Playboy entrevista Fernando Meirelles
Uma conversa franca com o cineasta brasileiro mais badalado no exterior
sobre sua coleção de gafes, o pânico diante de José Saramago, a recusa em
dirigir uma aventura de James Bond e o dia em que convenceu Brad Pitt a se
casar com Angelina Jolie
O diretor Fernando Meirelles tem alguns tiques que, descritos friamente,
dão a impressão de que ele é um sujeito nervoso. Pisca frequentemente com muita
força e, quando fala, movimenta os braços em rotas de 180 graus. Se está
sentado, troca as pernas e balança os pés. Apensar dessa aparência agitada,
Fernando é um sujeito tranquilo. Principalmente no set de filmagem.
Diferentemente de muitos colegas de profissão, não tem por hábito gritar com
atores e distribuir esporros entre a equipe.
Quando está de fato nervoso, Fernando Meirelles costuma sorrir forçado,
balançar a cabeça e levar a mão ao peito e á boca, como se estivesse limpando
uma sujeira nos lábios. Foi assim no dia 19 de maio, em Lisboa, ao final de
exibição de seu mais recente filme, Ensaio
sobre a Cegueira, para o escritor José Saramago, autor do livro homônimo.
“Fiquei em pânico”, confessa. Em vão. Saramago não apenas aprovou o filme como
chorou de emoção. Aliviado, Fernando tascou um beijo na teste do octogenário
escritor.
Neste mês, o cineasta deve voltar a enfrentar novas situações de
estresse. No próximo dia 12 – um dia depois de seu aniversário de 53 anos -, Ensaio estreia no Brasil. E Fernando
está tenso. Apesar dos aplausos recebidos na abertura do Festival de Cannes
deste ano, o filme foi bombardeado por publicações especializadas, como a
revista Variety, para a qual Ensaio
sequer deveria ter sido feito. O diretor diz temer a reação do público e afirma
que está “de guarda-chuva aberto, à espera as porradas da crítica”.
Nada com que já não esteja acostumado. Com Cidade de Deus (2002), filme que o consagrou, Fernando Meirelles
enfrentou críticas que o acusavam de glamourizar o tráfico de drogas, estigmatizar
como bandidos os moradores de favela que deu nome ao filme e manchar a imagem
do Brasil no exterior. Tais acusações não impediram, no entanto, que o filme
recebesse quatro indicações ao Oscar, entre elas a de melhor diretor. E que sua
carreira internacional decolasse. Depois de
Cidade, dirigiu O Jardineiro Fiel (2005), seu quarto longa-metragem, com
Ralph Fiennes e Rachel Weisz (que levou o Oscar por sua atuação). Antes, havia
feito Menino Maluquinho 2 (1998) e Domésticas, o Filme (2001).
Apesar do sucesso no cinema, foi na televisão que Fernando consolidou
sua carreira como diretor. Quando cursava a faculdade de arquitetura na
Universidade de São Paulo, fez trabalhos experimentais na produtora Olhar
Eletrônico, como o programa Ernesto
Varela, personagem interpretado por Marcelo Tas, especializado em fazer
perguntas esdrúxulas a políticos e celebridades – espécie de Pânico na TV dos anos 80. Fernando
também tem uma bem-sucedida carreira de publicitário. São mais de 700
comerciais e prêmios pela sua produtora, a O2.
Atualmente, ele dirige a minissérie Som
e Fúria, produção independente que será exibida na Rede Globo em 2009. Foi
nas gravações desse trabalho, nos estúdios da O2 em Cotia (SP), que Fernando
apontou uma a editora Adriana Negreiros. Naquele que seria o terceiro encontro
entre os dois, pediu à jornalista que atuasse como figurante. “Só vai aparecer
a parte de trás da sua cabeça”, avisou. Ela conta como é estrear na TV pelas
mãos de Fernando Meirelles: “De fato, ele é muito gentil. Embora minha atuação
não exigisse reparos, ele foi muito polido ao pedir à atriz Maria Flor que
repetisse a cena em que cantava”, conta a jornalista.
Casado com a bailarina Ciça Meirelles há 22 anos e pai de um casal,
Fernando faz a linha low profile. Raramente é visto em badalações e, por causa
de sua aversão ao universo das celebridades, vive cometendo gafes. Algumas
enormes. Como a que aconteceu na casa da atriz Jennifer Lopez.
Huuum, na casa da Jennifer Lopez? E que tal a moça?
Ela estava completamente sem maquiagem, descalça...
Parece interessante.
Zero de glamour. Uma garota simpática, só. De perto,
tudo é muito normal.
O que você foi fazer lá?
