Playboy entrevista Daniel Filho
Uma conversa franca sobre tudo que acontece nos
bastidores da televisão, com um dos homens que não só observam, mas fazem tudo
aquilo acontecer
Nos últimos vinte anos, Daniel Filho tem despertado os
sentimentos mais ferozes e contraditórios: as pessoas o amam ou o detestam, sem
meio-termos, e cada um julga-se com razões definitivas para isto. Mas Daniel
Filho sempre transcendeu a simplicidade dessa divisão. Por exemplo, aqueles que
o detestam são obrigados a aderir à unanimidade de opiniões a respeito do seu
brilho e talento como diretor de televisão. E aqueles que o amam reconhecem
que, muitas vezes, ele se comportou como insuportável tirano no tempo em que
assumiu a sua função de todo-poderoso da Rede Globo. Como se vê, ele não é um
tipo fácil de se classificar.
Mas há ainda outro motivo para torna-lo tão amado,
desejado, invejado e detestado: sua carreira amorosa, iniciada aos 13 anos
quando uma corista do teatro de revista – onde ele praticamente nasceu -,
iniciou-o na prática mais antiga que se pode fazer a dois. O jovem Daniel
certamente gostou, porque hoje, aos 43 anos, poderia comemorar – se quisesse –
trinta anos de intensa atividade na horizontal.
Nos corredores da Globo, no Rio, seus amigos costumam
fazer frases como esta: “Cite-me uma mulher que ainda não tenha ido para a cama
com Daniel Filho e eu te direi que deve haver alguma coisa errada com ela”.
Outros comentam que, se Daniel quisesse escalar times compostos pelas mulheres
de sua vida, teria o suficiente para mais de dez equipes, apenas na área das
atrizes e cantoras.
Pode ser que tudo isso não passe de um grosso exagero
ou lenda, mas, quando a lenda se torna mais forte do que a realidade, tende a
ser considerada verídica. O próprio Daniel não faz questão de confirma-la ou
desmenti-la, mas, como se verá nesta entrevista, suas opiniões a respeito de
sexo surpreenderão que se limitou a toma-lo por um garanhão insensível.
Sensibilidade é o que nunca parece ter faltado a Daniel
Filho, ou ele não poderia orgulhar-se de sua carreira extremamente bem-sucedida
em quase todos os ramos de show-business. Um breve resumo de sua vida
profissional indicaria que ele já foi lanterninha, ponto, contra-regra,
figurante, palhaço, ator, produtor, diretor e supervisor de circo, teatro de
revista, teatro dramático, cinema e, naturalmente, televisão, onde há 23 anos
(dos quais quinze na TV Globo) promove revoluções constantes – dando às novelas
o formato que fez delas um sucesso, criando os seriados brasileiros e,
ultimamente, dirigindo os melhores especiais de MPB já vistos na televisão.
Não chega? Não. A inquietação de Daniel Filho diante da
vida e do seu trabalho chega a ser epidérmica, como constatou seu
entrevistador, o editor Ruy Castro, de PLAYBOY, nas três sessões de gravação
que mantiveram no Rio. “Daniel não para”, diz Ruy. “No meio de uma frase, corre
lá para dentro e traz um livro de cinema – deve ter uns mil na estante -, como
se precisasse abonar uma ideia recente com alguma frase dita por Clark Gable
num filme dos anos 30. Cinema, aliás, parece ser a sua maior preocupação
atualmente. Não apenas para trabalhar, mas também para curtir. Passa o dia
diante do videocassete que tem em casa, exibindo suas cópias particulares de
filmes como Cidadão Kane, Cantando na Chuva, Uma Noite na Ópera e velhos musicais de Fred Astaire. Com essa
formação cinematográfica, é natural que as pessoas estejam morrendo de curiosidade
para ver o que Daniel Filho fará de O Que
É Isso Companheiro?, o livro de Fernando Gabeira que ele pretende filmar”.
O apartamento de Daniel no Leblon lembra apenas
vagamente que ali reside um dos homens mais poderosos da televisão brasileira.
Nas paredes, fotos de suas ex-mulheres e amigas Dorinha Duval (envolvida num
crime passional pouco depois de gravado esta entrevista), Betty Faria, Regina
Duarte. Bem na entrada, um bar que provocou comentários irônicos de uma
repórter há alguns anos, o que abalou as relações já pouco cordiais entre
Daniel e a imprensa. E, espalhados pelos quartos, três aparelhos de televisão,
um dos quais o de videocassete, muito mais usado do que os outros. “Prefiro ver
filmes que gosto a ser imbecilizado por esses programas que levam aí”, diz ele.
A franqueza de Daniel Filho tem ocasionado frequentes
atritos entre ele e o veículo em que trabalha. Mas, seja qual for o motivo –
sua segurança, capacidade ou prestígio -, Daniel sai sempre ganhando. E foi com
essa mesma franqueza que ele se abriu para PLAYBOY.
Você é considerado pelos
especialistas como uma das pessoas mais importantes da televisão brasileira –
além de ser, dentro do meio artístico, uma celebridade. No entanto, o grande
público não o conhece. Como se explica isso?
Como não me conhece? De uma forma ou de outra, eu sei
que sou popular. Daniel Filho é um nome que aparece muito na televisão –
dirigindo novelas, seriados, ou especiais. Minha vida particular sai em todos
os jornais e revistas. Só que o público não sabe exatamente quem eu sou ou o
que faço, porque não faz muita ideia do que faço como diretor de televisão, um
diretor de novela. Para o público, aquilo que ele está vendo é o trabalho de
uma grande equipe – o que, aliás, também
é.
