domingo, 25 de julho de 2021

Cineastas brasileiros em PBY: Entrevista com Daniel Filho (janeiro de 1981)

Playboy entrevista Daniel Filho

 

Uma conversa franca sobre tudo que acontece nos bastidores da televisão, com um dos homens que não só observam, mas fazem tudo aquilo acontecer

 


Nos últimos vinte anos, Daniel Filho tem despertado os sentimentos mais ferozes e contraditórios: as pessoas o amam ou o detestam, sem meio-termos, e cada um julga-se com razões definitivas para isto. Mas Daniel Filho sempre transcendeu a simplicidade dessa divisão. Por exemplo, aqueles que o detestam são obrigados a aderir à unanimidade de opiniões a respeito do seu brilho e talento como diretor de televisão. E aqueles que o amam reconhecem que, muitas vezes, ele se comportou como insuportável tirano no tempo em que assumiu a sua função de todo-poderoso da Rede Globo. Como se vê, ele não é um tipo fácil de se classificar.

Mas há ainda outro motivo para torna-lo tão amado, desejado, invejado e detestado: sua carreira amorosa, iniciada aos 13 anos quando uma corista do teatro de revista – onde ele praticamente nasceu -, iniciou-o na prática mais antiga que se pode fazer a dois. O jovem Daniel certamente gostou, porque hoje, aos 43 anos, poderia comemorar – se quisesse – trinta anos de intensa atividade na horizontal.

Nos corredores da Globo, no Rio, seus amigos costumam fazer frases como esta: “Cite-me uma mulher que ainda não tenha ido para a cama com Daniel Filho e eu te direi que deve haver alguma coisa errada com ela”. Outros comentam que, se Daniel quisesse escalar times compostos pelas mulheres de sua vida, teria o suficiente para mais de dez equipes, apenas na área das atrizes e cantoras.

Pode ser que tudo isso não passe de um grosso exagero ou lenda, mas, quando a lenda se torna mais forte do que a realidade, tende a ser considerada verídica. O próprio Daniel não faz questão de confirma-la ou desmenti-la, mas, como se verá nesta entrevista, suas opiniões a respeito de sexo surpreenderão que se limitou a toma-lo por um garanhão insensível.

Sensibilidade é o que nunca parece ter faltado a Daniel Filho, ou ele não poderia orgulhar-se de sua carreira extremamente bem-sucedida em quase todos os ramos de show-business. Um breve resumo de sua vida profissional indicaria que ele já foi lanterninha, ponto, contra-regra, figurante, palhaço, ator, produtor, diretor e supervisor de circo, teatro de revista, teatro dramático, cinema e, naturalmente, televisão, onde há 23 anos (dos quais quinze na TV Globo) promove revoluções constantes – dando às novelas o formato que fez delas um sucesso, criando os seriados brasileiros e, ultimamente, dirigindo os melhores especiais de MPB já vistos na televisão.

Não chega? Não. A inquietação de Daniel Filho diante da vida e do seu trabalho chega a ser epidérmica, como constatou seu entrevistador, o editor Ruy Castro, de PLAYBOY, nas três sessões de gravação que mantiveram no Rio. “Daniel não para”, diz Ruy. “No meio de uma frase, corre lá para dentro e traz um livro de cinema – deve ter uns mil na estante -, como se precisasse abonar uma ideia recente com alguma frase dita por Clark Gable num filme dos anos 30. Cinema, aliás, parece ser a sua maior preocupação atualmente. Não apenas para trabalhar, mas também para curtir. Passa o dia diante do videocassete que tem em casa, exibindo suas cópias particulares de filmes como Cidadão Kane, Cantando na Chuva, Uma Noite na Ópera e velhos musicais de Fred Astaire. Com essa formação cinematográfica, é natural que as pessoas estejam morrendo de curiosidade para ver o que Daniel Filho fará de O Que É Isso Companheiro?, o livro de Fernando Gabeira que ele pretende filmar”.

O apartamento de Daniel no Leblon lembra apenas vagamente que ali reside um dos homens mais poderosos da televisão brasileira. Nas paredes, fotos de suas ex-mulheres e amigas Dorinha Duval (envolvida num crime passional pouco depois de gravado esta entrevista), Betty Faria, Regina Duarte. Bem na entrada, um bar que provocou comentários irônicos de uma repórter há alguns anos, o que abalou as relações já pouco cordiais entre Daniel e a imprensa. E, espalhados pelos quartos, três aparelhos de televisão, um dos quais o de videocassete, muito mais usado do que os outros. “Prefiro ver filmes que gosto a ser imbecilizado por esses programas que levam aí”, diz ele.

A franqueza de Daniel Filho tem ocasionado frequentes atritos entre ele e o veículo em que trabalha. Mas, seja qual for o motivo – sua segurança, capacidade ou prestígio -, Daniel sai sempre ganhando. E foi com essa mesma franqueza que ele se abriu para PLAYBOY.

 




Você é considerado pelos especialistas como uma das pessoas mais importantes da televisão brasileira – além de ser, dentro do meio artístico, uma celebridade. No entanto, o grande público não o conhece. Como se explica isso?

Como não me conhece? De uma forma ou de outra, eu sei que sou popular. Daniel Filho é um nome que aparece muito na televisão – dirigindo novelas, seriados, ou especiais. Minha vida particular sai em todos os jornais e revistas. Só que o público não sabe exatamente quem eu sou ou o que faço, porque não faz muita ideia do que faço como diretor de televisão, um diretor de novela. Para o público, aquilo que ele está vendo é o trabalho de uma grande equipe – o que, aliás, também é.

 

O diretor de televisão terá, um dia, o reconhecimento artístico que o diretor de cinema passou a ter?