Ela queria que eu fizesse um projeto sobre a história
de um cantor porto-riquenho. Mas eu não peguei o projeto.
Foi lá que você cometeu uma
das maiores gafes de sua carreira, não?
No meio da conversa, entra um cara de pijama e senta ao
meu lado. “Quem é esse cara?”, pensei. Então, perguntei: “Você trabalha com
cinema?” E ele, muito simpático: “Eu sou ator”. E eu: “Ah, que legal”. Depois,
quando cheguei ao hotel, falei pra Ciça, minha mulher: “Ah, tinha um namorado
dela lá, um cara simpático”. E ela (imita
a voz da esposa, gritando): “Era o Bem Affleck, seu idiota!” (risos).
Você não reconheceu o Ben
Affleck?
Acho que isso acontece porque a gente vê os caras todos
maquiados. E o sujeito tava ali de pijama, chinelo...Tenho uma lista de foras
sensacionais...
Então conta mais um.
Teve um que a Ciça quis me matar. Foi no Globo de Ouro.
Aquela mulher do Will and Grace...Uma
loira bonitona e tal. Como é o nome dela?
Debra Messing.
Isso. Ela veio conversar comigo, falou sobre projetos. Eu perguntei:
“Você é produtora? ” E ela: “Não, sou atriz”. E a minha mulher, do meu lado:
“Seu estúpido!” E o pior é que eu assisti a essa série várias vezes e não a
reconheci. Ela parece mais jovem e mais bonita ao vivo.
Você não aproveita as festas
que rolam nos festivais de cinema?
Fico pouco à vontade. Saio rapidinho.
O que exaspera?
Não gosto. Mesmo quando a conversa é boa, sempre tem
muitos fotógrafos...E eu não tenho fascinação por astros.
Você disse que não via graça
na cerimônia do Oscar, mas, quando esteve lá por causa de Cidade de Deus, até riu das piadas...
Na televisão, nunca consegui assistir a premiação de
ponta a ponta. Sempre dormia na “melhor mixagem”, que deve ser lá pelas 11h,
11h30 da noite (risos)...Mas ao vivo
é mais divertido. Você chega para chegar o champanhe e a Angelina Jolie tá ali
na sua frente.
Por falar em Angelina Jolie,
dizem que foi você que aconselhou o Brad Pitt a se casar com ela. É verdade?
Que coisa, hein? Eu estava em Los Angeles e o Brad Pitt
foi me encontrar num hotel. Conversamos e achei esquisito ele falar tão baixo.
Pensei: “Mas por que a gente não conversa numa altura normal?” E ele lá,
falando baixinho...Minha mulher estava junto, e ele comentou que não sabia se
deveria se casar ou não. A gente estava falando da vida em geral, eu disse:
“Olha, casa porque meu casamento é ótimo. Estamos juntos há 22 anos...” Foi
assim, uma conversinha. Mas alguém ouviu e no dia seguinte saiu no jornal:
“Fernando Meirelles aconselha Brad Pitt a se casar com Angelina Jolie”.
Casar com a Angelina Jolie
não é um conselho de todo mau.
Mas não foi pelo meu conselho, embora eu tenha vendido
bastante a ideia de casamento.
Segundo outro boato, você já
foi amante da mulher do ex-ministro da Defesa da Inglaterra. Explique-se,
Fernando.
Essa é boa. Eu tinha que emoldurar essa notícia. A
mulher era minha inquilina.
Inquilina?
Eu tenho um apartamentinho em Paris, quer alugo quando
fica vago. E essa mulher, que era casada com um ministro envolvido num
escândalo de venda de armas, o alugou. O cara foi preso e a família virou meio
que “celebridade do mal”. Assim que ela deixou o apartamento, eu fui pra lá, e
um sujeito fotografou ela saindo e eu entrando. Minha foto saiu num tabloide:
“O novo toy boy”. Como se eu fosse um playboy brasileiro. Ligaram na O2 para
saber o que eu fazia, contaram a minha vida. Era uma foto boa, eu tava com uma
cara de playboy...
E a mulher era interessante?
Uma cinquentona enxutaça! Usou bem o dinheiro do marido
(risos). Depois ela me escreveu
envergonhadíssima, pediu desculpas, disse que estava processando o jornal e que
iria me dar uma parte. Um dia, ela me enviou um cheque de 15 mil libras. Foi
divertido.
Você se deslumbra com o
sucesso? Nunca se pegou dizendo: “Opa, eu sou o tal!”?
Não, porque eu não sou o tal. Fiz apenas quatro filmes
na vida, imagina! Sou um aprendiz. Não tenho uma carreira pra achar que sou
alguma coisa, né?