O diretor de televisão terá,
um dia, o reconhecimento artístico que o diretor de cinema passou a ter?
Não. Ele poderá ser lembrado, digamos, por uma novela
ou por um programa, mas, de modo geral, o que ele faz é um prêt-à-porter diário. A televisão despersonaliza e não permite que
um diretor tenha características próprias. Ele é obrigado a seguir uma fórmula
de sucesso, porque o público é aquela coisa ávida que não para de dizer: “Quero
mais! Quero mais!” É um monstro que a televisão tem de alimentar. E as pessoas
que estão à frente desse veículo são engolidas pelo tal monstro.
Gilberto Braga na sua
entrevista a PLAYBOY, disse que as duas pessoas mais importantes no
desenvolvimento da novela de televisão no Brasil eram Janete Clair e Daniel
Filho. O que você acha?
Eu concordo com ele. Eu sei que os intelectuais ficarão
profundamente magoados por não serem citados, entre esses mais importantes,
nomes como Bráulio Pedroso, Dias Gomes, Lauro César Muniz. Principalmente o
Bráulio, que é sempre citado como o modificador da novela por causa de Beto Rockfeller. Mas, na verdade, ele
não trabalhou com uma audiência forte. Por isso pôde fazer uma novela, digamos
assim, de protesto. O que ele fez foi criar um anti-herói na figura do Beto.
Mas, antes dele, já havia o Frederico Aldama, interpretado pelo Carlos Alberto
em Eu Compro Essa Mulher. Ele também
era um anti-herói, assim como o personagem de Clark Gable naquele puta novelão
chamado ...E o Vento Levou também
era. Quer dizer, o anti-herói é uma das coisas mais antigas de toda a
literatura de folhetim. Não estrou dizendo isso para desmerecer o trabalho do
Bráulio, do Dias ou do Lauro, que foi o de elevar o nível da novela, em tipos
de histórias, de diálogos. Mas foi a minha dobradinha com a Janete Clair que
conseguiu fazer a passagem do capa-e-espada para a chamada novela “brasileira”
– sem perder o público.
Como foi essa passagem?
Começou com Véu
de Noiva, em 1970. A ideia era manter todo o clima dos novelões romanescos,
mas fazendo o personagem falar brasileiro, chamar-se João, essas coisas. Pusemos
até corrida de Fórmula 1 na novela. Outra mexida importante foi o balanço da
imagem, acabando com aquele estilo clássico de travellings e closes por entre
as vidraças, com chuva lá fora. Mas, ao mesmo tempo, todas as características
do capa-e-espada continuavam: o filho perdido, a mulher que ficou com a cara
marcada, etc.
Não foi um risco?
Foi um risco calculado, mas, sem dúvida, um risco,
principalmente porque estávamos trabalhando nos horários nobres. Era uma enorme
responsabilidade porque a TV Globo estava começando a embalar na novela das 8
e, nesse horário, ninguém pode errar. As pessoas nos cobravam: “Será que o
público vai entender, vai aceitar?” Se eu e a Janete quebrássemos a cara,
perderíamos a TV Globo. Mas a verdade é que nós mantivemos a audiência e até
conquistamos mais público para a televisão.
Como vocês conseguiram convencer a Globo a bancar esse
risco?
Porque demonstramos todos os prós e os contras da
receita. Eu dizia para eles: “Olha, aparentemente é moderno, mas eu continuo
com um pé no novelão”. Era um jogo certo, não podia falhar. Depois de Véu de Noiva, nós fizemos Irmãos Coragem, que era um grande
capa-e-espada situado no interior do Brasil, assim meio western. Depois vieram Pecado
Capital, O Astro, etc., todos
sucessos meus com a Janete.
Dá para se prever o maior ou
menor sucesso de uma novela?
Algumas que eu fiz com o Lauro César Muniz eram uma
loucura de risos, como O Casarão e Espalho Mágico. Ou O Rebu, com o Bráulio. Agora, eu não via o menor perigo em Gabriela, que o Dias Gomes adaptou do
Jorge Amado. Não tinha como não dar certo. E, no caso de Dancin’ Days, que foi a estreia do Gilberto Braga no horário das 8,
a novela foi construída de tal maneira que eu cheguei a prever qual capítulo
daria tanto de IBOPE. Eu disse que, no capítulo 55, a novela daria um mínimo de
85% - e acertei. Porque eu sabia que, naquele capítulo, Júlia revelaria à sua
filha, na hora do casamento, que ela era a mãe, e, bêbada, seria presa. Dancin’ Days tinha tudo armado: os
modismos, a novidade da asa delta, o velho, o rico, o pobre em ascensão, o amor
impossível, os casamentos e principalmente a discoteca. Eu tinha visto Embalos de Sábado à Noite em Nova York e
sabia que aquela febre de discoteca não iria demorar a chegar por aqui. Porque
isso é uma aldeia global mesmo e, quando vem o modismo, não dá para segurar.
Dancin’ Days foi então o seu grande
barato como diretor?
Eu quis dar um tiro de chumbo grosso, porque não
aguentava mais fazer novela. Eu pensava assim: “Porra, o que eu mais vou fazer
em novela? Posso melhorar uma ceninha aqui, outra ali, mas e daí?” O grande
barato é trabalhar com os atoes, ajuda-los a criar os personagens. Só que,
depois do capítulo 20, o diretor já não tem o que dizer para o ator, porque, a
essa altura ninguém conhece melhor o personagem do que ele. Pode reparar que,
por melhor que seja o elenco, os primeiros 20 capítulos de qualquer novela
serão péssimos se o diretor for ruim. Depois, os atores se mancam, começam a se
autodirigir e tudo fica ótimo. É por isso que as novelas levam um mês para
emplacar. Uma das grandes coisas das minhas novelas é que elas sempre começaram
bem, inclusive Espelho Mágico, que
depois fracassou, mas que, no começo, ia muito bem. Dancin’Days, em menos de quinze dias, já era coqueluche nacional.