Não. Ele poderá ser lembrado, digamos, por uma novela ou por um programa, mas, de modo geral, o que ele faz é um prêt-à-porter diário. A televisão despersonaliza e não permite que um diretor tenha características próprias. Ele é obrigado a seguir uma fórmula de sucesso, porque o público é aquela coisa ávida que não para de dizer: “Quero mais! Quero mais!” É um monstro que a televisão tem de alimentar. E as pessoas que estão à frente desse veículo são engolidas pelo tal monstro.

 

Gilberto Braga na sua entrevista a PLAYBOY, disse que as duas pessoas mais importantes no desenvolvimento da novela de televisão no Brasil eram Janete Clair e Daniel Filho. O que você acha?

Eu concordo com ele. Eu sei que os intelectuais ficarão profundamente magoados por não serem citados, entre esses mais importantes, nomes como Bráulio Pedroso, Dias Gomes, Lauro César Muniz. Principalmente o Bráulio, que é sempre citado como o modificador da novela por causa de Beto Rockfeller. Mas, na verdade, ele não trabalhou com uma audiência forte. Por isso pôde fazer uma novela, digamos assim, de protesto. O que ele fez foi criar um anti-herói na figura do Beto. Mas, antes dele, já havia o Frederico Aldama, interpretado pelo Carlos Alberto em Eu Compro Essa Mulher. Ele também era um anti-herói, assim como o personagem de Clark Gable naquele puta novelão chamado ...E o Vento Levou também era. Quer dizer, o anti-herói é uma das coisas mais antigas de toda a literatura de folhetim. Não estrou dizendo isso para desmerecer o trabalho do Bráulio, do Dias ou do Lauro, que foi o de elevar o nível da novela, em tipos de histórias, de diálogos. Mas foi a minha dobradinha com a Janete Clair que conseguiu fazer a passagem do capa-e-espada para a chamada novela “brasileira” – sem perder o público.

 


Como foi essa passagem?

Começou com Véu de Noiva, em 1970. A ideia era manter todo o clima dos novelões romanescos, mas fazendo o personagem falar brasileiro, chamar-se João, essas coisas. Pusemos até corrida de Fórmula 1 na novela. Outra mexida importante foi o balanço da imagem, acabando com aquele estilo clássico de travellings e closes por entre as vidraças, com chuva lá fora. Mas, ao mesmo tempo, todas as características do capa-e-espada continuavam: o filho perdido, a mulher que ficou com a cara marcada, etc.

 

Não foi um risco?

Foi um risco calculado, mas, sem dúvida, um risco, principalmente porque estávamos trabalhando nos horários nobres. Era uma enorme responsabilidade porque a TV Globo estava começando a embalar na novela das 8 e, nesse horário, ninguém pode errar. As pessoas nos cobravam: “Será que o público vai entender, vai aceitar?” Se eu e a Janete quebrássemos a cara, perderíamos a TV Globo. Mas a verdade é que nós mantivemos a audiência e até conquistamos mais público para a televisão.

 

Como vocês conseguiram convencer a Globo a bancar esse risco?

Porque demonstramos todos os prós e os contras da receita. Eu dizia para eles: “Olha, aparentemente é moderno, mas eu continuo com um pé no novelão”. Era um jogo certo, não podia falhar. Depois de Véu de Noiva, nós fizemos Irmãos Coragem, que era um grande capa-e-espada situado no interior do Brasil, assim meio western. Depois vieram Pecado Capital, O Astro, etc., todos sucessos meus com a Janete.

 

Dá para se prever o maior ou menor sucesso de uma novela?

Algumas que eu fiz com o Lauro César Muniz eram uma loucura de risos, como O Casarão e Espalho Mágico. Ou O Rebu, com o Bráulio. Agora, eu não via o menor perigo em Gabriela, que o Dias Gomes adaptou do Jorge Amado. Não tinha como não dar certo. E, no caso de Dancin’ Days, que foi a estreia do Gilberto Braga no horário das 8, a novela foi construída de tal maneira que eu cheguei a prever qual capítulo daria tanto de IBOPE. Eu disse que, no capítulo 55, a novela daria um mínimo de 85% - e acertei. Porque eu sabia que, naquele capítulo, Júlia revelaria à sua filha, na hora do casamento, que ela era a mãe, e, bêbada, seria presa. Dancin’ Days tinha tudo armado: os modismos, a novidade da asa delta, o velho, o rico, o pobre em ascensão, o amor impossível, os casamentos e principalmente a discoteca. Eu tinha visto Embalos de Sábado à Noite em Nova York e sabia que aquela febre de discoteca não iria demorar a chegar por aqui. Porque isso é uma aldeia global mesmo e, quando vem o modismo, não dá para segurar.

 

Dancin’ Days foi então o seu grande barato como diretor?

Eu quis dar um tiro de chumbo grosso, porque não aguentava mais fazer novela. Eu pensava assim: “Porra, o que eu mais vou fazer em novela? Posso melhorar uma ceninha aqui, outra ali, mas e daí?” O grande barato é trabalhar com os atoes, ajuda-los a criar os personagens. Só que, depois do capítulo 20, o diretor já não tem o que dizer para o ator, porque, a essa altura ninguém conhece melhor o personagem do que ele. Pode reparar que, por melhor que seja o elenco, os primeiros 20 capítulos de qualquer novela serão péssimos se o diretor for ruim. Depois, os atores se mancam, começam a se autodirigir e tudo fica ótimo. É por isso que as novelas levam um mês para emplacar. Uma das grandes coisas das minhas novelas é que elas sempre começaram bem, inclusive Espelho Mágico, que depois fracassou, mas que, no começo, ia muito bem. Dancin’Days, em menos de quinze dias, já era coqueluche nacional.

 

A chamada máquina promocional da Globo não ajudou um pouquinho?

