinito. E a sua missão está literalmente cumprida. Os
novos passos, neste terreno, serão a rotina do progresso e da adaptação às
novas condições com que fatalmente se defrontará o rádio em nosso país, diante
do advento da televisão. Então, meus amigos, o assunto que marca este salto
para o futuro é a televisão. O presidente Juscelino Kubistcheck de Oliveira, em
memorável despacho de 18 de julho de 1956, acertou definitivamente os rumos da
“Nacional TV”. Muito cedo, nos próximos meses, os receptores da televisão da
Capital da República e adjacências estarão assinalando a existência do Canal 4,
onde se estampará a imagem da nossa TV...Com estas notícias creio encerrar este
livro com fecho de outo, pois elas levarão alegria e entusiasmo a esse generoso
público que sempre apoiou a Rádio Nacional...Nesse instante tão longínquo do
futuro, então a Rádio Nacional, através de sua televisão, procurará estar presente,
como sempre, ao lado e a serviço do povo brasileiro”.
Agora, pergunto eu:
haverá uma só pessoa nesse imenso Brasil que possa duvidar do predomínio total
que a TV Nacional iria exercer sobre o público? A larga experiência, a
quantidade fabulosa de colaboradores de que dispunha, o conhecimento profundo
do paladar do público em relação a programas, etc.? Não! Ninguém poderia
competir com a Nacional na televisão. Também jamais pôde competir no rádio. A
sua fase áurea predominou por mais de 20 anos.
O livro publicado para
comemorar essa vintena de trabalho, é notável. Dá bem uma ideia do poder da
emissora. Publica mais de 200 expressivas fotografias. Apresenta uma relação de
112 radioatores e radioatrizes; 76 cantores e cantoras; 99 músicos contratados
(só os violinos eram 25); 47 músicos a cachê; 16 músicos dos conjuntos
regionais; 10 solistas; 46 locutores; 5 repórteres e 22 produtores. Isso, sem
contar o pessoal técnico e administrativo. Totalizava cerca de 700 pessoas a
serviço da emissora. No mês de setembro de 1956 a Nacional tinha no ar: 16
novelas; 10 programas de radioteatro (não seriados); 15 programas mistos; 22
programas de auditório e 6 programas especializados.
Mas o livro sobre os 20
anos da Rádio Nacional está muito bom. Muito fiel no relato das suas inegáveis
grandezas. Como é natural, omisso nas suas falhas, nos seus erros, que não
foram poucos.
Na Nacional predominava
a disparidade de vencimentos: uns ganhando salários fabulosos para a época;
outros, a maioria salários “de fome” (como acontece ainda hoje nas grandes
empresas). A caixa, atendia pela paciente e bondosa D. Maria, era procurada
diariamente. Uma romaria de artistas e funcionários ia em busca de pequenos
vales para atender a necessidades prementes.
Os ordenados da Rádio
Nacional, que antes eram os mais sedutores, pararam no tempo e no espaço.
Principalmente para os artistas e funcionários antigos da casa. Para os que
chegavam nas caravanas de “paraquedista” acompanhando os diretores
(frequentemente mudados), os vencimentos eram mesmo quatro ou cinco vezes
maiores do que os dos que lá estavam. E chegavam, para “não fazer nada”.
A estação passou, então, a não ter mais atrativos. Foi, paulatinamente,
suplantada pelas outras. Chegou a ocupar um lugar ridículo quanto à audiência.
Engraçado é que a
esperança da televisão ainda se manteve por algum tempo. As máquinas importadas
para nós tiveram rumo de Brasília (ordem do governo, para satisfação do Sr.
Chateaubriand). Alguns tolos como eu, César Ladeira, Celso Guimarães, Paulo
Tapajós, Floriano Faissal e Paulo Roberto, nos mantivemos fiéis à nossa PRE-8.
Acreditávamos numa reação ou reviravolta. Infelizmente não veio. Perdemos a
melhor oportunidade de ingressar na TV. Faríamos aquilo que, com sucesso,
fazíamos na Rádio Nacional.
Toda a gente sabe que a
televisão hoje está fazendo (e mal feito) tudo aquilo que já realizamos há 20
ou 30 anos passados.