A chamada máquina
promocional da Globo não ajudou um pouquinho?
É lógico que essa máquina ajuda. Não sei se conseguiria
implantar uma novela com a mesma velocidade se fosse na Bandeirantes. Nem sei
se conseguiria implantar. Mas o fato é que, depois da minha experiência
frustrante com Espelho Mágico, eu
queria provar para mim mesmo que novela tinha mais de ser é folhetim,
consumismo, porque é isso que o povo quer. Ficar inteligente, o cacete! É por
isso que eu acho Dancin’ Days a melhor
novela já feita até hoje. Era bonita, simpática, romântica, vendeu discos,
moda, asa delta, tudo.
Você, que está lá desde que
a onda começou, há quinze anos, como explica essa mania do brasileiro pelas
novelas?
Acredito que o sucesso das novelas teve a ver com a
revolução de 64. De quando é O Direito de
Nascer, que foi a primeira novela? 1964. A novela surgiu como uma
necessidade, porque poucas coisas foram deixadas para as pessoas conversarem ou
discutirem na sua própria casa. Enquanto isso, começou a entrar aquele
aparelho, que ajuda a passar o tempo, não provoca, não leva a fazer nada. Houve
fatores externos que prenderam as pessoas àquele eletrodoméstico. Um deles, a
dificuldade financeira até para sair à rua. Então, ficar vendo televisão era
mais barato. As pessoas paravam de discutir até o orçamento doméstico, de ir à
esquina bater um papo com os amigos, de fazer visitas. Ao mesmo tempo, os
apartamentos foram ficando menores e as pessoas tiveram que botar aquele
aparelho imenso e bestificante na sala. Porque não há quem não fique
bestificado, depois de ouvir o mesmo comercial oitocentas vezes, mesmo que seja
o da menina mostrando a bunda dentro da calça jeans. Eu, por exemplo, que tenho
três aparelhos de televisão, não ponho nenhum na sala, que é para não cortar o
papo com os meus amigos. Tenho um no meu quarto, e confesso que ele às vezes me
incomoda profundamente. Enfim, foram vários fatores sociais, culturais e
econômicos que amarraram e escravizaram as pessoas à televisão.
E como a novela entrou
nisso?
Bem, a televisão foi criando as suas estrelas, e nós,
que fazíamos novelas, nos entusiasmamos com o sucesso, fomos nos aprimorando,
aprendendo com o público. Afinal, quem nasceu primeiro foi o processo social e
não o processo televisivo. Não foi a televisão que puxou o público – ela apenas
respondeu a uma necessidade desse público. Porque, verdade seja dita a favor
desse regime que começou em 1964: não melhorou porra nenhuma, mas também não
estava muito melhor antes. O Brasil só esteve bem até o Pedro Álvares Cabral
chegar. De lá pra cá, foi esse caos, essa exploração. Mas, depois de 64, as
notícias começaram a ser tolhidas e passamos a viver numa mentira.
Até o advento da TV Globo,
em 1965, a televisão no Brasil não chegava a existir em escala nacional. Quando
isso finalmente se tornou realidade por volta de 1968, com a escalada da Globo,
a censura apertou. Pode-se dizer, então, que a televisão, como veículo de
massa, mas sem censura, ainda não foi testada no Brasil?
Bem, eu continuo achando que até esse processo de
crescimento da televisão brasileira foi um processo da revolução de 1964. Pode
ter sido uma coincidência quer dizer: na medida em que o povo foi sendo
tolhido, apareceu coincidentemente um grupo de pessoas dispostas a fazer uma
televisão altamente profissionalizada. É preciso que se diga que a empresa
Roberto Marinho investiu muito nessa televisão e soube utilizá-la, naquele
momento político. Quando digo que foi um investimento sério, não estou julgando
a empresa politicamente, mas colocando-a como uma empresa altamente
profissional, que já existia como jornalismo. Tanto que, na hora em que foram
armar a equipe, pegaram homens como Walter Clark e o Boni, superprofissionais.
Enfim, foi o mesmo que juntar a fome com a vontade de comer.
Você ainda não respondeu à
pergunta.
Quanto ao veículo de massa sem censura, não acredito
que exista em nenhum lugar do mundo. Um veículo com a força da televisão, seja
particular ou não, será sempre comandado por alguém com interesses políticos,
culturais e financeiros próprios. Estatal, idem, idem. Um dos Malus, por exemplo, foi proibido na
Suécia: aquele em que dois assaltantes entravam na casa dela e quase estupravam
a garotinha. Foi proibido porque, para eles, esse fato não acontece na Suécia,
logo não viam motivo para colocar tal violência na televisão. Acho utópica uma
televisão sem censura, seja a política, ou a do preconceito. Veja o próprio
cinema americano, que é considerado o mais liberal: hoje se fazem filmes à
vontade sobre o Vietnã – porque o Vietnã já foi consumido. Mas, quando eles
estavam com a ferida aberta, o máximo que fizeram foi Os Boinas-Verdes, com John Wayne.
Por que aparecem tão poucos
bons autores novos de novelas?
Não só de novelas. É difícil aparecer gente nova e boa
na televisão de modo geral, porque hoje não é permitido errar. Veja o meu caso:
eu tenho 23 anos de televisão. Portanto, sou de uma época em que se podia fazer
de tudo, experimentar, quebrar a cara, porque a televisão era ao vivo, pouca
gente via, faziam-se as maiores merdas e ninguém notava. O papo mais frequente
depois de um programa era assim: “Pô! Minha calça caiu naquela cena, você viu?”