É lógico que essa máquina ajuda. Não sei se conseguiria implantar uma novela com a mesma velocidade se fosse na Bandeirantes. Nem sei se conseguiria implantar. Mas o fato é que, depois da minha experiência frustrante com Espelho Mágico, eu queria provar para mim mesmo que novela tinha mais de ser é folhetim, consumismo, porque é isso que o povo quer. Ficar inteligente, o cacete! É por isso que eu acho Dancin’ Days a melhor novela já feita até hoje. Era bonita, simpática, romântica, vendeu discos, moda, asa delta, tudo.

 

Você, que está lá desde que a onda começou, há quinze anos, como explica essa mania do brasileiro pelas novelas?

Acredito que o sucesso das novelas teve a ver com a revolução de 64. De quando é O Direito de Nascer, que foi a primeira novela? 1964. A novela surgiu como uma necessidade, porque poucas coisas foram deixadas para as pessoas conversarem ou discutirem na sua própria casa. Enquanto isso, começou a entrar aquele aparelho, que ajuda a passar o tempo, não provoca, não leva a fazer nada. Houve fatores externos que prenderam as pessoas àquele eletrodoméstico. Um deles, a dificuldade financeira até para sair à rua. Então, ficar vendo televisão era mais barato. As pessoas paravam de discutir até o orçamento doméstico, de ir à esquina bater um papo com os amigos, de fazer visitas. Ao mesmo tempo, os apartamentos foram ficando menores e as pessoas tiveram que botar aquele aparelho imenso e bestificante na sala. Porque não há quem não fique bestificado, depois de ouvir o mesmo comercial oitocentas vezes, mesmo que seja o da menina mostrando a bunda dentro da calça jeans. Eu, por exemplo, que tenho três aparelhos de televisão, não ponho nenhum na sala, que é para não cortar o papo com os meus amigos. Tenho um no meu quarto, e confesso que ele às vezes me incomoda profundamente. Enfim, foram vários fatores sociais, culturais e econômicos que amarraram e escravizaram as pessoas à televisão.

 


E como a novela entrou nisso?

Bem, a televisão foi criando as suas estrelas, e nós, que fazíamos novelas, nos entusiasmamos com o sucesso, fomos nos aprimorando, aprendendo com o público. Afinal, quem nasceu primeiro foi o processo social e não o processo televisivo. Não foi a televisão que puxou o público – ela apenas respondeu a uma necessidade desse público. Porque, verdade seja dita a favor desse regime que começou em 1964: não melhorou porra nenhuma, mas também não estava muito melhor antes. O Brasil só esteve bem até o Pedro Álvares Cabral chegar. De lá pra cá, foi esse caos, essa exploração. Mas, depois de 64, as notícias começaram a ser tolhidas e passamos a viver numa mentira.

 

Até o advento da TV Globo, em 1965, a televisão no Brasil não chegava a existir em escala nacional. Quando isso finalmente se tornou realidade por volta de 1968, com a escalada da Globo, a censura apertou. Pode-se dizer, então, que a televisão, como veículo de massa, mas sem censura, ainda não foi testada no Brasil?

Bem, eu continuo achando que até esse processo de crescimento da televisão brasileira foi um processo da revolução de 1964. Pode ter sido uma coincidência quer dizer: na medida em que o povo foi sendo tolhido, apareceu coincidentemente um grupo de pessoas dispostas a fazer uma televisão altamente profissionalizada. É preciso que se diga que a empresa Roberto Marinho investiu muito nessa televisão e soube utilizá-la, naquele momento político. Quando digo que foi um investimento sério, não estou julgando a empresa politicamente, mas colocando-a como uma empresa altamente profissional, que já existia como jornalismo. Tanto que, na hora em que foram armar a equipe, pegaram homens como Walter Clark e o Boni, superprofissionais. Enfim, foi o mesmo que juntar a fome com a vontade de comer.

 

Você ainda não respondeu à pergunta.

Quanto ao veículo de massa sem censura, não acredito que exista em nenhum lugar do mundo. Um veículo com a força da televisão, seja particular ou não, será sempre comandado por alguém com interesses políticos, culturais e financeiros próprios. Estatal, idem, idem. Um dos Malus, por exemplo, foi proibido na Suécia: aquele em que dois assaltantes entravam na casa dela e quase estupravam a garotinha. Foi proibido porque, para eles, esse fato não acontece na Suécia, logo não viam motivo para colocar tal violência na televisão. Acho utópica uma televisão sem censura, seja a política, ou a do preconceito. Veja o próprio cinema americano, que é considerado o mais liberal: hoje se fazem filmes à vontade sobre o Vietnã – porque o Vietnã já foi consumido. Mas, quando eles estavam com a ferida aberta, o máximo que fizeram foi Os Boinas-Verdes, com John Wayne.

 

Por que aparecem tão poucos bons autores novos de novelas?

Não só de novelas. É difícil aparecer gente nova e boa na televisão de modo geral, porque hoje não é permitido errar. Veja o meu caso: eu tenho 23 anos de televisão. Portanto, sou de uma época em que se podia fazer de tudo, experimentar, quebrar a cara, porque a televisão era ao vivo, pouca gente via, faziam-se as maiores merdas e ninguém notava. O papo mais frequente depois de um programa era assim: “Pô! Minha calça caiu naquela cena, você viu?” E o outro respondia: “Ah, ninguém notou”. E ninguém notava mesmo, porque aquela porra não era gravada, existia só durante aquele segundo. Eu gostaria de ver um teipe daquela época em que não existia o teipe. Mas por um lado foi bom, porque nós pegamos uma prática de televisão que qualquer pessoa que entrar agora dificilmente poderá pegar. Eu, por exemplo, fui ator, lutei espada contra o Falcão Nero, fiz apresentação, fiz câmara, dirigi, fiz de tudo. Atualmente, eu chamo homens como o Arnaldo Jabor ou o Cacá Diegues, que são grandes diretores de cinema, e digo: “Você quer dirigir um programa na TV Globo, para o horário das 9?” O cara responde: “Porra, tudo bem, mas tem que dar um tempo...Preciso ficar vendo como é isso...” Há dez ou quinze anos, o Jabor ou o Cacá iriam e fariam um programa na maior, porque a televisão não exigia esse compromisso de qualidade. Hoje o vídeo-taipe acusa mais o erro e, além disso, todos os olhos estão pregados na gente.