A cena em que você aparece à
espera da reação do José Saramago à sua adaptação do Ensaio sobre a Cegueira virou um hit no YouTube. Como ali se vê
apenas o final da projeção, fica a curiosidade pelas reações do escritor
durante a exibição. O que aconteceu, afinal?
Ele ficou em silêncio e assistiu a tudo atento. Mas eu
estava em pânico. Estava vindo de Cannes e tinha recebido críticas negativas.
Comecei a pensar: “Ah, vai ver este filme não é o que eu estava achando”.
Estava desconfiado. E o cinema em Lisboa era imenso, mas tinha projetores muito
ruins.
Isso atrapalhou.
Muito. O filme tem um som muito bom e lá havia apenas
duas caixinhas de som. E tinha aquela tela enorme que passava o filme
pequenininho, um quadradinho no meio da tela, com a imagem lavada. As cenas
escuras simplesmente não tinha imagem. Eu tinha o que falar: “Agora, o senhor
deveria estar vendo isso”. E ele quieto. Na hora em que terminou, pensei:
“Pronto, acabou a minha carreira” (risos).
E aí?
Na hora em que acenderam as luzes – o vídeo, foi meu
filho quem gravou e botou no YouTube -, vi que o Saramago estava lacrimejando,
emocionado. E aí ele falou aquela frase linda, de que estava tão feliz ao ver o
filme como quando acabou de escrever o livro.
Você citou as críticas
negativas a Ensaio em Cannes. Teme a
reação do público?
A gente sempre tem uma ansiedade de soltar o filme no
mercado. É imprevisível. Ás vezes, os filmes estouram, como Cidade de Deus. E ás vezes é um “flop”.
Com esse aqui, tenho certeza que vou levar porrada.
Por quê?
Já tomamos algumas em Cannes, embora também tenhamos
tido boas críticas do TheGuardian, do
Corriere Dela Sera, do El País e de outros jornais, mas tomamos
porradas grandes e estou esperando acontecer a mesma coisa no Brasil. Críticas
de pessoas que odeiem o filme, que leram o livro e tenham muita
expectativa...Muita gente vai achar péssimo e outras pessoas vão ficar tocadas.
Mas eu já estou de guarda-chuva aberto, esperando pelas porradas.
Você se incomoda com a crítica?
Aprendi a não me incomodar tanto. Fiquei chateado com
as primeiras críticas negativas que recebi na vida. Já faz um tempo. Respondi,
ligava pro jornal. Aí fui desencanado. Você tem que aceitar que cada um enxerga
a coisa de um jeito. Em Cannes, eu tive sorte. O filme passou na noite de
abertura, depois fui para uma festa e o pessoal da distribuidora americana me
disse: “Olha, saíram umas críticas e são bem ruins”. Eles referiam à crítica da
Variety. Fiquei chateado, pensei em
ler...
E leu?
Não. Fui para o hotel: “Vou ler amanhã”. Só que na
manhã seguinte eu tinha um encontro com um ator. Ele notou que eu estava meio
mal, e eu disse que era porque tinham saído umas críticas ruins, embora eu
ainda não as tivesse lido. Ele falou: “Não leia. Quando comecei a carreira, fui
jogado lá pra cima e depois, durante uns sete ou oito anos, só tomei porrada.
Se tivesse lido tudo, teria parado”.
Quem era o ator?
Melhor não falar. É um atorzão. Mas eu segui o conselho
dele, foi uma terapia. Não li até agora e não vou ler. Porque das duas, uma: se
a crítica é elogiosa, você começa a se achar, né? E se é uma crítica ruim, você
fica respondendo àquela crítica na sua cabeça. Fica uma semana respondendo
aquele troço. E isso desgasta.
Num pré-teste no Canadá,
pessoas saíram no meio do filme por achar as cenas muito fortes. Você ficou
assustado?
Quarenta pessoas saíram. Hoje o filme tem uma sequência
de estupro e uma outra na qual a Julianne Moore mata o Gael García Bernal. Na
primeira versão, a primeira sequência era mais forte e mais longa. Além disso,
antes de a Julianne ir lá resolver a parada, tinha outra sequência de estupro
de quase dois minutos. E essa era brutal. Você não via, mas entendia o que
estava acontecendo. Era uma cena muito dura.
Você ficou preocupado?
Pensei: “As pessoas não vão se conectar com esse filme,
passou do limite”. Porque, quando você filma, pensa no enquadramento, no tom,
se envolve tanto tecnicamente com a coisa que perde a noção de quão forte tá o
troço. E, quando passou o filme no Canadá, eu não esperava de jeito nenhum essa
reação. Aí a gente deu uma aliviada. Tirei o segundo estupro; tem só um.
