domingo, 18 de julho de 2021

Cineastas brasileiros em PBY: Entrevista com Cacá Diegues (julho de 1999)

Playboy entrevista Cacá Diegues

 

Uma conversa franca com o diretor de Orfeu sobre Cinema Novo e novo cinema, favela, paixões súbitas e Jeanne Moreau no canavial

 

Quem associa cinema a glamour e badalação pode encontrar um desafio intrigante na figura de Carlos José Fontes Diegues, 59 anos. Cacá, como é conhecido, pertence a uma espécie mais rara que mico-leão dourado: a dos cineastas brasileiros de sucesso – sucesso às vezes de crítica, ás vezes de público, ás vezes de ambos. Seu filme mais recente, Orfeu, se encaixa na última categoria. Bem recebido pela imprensa, essa transposição do mito grego para a favela carioca agradou também à plateia, que a prestigiou com números hoje espantosos: oito semanas após o lançamento, Orfeu somava cerca de 1 milhão de espectadores. Um ótimo retorno para o investimento vistoso de 7,2 milhões de reais. Em outras épocas, foi até melhor: há duas décadas, quando ver filmes na tela grande era de fato programa popular, Cacá vendeu, segundo calcula, 5,5 milhões de ingressos para Xica da Silva, de 1976 e 2,5 milhões para Bye Bye Brasil, de 1979. Sempre ativo, nem na era perdida do cinema nacional a virada da última década – se deixou abater: da meia dúzia de produções brasileiras lançadas em 1991, uma era sua, a comédia sugestivamente intitulada Dias Melhores Virão, rodada dois anos antes. Mas, mesmo com tantas cifras a seu favor, Cacá não anda por aí de carro importando nem bebe champanhe no café da manhã. Dirige um Gol preto modelo 1998, mora num apartamento confortável, mas não cinematográfico, na Gávea, bairro da Zona Sul carioca, e, como qualquer outro cidadão de classe média, quebra a cabeça no fim do mês para se reconciliar com as contas domésticas.


Se feita de outra forma, essa contabilidade toda prova que glamour e cinema brasileiro frequentemente andam divorciados. Afeito a emendas um projeto no outro, Cacá tem se dedicado à sua paixão desde 1964, quando ao lançar Ganga Zumba, tornou-se, junto com o amigo Glauber Rocha, um dos principais nomes do Cinema Novo – o movimento altamente politizado que ambicionava revolucionar o cinema brasileiro. Desses 35 anos passados atrás da câmera saíram catorze filmes, ou 25 horas de projeção. Mais algumas contas e, do ponto de vista meramente matemático, chega-se à modesta proporção de mais de 500 dias de trabalho para cada hora de filme. É, como diz Cacá de seu ofício, um superesforço para um miniresultado.

 

O mais curioso, no entanto, é que contém esse pouco mais de um dia de cinema produzido pelo diretor ao longo de sua vida: um Brasil ora rural, ora urbano, ás vezes contemporâneo, outras vezes visto pelo ângulo da História, mas sempre conturbado, controvertido, miscigenado, à procura de um papel e de uma solução – e de cuja existência Cacá só adolescente começou a suspeitar. Filho do antropólogo e professor Manoel Diegues Jr. e da filha de fazendeiro Zaíra Fontes Diegues – ambos já falecidos -, ele atravessou a infância e a puberdade em regime de semi-reclusão. Sua mãe, nascida na Zona da Mata alagoana, reagiu à mudança de Maceió para o Rio de Janeiro com verdadeiro pavor diante dos perigos da cidade grande. Sobrou para os filhos, que só podiam sair para o colégio, o futebol e o cinema, todos a distâncias curtíssimas de casa. Ou, como fez Cacá, transplantado para o Sudeste aos 6 anos, imaginar como era o Brasil além do bairro de Botafogo com a ajuda dos livros que seu pai, bibliófilo convicto, o estimulava a devorar.

 

Não é de estranhar, portanto, que ele tivesse se deslumbrado com o Brasil original quando veio a alforria da adolescência e, com ela, a militância estudantil, os jovens amigos com a ambição do cinema e aquela efervescência de um Rio que começava a se embalar com a Bossa Nova. Tanto que, de certa forma, se desgarrou. Seu irmão mais velho, Fernando, é hoje almirante da Marinha e conselheiro militar da missão do Brasil na ONU, em Genebra. Cláudio, o terceiro na escadinha, é economista, empresário da área de transportes e mora em Brasília – com a mais nova, Maria Madalena Diegues Quintela, antropóloga e assessora da diretora da Finep, ou Financiadora de Estudos e Projetos. Só Cacá, o segundo, foi ser artista. E hoje, pai de artista também.

 

Do casamento com a cantora Nara Leão – uma das estrelas da Bossa Nova, morta em 1989, vítima de um tumor cerebral – Cacá teve Isabel, 28 anos, e Francisco, 26. Dos últimos dezoito anos, vividos com Renata de Almeida Magalhães, 37, vieram a enteada Julia, 19, da união anterior de Renata, e a filha Flora, 12. Parece uma bagunça, mas, como explicou a mais velha à mais nova certa vez, trata-se apenas de uma família moderna. “É como escola de samba: tem várias alas, mas é com a mesma escola”. Na ala central ficam Francisco e Julia, que não se entusiasmaram pelo show-biz: ele é dono de uma grife esportiva e ela estuda Direito. No mesmo ritmo que o pai segue Isabel, com várias experiências como assistente de direção, roteirista e agora também diretora de um curta-metragem. Na abre-alas vai a caçula Flora, que só pensa em se tornar a primeira atriz do clã. E até Renata se juntou ao samba. Depois de muitos namoros com o cinema, a advogada de profissão resolveu assumir de uma vez por todas a vocação de produtora. Há dois anos, fundou com a sócia Paula Lavigne, mulher de Caetano Veloso, a Rio Vermelho. Foi na sede dessa empresa que, ao longo de 10 horas espalhadas em quatro sessões, Cacá Diegues recebeu Isabela Boscov, editora sênior de PLAYBOY, que conta:

 

“Bem no coração do Leblon, em um prédio ao lado do Colégio Santo Agostinho, é preciso enfrentar sete andares de elevadores que rangem e mais um pequeno lance de escada para alcançar a produtora Rio Vermelho – na verdade, um salão encarapitado no alto do edifício. Quem capitaneia o espaço reformado à base de divisórias, mas de ares modernistas, é Teresa Souza, há mais de dez anos faz-tudo de Cacá. Quando ele não está no set de filmagem ou apresentando suas produções em outras cidades, á lá o endereço mais certo para encontra-lo. Em um escritório de persianas amarelas, exatamente ao lado daquele ocupado por Renata e Paula, Cacá mantém uns poucos apetrechos necessários ao trabalho: mesa ampla, computador, aparelho de som, estantes recheadas de livros e uma foto em que Renata sorri para ele, tirada na festa conjunta de aniversário do ano passado – ela é de 18 de maio, e ele, do 19. Como o legendário líder comunista vietnamita Ho Chi Minh e o militante negro Malcolm X, seus companheiros de data natalícia, Cacá é um polemista experimentado – basta dizer que foi ele quem cunhou a expressão “patrulhas ideológicas”, endereçada aos arroubos censórios da esquerda, que respondeu enfurecida. Mas raramente se exalta. Ao contrário: de fala mansa e dado a vez ou outra começar a barba à cata da palavra mais certa, Cacá é, sim, um testemunho eloquente do eficiente treinamento imposto pelos padres jesuítas do Colégio Santo Inácio, onde estudou por mais de uma década. Afável, é capaz de emitir opiniões contundentes com o mesmo humor e a mesma serenidade com que relata fatos triviais. Roxo mesmo só ficou quando a simpaticíssima Renata entregou que o marido jurara correr pelado pela praia caso Orfeu atingisse 1 milhão de espectadores. Para sorte e azar de Cacá, seu filme chegou lá. Como ele não mostra disposição para cumprir a promessa, é improvável que o registro fotográfico de um evento tão singular circule por aí. Ainda assim, ele concordou em posar para o gravador de PLAYBOY – mas sempre vestido, em combinações casuais de caça e camisa, coloridas mas discretas.

 




Você disse que os jesuítas do Colégio Santo Inácio lhe ensinaram que humildade e pobreza são as virtudes máximas. Foi por isso, então, que quis ser cineasta no Brasil?

(Risos.) Olha, não sou humilde, não. Pelo contrário, para fazer filme no Brasil tem que ser um pouco megalômano. É como querer ser astronauta no Paraguai (risos). Tem que ter audácia diante de condições tão complicadas. Adoro cinema, mas confesso que às vezes digo: “Será que estou perdendo minha vida?”.