 


No começo dessa entrevista você se referiu aos intelectuais. Você acha que eles ainda têm preconceitos contra a televisão?

Será que existe ainda esse preconceito? Não sinto mais isso.

 

Algumas pessoas recusam-se até hoje a vender o passe. Chico Buarque, por exemplo.

O Chico Buarque não vendeu o passe para a Globo, como ele mesmo disse, por um problema pessoal, não político. Foi uma briga provocada durante um daqueles festivais da canção, em que o Chico teria tido uma discussão com o Boni – e que o Boni nega ter tido -, que culminou com um episódio no Antonio’s, no tempo em que as paredes do restaurante eram cobertas com retratos dos fregueses famosos. O Chico acabou mijando em cima do retrato do Boni, o Boni pegou o retrato do Chico e atirou longe, não sei bem. Tanto que, depois daquilo, acabaram-se os retratos no Antonio’s. Acho neurótica essa raiva que o Chico alimenta há séculos pela Globo, e que nem é pela Globo, porque é um assunto pessoal. Porque, se fosse uma atitude política, o Chico não iria trabalhar em nenhuma emissora de televisão, cujos proprietários são tão capitalistas quanto o Roberto Marinho. É, se ele realmente é uma pessoa de esquerda, não teria sido contratado pela Ariola, que é uma empresa alemã, fortíssima, profundamente capitalista. Ficaria fazendo só teatro ou dando shows de 1º de maio (risos).

 

Mas, afinal, existe ou não algum preconceito contra a televisão?

Eu poderia dizer que tenho preconceito contra televisão. Eu e outras pessoas que trabalham nela.

 

Que tipo de preconceito?

Eu estou fazendo televisão há muito tempo. Estou cansado de trabalhar em televisão. Porque ela é uma mulher muito ciumenta e possessiva, que não te deixa ter relações, não digo nem sexuais, mas de amizade. Sabe aquela mulher que tem ciúme dos seus amigos e quer que você seja amigo apenas dela? Pois é. Por melhor e mais inteligente que ela seja, esse relacionamento se tornará inevitavelmente burro, porque ficará apenas aquele feed-back de um para o outro e com pouca informação. Esse é o meu preconceito contra a televisão. Ela é extremamente possessiva, embora seja também muito generosa com os seus sucessos. Em termos de salário brasileiro, ela paga bem, embora eu viva desconfiado de que, se me pagam 100, é porque eu merecia 300. De qualquer forma, é uma relação perigosa, porque envolve muito dinheiro. Ela se torna um vício, tão violento quanto o da heroína, que o sujeito fica com medo de deixar porque pode morrer. Estou dizendo isso sendo um homem viciado em televisão, mas tentando tratar desse vício.

 

Só faltou dizer que a televisão compra a alguma das pessoas.

Mas compra mesmo. Você tem que se dar a ela, entende? Todos os homens de televisão ficam com a sua alma lá dentro. Não tem horário, não têm final de semana. O Boni é um homem que trabalha 24 horas por dia. Mesmo quando passa um fim de semana em Angra dos Reis, assiste à programação, fica nervoso, preocupado e tem um telefone direto ligado na estação. Isso não é a alma da pessoa?

 

Você já passou por isso?

Eu já passei três, quatro dias sonado, dentro da televisão, quando era diretor de todas as novelas. Mas, na época, eu precisava trabalhar, e não fazia muita distinção entre o quanto estava dando e o quanto recebia. Porque o artista é amador, né? Ele realmente ama, e é preciso controlar muito esse amor, porque senão ele faria de graça. O artista é alguém que, ao gravar uma cena em que ele recebe um soco na cara, se o soco pegar mal e fizer sangrar, ele pergunta depois: “Pô! A câmara pegou o sangue direto?” Além disso, não se esqueça que somos artistas de um país subdesenvolvido – apesar de o Delfim dizer que não.

 

Você disse que a televisão paga bem. Quem ganha bem na televisão?

Mas para que falar da televisão? Por que não falar do Brasil, que é exatamente a mesma coisa? Claro que há grandes diferenças salariais entre um diretor, uma estrela e um editor de vídeo-taipe. Mas, quando o governo dá um salário mínimo como esse, dizendo que é o salário do povo, eu não posso culpar a TV Globo. E coloco isso muito claramente porque não quero que pareça que estou com medo da TV Globo ou do desemprego – porque, graças a Deus, não estou. Eu nem sei se continuarei na televisão em 1981. Mas, voltando ao Brasil: este é um país onde a hora extra faz parte do seu ritmo de trabalho normal! Se o cara não fizer hora extra, não como. O ator de televisão ganha bem? Ganha bem em termos de atores de teatro. Se ele está numa novela de sucesso, pode chegar a ter um faturamento paralelo, tipo bailes de fim de semana no interior, gravar um comercial, fazer um show. Ora, isso não é hora extra de operário brasileiro? É uma pergunta que eu deixo aqui. Eu me lembro da Zilka Salaberry, há alguns anos, pedindo aumento porque não podia continuar andando de ônibus. E não era por frescura, não. Era porque ela não tinha sossego no ônibus. As pessoas olhavam, pediam autógrafo, era uma balbúrdia. Ela não podia pegar o textinho dela para vir decorando ou ficar quieta, bordando ou olhando pela janela. Estou falando da Zilka Salaberry, uma senhora e não de uma gostosa que as pessoas quisessem passar a mão na bunda, veja bem.

 

Vida de artista é tão dura quanto dizem?