O relato da Rádio
Nacional vai só até 1956. São realmente impressionantes os dados sobre o
radiojornalismo, radioteatro, setor de correspondência, seção administrativa,
expansão comercial. Logo de saída vêm as fotografias dos 9 primeiros diretores
gerais (dos quais não existem muitas queixas): Cauby Araújo, pegou a fase pior,
de 1936 a 1940: o começo que, como em tudo, é o mais trabalhoso; o começo que,
como em tudo, é o mais trabalhoso; Gilberto de Andrade, de 1940 a 1946: fez uma
administração serena, sem problemas, pois a Rádio já expandia por si mesma e
apoiada pelo governo; Hermenegildo Portocarrero (pai de Tônia Carrero): não
teve tempo de fazer coisa alguma, não ficou nem um ano na direção da casa.
Viria, depois, um bom diretor: Armando Calmon Costa, levando pelo melhor
superintendente que as empresas já tiveram: o coronel Leony Machado. Esteve à
testa da Nacional de 1946 a 1950. Prestigiava os seus colaboradores, e isso
numa época em que Vítor Costa teve uma atuação destacadíssima que o levaria
mais tarde à direção-geral, quando Getúlio voltou ao poder em 1951. De 1950 a
1951 tivemos um Sr. José Caó, como diretor, uma “piada”...Com a morte de
Getúlio e a lamentável saída de Vítor Costa, tivemos no governo Café Filho, a
rápida passagem, pela direção da Rádio de dois nomes que considero os melhores
que por lá apareceram. Infelizmente, ficaram menos de um ano cada um: Marcial
Dias Pequeno e Odylo Costa Filho. Estávamos em 1954-55. Veio, logo depois, o
Sr. Moacyr Arêas. Em 1956, ainda estava lá prometendo a TV que não viria nunca.
Temos em mãos um
exemplar, de 1950 do Anuário do Rádio. Revista especializada da época, tem
dados curiosos sobre a situação das estações de rádio junto aos ouvintes.
Cantores preferidos: Orlando Silva com 15%, Francisco Alves com 14, Sílvio
Caldas 13, Emilinha Borba 11, Vicente Celestino 9, e Carlos Galhardo 6 (todos
da Nacional). Além de outros, nacionais e estrangeiros de 3 a 2% para baixo. A
referida revista faz um excelente apanhado sobre o rádio em todo o Brasil.
Demonstra, inclusive, a grande expansão do mesmo em toda a parte, notadamente
no Rio Grande do Sul. Exceto no Paraná, onde a Rádio Guaicará, em Curitiba,
ganhava por pequena margem da Nacional, esta estava sempre na frente. Em toda a
parte menos, é óbvio, na capital paulista. Mas liderando em todo o interior
daquele Estado.
Numa pesquisa feita no Rio para apontar os dez melhores programas, em diversos gêneros,
pertenciam todos à Rádio Nacional. Três ali fazíamos: “Alma do Sertão”, “Piadas
do Manduca” e “Papel Carbono” figuravam sempre entre os três ou quatro melhores
classificados. No horário das 20h30 min., por exemplo, o programa “Alma do
Sertão” alcançava 35% de audiência. Logo abaixo da “PRK-30”, com 39; e da
novela daquele horário, com 35,5%. “Piadas do Manduca” vinha logo a seguir, com
34%. “Papel Carbono” figurava em primeiro lugar no horário das 21h30 min, com
33%. Isso, competindo com outros grandes programas, como “Tabuleiro da Baiana”,
“Nada além de Dois Minutos”, “Tancredo e Trancado” e as novelas, estas com uma
força tremenda. Além de mais 65 programas irradiados no decorrer de cada
semana.
Mas quem escreve sobre
rádio não pode deixar de falar nos célebres auditórios. E nos grandes mitos que
eles criaram. Serão os auditórios um bem ou um mal? Creio que são uma faca de
dois gumes. Mais para melhor do que para pior. Hoje, no rádio, já não têm
grande expressão. Na própria televisão foram quase abolidos; substituídos por
uma claque “encomendada” que atua numa desafinação terrível. Isso está
acontecendo, por exemplo, nos programas cômicos. Chega a irritar o ouvinte ou o
telespectador a importunidade dos seus pronunciamentos. Principalmente quando não
é hora de rir, ouvem-se gargalhadas totalmente disparatadas. E silêncio quando
realmente há algo engraçado. Os “maestros” da claque (na televisão) precisam
aprender muito.
Os auditórios, quando não invadidos por maus elementos, são um bem. Gente
decente, famílias de parcos recursos que ali vão (ou iam) apreciar e aplaudir
de perto seus ídolos. Sua presença e suas manifestações constituem elemento de
alegria. E é transmitido pelos microfones: sugestiona os ouvintes de casa que
se integram naquele ambiente. Eles não o veem, mas o formam em sua imaginação. Principalmente
nos programas de variedades e nos humorísticos. Passam a ser um mal,
entretanto, quando “encomendados” e dirigidos por uma turma de desocupados.