 

Você se imagina fazendo qualquer outra coisa?

Não.

 

Mas já imaginou?

Já. Fui jornalista, completei a possibilidade de ser jornalista e só de vez em quando fazer um filme. Mas cinema também ficou uma coisa muito competitiva, não só no Brasil. Havia uma certa tolerância com relação ao mal-feito que não existe mais.

 

Por que não?

Porque o cinema ficou muito complexo e avassalador. E também porque nesse final de século a ideia de performance ficou vitoriosa. Pode até ser um espetáculo desastrado, mas tem que ter uma performance técnica exigível. Hoje, quando vejo os primeiros filmes dos jovens realizadores...Meu Deus! Não digo que são melhores do que os da minha geração, mas a técnica...

 


O que acostumou o público à esse padrão? A Rede Globo ou o cinema americano?

Nunca parei para pensar. Acho que a Globo deve ter ajudado. Mas por eliminação, não só pela qualidade. Para sair de casa hoje é preciso ter elementos que não se tem lá. Uma coisa por que sempre me bati é um som de qualidade. Hoje qualquer garoto de classe média tem um quadrifônico em casa. O cara não vai ao cinema para ouvir um som mono. Finalmente os exibidores começaram a entender isso. Aí estoura por outro lado, porque o cinema começa a ficar caro e a população mais pobre deixa de ir. Não sei se isso tem solução. Não existe nada mais parecido com o Brasil do que o cinema brasileiro. O país montou uma economia de concentração de renda, e ela reagiu no cinema. No final da década de 70 eram 250 milhões de ingressos vendidos por ano, e hoje são 60, 70 milhões.

 

A exclusão social então se repete no cinema?

Tal e qual. Hoje o preço médio do ingresso no Brasil é maior do que nos Estados Unidos. Você exclui o público potencial, clássico, do cinema brasileiro, o que não lê legenda, que se identifica com o que está na tela. Porque da classe média para cima ninguém quer ser brasileiro.

 

Brasileiro gosta de se ver no cinema ou não?

Essa classe mais popular gosta. Mas a classe média tem vergonha de ser brasileira. Foi por isso também que (nos anos 80) nosso cinema se pasteurizou um pouco. Ficamos devendo grandes temas – os bolsões dos excluídos, Serra Pelada, a inflação, a dívida externa, a violência -, porque não era o que a classe média queria ver. Esta é a grande perversão: essa camada da população que está no Primeiro Mundo é quem rejeita o Brasil. Essas pessoas estão fisicamente aqui, mas com a cabeça numa Miami ideal, que de vez em quando é brutalizada pelo cinema brasileiro. A televisão disfarça isso um pouco, porque é feita em estúdio, sob controle total.

 

Como assim?

A televisão criou uma alternativa interessante. A genialidade do Daniel Filho foi que, naquela virada em que a TV se firmou no Brasil, dos anos 60 para os 70, bolou esse extraordinário casamento entre o CPC (Centro Popular de Cultura, base cultural da União Nacional dos Estudantes, UNE, até o golpe militar de 1964) e Hollywood e transformou isso numa dramaturgia moderna. Não é à toa que as primeiras estrelas dessa teledramaturgia são Dias Gomes e Janete Clair, um casal de esquerda. A Globo é filha mais bem-sucedida desse casamento pervertido. Onde é que ela está encontrando o seu calcanhar-de-aquiles nesta crise, com novelas perdendo audiência? Tem um Brasil sufocado, reprimido, que de vez em quando vem à tona. Vem pelo Ratinho, Gugu Liberato...O que é que o cinema pretende, ou pretendia? É ser uma versão nobre disso.

 

Nobre em que sentido?

No sentido de ter ideias, um projeto – porque o Ratinho não tem um projeto para o Brasil.

 

Central do Brasil também chegou a ser criticado por exportar uma imagem da miséria, não foi?

O cinema foi a primeira arte totalmente internacional e é cada vez mais planetária. Mas você só tem uma chance se levar essa comunidade o que só você sabe e pode fazer.

 

Então nos anos 70 e 80 a identidade da TV com público se fortalece e a do cinema, enfraquece...

Mas vá um pouquinho mais pra trás e veja o que está acontecendo no início dos anos 60. Não existe uma imagem brasileira. A chanchada não a criou, porque era uma paródia do cinema americano. A Vera Cruz, porque fracassou. Vem Nelson Pereira dos Santos, faz Rio 40 Graus e explode um modernismo tardio, que vai dar no Cinema Novo, no Cinema Marginal. Naquela época, tudo o que se diz hoje se dizia muito mais. Cansei de ler crítico dizendo que a língua portuguesa não dá para cinema, crioulo e samba não dá filme. Quando se está chegando perto de produzir uma imagem do Brasil, anos nos 5 minutos iniciais desse jogo longuíssimo...Pumba! O golpe militar proíbe isso. Aí vem a televisão e toma conta. Quando chega a abertura, nós também já estamos maduros. Aí a gente começa a pensar numa maneira menos agressiva de fazer isso e constrói o momento de ouro de nossas relações com o público, esse período que vai mais ou menos de 1974 a 1982, 83 com Amuleto de Ogum (1974), Xica da Silva (1976), Eu Te Amo (1981), Bye Bye Brasil (1979), Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976), A Dama do Lotação (1978), Pixote (1980), Memórias do Cárcere (1983)...Tem para todo gosto! Mas esse projeto também fracassa com a crise econômica. Quando você não tem dinheiro para comer, não vai ao cinema. Foi aí que o cinema brasileiro desapareceu. No fim dos anos 70, chegamos a produzir cerca de 100 filmes por ano.

 


Esse ano quantos serão?

Dizem que trinta e poucos, mas não acredito. No fim dos anos 80, início dos 90, estávamos produzindo três, quatro filmes por ano. De 100 para quatro não é queda, é catástrofe.

 

Qual é a solução? Subvenção? Você foi um dos primeiros a pedir a cabeça da Embrafilme, dizendo que o Estado tem que organizar o mercado, e não dar dinheiro.

Quando o Estado brasileiro faliu, eu fui o primeiro a dizer: “A Embrafilme não vai ter mais sentido, a economia vai se organizar numa outra direção e a gente tem de acompanhar”. Da mesma maneira, digo que a Embra foi o clímax na história do cinema brasileiro. Não tenho a hipocrisia de dizer que ela foi um mal. Foi um grande bem que em determinado momento perdeu o sentido.

 

E as acusações de que só financiavam os ungidos pelo Estado?

Fui um dos principais acusadores disso. E fiz muito mais filme depois que a Embrafilme acabou do que durante a existência dela. Quem examinar os arquivos vai ver a quantidade de cineastas brasileiros que estrearam graças a ela, que fizeram filmes de todas as tendências. Agora, havia sempre ciúme. Os que se davam melhor eram acusados de serem beneficiados, e ninguém parava para perceber que se davam melhor porque os filmes eram melhores, artisticamente ou de bilheteria. Mas digo hoje com todas as letras que não existe possibilidade do cinema brasileiro sobreviver sem a mediação do Estado. Ele tem que assumir sua responsabilidade de mediador entre todos os agentes econômicos – produtor, exibidor, televisão, videocassete – para tornar o produto brasileiro mais competitivo.

 

Você está falando em reserva de mercado?

Eu não faria isso. A gente só faz lei que obriga, proíbe, pune. Tem que fazer leis que incentivem, premiem. Acredito na solução francesa. O exibidor que passa filme francês está isento de pagar imposto correspondente ao resultado. Ele passa a ser um parceiro, em vez de você meter pela goela dele abaixo a obrigação de passar um filme local. Então tem que sentar com os agentes econômicos a uma mesa e ver o que é bom para eles. Mas isso dá trabalho. Tem que responder primeiro se interessa ao Brasil ter cinema nacional. Inglaterra, França, Espanha, Alemanha, Argentina responderam que sim. Se não interessar, então tá, vamos ver filme americano o resto da vida e nunca mais vamos ter um espelho do país.

 

Mas não pintou um clima de torcida pelo cinema nacional?

Ah, melhorou muito. A própria imprensa...Agora estou brigando com ela por causa de Orfeu, mas reconheço que melhorou. Aliás, não estou brigando. Aproveitei para dizer certas coisas. A minha frustração com a imprensa cinematográfica não é a do elogia ou da crítica. Orfeu foi elogiadíssimo – alguns fazendo uma restrição aqui e ali -, a não ser pela nossa querida VEJA. O que me frustra é que sou um cineasta que pensa o mundo. Não faço filmes para você matar o tempo no sábado à noite. E acho que a imprensa cinematográfica, não só brasileira, como mundial, com poucas exceções, tem sido pobre nesse sentido. O cara fala como se fosse receita de bolo: “A montagem é boa, a fotografia é ótima, o ator tal não está bem...O açúcar passou, está bom de farinha, falta confeito”.