Na realidade brasileira, é dura a vida de quase todo mundo. O ator de televisão, por exemplo, é um cara que precisa de um mínimo de tranquilidade e conforto para produzir o que esperam dele. Se ele for o astro da novela, ele começa a gravar às 8 da manhã, acaba às 8 da noite e mal tem tempo para jantar, decorar o texto do dia seguinte e dormir para começar tudo de novo pela manhã. Não dá para fazer uma ginástica, pegar uma piscina, olhar o filho. Isso são seis, sete meses por ano. Então, para produzir direito, o cara tem que ter um mínimo de tranquilidade e conforto fora da estação, o que evidentemente custa dinheiro. É importante que eu fale isso, porque estou falando de barriga cheia – sou bem alimentado, moro bem e ganho bem, embora muito menos que os executivos dos sistema capitalista brasileiro.

 

Quando você ganha por mês?

Esta é uma pergunta complicada porque eu sou contratado como firma. É a minha firma que vende os meus serviços. Mas é possível que, entre o pessoal da parte artística, eu seja um dos melhores salários da televisão brasileira.

 

Digamos assim por volta de uns Cr$ 700.000?

Talvez. (N. da R.: segundo fontes da Globo, Daniel ganhava, em dezembro último, Cr$ 1.300.000 por mês.)

 

Você compararia a Globo de hoje à Metro-Goldwyn-Mayer no seu apogeu, que foi em 1939,, ano de...E o Vento Levou, O Morro dos Ventos Uivantes, O Mágico de Oz e todos aqueles filmes?

Eu acho que a Globo já passou por 1939. Eu diria que a Globo está hoje como a Metro estava nos anos 50.

 

Isso significa que a Globo está indo para baixo, como a Metro naquele tempo?

Eu não diria isso. Mas está com poucas possibilidades de transformação. Claro, houve os seriados, houve a TV Mulher, houve os especiais de cantores, mas a tendência é a padronização. Ela está numa linha reta. Seria difícil a Globo ir para baixo com o material humano de que ela dispõe, que inclui 99% dos melhores profissionais na praça.

 

Esse monopólio de talento pela Globo é bom ou mau?

Em termos de mercado, não acho que seja bom, mas também não se pode dizer: “Olha aí, a Globo levou todo mundo”. O mal é de todo o mercado de trabalho no Brasil, que é pessimamente distribuído. A Globo não pode ser culpada por ter tido competência para se tornar forte. As outras emissoras que se agitem e, como não se agitaram, ficamos sem mercado de trabalho. O mercado ficou fechado na Globo.

 

Você, por exemplo, se sair da Globo, vai para onde?

Não vou para televisão nenhuma. Talvez vá para o cinema, fazer um filme de dois em dois anos e passar o resto do tempo vivendo de comerciais, como a maioria dos diretores do cinema brasileiro. Ou posso dirigir peças de teatro ou shows no Canecão. Ou seja, eu teria o que fazer fora da Globo. Logo, posso me considerar uma pessoa privilegiada.

 

O que o torna também uma pessoa invejada e temida. Por que você é acuado de ter tantos problemas com a imprensa?

Não acho que tenha problemas com a imprensa. Já tive, mas foi na época em que eu era diretor geral das novelas. Mas isso só aconteceu porque eu me pus em defesa dos atores, como uma barreira entre eles e a invasão à privacidade deles. Os coitados têm que decorar 120 laudas por semana. Não têm tempo nem pra mijar e, na hora de entrar em cena, não sabem o texto direito. Justamente quando estão dando aquela última passada, chega uma repórter e pergunta: “O que você vai fazer no carnaval?” Porra! pegue uma revista de televisão de dez anos atrás – tem as mesmas coisas que saem nas de hoje. Só que, naquela época, era a Regina Duarte, que tinha 20 anos de idade. Hoje é Lucélia Santos. O escândalo da palavra mais libertina que era dita há dez anos pela Betty Faria hoje é dito pela Lídia Brondi. Mas os atores precisam de imprensa e querem ser simpáticos. Então, eu entrava na frente e andava a repórter embora. Se quisessem me malhar, tudo bem – eu não ia sair na capa da revista, mesmo. Certa vez, expulsei uma repórter e um fotógrafo do camarim do Francisco Cuoco, ele com as caças no meio das pernas, dizendo “Minha filha, agora não posso falar, tenho que trocar de roupa, repassar o texto, o personagem é difícil...” Daí criou-se a onda do fascista, violento, irascível com a imprensa. Mas devo dizer que não estavam cumprindo ordens. Era ideia minha mesmo, e eu assumia essa barra.

 

Enquanto diretor, como você assume a barra de estrelismo dos atores?

Não posso dizer que sempre tenha feito isso, mas, de uns tempos para cá, eu procuro ver as neuroses de cada um dos atores. Lógico, todos temos as nossas neuroses. Então, eu procuro ver as inseguranças, para não paternalizar, passar a mão na cabeça e ser enrabado. Tive um problema, por exemplo, com a Norma Bengell pouco antes de Dancin’ Days estrear. Tínhamos gravado a chamada e estávamos começando a novela. Ela viu a chamada e me disse que não tinha gostado. Eu disse: “Puxa vida, então vamos ver isso. Vamos gravar as cenas de hoje e, à noite, a gente vê isso”. Ela respondeu: “Não. Quero que veja agora. Senão, não gravo”. Ainda tentei argumentar, explicando que estava tudo ali, as câmaras colocadas, dava tempo para ver tudo à noite. Ela manteve o pé firme, dizendo que não gravava, e eu comentei que ela precisava se tratar, porque não estava legal. Aí a Norma começou a atirar coisas em cima de mim, gritando: “Seu filho da puta! Seu comunista fascista! Seu KGB da CIA!” Uma coisa estranha. Depois ela pediu para voltar atrás, mas eu preferi botá-la para fora, pagando à vista o que teria de pagar durante seis meses de gravação, e regravei dezoito capítulos com a Joana Fomm no papel. Hoje nos damos bem.

 

Pinta muito estrelismo?