Outra dificuldade deve ter
sido filmar no Centro de São Paulo, que é mostrado completamente abandonado e
vazio. Como você fez?
A CET (Companhia
de Engenharia de Tráfego) nos deu as manhãs de domingo para filmar. Entrávamos
no Centro às 2h da madrugada, com uns quatro ou cinco caminhões de lixo. Uma
equipe espalhava tudo e, quando clareava, a gente começava a rodar. Lá pelo
meio-dia, recolhíamos tudo.
Mas alguns moradores se
queixaram da bagunça.
Sim. Diziam: “Que absurdo esse prefeito!” Falavam mal
do Kassab (risos). Mas, quando a
produção é organizada, é impressionante. Você ia lá e via aquela sujeirada
toda. Duas horas depois, a rua estava absolutamente limpa.
Foi noticiado que as gravações
atrapalharam um concerto no Teatro Municipal e o regente Jamil Maluf ficou
chateado.
A gente estava filmando na hora do concerto. Era uma
sequência com a Julianne Moore e o Danny Glover, e as pessoas ficaram
assistindo pela janelinha. Muita gente não entrou na sala. E isso atrasou a
apresentação.
Na época da pirataria de Tropa de Elite, você disse que adoraria
que o mesmo acontecesse com o seu filme. Adoraria mesmo?
Foi uma piada. Eu estava filmando em Buenos Aires e a
Mônica Bergamo (colunista da Folha de S.
Paulo) foi para lá. A gente conversou sobre o Tropa, antes de o filme ser lançado. E eu falei: “Puxa, é uma boa
estratégia, porque o filme não tem nem data de lançamento e todo mundo já está
falando a respeito. Acho que vou fazer o mesmo”. Uma piada! Mas, depois,
evidentemente, vi que nem como piada funcionava. Aquilo foi em julho. No final
de agosto, 10 milhões de pessoas tinham visto o filme sem pagar um tostão. Foi
aí que vi que tinha sido uma frase infeliz.
O José Padilha, diretor de Tropa, ficou chateado. Ele disse que, se
você quisesse, poderia dar o nome do sujeito que fez a cópia pirata.
Não foi quem disse isso, foi o produtor (Marcos Prado), que ficou bravo comigo. O
Padilha, não. Sou amigo dele. Na hora em que saiu a frase, falei: “Padilha, foi
uma piada”. Ele me respondeu: “Eu sei, cara”.
A pirataria é um aliado ou
um rival do sucesso do filme?
É um rival. Mas não tem jeito, vai acontecer. É um dano
econômico, um roubo. No caso do Tropa,
eles foram roubados.
Você gostou do filme?
Gostei. A história me pegou e saí pensando na polícia.
Não comprei essa história de que é fascista. O Padilha fez um filme do ponto de
vista da polícia. E é até bastante isento. É interessante porque algumas
pessoas ficam ao lado do Capitão Nascimento e algumas, como eu, não ficam.
Você é membro da Academia de
Cinema de Hollywood, que elege os filmes do Oscar. Em quem votou no ano passado
como melhor filme?
Eu não votei porque não paguei a anuidade. É verdade.
Você tem que pagar 200 dólares por ano, e é esse dinheiro que banca a festa.
Não sei por que não paguei, acho que perdi o cupom. A vantagem de ser da
Academia é que as distribuidoras mandam os filmes em que elas querem que você
vote. A gente recebe um pacote com 20, 25 DVDs com filmes que vão entrar no ano
seguinte. Então é legal.
Como é sua relação com os
outros membros da Academia?
Nenhuma. Nunca fui a nenhuma reunião, nenhuma projeção.
Nem sei onde fica em Los Angeles. Não tenho interesse nesse negócio.
Na época em que Cidade de Deus foi indicado ao Oscar,
você se envolveu em uma polêmica com a Kátia Lund, que reivindicou o crédito
pela direção do filme. O que aconteceu, afinal?
Teve esse conflito mesmo. Ela tentou ir à
Academia...Mas no nosso contrato estava muito claro, e tudo se esclareceu na
hora em que falei pra ela apresentar o nosso contrato de trabalho.
O que havia sido combinado?
Primeiro eu a convidei para fazer assistência de
direção. Ela não quis. Daí propus que ela me ajudasse a montar o elenco. Ela
era muito articulada nas comunidades, foi uma ajuda inestimável. Ela participou
das filmagens, mas não se envolveu com cenário, roteiro, direção de arte,
montagem, música. Só que o trabalho dela tinha sido tão importante que quis dar
o crédito de co-direção de elenco pra ela. Ela falou que isso não existia. Eu
disse que co-direção também não podia ser, porque podia dar confusão. Aí
concordamos que ela entraria no crédito assim: na abertura do filme, tem
escrito: “Um filme de Fernando Meirelles”. Com isso, ficava claro que a
concepção era minha. E depois, nos créditos finais, entraria primeiro
“co-direção Kátia Lund” e o última crédito “direção: Fernando Meirelles”. Ela
topou. Mas chegou na hora, embolou, né? Depois tudo se resolvei. Eu a convidei
para fazer a série Cidade dos Homens,
na Globo. É uma excelente diretora. Tem pulso e visão.