 

Ela não está reagindo à relação do público com o cinema?

É a história do ovo e da galinha. Será que ela não poderia estimular isso no público? Acho que o público nunca é culpado. Ele vai e gosta ou não, tem todo o direito, está gastando seu dinheiro. Quem tem a obrigação de iluminar o filme é a imprensa. O crítico brasileiro não faz isso, ele adora dar cotação – estrelinha, bonequinho. É esse o papel da crítica?

 

Mas o público não dá pouca bola para o que a crítica diz?

Em termos. O cinema no Brasil hoje é uma coisa muito cara. As pessoas não saem mais para ver um filme, e sim o filme, orientadas pelo bonequinho, o crítico, a revista semanal. O que digo é que essa orientação poderia ser mais profunda. Minha tese fundamental é que aquilo que um crítico brasileiro escreve sobre um filme do (Steven) Spielberg, de (Martin) Scorsese, não vai em nada alterar a vida deles, porque eles nunca vão ler. Mas o que ele escreve sobre um filme brasileiro não só tem repercussão na trajetória comercial do filme, como na cabeça dos realizadores.

 


Como a crítica deve se comportar? E se ela odeia seu filme?

Minha crítica negativa da crítica é que, com algumas exceções, ela é impressionista, superficial e inculta. Vive do achismo, não consegue ver no filme as relações que ele tem com a realidade, o que significa no trabalho daquele cara, e trata tudo como receituário de bolo. Gostar do filme é absolutamente secundário.

 

Que tal dar nome aos bois?

É desagradável fazer isso porque não estou falando mais em função de Orfeu. É uma coisa à qual venho me referindo há tempo.

 

Então cite alguém que você sente que é um interlocutor.

Um interlocutor do cinema brasileiro que admiro muito é o Inácio Araújo, da Folha de S. Paulo. Estou à vontade para dizer isso porque tem muito filme meu de que ele não gostou. Mas ele não está no alto do balcão vendo o desfile passar.

 

E quem faz isso mal?

Ah, aí eu não quero.

 

Orfeu hoje já foi visto por mais de 1 milhão de pessoas. Você chegou a discutir com Vinícius de Morais, autor da peça Orfeu da Conceição, sua intenção para adaptá-la novamente para o cinema (a primeira versão é Orfeu do Carnaval, lançada pelo francês Marcel Camus em 1959)?

Eu queria saber se o Vinícius topava o que eu pensava fazer, que era atualizar o mito, tirar da peça o espírito dela. E ele topou na hora. O Vinícius era fogo. Uma característica dele que me causa inveja é que ele chegava ao profundo por um caminho muito pouco rebuscado. Orfeu da Conceição não é uma obra-prima da dramaturgia, mas a observação humana e poética é extraordinária. Veja que todo parceiro do Vinícius tem o melhor da sua obra na época em que é parceiro dele – Carlinhos Lyra, Tom Jobim, Edu Lobo, Toquinho, o próprio Chico Buarque, Francis Hime. Ele devia soprar alguma coisa que não era só a letra da música.

 

O Tom Jobim disse a você uma coisa engraçada sobre ele...

É. Eu estava trabalhando com o Vinícius quando fui para Nova York. Foi no avião de volta que descobri que ele tinha morrido. Entrei no avião – você vai correndo para o Jornal do Brasil – e, na primeira página, estava lá. Foi uma porrada. Contei essa história ao Tom e ele: “Pois é, o Vinícius não é de confiança. A gente vira as costas e ele morre” (risos).

 

Qual você acha que é o apelo de Orfeu, como ele ficou hoje?

Ele fala de um assunto que não tem classe social, que é amor, paixão, e numa visão contemporânea. E fala disso num ambiente que estava inédito no cinema brasileiro: carnaval, morro, favela, polícia. Mas é difícil dizer. Vou muito a porta de cinema, e você sente que a reação do público é por aí, pela emoção.

 

Você vai incógnito?

Fui muito com o Toni Garrido e o Murilo Benício, e aí não dá para ficar incógnito (risos). Mas ás vezes vou sozinho. Gosto de estar lá quando as pessoas saem, ainda desprotegidas, sob a emoção do filme, gostando ou não. E você vê pelo olho: se ele está brilhando, se a pessoa está sorrindo...E muita gente sai com o olho vermelho de chorar.

 

Já aconteceu com você também o contrário?

Ah, sim. Tenho filmes que não foram bem recebidos e até hoje fico chateado. Como Joanna Francesa (1973), que adoro, foi uma mudança radical na minha vida, e foi muito mal de público. Aí fico com raiva, boto a culpa no público, digo que não entendeu, que é burro. Mas você não pode fazer disso a sua vida. Se o público não entendeu nenhum dos seus filmes é porque tem algo errado.

 

Joanna é cheio de figuras maternas fortíssimas. Por quê?

Meus filmes são muito femininos, no sentido de que são muito barrados do ponto de vista de mulheres muito fortes. O próprio Orfeu é um personagem da alma feminina. Só lidei com mulheres fortes na vida: minha mãe, Nara, Renata. Também tive muita filha, três, e essas mulheres manda muito em mim (risos).

 


Sua mãe tem um papel importante na sua vida?

Minha mãe? Nossa Senhora! Ela faleceu recentemente, há uns três anos, e graças a Deus viveu muito, até os 83 anos. Meu pai era um homem doce, antropólogo, jornalista, professor. Foi do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), professor da PUC (a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) também, escreveu livros importantíssimos sobre cultura brasileira. Ele me ensinou muito sobre o mundo, desde pequeno me fazia ler. Não éramos ricos, não morávamos numa casa grande e meu pai não tinha mais onde botar os livros, eles entravam por dentro do banheiro, do meu quarto...

 

Isso já em Botafogo?

Já. Vivi a infância e a adolescência lá. Nasci em Maceió, mas vim para o Rio com 6 anos. E lia muito. Meu pai me incutiu isso. Ás vezes eu ia com ele para o interior de Alagoas, Pernambuco, Minas, ainda garoto. Ele foi um extraordinário mestre. E, embora fosse muito doce, tolerante, exigia o resultado intelectual. Minha mãe era ao contrário: uma mulher inculta, filha de fazendeiro alagoano. Uma força da natureza. Foi ela que me educou, que mandava em mim mesmo, no horário de chegar em casa, essas coisas. Era uma mãe possessivíssima. Eu me lembro quando disse a ela que ia casar. Era um almoço, e anunciei: “Mãe, resolvi casar com Nara”. Ela adorava Nara, mas largou os talheres na mesa e disse: “Meu filho, o que foi que eu lhe fiz?” (risos).

 

Que idade você tinha?

Eu já nem morava mais em casa. Casei com Nara com 27 anos. O (depois também cineasta e hoje articulista Arnaldo) Jabor foi meu amigo de adolescência, estudamos juntos, e ás vezes a gente comenta que com as mães que a gente teve era para estarmos vestidos de baiana nos Arcos da Lapa (risos). E ela futucava minha vida, queria saber tudo. Minha mulher é assim também. Renata manda em mim de maneira...(risos) assustadora! Ela acabou virando minha produtora, porque não tinha outro jeito.

 

Sua mãe era assim com seus irmãos também?

Era. Mas eu reagia muito.

 

Você saiu meio diferente, o único artista, não é?

É que minha mãe tinha pavor de cidade grande. A gente morava na Rua São Clemente e só saía para ir ao colégio, na mesma rua. A única coisa que eu podia fazer era ir ao cinema ou jogar futebol no campo do Botafogo – sou botafoguense doente. Só comecei a sair por minha conta e ter vida de rapaz carioca lá pelos 15 anos. E aí me libertei cedo, fui embora de casa com 18 anos, mas quando acabava o dinheiro voltava e me desmoralizava (risos). Então minha infância foi muito chata. Mas, nos meus 13 para 14 anos, a gente se mudou para a Rua da Matriz e comecei a botar a cara mais para fora.

 


Como você reagia a esse cerco tão fechado?

Aí veio o lado do meu pai. Li Jorge Amado, Graciliano Ramos, José de Alencar, Machado de Assis, os modernistas todos, muito cedo, graças a ele. Minha vida era ficar em casa lendo. E futebol, que eu adorava.

 

Em que posição você jogava?

Comecei jogando no ataque, mas, devido ao adiantado da idade, acabei beque (risos). Mas nunca fui craque, senão talvez não fosse cineasta. Era isso: livro, futebol e cinema, que via sem paras. Mas não imaginava que fosse ser cineasta. Isso aparece na minha cabeça já na adolescência, quando vi os filmes do Nelson Pereira dos Santos e pensei: “Ah, é possível fazer cinema no Brasil”.