Comparecem para se digladiarem, num comportamento reprovável, em torno dos
“astros” ou “estrelas” que os contrataram.
Na Rádio Nacional,
havia os dois tipos de auditórios: os muito bons para os chamados programas de
classe, que não promoviam artistas medíocres, nem distribuíam prêmios com o fim
de atrair os seus frequentadores. E os “mesclados”, muito ruins, aglutinando
uma “fauna” difícil de definir. A Rádio Nacional ficava na praça Mauá.
Favorecia, pelo local, essa espécie de frequência para programas
“popularescos”. Além dos referidos prêmios, procurava-se promover, de qualquer
maneira, certos artistas. Nunca seus méritos vocais ou cênicos poderiam
provocar aquele desmedido entusiasmo dos fãs.
Esse fato não foi
combatido na ocasião oportuna. Hoje seria deselegante de minha parte citar nome
de artistas medíocres. É que já estão, como eu, na compulsória. Por certo, vão
passar o resto da vida naquela ilusão de que foram mesmo “astros” de verdade.
Enganam-se a si mesmo com uma glória que era toda falsa, que foi fabricada por
eles mesmos. O público daquela geração sabe bem de quem estou falando. Chegaram
a promover manifestações tão ruidosas, que as frequentadoras da Rádio Nacional
eram chamadas de “macacas de auditório”.
Um caso singular, no
entanto, não podemos deixar de citar: Cauby Peixoto, ainda hoje atuando, e
atuando bem, pois tem grandes qualidades. Seu lançamento, contudo, feito pelo
empresário (um tal de Sr. Di Veras), foi a coisa mais ridícula que se pode
imaginar. O Sr. Di Veras chegava a vestir Cauby de casaca, em grande gala;
contratava “fãs” para estraçalhar-se as roupas ao sair da Rádio Nacional.
Convocava até polícia “proteger” o seu contratado...Os policiais participavam
da pantomima: erguiam Cauby, já todo rasgado, nos braços, para leva-lo até o
carro que deveria conduzi-lo, a grande velocidade, como que a fugir dos fãs.
Estou contando isso e citando o nome do Cauby, que como artista merece todo o
meu respeito, porque ele mesmo, em recente entrevista, contou tudo assim mesmo.
Os piores auditórios continham, pelo menos, 80% de desclassificados, para 20%
dos frequentadores de melhor qualidade, mais educados. Já nos auditórios bons
essa proporção se invertia. Não se podia, de todo, impedir o ingresso de uma
minoria duvidosa.
No mais, em matéria de
auditório, eram também notáveis os mitos criados pelos programas do César de
Alencar e do Manoel Barcelos. Promoviam as famosas festas de aniversário. Digo
“festas” de aniversário porque elas não aconteciam somente na data natalícia
das festejadas. Entendiam-se por um mês inteiro. Eram comemoradas cerca de oito
vezes na própria Nacional. E ainda recebiam, convites das outras emissoras,
para programas especiais em sua homenagem. Assim, chegavam ás vezes a comemorar
trinta dias de aniversário, com festas e presentes. E um mundo de outras coisas
promovidas pelos célebres “fãs-clubes”. Uma “confusão” total.
O rádio, como ninguém
ignora, criou uma série interminável de mitos. Sobre eles muita coisa se
pensava erradamente. Entre elas, a de que quem atingisse aquele grau de
prestígio junto ao público deveria ser, forçosamente, um artista rico! Puro
engano: os artistas, com muito raras exceções, ganhavam ordenados ridículos. A
única, ou maior, vantagem era a divulgação dos seus nomes por esse Brasil
afora. Tornava-os conhecidos. Proporcionava-lhes também uma renda extra:
atuavam em espetáculos ou faziam pequenas excursões ao inteiro do país durante
as férias. Desse expediente tive que me valer: equilibrava as finanças, sempre
em caixa muito baixa.
No mais, durante toda a minha estada no rádio, vivi sempre no meio de “prontos”
de toda a espécie. Era difícil encontrar quem dispusesse assim, de repente, de
dez ou vinte cruzeiros na carteira. Estou falando dos artistas e dos
empregados, notem bem...Os componentes da cúpula e sua grei, esses viviam a
“tripa fora”, no melhor dos mundos, para nós indevassável.
Ganhavam, também, muito
dinheiro os artistas estrangeiros que aqui aportavam. Nas curtas temporadas (15
dias, um mês, no máximo) arrecadavam mais do que qualquer um de nós em um ano!