Outra polêmica envolveu MV
Bill, que se queixou que os moradores de Cidade
de Deus ficaram estigmatizados...
Acho que faltou uma análise correta. Ficamos oito meses
na Cidade de Deus. Recolhi material de jornal nesse período: 64 garotos foram
mortos ali. No Rio de Janeiro, foram 300 e poucos. Meu filme deve ter uns 19
mortos. O que estigmatiza? O filme ou o que tá no jornal todos os dias? Alô, MV
Bill, põe a cabeça fora e vê que as pessoas estão sendo mortas na tua janela.
Você disse que, no exterior,
há uma reverência ao diretor, ao passo que, no Brasil, durante as filmagens de Cidade de Deus, por exemplo, qualquer
menino te pedia para buscar um copo d´água. É assim mesmo?
É uma coisa de cultura. E também porque a equipe com
quem eu trabalho no Brasil é a mesma há 20 anos. Quando vou trabalhar fora, é a
coisa do diretor estrangeiro. Tem uma reverência que me incomoda. É um pouco
assustador. Você conhece a história do camelo? É o ícone dessa história do
exagero.
Camelo?
Se eu pedisse um camelo aqui, a Biel, que é produtora,
iria falar: “Fernando, veja bem, você quer mesmo um camelo?”. Pois bem. A gente
ia filmar uma sequência de O Jardineiro
Fiel no deserto no norte do Quênia, onde tem uma tribo que é atacada por
uns cavalos. E, andando na região para escolher as locações, vi uns camelos
pequenos e disse: “Olha, legal. Na cena, além dos cavalos, a gente podia ter
uns camelos”. Falei e saí andando. Passou, falei por falar.
E o que aconteceu?
Uma semana depois, me chamaram para uma reunião no
hotel. “Fernando, está aqui o dono da fazenda para você escolher os camelos”.
Quando cheguei lá, me contaram que os camelos do norte do Quênia não podiam
ser, porque ninguém sabia quem era o dono. Mas a produtora tinha entrado em
contato com um criador de camelos na Etiópia e trouxeram o cara pra Nairóbi,
ele e a mulher dele, com um catálogo de camelos pra eu escolher. Já tinha um
avião disponível para colocarem 16 camelos, que voariam da Etiópia para o
Quênia. Iam montar um curral especial com um tratador. Falei pra produtora:
“Você tá louca! Que exagero! Me desculpa, o camelo não é tão importante”.
Você gostaria de dirigir uma
superprodução? Por exemplo, aceitaria o convite para dirigir Batman 3 ou Homem-Aranha 4?
Acho que leria o projeto. Três anos atrás, fiz algumas
reuniões em Londres para fazer o James Bond. Era um filme da série que acabou
não saindo. Me convidaram e eu considerei bastante, mas estava querendo voltar
para o Brasil e acabei não aceitando. Hoje, se aparecesse: “Quer fazer o Homem-Aranha 4?”, acho que diria não,
mas não sei se daqui a um tempo isso não vai ser um desafio.
Por quê? Você não gosta
desse tipo de filme?
Esse último Batman
é interessante, é um bom filme. Mas um filme desses toma dois anos, tem que
colocar os projetos pessoais de lado. Eu leria, não rejeitaria em princípio,
mas também não vou atrás e nas vezes em que me consultaram para filmes grandes
eu disse não.
Não é o sonho de todo
diretor comandar uma superprodução?
Não. Acima desse limite eu faço, de 24, 25 milhões de
dólares, quanto mais dinheiro envolvido, mais o filme precisa garantir o
retorno. Então você passa dos 40 milhões e começa a entrar o departamento de
marketing e toda a engrenagem do estúdio. Eles assistem a tudo o que você filma
todos os dias, te mandam notas.
Que tipo de notas?
Do tipo: “Olha, tá faltando gancho emocional pro
personagem”. Você começa a ser pilotado, vira uma marionete controlada pelo
estúdio. Eu não sei trabalhar assim. Não consigo dirigir sabendo que o meu take
está indo para Los Angeles para o pessoal me mandar comentários. Essa é a minha
resistência. É para manter a independência.
Você também recusou a
direção de Colateral...
Que acabou sendo dirigido pelo Michael Mann. É um filme
bom. O meu seria comédia, o dele é um drama.