 

Que filme? Foi Rio 40 Graus?

É. Foi em 1956...Meu pai tinha dois tíquetes para uma peça e me chamou. Fui emocionado, porque era a primeira vez que ia sair de noite com ele para um programa de gente grande: uma estreia no Teatro Municipal. E era Orfeu da Conceição. Saí debaixo de lágrimas. E no mesmo ano vi Rio 40 Graus, que tinha ficado pronto no ano anterior, mas tinha sido proibido. Com os dois, fiz uma descoberta extraordinária: “Tem um mundo aí que é maravilhoso e que não conheço”. No caso do Nelson tinha uma agravante. Claro que os filmes que eu via eram sobretudo americanos, e foi com ele que vi que era possível fazer no Brasil um tipo de cinema que me daria prazer e orgulho.

 

Quando você achou que era possível passar à prática?

Mudar da São Clemente para a Rua da Matriz foi fundamental. A São Clemente era muito movimentada, e minha mãe tive pavor. Mas a Matriz era calma, e comecei a ter turma de rua. Conheci o David Neves, cineasta que infelizmente morreu (em 1994), que morava ali perto. E o David que era uns três ou quatro anos mais velho do que eu, tinha uma câmera de corda, e me emprestou a câmera para fazer umas experiências.

                 

O que vocês filmavam?

Lembro que numa dessas viagens com meu pai fui a Brasília, pouco antes da inauguração (que se daria em 1960), talvez em 1958. Fiz um documentário sobre a construção de Brasília. Mas o primeiro que considero filme mesmo, que tinha história, estrutura, foi um curta-metragem, Domingo. Agora, profissionalmente, só muito tempo depois, quando a UNE fez Cinco Vezes Favela (1963). Fiz um dos episódios, Escola de Samba Alegria de Viver. Aí já era 35 milímetros, passou nos cinemas. Mas mesmo aí a gente não tinha muita certeza de que ia dar pé viver de cinema.

 

Como você se virava nesse meio tempo?

Trabalhei em jornalismo desde os 17, 18 anos. Fazia de tudo. Crítica, reportagem, o que mandassem. Onde trabalhei mais tempo foi no falecido Diário de Notícias, e depois na (também extinta) Última Hora, com o Samuel Wainer. Crítica fiz num jornal estudantil que saía junto com o Diário de Notícias, O Metropolitano, do qual fui inclusive diretor.


Que tipo de crítica você era?

Extremamente militante. Tinha um tipo de cinema que eu queria ver vitorioso no Brasil e lutava por isso a qualquer preço. O Cinema Novo foi o único movimento que existiu antes de se fazerem os filmes.

 

Como pode haver um movimento antes dos filmes?

Eu já tinha uns 18, 19 anos quando conheci o Glauber (Rocha), Paulo César (Saraceni), e se formou a turma que mais tarde seria conhecida por Cinema Novo. Escrevíamos muito, era uma crítica em defesa de um cinema que a gente queria ver acontecer. Naquele momento, não estávamos lutando por nada existente. O cinema brasileiro não existia.

 


Mas vocês não queriam ir contra um modelo anterior, não?

Contra um modelo hollywoodiano, comercial, convencional. A gente adorava neo-realismo, (o cineasta russo Sergei) Eisenstein, o (ator e diretor americano) Orson Welles, e se identificava muito coma Nouvelle Vague francesa, que tinha acabado de aparecer. Para nós, era um exemplo de forma de produção, mesmo que a gente ás vezes não concordasse com o que chamávamos de romantismo pequeno-burguês daqueles filmes. Tínhamos uma plataforma mais modesta: só mudar a História do Brasil, do cinema e do planeta (risos).

 

Era mais fazer cinema ou usá-lo como militância?

Antes de tudo uma enorme paixão pelo cinema. É um erro ver o Cinema Novo como um fenômeno unívoco, compacto. Não era. O que nos unia era uma grande amizade e uma enorme vontade de falar do Brasil de uma maneira que só nós pudéssemos fazer. Nisso estávamos de acordo, mas o resto...Cada um foi para um canto. A minha militância, por exemplo, era de um cristão de esquerda. Outros vinham do Partido Comunista, outros eram liberais, outros socialistas. Tinha de tudo.

 

Existia o sentimento de que até então o Brasil não tinha sido visto na tela da maneira como era?

Totalmente. Estávamos tentando criar uma linguagem e também aproximar o público (de nós). Ele estava aprendendo a ver esses filmes. Vou contar um caso que, para mim, é esclarecedor. Fiz Escola de Samba Alegria de Viver no Morro do Cabuçu, Zona Norte do Rio. Eu e minha equipe praticamente moramos no barracão da Unidos do Cabuçu. Quando o filme ficou pronto, achei que era justo passa-lo para as pessoas do morro. É claro que elas se reconheciam na tela: “Olha lá fulano, olha eu, olha sicrano”. Quando acabou a sessão, perguntei o que tinham achado, e um senhor respondeu: “Me diverti muito. Mas esse negócio de samba, crioulo, favela, isso não é cinema, né, seu Carlos?” (risos). Cinema, para ele, era alguma coisa que vinha de Hollywood. Essa é que foi a extraordinária cisão do Cinema Novo: uma imagem para o Brasil.

 

Como é que você foi descobrir esse Brasil que vocês queriam ver retratado no cinema?

Não sei dizer o momento. Há uma linha de redescoberta que pega o Mário de Andrade, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Hollanda, Darcy Ribeiro, passando por escritores com essa mesma perspectiva, tipo Jorge Amado, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, da qual a nossa geração é a última representante. Depois disso ficou até na moda o desinteresse pelo Brasil, né? É uma burrice mal importada, porque uma das coisas que caracterizam o cinema americano é falar da América. E daqui a 100 anos a gente vai relacionar o século XX com Hollywood assim como relaciona Antiguidade com o teatro grego. O espaçozinho que sobrou para nós nessa dominação só será ocupado se fizermos filmes muito originais. Não quero ser a flor exótica da estufa de Sundance (o grande festival do cinema independente nos EUA), quero peitar Hollywood e ocupar as mentes e corações que Titanic ocupa – que é um filme de que até gosto.

 

Há tempo você diz que o cinema brasileiro concorre é com as grandes produções. Você acha que se outros tivessem percebido isso antes ele poderia estar numa situação economicamente mais favorável?

Acho. Mas é injusto condenar os cineastas. Esse desastre que foi o Brasil nos anos 80 gerou uma tal dificuldade em fazer filmes, e uma tal exigência...Como se cada raro filme tivesse que ser a salvação. É impossível trabalhar na expectativa de ser recorde de bilheteria, agradar a Folha de S. Paulo, a VEJA, ganhar o Festival de Cannes e ir para o Oscar. Isso gerou uma defensiva nos cineastas.

 

Mas então por que fica essa impressão de que houve, ou havia, uma incomunicabilidade entre os cineastas brasileiros e o público?

Se cada um de nós não tivesse feito pelo menos um filme de grande apelo popular, o movimento não teria existido. Nelson fez Boca de Ouro (1962), eu fiz A Grande Cidade (1966), Walter (Lima Jr.) fez Menino de Engenho (1965), Glauber, O Dragão da Maldade (1969), Joaquim (Pedro de Andrade), Macunaíma (1969), Roberto Santos, A Hora e a Vez de Augusto Matraga (1965)...Foram filmes de grande sucesso. Mas, na minha opinião, o Cinema Novo morreu da porrada que levou em 13 de dezembro de 1968, a partir do Ato (Institucional número) 5 (que consolidou a ditadura militar após o golpe de 1964), quando ficou proibido falar sobre Brasil neste país. De 1968 até 1974 foi um regime de terror, em que você se arriscava a ser censurado, e sim exilado, torturado ou morto. Aí há um momento que chamo de “estética do silêncio”. De repente fomos obrigados a dizer não aquilo que se queria, mas o que se podia dizer. E os filmes ficara difíceis, herméticos, alegóricos.

 


Em 1978, quando foi dar aquela entrevista à crítica Pola Vartuck, você saiu de casa com a ideia de falar das patrulhas ideológicas?

Nããão. Foi uma piada. Quer dizer, uma piada sobre uma coisa séria. Nunca pensei que fosse pegar e tal maneira. Fiquei feliz, porque significou que eu tinha razão.

 

Isso custou inimizades?