E o outro respondia: “Ah, ninguém notou”. E ninguém notava mesmo, porque aquela
porra não era gravada, existia só durante aquele segundo. Eu gostaria de ver um
teipe daquela época em que não existia o teipe. Mas por um lado foi bom, porque
nós pegamos uma prática de televisão que qualquer pessoa que entrar agora
dificilmente poderá pegar. Eu, por exemplo, fui ator, lutei espada contra o
Falcão Nero, fiz apresentação, fiz câmara, dirigi, fiz de tudo. Atualmente, eu
chamo homens como o Arnaldo Jabor ou o Cacá Diegues, que são grandes diretores
de cinema, e digo: “Você quer dirigir um programa na TV Globo, para o horário
das 9?” O cara responde: “Porra, tudo bem, mas tem que dar um tempo...Preciso
ficar vendo como é isso...” Há dez ou quinze anos, o Jabor ou o Cacá iriam e
fariam um programa na maior, porque a televisão não exigia esse compromisso de
qualidade. Hoje o vídeo-taipe acusa mais o erro e, além disso, todos os olhos
estão pregados na gente.
No começo dessa entrevista
você se referiu aos intelectuais. Você acha que eles ainda têm preconceitos
contra a televisão?
Será que existe ainda esse preconceito? Não sinto mais
isso.
Algumas pessoas recusam-se
até hoje a vender o passe. Chico Buarque, por exemplo.
O Chico Buarque não vendeu o passe para a Globo, como
ele mesmo disse, por um problema pessoal, não político. Foi uma briga provocada
durante um daqueles festivais da canção, em que o Chico teria tido uma discussão
com o Boni – e que o Boni nega ter tido -, que culminou com um episódio no
Antonio’s, no tempo em que as paredes do restaurante eram cobertas com retratos
dos fregueses famosos. O Chico acabou mijando em cima do retrato do Boni, o
Boni pegou o retrato do Chico e atirou longe, não sei bem. Tanto que, depois
daquilo, acabaram-se os retratos no Antonio’s. Acho neurótica essa raiva que o
Chico alimenta há séculos pela Globo, e que nem é pela Globo, porque é um
assunto pessoal. Porque, se fosse uma atitude política, o Chico não iria
trabalhar em nenhuma emissora de televisão, cujos proprietários são tão
capitalistas quanto o Roberto Marinho. É, se ele realmente é uma pessoa de
esquerda, não teria sido contratado pela Ariola, que é uma empresa alemã,
fortíssima, profundamente capitalista. Ficaria fazendo só teatro ou dando shows
de 1º de maio (risos).
Mas, afinal, existe ou não
algum preconceito contra a televisão?
Eu poderia dizer que tenho preconceito contra
televisão. Eu e outras pessoas que trabalham nela.
Que tipo de preconceito?
Eu estou fazendo televisão há muito tempo. Estou
cansado de trabalhar em televisão. Porque ela é uma mulher muito ciumenta e
possessiva, que não te deixa ter relações, não digo nem sexuais, mas de
amizade. Sabe aquela mulher que tem ciúme dos seus amigos e quer que você seja
amigo apenas dela? Pois é. Por melhor e mais inteligente que ela seja, esse
relacionamento se tornará inevitavelmente burro, porque ficará apenas aquele
feed-back de um para o outro e com pouca informação. Esse é o meu preconceito
contra a televisão. Ela é extremamente possessiva, embora seja também muito
generosa com os seus sucessos. Em termos de salário brasileiro, ela paga bem,
embora eu viva desconfiado de que, se me pagam 100, é porque eu merecia 300. De
qualquer forma, é uma relação perigosa, porque envolve muito dinheiro. Ela se
torna um vício, tão violento quanto o da heroína, que o sujeito fica com medo
de deixar porque pode morrer. Estou dizendo isso sendo um homem viciado em
televisão, mas tentando tratar desse vício.
Só faltou dizer que a
televisão compra a alguma das pessoas.
Mas compra mesmo. Você tem que se dar a ela, entende?
Todos os homens de televisão ficam com a sua alma lá dentro. Não tem horário,
não têm final de semana. O Boni é um homem que trabalha 24 horas por dia. Mesmo
quando passa um fim de semana em Angra dos Reis, assiste à programação, fica
nervoso, preocupado e tem um telefone direto ligado na estação. Isso não é a
alma da pessoa?
Você já passou por isso?
Eu já passei três, quatro dias sonado, dentro da
televisão, quando era diretor de todas as novelas. Mas, na época, eu precisava
trabalhar, e não fazia muita distinção entre o quanto estava dando e o quanto
recebia. Porque o artista é amador, né? Ele realmente ama, e é preciso controlar
muito esse amor, porque senão ele faria de graça. O artista é alguém que, ao
gravar uma cena em que ele recebe um soco na cara, se o soco pegar mal e fizer
sangrar, ele pergunta depois: “Pô! A câmara pegou o sangue direto?” Além disso,
não se esqueça que somos artistas de um país subdesenvolvido – apesar de o
Delfim dizer que não.
Você disse que a televisão
paga bem. Quem ganha bem na televisão?
Mas para que falar da televisão? Por que não falar do
Brasil, que é exatamente a mesma coisa? Claro que há grandes diferenças
salariais entre um diretor, uma estrela e um editor de vídeo-taipe. Mas, quando
o governo dá um salário mínimo como esse, dizendo que é o salário do povo, eu
não posso culpar a TV Globo. E coloco isso muito claramente porque não quero
que pareça que estou com medo da TV Globo ou do desemprego – porque, graças a
Deus, não estou. Eu nem sei se continuarei na televisão em 1981. Mas, voltando
ao Brasil: este é um país onde a hora extra faz parte do seu ritmo de trabalho
normal! Se o cara não fizer hora extra, não como. O ator de televisão ganha bem?