Todos os atores têm um certo tipo de rebeldia, de estrelismo, que eu posso compreender. Só não posso deixar que isso me prejudique. Então, tudo bem: você está nervoso, seu pai morreu, sua mãe foi estraçalhada, seu filho te abandonou, sua mulher te corneou e você está desesperado. Mas não tem direito de vir me dando porrada. Há outros que têm mania de silêncio no estúdio e há também os que eu considero maus profissionais, que são o que chegam constantemente atrasados.

 


Por exemplo?

Tônia Carrero. É uma pessoa com quem eu não trabalharia mais. É uma atriz que me emociona, acho ma-ra-vi-lho-so o trabalho dela em Água Viva, mas eu não dirijo mais Tônia Carrero, porque, além disso, ela nunca decora o texto direito. O que não quer dizer muito, porque o Lima Duarte também não decore bem, mas traz um outro tipo em compensação. A Tônia traz uma boa representação, mas não traz velocidade de trabalho, e tem horas que temos de correr com a equipe. Um dos exemplos mais curiosos da Tônia foi durante a gravação de Pigmalião 70: Era uma externa e ela queria fazer pipi. Arranjamos o banheiro de uma casa vizinha para ela ir, mas ela disse: “não”. Pegou o carro e foi fazer pipi em casa, deixando a gravação uma hora e meia parada. O que eu quero dizer é o seguinte: ninguém mandou ela fazer pipi no mato. E podia ser até que estivéssemos gravando no mato. Esse tipo de estrelismo não tem lugar e me irrita. Não sei, pode ser que a Tônia tenha mudado.

 

Que tipo de estrelismo você tolera?

Por exemplo, o Francisco Cuoco não grava de manhã. Porque ele faz análise de manhã, e colocou essa cláusula como uma imposição. Perfeito, ele é ator principal, é o que decora mais texto, grava mais horas. Então, tudo bem, não porque ele seja estrela, mas porque trabalha mais. Essa preocupação do diretor deixa então ser uma preocupação estelar, e passa a ser uma preocupação humana.

 

Tudo isso seria resultado do clima de pressão na televisão?

Não sei. No Brasil você precisa provar que é capaz de matar um leão por dia. E, atualmente, um leão só não está chegando. Nós vivemos num processo em que somos uma merda e precisamos viver provando que não somos merda. É como se estivessem nos fazendo um favor por estarmos trabalhando. Tá todo mundo te quebrando um galho, te dando uma chance, sabe como é? “Muy amigos”, como diz o Jô Soares. Então, há milhões de brasileiros morrendo aos 70 anos de idade e agradecendo a chance que lhes está sendo dada de continuarem trabalhando! É aquela coisa: “Eu vou matar outro leão hoje. Eu vou provar que sou um pouco melhor ainda”. E não é uma prova para o seu ego, mas para o exterior, para que continuem te pagando, para você continuar empregado. “Não me despeçam, não me despeçam! Eu farei melhor!” E a chamada satisfação artística, onde fica? No meu caso, me foi dada a chance de ser diretor da Divisão de Novelas da TV Globo no início dos anos 70. Chance nada. Eu era realmente a pessoa capacitada para dirigir a Divisão de Novelas. E peguei aquilo com a maior coragem. Lógico que os executivos, todo mundo, vão dizer o quanto colaboraram. Que maravilha, o que teria sido de mim senão fossem todas aquelas pessoas em volta, me ajudando, dando todas as ideias...Mas na realidade, quem estava com a cara, com o cu na seringa? Quem tomava os esporros? Eu é que era o culpado pelos fracassos, e tinha que partilhar com todos os sucesso. Isso durou cinco anos, de 1970 a 1975.

 

Em que consistia o seu trabalho?

Estava burocratizado, fazendo uma coisa que não tinha nada a ver comigo. Eu dirigia os primeiros capítulos de quase todas as novelas e produzia todas. Ou seja, eu preparava a mulher para os outros gozarem. Não que os outros não soubessem trepar bem. Mas, na verdade, meu nome sumia na massificação. Quando chegava a hora de fazer o que gostava – que era dirigir, cortas, falar com o ator -, todo mundo ia para o quarto trepar e eu ficava fora da suruba. Quando cheguei ao desespero, depois de cinco anos de mandato, pedi demissão, como um bom democrata- porque acho que ninguém deve governar mais de cinco anos (risos). Então, voltei a dirigir novelas. A primeira foi Roque Santeiro, que foi proibida, mas depois vieram Pecado Capital, que foi uma das grandes viradas da carreira da Janete Clair, O Astro, Dancin’ Days. Mas até mesmo tudo isso me encheu o saco, porque eu já não tinha paciência para dirigir uma novela inteira, entrar numa segunda-feira às 8 da manhã e sair na sexta às 8 da noite de dentro do estúdio. Não tinha saco.

 

Foi aí que você abandonou as novelas e passou para os seriados?

No meio de Dancin’ Days, o Boni me chamou e perguntou o que eu achava de mudar. Eles acham que sou um instável, o que eu não sou. Eu sou uma pessoa em mutação, quero sempre uma coisa nova, me questionar. As pessoas corretas e seguras, que eu chamo de burocratas, consideram isso uma pessoa instável, com quem não se pode contar. Mas o meu processo na novela estava concluído. De A Rainha Louca até Dancin’ Days, tinha sido sete sucessos. Então comecei a trabalhar no projeto de seriados.

 

Esses seriados seriam Plantão de Polícia, Carga Pesada e, principalmente, Malu Mulher. Que transformações você acha que eles trouxeram?

Os seriados vieram num momento coincidente com o da abertura política. Eu não sabia que tipo de abertura seria essa, portanto fiquei me autocensurando um pouco na proposta, embora o Boni me dissesse: “Vai chumbo grosso. Vai chumbo grosso!” Tanto que, quando o Boni viu os primeiros capítulos da Malu, me disse: “Daniel, você está meio fora da proposta inicial”. E estava mesmo. Aí refizemos tudo. A essa altura, eu já tinha uma preocupação cultural com o Brasil, com a realidade, com um processo de fazer brasileiro e bem-feito. E deu no que deu.