Muitas, mas sobretudo muita porrada nos jornais (risos). Não sou paranoico, acho até que a imprensa é mais generosa do que restritiva em relação a mim. Mas até hoje sinto que aquilo, em certas áreas, gerou uma antipatia em relação a tudo o que faço. Aquilo coroou um processo. Glauber já tinha falado disso, Caetano também, o (falecido psicanalista) Eduardo Mascarenhas, com outras palavras e outros motivos. Havia uma reação a essa pressão ideológica e política sobre a obra de arte, a cultura. Essa história das patrulhas foi na época de Chuvas de Verão. Quando Xica da Silva, saiu, em 1976, houve uma polêmica violenta também. Fui acusado de machista, racista, disseram que estava transformando a História do Brasil em chanchada. Mas a briga já vinha desde a abertura política. Porque os cineastas, como conjunto cultural, foram os primeiros a acreditar na abertura, a enfiar uma cunha nela para que ela fosse o mais ampla possível. E isso não agradou certos setores de uma esquerda mais acadêmica, conservadora.

 

Glauber Rocha era também vítima de muita ira nessa época. Vocês eram muito amigos?

Muito, muito, muito. Tenho saudade física do Glauber (olhos cheios d´água), do jeito que ele pegava na gente para falar, da oportunidade com que intervinha. Nunca deixava acontecer uma injustiça com alguém que admirava sem intervir e denunciar. Todo mundo conhece a imagem pública dele, do guerreiro, mas era uma pessoa carinhosíssima, de uma preocupação enorme com os amigos. Sinto falta disso. É claro que isso de uma turma é muito juvenil. Mas mesmo as pessoas que continuam vivas não vejo mais. Não vejo o Nelson Pereira, o Walter Lima Jr., o Jabor – o Paulo César Saraceni muito menos, que até brigou comigo...

 

Por que ele brigou com você?

Não sei. Ele escreveu um livro em que eu era o vilão principal. Não li, foi uma homenagem que fiz a ele (risos). Mas pelas resenhas e elo que contam ele fala muito mal de mim. E não estou a fim de ter boas relações em off e depois ser malhado na imprensa. Mas, voltando, tenho saudade dessa força que uma comunidade dá a você, e especial saudade do Glauber. Era um irmão

 

As afinidades então iam muito além do cinema?

Muito. Acho que fui o último amigo cineasta que o viu antes dele morrer. Fui a Sintra (em Portugal) na tentativa de convencê-lo a voltar. Isso foi mais ou menos um mês antes de ele morrer. Quando ele chegou ao Brasil já estava inconsciente. Até o vi, mas...(voz embargada).

 


Por que ele foi vítima de tanta agressividade?

Glauber catalisava esse tipo de sentimento. Era o melhor de todos nós, e o melhor sofre mais. E se expunha mais. Nunca teve medo de dizer o que pensava, de se queimar. Parece declaração literária, mas não é: ele viviam em função de um projeto que tinha para o Brasil e do qual não abria mão. Morreu disso, do esforço, do esgotamento. E foi preciso morrer para virar unanimidade. Eu não morri nem vou morrer (risos). Para me abater vai ter que ser a tiro. Faço ginástica, me alimento bem...

 

Dos rancores, você diz?

Os ressentimentos, as contas a ajustar. E a coisa das patrulhas ajudou, sobretudo no início, com pessoas eu viraram o rosto para mim.

 

Amigos também?

Conhecidos. Eu não diria amigos. Como aquela expressão pegou, e de certo modo a direita usou muito...Mas não tenho culpa. Botei uma moeda em circulação, quem quiser que use.

 

O que você acha de o Jabor ter deixado o cinema?

(Risos.) Acho uma atitude e, no caso dele, saudável.

 

Como assim?

O Jabor sofria muito com o cinema, não se conformava com a falta de permanência da atividade cinematográfica. E ele é um homem de muito talento, escreve muito bem...

 

Você gosta do que ele escreve?

Gosto. Nem sempre estou de acordo. Ás vezes ele se irrita demais com o Brasil e não gosto disso.

 

E da participação dele no programa Manhattan Connection, no canal a cabo GNT?

Não vejo. Gosto muito do Jabor, aliás, das outras pessoas, do (apresentador) Lucas Mendes também, mas acho a ideia desse programa absurda, de quatro brasileiros irem para Nova York para ter autoridade para falar mal do Brasil. Mas o Jabor é formidável. É um dos intelectuais mais importantes deste país.

 

Vocês ainda são amigos?

Somos. Eu o vejo muito pouco, a gente se fala pelo telefone ás vezes. Virei o Otto Lara Resende do Jabor, porque de vez em quando ele inventa: “Aí o Cacá disse...” (Referência ao escritor e jornalista Nelson Rodrigues, que transformava o colega Otto em personagem de suas crônicas e livros.) Mentira (risos). Ele outro dia inventou que dei um telefonema para perguntar o que ele achava de Orfeu. Não teve esse telefonema, é invenção dele (risos). E fico feito um babaca lá na crônica (imitando a voz de sonso): “Mas Jabor, o que você achou?” É até legal, porque era uma crônica a favor do filme. Liguei para ele: “Muito obrigado, mas da próxima vez me faça menos babaca”.

 

Voltando à direita, você recentemente deu uma entrevista ao Jornal do Brasil em que denuncia uma trama neoconservadora de direita que quer mostrar o Brasil como inviável desqualificando a produção cultural do país. Que trama seria essa?

Não sei como ela se organiza. Não sou cientista político, digo o que minha intuição manda. Mas estou meio de saco cheio de política. Não que acha desimportante, mas pessoalmente não tenho paciência.


Mas pelo que você disse essa trama se articularia num outro território que não o da política.

Não, estou só separando coisas. Não sei analisar como isso se dá, quem são os líderes. Mas sinto no ar que existe uma coisa antiesperança. Desde o modernismo, de 1922, a esquerda tem sido hegemônica na cultura brasileira, mesmo nos momentos de ditadura. O que vejo hoje é uma direita assanhada com esse cinismo que está acontecendo no resto do mundo, dizendo: “Chegou a nossa vez”. Qualquer coisa que signifique desejo de transformação e tenha um laivo de esquerda é vista como ultrapassada. Apesar da miséria, dos bolsões de excluídos, o Brasil se atualiza rápido. E nós importamos essa falta de perspectiva do mundo moderno. Ao contrário deles, temos muita coisa para fazer. Podemos reinventar a civilização ocidental a partir do nosso luso-africanismo, nossas maluquices.

 


Vem daí o seu interesse pela favela?

Sem dúvida. Eu já disse várias vezes que ela é o trailer do Brasil. Não dá para saber direito que filme vai ser esse, mas já tem uns elementos ali. É um caldeirão de tensões, e nele há não só uma nova linguagem, uma nova arquitetura, uma nova música sendo feitas, mas também uma nova estética, uma nova ética.

 

Viver na favela deve exigir um enorme exercício de vontade. É o que se sente em Orfeu. Essa efervescência que parece estar faltando ao Brasil pode estar mais viva lá?

Deixe só esclarecer quer não estou fazendo apologia nacionalista. Não acho que o povo brasileiro seja o melhor. Devemos inclusive parar de botar a culpa em terceiros, porque, se o Brasil está uma merda, a culpa é dos brasileiros. Digo é que a minha curiosidade de artista está voltada para essa área temática. Gosto do povo brasileiro. Por outro lado, não é nem por razões políticas, e sim estéticas, não tenho vontade de filmar rico brasileiro. Os homens são mal vestidos, grosseiros, cafajestes, as mulheres são feias, mal vestidas. Acho horrível.

 

Falando em ricos, você abriria sua casa para a revista CARAS?

Ela jamais se interessaria pela minha casa (risos), é uma casa muito modesta. Para dizer a verdade, eles um dia foram fazer uma matéria comigo lá e foi duro achar um cantinho para fotografar a família. Não leio CARAS, mas sou um homem público. Se ela quiser fazer uma matéria comigo tenho obrigação de fazer. Vejo isso como parte da profissão.

 

Você diz: “Estou de saco cheio da política”. Mas não é a sua geração que está no poder? O que você acha do presidente Fernando Henrique Cardoso? Votou nele?

Votei, nas duas vezes, e não me arrependo, mas acho que poderia estar muito melhor. Não entendo o Fernando Henrique. Nunca fui amigo dele, mas de vez em quando o via, temos amigos em comum. Mas repito, não acho que política não seja importante. Só acho que as coisas não se resolvem mais na esfera do poder político. O século XIX preparou o mundo para o poder político e o século XX fragmentou esse poder pelas estruturas econômicas, sociais e culturais. Hoje o poder está muito menos no governo do que há cinquenta anos.

 

Mas no Brasil ainda há muitas estruturas dependentes de uma iniciativa do governo?