Ganha bem em termos de atores de teatro. Se ele está numa novela de sucesso,
pode chegar a ter um faturamento paralelo, tipo bailes de fim de semana no
interior, gravar um comercial, fazer um show. Ora, isso não é hora extra de
operário brasileiro? É uma pergunta que eu deixo aqui. Eu me lembro da Zilka
Salaberry, há alguns anos, pedindo aumento porque não podia continuar andando
de ônibus. E não era por frescura, não. Era porque ela não tinha sossego no
ônibus. As pessoas olhavam, pediam autógrafo, era uma balbúrdia. Ela não podia
pegar o textinho dela para vir decorando ou ficar quieta, bordando ou olhando
pela janela. Estou falando da Zilka Salaberry, uma senhora e não de uma gostosa
que as pessoas quisessem passar a mão na bunda, veja bem.
Vida de artista é tão dura
quanto dizem?
Na realidade brasileira, é dura a vida de quase todo
mundo. O ator de televisão, por exemplo, é um cara que precisa de um mínimo de
tranquilidade e conforto para produzir o que esperam dele. Se ele for o astro
da novela, ele começa a gravar às 8 da manhã, acaba às 8 da noite e mal tem
tempo para jantar, decorar o texto do dia seguinte e dormir para começar tudo
de novo pela manhã. Não dá para fazer uma ginástica, pegar uma piscina, olhar o
filho. Isso são seis, sete meses por ano. Então, para produzir direito, o cara
tem que ter um mínimo de tranquilidade e conforto fora da estação, o que
evidentemente custa dinheiro. É importante que eu fale isso, porque estou
falando de barriga cheia – sou bem alimentado, moro bem e ganho bem, embora
muito menos que os executivos dos sistema capitalista brasileiro.
Quando você ganha por mês?
Esta é uma pergunta complicada porque eu sou contratado
como firma. É a minha firma que vende os meus serviços. Mas é possível que,
entre o pessoal da parte artística, eu seja um dos melhores salários da
televisão brasileira.
Digamos assim por volta de
uns Cr$ 700.000?
Talvez. (N. da
R.: segundo fontes da Globo, Daniel ganhava, em dezembro último, Cr$ 1.300.000
por mês.)
Você compararia a Globo de
hoje à Metro-Goldwyn-Mayer no seu apogeu, que foi em 1939,, ano de...E o Vento Levou, O Morro dos Ventos Uivantes, O
Mágico de Oz e todos aqueles filmes?
Eu acho que a Globo já passou por 1939. Eu diria que a
Globo está hoje como a Metro estava nos anos 50.
Isso significa que a Globo
está indo para baixo, como a Metro naquele tempo?
Eu não diria isso. Mas está com poucas possibilidades
de transformação. Claro, houve os seriados, houve a TV Mulher, houve os especiais de cantores, mas a tendência é a
padronização. Ela está numa linha reta. Seria difícil a Globo ir para baixo com
o material humano de que ela dispõe, que inclui 99% dos melhores profissionais
na praça.
Esse monopólio de talento
pela Globo é bom ou mau?
Em termos de mercado, não acho que seja bom, mas também
não se pode dizer: “Olha aí, a Globo levou todo mundo”. O mal é de todo o
mercado de trabalho no Brasil, que é pessimamente distribuído. A Globo não pode
ser culpada por ter tido competência para se tornar forte. As outras emissoras
que se agitem e, como não se agitaram, ficamos sem mercado de trabalho. O
mercado ficou fechado na Globo.
Você, por exemplo, se sair
da Globo, vai para onde?
Não vou para televisão nenhuma. Talvez vá para o cinema,
fazer um filme de dois em dois anos e passar o resto do tempo vivendo de
comerciais, como a maioria dos diretores do cinema brasileiro. Ou posso dirigir
peças de teatro ou shows no Canecão. Ou seja, eu teria o que fazer fora da
Globo. Logo, posso me considerar uma pessoa privilegiada.
O que o torna também uma
pessoa invejada e temida. Por que você é acuado de ter tantos problemas com a
imprensa?
Não acho que tenha problemas com a imprensa. Já tive,
mas foi na época em que eu era diretor geral das novelas. Mas isso só aconteceu
porque eu me pus em defesa dos atores, como uma barreira entre eles e a invasão
à privacidade deles. Os coitados têm que decorar 120 laudas por semana. Não têm
tempo nem pra mijar e, na hora de entrar em cena, não sabem o texto direito.
Justamente quando estão dando aquela última passada, chega uma repórter e
pergunta: “O que você vai fazer no carnaval?” Porra! pegue uma revista de
televisão de dez anos atrás – tem as mesmas coisas que saem nas de hoje. Só
que, naquela época, era a Regina Duarte, que tinha 20 anos de idade. Hoje é
Lucélia Santos. O escândalo da palavra mais libertina que era dita há dez anos
pela Betty Faria hoje é dito pela Lídia Brondi. Mas os atores precisam de
imprensa e querem ser simpáticos. Então, eu entrava na frente e andava a
repórter embora. Se quisessem me malhar, tudo bem – eu não ia sair na capa da
revista, mesmo. Certa vez, expulsei uma repórter e um fotógrafo do camarim do
Francisco Cuoco, ele com as caças no meio das pernas, dizendo “Minha filha, agora
não posso falar, tenho que trocar de roupa, repassar o texto, o personagem é
difícil...” Daí criou-se a onda do fascista, violento, irascível com a
imprensa. Mas devo dizer que não estavam cumprindo ordens. Era ideia minha
mesmo, e eu assumia essa barra.