A recusa foi logo depois de
uma conversa sua com o Steven Spielberg. Ele te aconselhou a não pegar o filme?
Não, ele foi amabilíssimo. Parecia um tio, de tão
gentil e generoso. Eu estava fazendo um circuito de lançamento com Cidade de Deus, estava fora de casa
fazia um tempo, em Los Angeles, era fevereiro de 2004. Era uma coisa assim: “Se
você topar, você vai para casa, fica duas semanas, volta e fica aqui até
setembro”. Saí de Los Angeles dizendo que ia pensar. Quando cheguei a São
Paulo, estava um solzinho de verão tão bom (risos)...Falei:
“Quer saber? Não vou entrar nessa agora, não”.
Muito se fala que o cinema brasileiro
privilegia temáticas ditas sociais. Existe uma glamourização da miséria no
cinema nacional?
No ano passado, foram lançados 80 filmes nacionais. A
gente deve ter tido sete ou oito sobre o lado B do país, o dos excluídos, e 70
filmes que são romance, comédia, histórias da classe média. Por alguma razão,
os filmes que falam sobre o lado B do Brasil são os que têm mais visibilidade
internacional. Um filme que é uma historinha sobre uma professora e um
funcionário de banco dificilmente consegue entrar no mercado americano e
europeu. Para ver filmes sobre a classe média, eles veem em inglês, da cultura
deles.
O cinema brasileiro precisa
de financiamento público?
Sim. No mundo inteiro, o cinema tem subsídio do Estado.
O Brasil está finalmente construindo uma indústria de cinema graças a esse
dinheiro da lei. Haverá o momento em que poderão existir filmes que são
meramente comerciais, que não vão precisar de dinheiro do Estado. Hoje, se
acabarem as leis de incentivo, o cinema acaba integralmente. Mas eu discordo de
alguns colegas em um ponto. Hoje o produtor pega o dinheiro, faz o filme e, se
o filme tem lucro, o produtor distribui o dinheiro entre os investidores: se
não tem lucro, o problema não é de ninguém, está pago. Isso foi importante para
consolidar a indústria, mas está na hora de criar um mecanismo de contrapartida
do produtor. Tenho um projeto inédito, que posso te passar.
Pois não.
Se o Estado investiu 4 milhões de reais no filme,
deveria ter, no mínimo, direito proporcional em ingressos. Seis meses depois de
o filme ter sido lançado, você poderia assistir a esse mesmo filme a 1 real. E
o produtor não ganha nada nessa segunda passada. O que acontece atualmente é
que o Estado paga um bem cultural a que só 30, 40 mil pessoas têm acesso. Não
faz sentido. Já que é um bem público, essa distribuição deveria ser
democratizada.
Grandes empresas, como a
Globo Filmes, precisam de dinheiro do Estado?
Não sei como funciona a relação entre a Globo TV e a
Globo Filmes, mas talvez, se não tivesse essa possibilidade de dinheiro do
Estado, não existisse a Globo Filmes. E, se não existisse a Globo Filmes, as 30
maiores bilheterias do cinema brasileiro não teriam acontecido.
Quem é contra o
financiamento público de cinema argumenta que cultura não é prioridade num país
onde pessoas morrem de fome.
Cultura não representa
nem 1% dos gastos. O que se fala é que cultura deveria ser 3% do orçamento de
um país. Desculpa, quem fala que não é prioridade. É prioridade, sim. A gente
conhece os Estados Unidos por causa do cinema, em grande parte. Nas décadas de
30 a 50, os americanos venderam a ideia de democracia e civilização.
Alguém não poderia dizer que o cinema americano enaltece os
Estados Unidos, ao passo que o cinema brasileiro visto no exterior só mostra as
mazelas do país? Isso não
propriamente eleva a auto-estima do brasileiro...
Mas mesmo o filme que
mostra a mazela eleva a auto-estima. Quando Tropa
de Elite ganhou o Urso de Ouro no Festival de Berlim, isso elevou a
auto-estima. Já ouvi isso: “Pô, mas a imagem que vocês constroem do Brasil com
esses filmes...” Eu sinceramente acho que a imagem do Brasil pelo cinema é um
detalhezinho. Quem constrói a imagem do Brasil é essa desigualdade social, é o
desmatamento, é o Supremo Tribunal Federal protegendo o crime do colarinho
branco. O cinema só reflete essa imagem.
Na época do lançamento do Cidade
de Deus, foi feita uma projeção para o então presidente Fernando Henrique
Cardoso, que depois não quis muito papo com você sobre o tráfico. Como foi isso?