É isto que me deixa penalizado. Me sinto decepcionado neste segundo governo dele, sobretudo na questão social. Falta uma certa paixão do governo pelo Brasil. Não sinto um projeto social e cultural mais ambicioso. Vejo uma coisa burocrática, um controle da estabilidade da moeda. Sou a favor da estabilidade. Este resultado de Orfeu é devido em parte a ela, à recuperação do poder aquisitivo da camada mais popular. É uma vitória do primeiro mandato.

 

E o que ele deveria estar fazendo no segundo mandato?

Não sinto nenhum projeto novo além da administração do que já foi feito. Leio umas notícias de que ele faz (investimentos sociais), que tem mais dinheiro para a educação, a saúde, mas não vejo isso no dia-a-dia. Não adianta me mostrar estatística se na rua vejo o contrário. O que eu esperava desse segundo mandato? Que dissesse: “Conquistamos a estabilidade da moeda, agora vamos dar um passo à frente, tirar o Brasil dessa merda, dessa miséria pavorosa, recuperar o sentimento de que existe um projeto de país neste território”.

 

Sua geração queria ser capaz de explicar o Brasil todo. Você também buscava essa abrangência?

Acho que eu era dos mais modestos. Os jesuítas me ensinaram a formular o pensamento de maneira objetiva. Talvez tivesse o pé no chão, como se diz. Agora, também tenho um cangaceiro adormecido dentro de mim, e ele quando acorda fica bravo. Mas aí é emocional.

 

Quando é que você perde paciência?

Não é a paciência, é a vontade de continuar a racionalizar. Acredito muito na razão. Mas, quando vejo que ela é inútil, perco um pouco a estribeiras. E o meu amor à tolerância é substituído por uma espécie de ira que cultivo como sagrada, e que ás vezes é necessária.

 

Que tal um exemplo?

Aquela época das patrulhas ideológicas. Eu sabia que estava me atirando numa fogueira. Mas sabia também que tinha um argumento. E se eu podia fazer aquilo, se tinha um filme de sucesso passando – porque, em geral, quando me manifesto dessa maneira não é quando estou sendo esculhambado, e sim elogiado, que sei que tenho autoridade...Ou então no cotidiano mesmo. Filmar é um prazer imenso, que não quero estragar com mau humor. Por isso, quando tem que bater o pé no chão eu bato. E como não bato sempre as pessoas ficam até com mais medo (risos). Mas vou até o fim na tentativa de seduzir. Prefiro isso a impor.

 

Tem atores com quem você trabalha sempre Jofre Soares e Rodolfo Arena enquanto estavam vivos, Zezé Motta, Antônio Pitanga, José Wilker, Betty Faria...Por quê?

Gosto tanto deles que tenho preguiça de pensar em outros. Se gosto tanto do Jofre, por que vou procurar outro homem de 60, 70 anos? A Zezé Motta, que é uma atriz tão maravilhosa...A Zezé é uma irmã. O Pitanga agora se afastou. Foi ser político, então não frequento muito os mesmos lugares. O Wilker nem vejo muito, mas tenho admiração por ele. Então quando vejo “personagem masculino, de meia-idade...” É o Wilker. Por que pensar em outro (risos)?

 

A Betty Faria, que foi a Tieta da novela, ficou chateada por você ter escolhido a Sônia Braga para fazer o papel no cinema e reclamou disso aos jornais. Não ficou nenhum mal-estar entre vocês?

Da minha parte, não. Acho que ela exagerou, errou, não poderia ter feito um protesto público. Mas não fiquei com raiva. Pelo contrário, adoro a Betty. Mas não é elegante, ela é muito melhor que isso.

 

Vocês ainda se falam?

Claro. A gente se vê muito.

 

Você fez psicanálise durante quinze anos. Seu analista ligava para você, como o do Woody Allen?

Eu é que ligava desesperadamente. Na verdade, tive três analistas.

 

Você se deu alta?

Foi. Cheguei à conclusão de que o que tinha que resolver já estava resolvido, e o que faltava não ia resolver nunca (risos). Comecei a fazer análise tarde, por volta dos 35 anos. E, portanto, chega a hora em que você diz: “Bem, daqui para a frente é comigo mesmo”. A psicanálise não é um remédio, é uma bula.

 

Ela mudou seus filmes?

Mudou meus filmes, melhorou minha vida, minha relação com as pessoas. Devo muito da estabilidade com Renata à psicanálise – um casamento que não é simples, Renata tem 22 anos a menos que eu. Quando casei com ela, eu tinha 41 e ela, 19. Me entendo muito bem com Renata, sobretudo sou até hoje apaixonado por ela, mas somos muito diferentes.

 

Como aconteceu esse casamento com uma mulher tão mais nova? Foi uma contingência da paixão?

Foi uma paixão avassaladora, parece roteiro de musical vagabundo. Eu tinha sido assaltado num apartamento que tinha na Gávea, uma coisa pavorosa. Daí decidi vende-lo. Então, o (cineasta) Antonio Calmon me ligou e disse: “Olha, seu apartamento é exatamente o que uma amiga minha está procurando. Então não bote anúncio porque ela vai aí ver”. Era a Renata. Ela tocou a campainha, abri a porta e foi como se um sol iluminasse a sala. Naquela mesma noite jantamos juntos. É claro que o jantar foi o macete. Eu tinha que mostrar a ela os documentos do apartamento e disse: “Está no escritório, de noite a gente janta e eu mostro”. Dei uns 25 cafezinhos para ela não sair lá de casa, fiquei enrolando...E nos casamos imediatamente. Eu ia fazer uma viagem e pronto. Ela viajou comigo e nos casamos.

 


Então ela teve aquela sensação também?

Acho que sim.


Você nunca perguntou?

Claro que a resposta foi sim, né (risos)? Afinal, ela está casada comigo até hoje, juntamos os filhos – eu tinha dois e ela um – e fizemos a Flora. São essas coisas que acontecem. Não tenho nenhuma explicação. Esse casamento me rejuvenesceu muito, sabe? Seria uma mentira dizer que são dezoito anos de descobertas a cada minuto. Tem momentos difíceis, a gente já se separou. Ficamos quinze dias longe um do outro (risos), mas ficamos. Ás vezes sei que ela está de saco cheio. Por exemplo, quando fui filmar Orfeu eu não podia ficar em casa. Tinha que acordar às 5 da manhã para ir para a filmagem, então tem que dormir no máximo às 10 da noite, aí...Então fiquei morando num hotel. Ela ficava puta, com razão, mas concordou e, como produtora, até pagou o hotel (risos).

 

O que é melhor, ver ou fazer filmes?

Vejo pelo menos um filme por dia. Se um dia acontecesse uma tragédia e eu tivesse que escolher entre ver e fazer, acho que escolheria ver. Não saberia viver sem ver.

 

Por mais carinho que tenha pelos seus filmes, hoje você deixou de fazer algum deles? Você os teria feito diferente?

Todos (risos). Tenho medo de olhar para trás, porque...Não costumo rever muito meus filmes. Mas a cada vez vejo algo que faria diferente. Posso passar o dia falando de coisas que mudaria, mas me arrepender de ter feito um filme, isso não.

 

No que você está trabalhando agora?

Comecei esta semana a escrever com o (romancista) João Ubaldo Ribeiro um roteiro adaptado de um conto dele chamado O Santo Que Não Acreditava em Deus. O filme vai se chamar Deus É Brasileiro. É uma comédia totalmente maluca.

 

Você vive de cinema, só?

Exclusivamente. Se você também considerar que fiz muito comercial. Hoje não estou fazendo muito, mas até porque não me chama. É interessante isso, porque Spike Lee faz, (Federico) Fellini fez, (Jean-Luc) Godard fez, no resto do mundo não existe esse preconceito. No Brasil os produtores de comercial não chamam diretor de longa-metragem porque acham...Não sei o que acham. Ou que o cara não vai dar bola, ou não vai fazer direito...O que é uma bobagem. Quando estou muito precisado, vou e busco para fazer. E tenho muita sorte, porque quase todos os meus filmes circulam no exterior, e recebo relatórios deles. Sou sócio de quase todos eles. E vendo filme para a televisão, para fora do Brasil, para vídeo...É claro que ganho mais com o filme do momento, né?

 

Você tem ideia de quanto os filmes faturam por ano?

Não, e nem diria, porque tenho sócios nesses filmes.

 

Como se compõe sua renda?

A cada filme tenho um salário e participação nos lucros. Quando ele não dá certo tenho que fazer outro correndo, porque o salário acaba. E nem me olhe com esse olho porque não vou dizer quanto é (risos).

 

Você diria que vive bem?