Havia algum as exceções, de artistas que conseguiram contratos especiais
apresentando programas com os seus nomes como César de Alencar e Manoel
Barcelos. Tinham cláusulas de porcentagem sobre a publicidade apresentada nas
suas transmissões. Eram várias horas por semana. Os demais eram “mitos pobres”
ou “pobres mitos”. Eu, por exemplo. Além das excursões que fazia nas férias
(noutras épocas não podia faze-las: trabalhava muito), precisava juntar à minha
condição de produtor, ensaiador e intérprete dos diversos programas, a função de
vende-los para ganhar a devida corretagem. Um outro exemplo, entre muitos:
Rodolfo Mayer. Tinha ordenado muito pequeno, sendo um ator excepcional.
Conseguiu fazer sua situação econômica melhor, apresentado por esse Brasil a
fora, a célebre peça As Mãos de Eurídice,
de Pedro Bloch. Isso, para poder apresentar-se condignamente conforme o seu
valor exigia.
Mostrei um panorama da
Rádio Nacional. Baseei-me no que vi. E no que pude colher, em dados, contidos
no livro comemorativo dos seus vinte anos de atividades, que termina com a
promessa, para aqueles dias, da TV Nacional.
De 1956 para cá muita
coisa aconteceu. Depois de três ou quatro anos, quase tudo para pior. Até cerca
de 1961 ou 1962, ela ainda se manteve, mais ou menos, capengando, caindo aqui,
levantando ali. Mas depois, com o advento de Jânio Quadros, João Goulart,
revolução de 1964, depois de uma movimentação política tão confusa (apesar do
nosso esforço quase que heroico para mantê-la) a “desgringolada” foi quase
total. De vez em quando, a gente chegava na rádio e encontrava um movimento
desusado de pinturas de salas, mudanças de móveis e escrivaninhas, daqui pra lá
e de lá pra cá. Não era preciso perguntar: era diretor-geral novo que chegava
para ocupar o lugar de outro inepto que saía. Sim, não houve até hoje um
diretor da Rádio Nacional (com raras exceções) que não tivesse, como primeiro
ato “administrativo”, a mudança de salas e de móveis!
Ah...ia me esquecendo:
a gente também encontrava nos corredores, em aparente febril atividade, uns
“caras” que nunca tínhamos visto. Eram os inúmeros “assessores” dos novos
diretores: ganhavam ordenados dez vezes maiores do que os nossos. E com a
condição precípua de “não fazer nada”. Ou antes, de meter a modificar, a
atrapalhar o que estava sendo feito. Foram tantos que nem me lembro todos os
seus nomes. Poucos, muito poucos, não agiram dessa forma. Estou falando dos
diretores gerais...Diretores artísticos, ainda podemos citar alguns bons como
Paulo Tapajós, Celso Guimarães, Péricles do Amaral, poucos mais. Mas por serem
bons, não resistiram muito nos respectivos cargos.
Certo dia apareceu na
Rádio, como diretor, um jornalista e comentarista de TV, Paulo César Ferreira.
Encheu-nos de esperanças. Convocou os produtores: Eu, César Ladeira, Celso
Guimarães e outros. Quis saber da nossa situação, achou ridículos nossos
ordenados. Prometeu, sem ninguém pedir, dobrar os vencimentos. Para que todos
nós pudéssemos nos aposentar com uma quantia condigna (pelo menos, dez salários
mínimos). Falou muito nisso tudo nos primeiros dias. Depois, silenciou. E até
um encontro com ele se tornava difícil. Quando isso acontecia, dizia: “Não se
preocupem...Estou trabalhando, vocês merecem, etc”. A coisa já estava cansando
e se apresentando como realmente era: um blefe. Numa quarta-feira, César
Ladeira (que sofria do coração) encontrou-se comigo no radio-teatro e disse:
Renato, o Paulo César vai mesmo tomar alguma coisa? Ou está esperando a gente
morrer, para tomar alguma providência?!”. No dia seguinte, o tal diretor saiu
da estação. Foi ocupar outro cargo não sei onde (hoje ele é diretor da Rede
Globo de TV, em Recife).
Na segunda-feira, após
meu encontro com o Ladeira, esta falecia. Deixou-nos a todos verdadeiramente
desolados. No velório, na Capela Real Grandeza, como é costume, muita gente
(tratava-se de um nome excepcional do rádio): repórteres, câmeras de TV,
repórteres radiofônicos (inclusive o da Rádio Nacional), pedindo impressões
sobre a figura do ilustre morto. E vinha, então, aquela série de bestialógicos
e lugares comuns: perda irreparável, lacuna impreenchível, o rádio está de
luto, e outras mais. Quando me entrevistaram, disse apenas: “Lamento
profundamente um homem como César Ladeira tenha tido um fim tão melancólico.