 


O que aconteceu?

Bem, os seriados estrearam com enorme sucesso, embora os primeiros quatro episódios de cada um fossem os mais violentos, no sentido político, cultural, social. Deu uma desgovernada geral. Na censura, que ficou na dúvida, e na própria Globo, que viu a necessidade de recolocar suas diretrizes políticas. Porque, na medida em que o governo abria...Começaram a nos cobrar um pouco mais de responsabilidade quando se tratasse de certos assuntos. Quando o Malu que tratava do aborto foi para o ar, quase fomos crucificados. Acharam o programa leviano, tendencioso, mal discutido. Um ano depois, ele foi repetido, com ufanismos gerais.

 

Foi por isso que você também largou os seriados no meio?

Não só por isso. Eu percebi que estava me afastando de novo do meu processo de criação direta, tinha recaído no processo burocrático, discutindo verba, salários, atrasos, comandando um mundo de gente. As duas coisas me fizeram sair. E mais a minha vontade de não me repetir, de não ficar fazendo a mesma coisa muito tempo. Então pedi para sair. O Boni foi profundamente carinhoso comigo, me deixou ficar uns três ou quatro meses parado e aí voltei para fazer esses especiais mensais que estou fazendo agora, ao vivo, capturando a essência do cantor, do palco, da orquestra e do público. O primeiro foi o da Simone. Depois vieram o Caetano, Jorge Ben, Ângela Maria, Paulinho da Viola, João Gilberto, Rita Lee. Assim, depois de quinze anos de Globo, esse é o descanso no que pensei que fosse meu ano sabático.

 

Você parece entediado com a profissão. Isso não acabará afetando seu trabalho?

Eu estou entediado é com o Brasil. Não vejo nenhum gênio capaz de dar jeito neste país, a não ser, talvez, começando por Pedro Álvares Cabral ou, antes ainda, por Cristóvão Colombo. Com esses velhos senadores e deputados enraizados no poder, afastados dos interesses do povo, eu passo a acreditar mais nos tecnocratas. Mas talvez não tenhamos bons tecnocratas no Brasil, assim como não temos bons políticos. Está provado que essa revolução não foi um sucesso. Mas eu confesso que, até há pouco, nunca tinha pensado na solução para o problema brasileiro. Porque não era meu problema solucionar o Brasil. Meu problema era votar em alguém, o que também deixei de fazer há dezesseis anos. O fato é que somos uma grande Uganda. Agora, como resolver isso? Se, numa psicanálise, você descobre que é neurótico há quarenta anos, como transar isso em menos de sete ou oito? Imagine então o Brasil, que está desse jeito há 480.

 

Por falar em psicanálise, você é um dos analisados mais célebres do Rio de Janeiro, mas ninguém acredita que seja por traumas sexuais...

Bem, como se sabe, eu nasci dentro do teatro de revista, onde meus pais trabalhavam. A partir dos 13 anos, eu fui comido por várias daquelas girls maravilhosas da revista. Ou seja, minha iniciação sexual foi bem melhor que a do Pelé, segundo ele declarou na PLAYBOY de agosto...O gozado é que eu não consigo recordar essa época como sendo uma coisa de sacanagem ou mesmo erótica. Era bonito, talvez porque eu fosse muito moço e achasse tudo aquilo muito romântico...O fato é que, com 13 anos, eu já tinha a minha vida sexual ordenada. E nunca me preocupei em transar a garotada familiar, porque já tinha as minhas namoradas no teatro e até no rendez-vous, embora estas eu só pudesse visitar depois que o coronel saísse, às 2 ou 3 da manhã.

 

Isso não o tornava diferente dos outros garotos da sua idade?

Não só isso, como também o fato de trabalhar em tetro desde garoto, de ser artista. Porque, para a garotada naquele tempo, ser artista era sinônimo de ser viado. E, não sei por quê, como eles se viam diante de uma pessoa que praticava sexo normalmente, foram se afastando de mim.

 

Você sofria com isso?

Sofria, claro. Porque eles vinham com aquela coisa do olhar de desdém, do nariz em pé, como se eu estivesse fazendo uma coisa menor. Embora eu soubesse que, no fundo, eles estavam alimentando grandes fantasias a meu respeito. Como, aliás, as fantasias eróticas que se atribuem aos artistas só existem na cabeça dos pequeno-burgueses. O artista é uma cobaia das emoções humanas. Ele é menos defendido do que a chamada burguesia. Então a burguesia transfere para ele todas as suas fantasias, imaginando: “Que surubas maravilhosas esses artistas devem fazer! Que carros incríveis! Como são ricos!” Tudo mentira, né? Quantos artistas não têm onde morar, pedem dinheiro emprestado e, às vezes, pedem dinheiro para dizer que têm dinheiro...

 

Mas você deve admitir que, no terreno erótico, os artistas se realizam muito mais do que a média das pessoas. Você próprio é um exemplo.

É verdade que eu, desde os 13 anos, nunca precisei usar a masturbação como uma coisa erótica. O que eu acho bom de dizer aqui, porque pode ajudar alguém. O Pelé, por exemplo, disse ao PLAYBOY que se iniciou sexualmente com uma bicha. Muitos devem ter lido isso e dito: “Ah, que bom! Eu também fiz isso e não tenho culpa; o Pelé também fez e ele é o Pelé!” Então, o que eu posso dizer é que, depois de 1968, depois de toda aquela geração que botou para quebrar, não consigo achar um feito extraordinário nada erótico ou sexual que eu possa contar.

 

Seja como for, você é tido como um dos símbolos sexuais deste país – como alguém que já teve mais de mil mulheres. Erasmo Carlos, no PLAYBOY de outubro, admitiu isso a respeito de si próprio (risos).