Não. Vivo com o mínimo de que preciso e muito menos do que acho que merecia. Na música, na televisão, no teatro, as pessoas da minha geração que têm a mesma repercussão que tenho no cinema vivem centenas de vezes melhor. A única coisa que tenho na vida é o apartamento onde moro, meu carro e o da minha mulher. Ainda tem essa outra desgraça, que é minha mulher trabalhar com cinema também (risos). Tenho uma vida financeira difícil. O cinema tem aquele charme exterior, a gente viaja muito. Mas sempre à custa dos festivais, de uma distribuidora de outro país. Aí vou para Paris, provavelmente me botam num hotel bacana, mas é pura aparência, porque meu bolso está vazio. Só não fui fazer outra coisa porque adoro cinema e não me canso de trabalhar. Mas não posso parar. Se entrar numa crise financeira vou fazer comercial, programa para a televisão, vídeo institucional. Uma coisa que nunca fiz e não quero fazer – que fique claro que não condeno quem faz – é campanha política, porque aí estou vendendo minha opinião. Não gosto de cuspir para cima, mas...

 

Quanto você pediria para dirigir um comercial hoje?

Depende. Esses comerciais de varejão, sei lá, 10, 7, 8.000 reais. E um filme mais complicado até 30, 40.000. Não sou um diretor de comerciais bem pago. Esse número que estou dando é até médio, porque no Brasil comercial é uma loucura. Isso, aliás, inflacionou o mercado de cinema. Todos os bons profissionais foram para a publicidade, e para tira-los de lá você precisa dar uma coisa parecida com o que eles ganham.

 

Que comerciais fez?

O último foi para o Diner´s Club. Desde Tieta não faço, porque passei quase direto para Orfeu. Mas (você) tem que avisar que está disponível, senão...Um grande produtor do Rio para quem eu tinha pedido emprego respondeu: “Você é uma Mercedes, e preciso de um Volkswagen!” E não é verdade. Uma série de varejão que fiz com prazer foi para a raspadinha (da Loterj), com o (falecido cômico) Costinha. E uma vez fiz uma campanha para uma loja de materiais de construção que era barra. Quando acabei, botei numa fita, chamei a família e disse: “Olha o que estou fazendo para sustentar vocês!” (risos). Era um horror. Mas a publicidade no Brasil é muito sofisticada e está na ponta das tecnologias. Fazendo, você se atualiza.

 

Entre os cineastas brasileiros, você teve um privilégio raro: dirigir Jeanne Moreau. Como ela foi parar em Joanna Francesa?

Morei quase três anos fora. Saí em 1969, com medo da barra-pesada. Não fui preso nem torturado, mas estava respondendo a três inquéritos policiais-militares, tinha passado maus momentos na Marinha...


Você ficou preso?

Não, era para responder a inquérito. Mas deixavam a gente lá o dia inteiro, maltratavam psicologicamente. Meu filme Os Herdeiros estava proibido, começou a barra-pesada, amigos presos, desaparecendo. Nara também tinha problemas com os militares. Aí a gente foi embora. Fui morar em Paris, em auto-exílio. E um dia estava numa projeção privada de L´Amour Fou, um filme de meu amigo Jacques Rivette, e lá (fui apresentado a) Jeanne Moreau. Ela disse que tinha visto Os Herdeiros e gostaria muito de fazer um filme no Brasil um dia. Quando voltei, a única coisa que fiz foi mudar o nome do personagem.

 

Qual o nome original?

Não lembro. Joanna é feito de recordações de histórias que meu avô me contava. Algumas aconteceram com minha família, que é muito esquisita. Meu pai é neto de imigrantes portugueses, o pai dele era professor, minha avó também. Ele foi um homem muito modesto, um intelectual. A família dele tinha essa tradição. Mas do lado da minha mãe era uma barra-pesada alagoana.

 

Cangaço mesmo?

Meu avô materno era fazendeiro no Rio São Francisco, em Piranhas, onde depois fiz Bye Bye Brasil, tinha gado, e minha avó era da Zona da Mata, lugar de engenho de açúcar. Uma barra-pesada. Todo verão, até meus 14, 15 anos, a gente ia para Maceió, e um dos melhores momentos era quando eu visitava meu avô. Ele, já velho, me botava no colo e contava essas coisas. Grande parte das histórias que estão em Joanna ouvi dele. Quando o filme ficou pronto até passei uns meses sem ir a Maceió, de medo que me pegassem (risos).

 

E que tal dirigir Jeanne?

Um paraíso e um tormento. Ela só podia fazer o filme naquele período, no verão, em pleno Nordeste, num canavial. É um prazer extraordinário ter uma grande atriz que se coloca à sua disposição como se fosse uma iniciante. Ao mesmo tempo, era um problema para a produção. Como dar conforto a ela naquelas condições? Ela morria de sede no meio do canavial...Umas três ou quatro vezes, perdeu a paciência gravemente. Mas também tinha momentos de relaxamento. Em União dos Palmares não tinha nada, só um botequim, e a gente botou nele o nome de Maxim´s, porque ela ia lá (risos). E algumas noites ela cantava para a gente.

 

Ela ainda despertava paixões?

Despertaaava...E também se apaixonou, mas isso não posso falar.


Ah, não!

Não foi comigo. Se fosse, diria. Ele se apaixonou por um assistente, e foi um problema, porque ele não estava a fim (risos). E produziu paixões em pelo menos mais dois membros da equipe.

 

Dos quais ela não estava a fim?

Com um deles acho que até deu uma namoradinha. Mas aí não quero entrar em detalhes. E quando chegou o Natal e o Ano-Novo foi pior ainda, porque a gente deu folga e ela ficou sem ter o que fazer. Era um tal de arrumar passeio pela fazenda (risos). Aliás, foi nessa época que surgiu o famoso equívoco de que (o ex-presidente Fernando) Collor teria sido assistente no filme. Não é verdade. Aconteceu o seguinte: como na época não havia hotéis em Maceió, a gente hospedou as principais pessoas da equipe em casas de família. E a família Collor hospedou Jeanne.

 

O senador Arnon de Mello hospedou-a?

O Arnon, que era vivo na época, e dona Leda. Fernando era uma criança – isso foi em 1972 -, e ele, muito gentilmente até, levava Jeanne para passear de carro, conhecer as lagoas, mas não era da equipe.

 

Você disse, sobre namorar Jeanne: “Se fosse comigo, eu diria”. Já houve ocasião em que se apaixonou por uma atriz sua?

Não. Já namorei atrizes com quem trabalhei, mas antes de trabalhar. Separo essas coisas. Faço filmes porque gosto de cinema, não das atrizes (risos).

 

Você rompia o namoro e daí fazer o filme?

Ou anos depois ia fazer o filme. Por exemplo, Sônia Braga, que namorei no final dos anos 70, só vim a fazer um filme com ela, Tieta, agora.

 

Que outra atriz você namorou além da Sônia?

Ah, aí não, deixa elas. Só falo na Sônia porque ela já fala, não tem papas na língua, então...(risos).


Mas não foram namoros públicos?

Alguns eram, mas não vou relembrar isso porque seria uma indelicadeza. E filme com Nara, mas aí era casado com ela.

 

Você é muito assediado?

Hoje, muito menos. Mas quando você está solteiro...Nunca dei muita atenção a isso.

 

Há mulheres que se aproximam por causa desse glamour do cinema?

Olha, vou dizer uma coisa um pouco arrogante, mas que é verdade: nunca precisei de cinema para conquistar as mulheres que queria. Mas já aconteceu: para citar um caso, quando estava fazendo Xica da Silva, eu recebia bilhetinhos por baixo da porta de uma das mucamas, convites. Mas fingia que não recebia. O prazer de filmar era tão grande que eu não ia atrapalha-lo com uma coisa menos que é dar uma trepadinha sem nenhuma paixão. Então nunca usei o cinema para isso. E nas poucas vezes em que tentaram usar comigo nem prestei atenção. Sobretudo recentemente: Renata está sempre trabalhando comigo. Ninguém vai fazer essa besteira. E nunca dei margem para que isso acontecesse. Acho que é de um cafajestismo, de uma falta de imaginação tão grande que não ficaria bem na minha biografia.

 

É que existe uma certa fantasia desse tipo de coisa.

Se uma das pessoas que têm essa fantasia assistisse a uma filmagem desistiria dela. Nas cenas de nudismo, os técnicos estão pouco se lixando, estão preocupados com a luz, com não sei o quê...A mulher está lá nua o dia inteiro e você nem vê direito.

 

Por falar em mulher nua, e sua primeira vez, como foi?

Ah, me lembro muito bem. Foi com uma profissional. Foi quando mudei para a Rua da Matriz, devia ter uns 13, 14 anos. Um amigo que era mais velho, tinha muito mais experiência (risos), me levou ali na Rua Duvivier, em Copacabana. Era um quarto-e-sala conjugado.