É, eu entrei no assunto
e ele meio que não quis conversar sobre isso. Tentei falar: “O negócio ali tá
brabo mesmo. Parece que o governo federal não está dando importância e vai piorar
muito”. Como de fato piorou. O Fernando Henrique falou que era problema do
governo do Rio de Janeiro.
Você ficou chateado?
Não. Foi uma noite agradabilíssima. Assistimos ao filme,
depois fomos jantar no Palácio da Alvorada. Éramos umas 16 pessoas – o
presidente, a mulher dele, um ou dois senadores, um ou dois ministros e a
equipe do filme. Passamos umas três ou quatro horas comendo, tomamos vinhos
ótimos.
Além da maconha, que outras
drogas você usou?
Nunca cheirei pó. Tenho uma enorme implicância com a cocaína
– por tudo, desde o efeito devastador pessoal até o devastador social. Numa
cheiradinha, você começa a se destruir e tem o traficante que é apoiado por um
outro maior, que corrompe a polícia, que praticamente destrói um país como a
Colômbia. É um rastro de destruição.
Mas isso é privilégio da
cocaína?
Maconha também, mas é duro você construir um cartel de
maconha, porque qualquer um pode plantar, você não depende do fornecedor.
Cocaína vem de poucos lugares. Então você dá poder para aquele cara. É difícil
você ter um produtor de maconha muito poderoso. Não tenho nada contra quem
fuma, ás vezes até teria vontade mas tenho uma resistência a fumar porque dá
direito pra traficante.
Você faz discurso quando vê
alguém fumando?
Fico na minha. Mas, quando eu fumava, sempre era amigo que me
dava. Nunca dei 10 reais por maconha.
O cineasta Fábio Barreto vai
dirigir um filme sobre o Lula. Você faria esse filme?
Não teria nenhum interesse em fazer um filme sobre o Lula.
Por causa do personagem
principal?
Por tudo o que está envolvido. Não me interessaria em fazer,
nem em assistir.
Você está satisfeito com o
governo Lula?
Lula é um político muito hábil e tem sensibilidade para lidar
com crises, sabe empurrar com a barriga. Mas não votei nele, votei no Serra. O
momento da economia está ótimo, mas isso deve-se mais pelas mudanças
estruturais do Fernando Henrique que pelos feitos do governo Lula.
Mas, nos anos 80, você
dirigiu um programa de TV do PT. Você era petista?
Votei muitas vezes no Lula, mas nunca fui petista, nunca usei
brochinho. Fizemos uns três ou quatro programas do partido. Era uma produtora
contratada. Fizemos com empenho, mas acho que o PT virou um partido como outro
qualquer, absolutamente vendido, que aceita apoio de qualquer lado, não tem cara,
loteia os cargos.
Seu título de eleitor é de
São Paulo. Em quem vai votar para prefeito?
Os três candidatos principais – Gilberto Kassab, Geraldo
Alckmin e Marta Suplicy – têm qualidades. Fico até feliz, São Paulo não está
tão ruim, porque o Rio tem o Marcelo Crivella...Lá não tem para pode correr.
Meu candidato seria o Fernando Gabeira, mas ele está ruim de decolar. Nunca
achei que fosse votar no DEM, mas estou inclinado a votar no Kassab. Eu vejo a
Marta e o Alckmin fazendo trampolim para a presidência e o Kassab tem um lado
administrador que eu acho simpático.
Você trabalha com atrizes
estonteantes. Sua mulher não fica com ciúmes?
Ela tem ciúme de algumas. Coisa de mulher. Tem porque tem,
porque mulher é assim. É coisa da cabeça dela. “Essa aí se faz de sonsa quando
chega perto de você”, diz. Isso não é bom coisa de mulher?
É. Por acaso ela teve ciúme
da Rachel Weisz, que você dirigiu em O
Jardineiro Fiel? Ela é uma das mulheres mais sexy do cinema...
Ela é linda, linda. Da Rachel ela gosta muito. A Rachel é
muito gentil.
Como você conheceu a Rachel?
Quando eu estava montando o elenco para O Jardineiro. Ela queria muito fazer o filme, mas estava um pouco
acima da idade – tinha 35, 36 e eu queria uma atriz mais jovem. Eu estava em
Londres quando recebi um e-mail dela: “Por favor, me dá meia hora. Li o livro,
tenho umas ideias”. Ela estava em Los Angeles filmando. Eu disse: “Meu Deus, se
ela vem até aqui, é claro que eu tenho que receber a mulher por meia hora”. Ela
saiu do set, pegou um avião para Londres, do aeroporto foi para o hotel,
conversamos, ela voltou para o aeroporto e voou para Los Angeles. É delicada,
atenciosa, cheia de ideias para o personagem...