Enquanto diretor, como você
assume a barra de estrelismo dos atores?
Não posso dizer que sempre tenha feito isso, mas, de
uns tempos para cá, eu procuro ver as neuroses de cada um dos atores. Lógico,
todos temos as nossas neuroses. Então, eu procuro ver as inseguranças, para não
paternalizar, passar a mão na cabeça e ser enrabado. Tive um problema, por
exemplo, com a Norma Bengell pouco antes de Dancin’
Days estrear. Tínhamos gravado a chamada e estávamos começando a novela.
Ela viu a chamada e me disse que não tinha gostado. Eu disse: “Puxa vida, então
vamos ver isso. Vamos gravar as cenas de hoje e, à noite, a gente vê isso”. Ela
respondeu: “Não. Quero que veja agora. Senão, não gravo”. Ainda tentei
argumentar, explicando que estava tudo ali, as câmaras colocadas, dava tempo
para ver tudo à noite. Ela manteve o pé firme, dizendo que não gravava, e eu
comentei que ela precisava se tratar, porque não estava legal. Aí a Norma
começou a atirar coisas em cima de mim, gritando: “Seu filho da puta! Seu
comunista fascista! Seu KGB da CIA!” Uma coisa estranha. Depois ela pediu para
voltar atrás, mas eu preferi botá-la para fora, pagando à vista o que teria de
pagar durante seis meses de gravação, e regravei dezoito capítulos com a Joana
Fomm no papel. Hoje nos damos bem.
Pinta muito estrelismo?
Todos os atores têm um certo tipo de rebeldia, de
estrelismo, que eu posso compreender. Só não posso deixar que isso me
prejudique. Então, tudo bem: você está nervoso, seu pai morreu, sua mãe foi
estraçalhada, seu filho te abandonou, sua mulher te corneou e você está
desesperado. Mas não tem direito de vir me dando porrada. Há outros que têm
mania de silêncio no estúdio e há também os que eu considero maus
profissionais, que são o que chegam constantemente atrasados.
Por exemplo?
Tônia Carrero. É uma pessoa com quem eu não trabalharia
mais. É uma atriz que me emociona, acho ma-ra-vi-lho-so o trabalho dela em Água Viva, mas eu não dirijo mais Tônia
Carrero, porque, além disso, ela nunca decora o texto direito. O que não quer dizer
muito, porque o Lima Duarte também não decore bem, mas traz um outro tipo em
compensação. A Tônia traz uma boa representação, mas não traz velocidade de
trabalho, e tem horas que temos de correr com a equipe. Um dos exemplos mais
curiosos da Tônia foi durante a gravação de Pigmalião 70: Era uma externa e ela
queria fazer pipi. Arranjamos o banheiro de uma casa vizinha para ela ir, mas
ela disse: “não”. Pegou o carro e foi fazer pipi em casa, deixando a gravação
uma hora e meia parada. O que eu quero dizer é o seguinte: ninguém mandou ela
fazer pipi no mato. E podia ser até que estivéssemos gravando no mato. Esse
tipo de estrelismo não tem lugar e me irrita. Não sei, pode ser que a Tônia
tenha mudado.
Que tipo de estrelismo você
tolera?
Por exemplo, o Francisco Cuoco não grava de manhã.
Porque ele faz análise de manhã, e colocou essa cláusula como uma imposição.
Perfeito, ele é ator principal, é o que decora mais texto, grava mais horas.
Então, tudo bem, não porque ele seja estrela, mas porque trabalha mais. Essa
preocupação do diretor deixa então ser uma preocupação estelar, e passa a ser
uma preocupação humana.
Tudo isso seria resultado do
clima de pressão na televisão?
Não sei. No Brasil você precisa provar que é capaz de
matar um leão por dia. E, atualmente, um leão só não está chegando. Nós vivemos
num processo em que somos uma merda e precisamos viver provando que não somos
merda. É como se estivessem nos fazendo um favor por estarmos trabalhando. Tá
todo mundo te quebrando um galho, te dando uma chance, sabe como é? “Muy
amigos”, como diz o Jô Soares. Então, há milhões de brasileiros morrendo aos 70
anos de idade e agradecendo a chance que lhes está sendo dada de continuarem
trabalhando! É aquela coisa: “Eu vou matar outro leão hoje. Eu vou provar que
sou um pouco melhor ainda”. E não é uma prova para o seu ego, mas para o
exterior, para que continuem te pagando, para você continuar empregado. “Não me
despeçam, não me despeçam! Eu farei melhor!” E a chamada satisfação artística,
onde fica? No meu caso, me foi dada a chance de ser diretor da Divisão de
Novelas da TV Globo no início dos anos 70. Chance nada. Eu era realmente a
pessoa capacitada para dirigir a Divisão de Novelas. E peguei aquilo com a
maior coragem. Lógico que os executivos, todo mundo, vão dizer o quanto
colaboraram. Que maravilha, o que teria sido de mim senão fossem todas aquelas
pessoas em volta, me ajudando, dando todas as ideias...Mas na realidade, quem
estava com a cara, com o cu na seringa? Quem tomava os esporros? Eu é que era o
culpado pelos fracassos, e tinha que partilhar com todos os sucesso. Isso durou
cinco anos, de 1970 a 1975.
Em que consistia o seu
trabalho?