 

Para você se lembrar tão bem deve ter sido bacana.

Fiquei muito nervoso. Fui da última geração antes da pílula. A minha ainda é uma juventude em que as meninas fazem todas as sacanagens, mas não podem dar. Minha geração começou com profissionais.

 

E no início dos anos 60? O Rio lindo, você ficando famoso...

Entre o final dos anos 50 e início dos 60, com os avanços do pensamento moderno (risos)...

 

E da química...

É, a vida melhorou muito, era uma liberdade muito grande. Mas tinha uma coisa legal que era uma certa confiança no amor. Não era uma coisa esculhambada, promíscua, pelo menos no meu caso.


Você era namorador?

Era, sim, tinha paixões incríveis. É engraçado que meus namoros nunca duravam muito, mas quando comecei a casar...Dez anos com Nara e dezoito agora com Renata. Eu estava destinado ao matrimônio (risos).

 

E esse período entre Nara e Renata?

Ah, me diverti muito. Meu casamento com Nara não só durou muito como foi seríssimo, era uma coisa muito empenhada, como tudo o que Nara fazia, e demorou acabar. Então, quando me separei, não é que tenha sido um alívio, porque Nara era maravilhosa, mas...Sabe quando você está há dois anos discutindo uma relação, sofrendo pra caramba? Quando me vi novamente solteiro, depois de um certo período de luto, me senti no apogeu. Tinha 37 anos, em pleno vigor, bonitinho, fazendo sucesso...E com uma grande alegria de viver. Foi um período muito divertido, que coincidiu com alguns amigos ficando solteiros também (risos).

 

É muito forte na sua carreira essa intimidade com a música. Como você se envolveu tanto?

Algumas pessoas pensam que é porque me casei com a Nara, mas não. Antes mesmo de conhece-la já tinha essa ligação. Acho que no fundo eu talvez quisesse ser músico. Mas também sei pedir as músicas dos meus filmes. Primeiro porque escolho os melhores, então é sopa (risos). Trabalhei com Caetano, Gil, Chico Buarque, Roberto Menescal, Jorge (Benjor)...Além disso, acho que sei pedir. Digo isso sem imodéstia, porque não sou eu que faço a música.

 

Como você e a Nara se conheceram?

Eu via sempre a Nara por causa dessas coisas de Bossa Nova, em festas, rodas de samba. Ela tocava, eu ouvia, mas ela nunca me deu bola. Nessa época meu amigo mais próximo da Bossa Nova era o Carlinhos Lyra. Ele tinha uma academia de violão em Copacabana. De vez em quando eu ia lá, Nara toava com ele também. E na praia, né? O Cinema Novo e a Bossa Nova devem muito a Ipanema (risos), eram aquelas conversas intermináveis, da praia para o botequim...Conheci Nara mais proximamente quando ela namorou o (cineasta) Ruy Guerra. O Ruy foi o montador do meu episódio do Cinco Vezes Favelas e ela todo dia ia lá busca-lo.

 

Você roubou a namorada dele?

Ela namorou o Ruy muito tempo. Mas depois se separou, e só fui reencontrar Nara muitos anos mais tarde. Ficamos amigos. Eu namorava umas moças, ela namorava uns rapazes, e de vez em quando a gente se encontrava para falar da vida, fazer confidências. De repente isso virou namoro, e em 1967 decidimos casar. Aconteceu pouco a pouco.

 

E como acabou?

Nara é uma das mulheres mais importantes do Brasil. Acho que o lugar dela não está sendo nem vai ser ocupado. Ela era muito original, inovadora. Acho que a cultura e a música brasileira devem mais a Nara do que têm dado a ela como homenagem e respeito. Portanto, foi um casamento difícil de acabar. A gente levou uns três anos acabando (risos).

 

Quem tomou a iniciativa dessa conversa dolorosa?

Foi mais ela.

 

Vocês tinham muito em comum?

Tínhamos. Acabou porque acabou o amor, mas ficou uma grande amizade. E ambos lutamos muito. Tenho muito pudor de falar disso porque Nara nunca deixou a vida privada dela vir a público. Falar da minha vida com ela é trair a memória dela. Mas o que posso dizer é que não nos separamos por causa de terceiros ou de bandidagem. Nunca brigamos. Demorou muito para a gente descobrir que tinha de se separar, porque Nara tinha esse outro lado. Ela era muito responsável e rigorosa, sincera, ás vezes até áspera por causa do rigor com que fazia as coisas.

 

Seus filhos eram pequenos quando ela ficou doente, não?

Eram. Quando Nara teve a primeira crise, que não veio a público, Isabel tinha 9 anos, e Francisco, 7. Meus filhos chegaram à adolescência com uma mãe doente. E moravam com ela, porque queriam, e ela também. Só se mudariam para a minha casa quando ela entrou em estado crítico. E foram heroicos, sempre lidaram com isso de frente. Até hoje imagino o que deve ter sido para eles (já emocionado, de olhos vermelhos).

 

Quem contou a você que a doença era fatal?

Foi já no final. Ela teve a primeira crise em 1979 (dois anos depois da separação). Caiu no banheiro, teve convulsões. Com o tempo começaram a surgir várias explicações, e nunca se chegava a uma conclusão. Isso é o que me era dito. Teve um período em que ela melhorou muito. No início de 1982 ela me disse: “Vou retomar os shows, agora estou boa”. A essa altura já havia a hipótese do tumor, mas ninguém tinha me dito que aquilo era fatal. E eu não podia ir lá fuçar. A pessoa da família dela que ficou minha amiga e é até hoje é a Danusa (Leão, colunista do Jornal do Brasil), que adoro, é minha eterna cunhada. Algum tempo antes de ela morrer, fui chamado pela Danusa e ela me disse que era um tumor incurável, porque estava num lugar do cérebro a que não havia acesso. Hoje percebo que já se sabia desde o início. Pelo menos o pai dela, alguém sabia o que era. Mas não me disseram, para me proteger, ou aos meus filhos.

 

Quem contou a eles?

Eu disse, fiz questão. Ninguém me pediu. Mãe é uma coisa muito decisiva na vida da gente.

 

Eles já suspeitavam?

Acho que sim. Só uma pessoa muito valente como Nara para resistir a dez anos dessa história.

 

Que tal voltarmos ao caso do assalto que acabou levando você a conhecer sua segunda mulher...

Eu estava solteiro e morava num apartamentozinho térreo ali na Rua Duque Estrada, na Gávea. Era um domingo e eu estava sozinho, felizmente, Aí tocou a campainha. Vi que era muito cedo, digo: “Deve ser vendedor, não vou atender”. Dormi de novo e acordei com um revólver na cara. Eram dois meninos. “Vai morrer porque foi preguiçoso”, disseram. “Se tivesse aberto a porta a gente tinha ido embora”. Pô, imagine. Trabalho para burro e vou morrer porque sou preguiçoso? Mas a vi que ele estava escondendo o rosto. Se fossem me manter não fazia isso. Aí ele me mandou virar de costas, amarrou minhas mãos com o cinto, botou um travesseiro na minha cabeça. Eles levaram tudo, ficaram umas 2 horas lá. (A certa altura) o ladrão viu umas latas de filme 16 milímetros e perguntou: (imitando um tom agressivo) “Você faz cinema? Cadê o equipamento?” Expliquei que fazia filme profissional, não tinha equipamento em casa. E um deles: “Diz aí um filme que você fez”. E eu: “O último é esse que está passando, Bye Bye Brasil”. “Ah, com a Betty Faria e o Zé Wilker, né? Taí, eu vi gostei”. Senti um alívio...Foi a melhor crítica que tive na vida (gargalhando).

 

E ninguém notou nada?

Domingo de manhã, uma rua sossegada...No fim eles disseram: “Agora vamos sair, mas antes vamos fazer um lanche na sua cozinha. Daqui a 10 minutos você pode se levantar”. E eu: “Como vou saber que passaram 10 minutos? E eles: “Quando a gente estiver indo embora, buzinamos três vezes”. Pensei que eles jamais iam fazer isso, mas não é que fizeram? (Risos). Bi, bi bi! Eu me levantei, mas não conseguia ficar em pé. Toda a coragem daquelas 2 horas desapareceu. Nunca mais consegui dormir lá. Fui para a casa do (cineasta) Bruno Barreto, que era solteiro também e me hospedou. Foi aí que resolvi vender o apartamento...

 

...e Renata entrou na história.

Exatamente. Meus queridos, abençoados ladrões (risos), que não só gostaram do meu filme como me deram a mulher da minha vida.

 

Publicado originalmente na revista “Playboy” em julho de 1999

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