Ah, que bom, já não sou só eu (risos). O Erasmo ganhou! Vamos ver se colocamos essa história direito. O que acho é que, dentro dessa coisa machista em que nós vivemos – e o Brasil é o país dos machos, haja visto a entrevista do Ziraldo ao próprio PLAYBOY (N. da R.: abril de 1980.) -, o homem é educado para ter o maior número de mulheres possível e ter sempre o pau duro ao se apresentar a uma mulher. Tem que dar a chamada surra de pica porque, quanto mais tempo ficar em cima de uma mulher, mais macho será. Então, se como eu disse, comecei a minha vida sexual aos 13 anos tendo relações com mulheres, é compreensível que, aos 43, já tenha transado com muitas. Não sei se foram novecentas, como saiu numa revista aí, porque eu não tenho a menor ideia desse número. Sei que foram muitas, mas acho ótimo saber que o Erasmo Carlos bateu o meu chamado recorde. Como vou saber com quantas mulheres eu trepei?

 

Isso o incomoda?

Hoje, incomoda, porque passou a ser para mim uma experiência dolorosa. O que eu quero saber é com quantas mulheres eu gozei de verdade. Quantas veze eu apenas ejaculei? os homens que tiveram o verdadeiro orgasmo, esses sabem. Existe uma coisa maior do que os milhões de ejaculações que nós demos pelo meio da vida. Quantas trepadas já não dei que não eram mais que masturbações, aquela coisa insossa, de esvaziar o saco! Não eram fazer amor, eram fazer sexo. Essa coisa maior é aquela hora de profundo sentimento, profunda combinação, uma coisa romântica. E pode ser também um profundo encontra erótico, por que não?

 

Isso acontece muito com você hoje?

Não sei, mas eu passei a achar de um profundo ridículo essa coisa do homem ter de tirar a roupa e já estar de pau duro. Porque ele também não está vendo se a mulher está úmida ou não. E que bom seria se eles se deitassem com o cara sem estar com a vagina úmida, porque iriam se deitar juntos e se procurar, procurar o amor.

 

Não é essa fama que corre a seu respeito...

Eu sei- e sei qual é. Mas, meu Deus, que coisa mais grosseira e burra a ideia de ficar duas ou três horas em cima de uma mulher e achar que fez ela gozar muito mais. Nunca consegui ficar esse tempo todo em cima de ninguém. E acho que só uma mulher doente gozaria sem parar oito, nove vezes seguidas. Estou falando isso porque foram coisas que eu fui historicamente impulsionando a fazer e, atualmente, não acho que seja legal. Essa história de o cara ter dado tantas trepadas numa noite só, eu realmente não sei onde está esse tesão todo. Eu, pelo menos, não possuo esse tesão, esse cio pelo meio da rua. Eu não tenho a menor obrigação de ter cio todas as semanas – daí porque eu acho que animal talvez seja muito mais puro, ele tem dia certo. Hoje eu posso ficar sete ou dez dias sem trepar, já não é tão importante – como posso entrar no cio e sair à cata feito louco, mas será uma coisa profundamente interna. Porque eu já consigo dividir quando é o meu ser querendo e quando é a minha neurose machista querendo, entendeu? Só que, atualmente, estou dando mais valor quando é o meu ser querendo. Mesmo que seja só uma transa erótica, tudo bem. “Vamos lá?” “Vamos sim”. Mas sem aquela obrigação.

 

Quer dizer que, depois de trinta anos na praça, você já não está inteiramente disponível?

Eu já não estou sempre à disposição. Não estou mais naquela de dizer: “Sou um objeto sexual!”. Claro, é ótimo ser comido. Mas só na hora em que eu quiser. Porra, mostrar que é macho só porque comeu mais uma? Apenas para botar mais uma mulher no catálogo? Sendo que, ás vezes, o cara não faz nem seleção de qualidade! E só porque ela estalou o dedo e ele estava lá. Lógico que vão dizer: “Ah, isso deve ser um problema do Daniel...” Mas eu tenho certeza de que, quem disser isso, estará dizendo só por cauda da História que o obriga a ser esse macho no cio diário. Então eu digo o seguinte: eu já broxei várias vezes, porque na maioria das vezes não estava com vontade de trepar, estava me forçando. Todo mundo já broxou na vida. Menos o Ziraldo, como ele mesmo disse ao PLAYBOY. Você sabe que eu fiquei preocupado com o Ziraldo? Putz! O Ziraldo nunca broxou, rapaz! Ele não devia estar relaxado quando disso isso. Porque broxar é uma das melhores coisas que pode ter. É como se o teu pau estivesse te dizendo: “Malandro, não força a barra, não seja uma puta”.

                                                  

Você também já teve a fissura da performance?

Ah, mas claro! Aquela coisa de envernizar o pau, fazer uma exibição de várias posições, aquele circo. Tanto que consideravam um atleta sexual. E só estou falando disso porque, hoje em dia, acho tudo uma grande besteira. Não era uma coisa de dentro para fora, sabe? Eu pensava assim: “Agora vou fazer isso ou aquilo e fazer ela doida”. Enquanto ela podia estar pensando: “Pô! Mas esse cara está me dando uma canseira que puta que pariu!” E outros grilos que nos enfiaram na cabeça e que fundiram a cuca da gente.

 

Então, qual é a solução?

Não sei qual é a solução, mas – orra meu!-, não dava para cada um descobrir naturalmente a sua própria sexualidade? Não dava para o sexo ser uma coisa espontânea e natural, sem tantos compromissos de macheza, de performance, de tamanho de pau? O que eu posso fazer é levar na prática isso que estou dizendo. E talvez por isso o sexo seja hoje para mim uma coisa muito mais solta e alegre.

 


Chamada da entrevista na capa da edição de janeiro de 1981


Publicado originalmente na revista “Playboy” em janeiro de 1981

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