Elogios agora, mandar fazer enterro, etc, não adianta nada! O que se devia
fazer por ele teria que ser feito em vida e não agora” Disse isso ao microfone
da estação em que trabalhava. Causou grande celeuma e um certo mal-estar. Fui
interpretado pelo diretor de rádio jornalismo da emissora. Á interpretação, respondi
com uma pergunta: “O senhor pode me informar se o que falei é verdade ou
mentira?!” Ele silenciou e não preciso dizer que a conversa parou por aí.
No velório de Paulo
Roberto, repeti a dose. Mas em outra emissora, porque ele já não pertencia aos
quadros da Nacional. Na morte de Celso Guimarães, um repórter se aproximava de
mim quando foi instado por um diretor presente, que disse: “O Renato Murce,
não! Esse é do contra!”.
No Brasil, quem fala a verdade “é do contra”. Mas a verdade é que, ainda que
pareça incrível, quando César Ladeira morreu, ganhava a ninharia de 800
cruzeiros mensais. Ainda não tinha se aposentado. Deixou uma pensão ínfima para
a mulher e os filhos. Essas coisas de Instituto, por mais que eles expliquem a
gente não entende nunca: tiram 20% pra isso, mais 5% praquilo, 3% praquiloutro,
no fim: ficaram 400 e poucos cruzeiros para a família. Com Paulo Roberto e
Celso Guimarães, não sei quanto foi. Mas deve ter sido coisa parecida.
Interessante é o
processo adotado para que a gente se aposente, e eles livrem de nós: não nos
despedem nem nos aumentam o ordenado. Esperam que a gente solicite a saída,
para se aposentar. Concordam, desde que deem somente 60% daquilo a que temos
direito. E a prazo, o que é uma coação econômica. A mim, que tinha direito a 50
mil cruzeiros, ofereceram 30 mil em 30 meses, ou seja, 1.000 cruzeiros por mês
(ganhava 800 cruzeiros; era como se eles me aguentassem lá por mais 30 meses. E
todos sabem que 30 mil cruzeiros em 30 meses, não são exatamente 30 mil...). Como
fizeram comigo, fizeram com muitos outros.
Tive a ventura de
trabalhar 26 anos na Rádio Nacional. Ou, por outra, 26 não exprimem bem a
verdade. Essa ventura foi de 10 a 15 anos talvez. Os anos restantes foram de
trabalho, de dedicação, mas de amargura. Presenciava o declínio da estação que
amávamos como se fosse o nosso próprio lar. Por isso, sinto-me à vontade para
fazer esses comentários. Não são frutos do despeito ou do fracasso. Mas da
tristeza com que presenciava os acontecimentos que ali se desenrolavam. E
transformaram a grande emissora, de primeira colocada de preferência dos
rádio-ouvintes, em quinta ou sexta (a posição que ocupava recentemente).
Saí daquela casa num
desencanto completo. Ali “baixou”, ninguém sabe como, um diretor artístico que
retirou do ar como medida inicial (autêntica provocação) as “Audições Renato
Murce”). Era um dos muito poucos que ainda carreavam ouvintes para a faixa dos
980 kclos. Suspendeu o programa sem dar explicações. No dia seguinte saía da
PRE-8, aceitando o acordo que me foi proposto. Não sem antes dizer algumas
verdades ao referido “diretor”. Um homem de físico alentado, que, não sei como,
“engoliu-as calado”.
Depois desse feito,
praticado à revelia do meu amigo Pandiá Pires, então superintendente, por ordem
deste o competente “diretor” foi compelido a me engajar novamente na Nacional.
Um programa de entrevistas que estava alcançando bastante êxito. Mas, com a
saída do Pandiá e a nomeação do seu substituto, meu novo programa foi extinto
quatro meses depois. A alegação para suspendê-lo foi a falta de verba (3.000).
No entanto, não faltou verba para nomear, por ordenado maior, outro elemento. E
no mesmo dia. Além daquela turma de “bravos assessores” que acompanha os
diretores que chegam.
Publicado originalmente
em MURCE, Renato. Bastidores do rádio:
fragmentos do rádio de ontem e hoje. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976.
3 comentários:
Gostaria muito de ter frequentado algum auditório de rádio.
Hoje está fazendo 75 anos da morte de Catulo da Paixão Cearense.
Muito bom
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