Estava burocratizado, fazendo uma coisa que não tinha
nada a ver comigo. Eu dirigia os primeiros capítulos de quase todas as novelas
e produzia todas. Ou seja, eu preparava a mulher para os outros gozarem. Não
que os outros não soubessem trepar bem. Mas, na verdade, meu nome sumia na
massificação. Quando chegava a hora de fazer o que gostava – que era dirigir,
cortas, falar com o ator -, todo mundo ia para o quarto trepar e eu ficava fora
da suruba. Quando cheguei ao desespero, depois de cinco anos de mandato, pedi
demissão, como um bom democrata- porque acho que ninguém deve governar mais de
cinco anos (risos). Então, voltei a
dirigir novelas. A primeira foi Roque
Santeiro, que foi proibida, mas depois vieram Pecado Capital, que foi uma das grandes viradas da carreira da
Janete Clair, O Astro, Dancin’ Days. Mas até mesmo tudo isso me
encheu o saco, porque eu já não tinha paciência para dirigir uma novela
inteira, entrar numa segunda-feira às 8 da manhã e sair na sexta às 8 da noite
de dentro do estúdio. Não tinha saco.
Foi aí que você abandonou as
novelas e passou para os seriados?
No meio de Dancin’
Days, o Boni me chamou e perguntou o que eu achava de mudar. Eles acham que
sou um instável, o que eu não sou. Eu sou uma pessoa em mutação, quero sempre
uma coisa nova, me questionar. As pessoas corretas e seguras, que eu chamo de
burocratas, consideram isso uma pessoa instável, com quem não se pode contar.
Mas o meu processo na novela estava concluído. De A Rainha Louca até Dancin’
Days, tinha sido sete sucessos. Então comecei a trabalhar no projeto de
seriados.
Esses seriados seriam Plantão de Polícia, Carga Pesada e, principalmente, Malu
Mulher. Que transformações você acha que eles trouxeram?
Os seriados vieram num momento coincidente com o da
abertura política. Eu não sabia que tipo de abertura seria essa, portanto
fiquei me autocensurando um pouco na proposta, embora o Boni me dissesse: “Vai
chumbo grosso. Vai chumbo grosso!” Tanto que, quando o Boni viu os primeiros
capítulos da Malu, me disse: “Daniel, você está meio fora da proposta inicial”.
E estava mesmo. Aí refizemos tudo. A essa altura, eu já tinha uma preocupação
cultural com o Brasil, com a realidade, com um processo de fazer brasileiro e
bem-feito. E deu no que deu.
O que aconteceu?
Bem, os seriados estrearam com enorme sucesso, embora
os primeiros quatro episódios de cada um fossem os mais violentos, no sentido
político, cultural, social. Deu uma desgovernada geral. Na censura, que ficou
na dúvida, e na própria Globo, que viu a necessidade de recolocar suas
diretrizes políticas. Porque, na medida em que o governo abria...Começaram a
nos cobrar um pouco mais de responsabilidade quando se tratasse de certos
assuntos. Quando o Malu que tratava
do aborto foi para o ar, quase fomos crucificados. Acharam o programa leviano,
tendencioso, mal discutido. Um ano depois, ele foi repetido, com ufanismos
gerais.
Foi por isso que você também
largou os seriados no meio?
Não só por isso. Eu percebi que estava me afastando de
novo do meu processo de criação direta, tinha recaído no processo burocrático,
discutindo verba, salários, atrasos, comandando um mundo de gente. As duas
coisas me fizeram sair. E mais a minha vontade de não me repetir, de não ficar
fazendo a mesma coisa muito tempo. Então pedi para sair. O Boni foi
profundamente carinhoso comigo, me deixou ficar uns três ou quatro meses parado
e aí voltei para fazer esses especiais mensais que estou fazendo agora, ao
vivo, capturando a essência do cantor, do palco, da orquestra e do público. O
primeiro foi o da Simone. Depois vieram o Caetano, Jorge Ben, Ângela Maria,
Paulinho da Viola, João Gilberto, Rita Lee. Assim, depois de quinze anos de
Globo, esse é o descanso no que pensei que fosse meu ano sabático.
Você parece entediado com a
profissão. Isso não acabará afetando seu trabalho?
Eu estou entediado é com o Brasil. Não vejo nenhum
gênio capaz de dar jeito neste país, a não ser, talvez, começando por Pedro
Álvares Cabral ou, antes ainda, por Cristóvão Colombo. Com esses velhos
senadores e deputados enraizados no poder, afastados dos interesses do povo, eu
passo a acreditar mais nos tecnocratas. Mas talvez não tenhamos bons
tecnocratas no Brasil, assim como não temos bons políticos. Está provado que
essa revolução não foi um sucesso. Mas eu confesso que, até há pouco, nunca
tinha pensado na solução para o problema brasileiro. Porque não era meu
problema solucionar o Brasil. Meu problema era votar em alguém, o que também
deixei de fazer há dezesseis anos. O fato é que somos uma grande Uganda. Agora,
como resolver isso? Se, numa psicanálise, você descobre que é neurótico há
quarenta anos, como transar isso em menos de sete ou oito? Imagine então o
Brasil, que está desse jeito há 480.
Por falar em psicanálise,
você é um dos analisados mais célebres do Rio de Janeiro, mas ninguém acredita
que seja por traumas sexuais...