O que você disse a ela?
“Olha, Rachel, eu queria uma personagem mais jovem, com uns
22 anos”. Falei com outras atrizes, mas a impressão que ela tinha me causado
era tão...Não só porque ela é bonita, mas porque é inteligente, viva. Foi uma
impressão tão forte que, depois de um mês e meio conversando com um monte de
gente, ligue para ela: “Rachel, ainda tá a fim?” E ela veio.
Isso de falar que uma atriz
está acima da idade para a personagem já te rendeu uma saia-justa com a Nicole
Kidman, não?
Isso foi fofoca. Eu estava jantando em Nova York e do meu
lado tinha uma jornalista. E eu não sabia. Ela começou a puxar assunto: “Por
que você não chama não sei quem? E a Nicole Kidman?” Eu falei: “A Nicole é
ótima, mas ela não tem idade para o papel”. E ela publicou: “Fernando acha
Nicole velha”. Deu no The New York Times
e depois saiu em todo lugar. Depois eu mandei um e-mail pra Nicole, ela
entendeu.
Muita gente diz que gostaria
de ser dirigida por você. A Gisele Bündchen, a Luciana Gimenez, o Tom Hanks...
A Luciana andou me mandando uns e-mails.
E o que você respondeu?
Vamos ver...
É o clássico “a gente liga”.
Mas ela é atriz?
Não que eu saiba.
É tão bom você trabalhar com ator tarimbado...Você dá um
toque e a pessoa responde. Eu gostava muito de trabalhar com atores amadores,
mas quanto mais trabalho com atorzão sólido, mais eu me encanto. O Tom Hanks é
um grande ator. A gente chegou a considera-lo para o Ensaio.
E por que não deu certo?
É complicado. Se ele entra no filme, o orçamento estoura. O
cachê dele era dez vezes maior que o nosso orçamento. Mas recebo muitos e-mails
de atores que têm interesse em trabalhar comigo. É gozado, né? Você pensa: a
pessoa com essa visibilidade, esse currículo e te escreve pedindo dinheiro!
É muito comum que atrizes
que queiram papéis em filmes e novelas deem mole para o diretor...
(Interrompendo)
Será que ainda é? Será que não é folclore? Uma coisa anos 70, 80?
O Daniel Filho contou que
uma moça tirou a roupa para ele.
É mesmo? Não, ninguém nunca tirou a roupa...Mas, enfim,
mulher que precisa de favor e fica jogando olhares sonsos. Isso rola. Que deixa
a porta aberta. Mas não acho que seja diferente de qualquer outra profissão. É
uma coisa humana, não?
O fato é: acontece bastante
com você?
Não bastante, mas acontece de você estar em um evento e ter
aquela mocinha que chega com um olharzinho...
Como assim?
Semana passada, por exemplo, eu estava filmando no Teatro
Municipal. No final, eu estava sentado no palco e chegou uma mulher pedindo pra
tirar fotos. E ela entrou no meio das minhas pernas (risos). Encostou em mim, como se fosse uma namorada.
No seu colo?
Não, foi assim (levanta,
apoia-se[S1]
na mesa de pernas entreabertas para interpretar a cena). Ela entrou aqui e se apoiou em mim.
Cara! o que é isso, minha filha (risos)?
Mas que folga! Mulher atrevida!
E era bonita?
Mais ou menos.
Você parecer ter bem menos
do que seus 52 anos. Quando tinha 17, parecia um garoto de 12. As mulheres mais
velhas caíam matando?
É, eu cheguei a exercer esse tipo de atração levemente
pervertida (risos).
Sua primeira vez foi numa
situação dessas?
Ah, não vou falar (extremamente
constrangido). Vamos pular essa, vai.
Pelo menos a idade...
Dezoito.
Pô!
Foi tarde mesmo. Mas, com 18, se você olhar uma foto minha (mostra algumas num livro)...Aqui tenho
18. Não pareço ter 14?
Demais.
Eu era uma criança. Não entrava em filme de 18 até fazer 24.
Precisava mostrar a carteirinha.
Há boatos em que a cena em
que o Buscapé, de Cidade de Deus,
dorme na casa de uma jornalista foi inspirada na vida do diretor...
(Risos)
É...Aconteceram coisas parecidas. É verdade, mas não com uma jornalista. Tem
muita mulher que tem atração por garotinhos inocentes. Sorte dos garotinhos
inocentes. Eu entendo esse interesse das mulheres mais velhas. Um garoto de 17
anos é uma maquininha, né? Não cansa. Mas é sem técnica.
Praticamente um brinquedo
erótico.
Com pilha alcalina (risos).
Publicado originalmente na revista “Playboy” em setembro de 2008
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