Bem, como se sabe, eu nasci dentro do teatro de revista,
onde meus pais trabalhavam. A partir dos 13 anos, eu fui comido por várias
daquelas girls maravilhosas da revista. Ou seja, minha iniciação sexual foi bem
melhor que a do Pelé, segundo ele declarou na PLAYBOY de agosto...O gozado é
que eu não consigo recordar essa época como sendo uma coisa de sacanagem ou
mesmo erótica. Era bonito, talvez porque eu fosse muito moço e achasse tudo
aquilo muito romântico...O fato é que, com 13 anos, eu já tinha a minha vida
sexual ordenada. E nunca me preocupei em transar a garotada familiar, porque já
tinha as minhas namoradas no teatro e até no rendez-vous, embora estas eu só pudesse visitar depois que o coronel saísse, às 2 ou 3 da manhã.
Isso não o tornava diferente
dos outros garotos da sua idade?
Não só isso, como também o fato de trabalhar em tetro
desde garoto, de ser artista. Porque, para a garotada naquele tempo, ser
artista era sinônimo de ser viado. E, não sei por quê, como eles se viam diante
de uma pessoa que praticava sexo normalmente, foram se afastando de mim.
Você sofria com isso?
Sofria, claro. Porque eles vinham com aquela coisa do
olhar de desdém, do nariz em pé, como se eu estivesse fazendo uma coisa menor.
Embora eu soubesse que, no fundo, eles estavam alimentando grandes fantasias a
meu respeito. Como, aliás, as fantasias eróticas que se atribuem aos artistas
só existem na cabeça dos pequeno-burgueses. O artista é uma cobaia das emoções
humanas. Ele é menos defendido do que a chamada burguesia. Então a burguesia
transfere para ele todas as suas fantasias, imaginando: “Que surubas
maravilhosas esses artistas devem fazer! Que carros incríveis! Como são ricos!”
Tudo mentira, né? Quantos artistas não têm onde morar, pedem dinheiro
emprestado e, às vezes, pedem dinheiro para dizer que têm dinheiro...
Mas você deve admitir que,
no terreno erótico, os artistas se realizam muito mais do que a média das
pessoas. Você próprio é um exemplo.
É verdade que eu, desde os 13 anos, nunca precisei usar
a masturbação como uma coisa erótica. O que eu acho bom de dizer aqui, porque
pode ajudar alguém. O Pelé, por exemplo, disse ao PLAYBOY que se iniciou
sexualmente com uma bicha. Muitos devem ter lido isso e dito: “Ah, que bom! Eu
também fiz isso e não tenho culpa; o Pelé também fez e ele é o Pelé!” Então, o
que eu posso dizer é que, depois de 1968, depois de toda aquela geração que
botou para quebrar, não consigo achar um feito extraordinário nada erótico ou
sexual que eu possa contar.
Seja como for, você é tido
como um dos símbolos sexuais deste país – como alguém que já teve mais de mil
mulheres. Erasmo Carlos, no PLAYBOY de outubro, admitiu isso a respeito de si
próprio (risos).
Ah, que bom, já não sou só eu (risos). O Erasmo ganhou! Vamos ver se colocamos essa história
direito. O que acho é que, dentro dessa coisa machista em que nós vivemos – e o
Brasil é o país dos machos, haja visto a entrevista do Ziraldo ao próprio
PLAYBOY (N. da R.: abril de 1980.) -,
o homem é educado para ter o maior número de mulheres possível e ter sempre o
pau duro ao se apresentar a uma mulher. Tem que dar a chamada surra de pica
porque, quanto mais tempo ficar em cima de uma mulher, mais macho será. Então,
se como eu disse, comecei a minha vida sexual aos 13 anos tendo relações com
mulheres, é compreensível que, aos 43, já tenha transado com muitas. Não sei se
foram novecentas, como saiu numa revista aí, porque eu não tenho a menor ideia
desse número. Sei que foram muitas, mas acho ótimo saber que o Erasmo Carlos
bateu o meu chamado recorde. Como vou saber com quantas mulheres eu trepei?
Isso o incomoda?
Hoje, incomoda, porque passou a ser para mim uma
experiência dolorosa. O que eu quero saber é com quantas mulheres eu gozei de verdade. Quantas veze eu apenas
ejaculei? os homens que tiveram o verdadeiro orgasmo, esses sabem. Existe uma
coisa maior do que os milhões de ejaculações que nós demos pelo meio da vida.
Quantas trepadas já não dei que não eram mais que masturbações, aquela coisa
insossa, de esvaziar o saco! Não eram fazer amor, eram fazer sexo. Essa coisa
maior é aquela hora de profundo sentimento, profunda combinação, uma coisa
romântica. E pode ser também um profundo encontra erótico, por que não?
Isso acontece muito com você
hoje?
Não sei, mas eu passei a achar de um profundo ridículo
essa coisa do homem ter de tirar a roupa e já estar de pau duro. Porque ele
também não está vendo se a mulher está úmida ou não. E que bom seria se eles se
deitassem com o cara sem estar com a vagina úmida, porque iriam se deitar
juntos e se procurar, procurar o amor.
Não é essa fama que corre a
seu respeito...
Eu sei- e sei qual é. Mas, meu Deus, que coisa mais
grosseira e burra a ideia de ficar duas ou três horas em cima de uma mulher e
achar que fez ela gozar muito mais. Nunca consegui ficar esse tempo todo em
cima de ninguém. E acho que só uma mulher doente gozaria sem parar oito, nove
vezes seguidas. Estou falando isso porque foram coisas que eu fui
historicamente impulsionando a fazer e, atualmente, não acho que seja legal.
Essa história de o cara ter dado tantas trepadas numa noite só, eu realmente
não sei onde está esse tesão todo. Eu, pelo menos, não possuo esse tesão, esse
cio pelo meio da rua. Eu não tenho a menor obrigação de ter cio todas as
semanas – daí porque eu acho que animal talvez seja muito mais puro, ele tem
dia certo. Hoje eu posso ficar sete ou dez dias sem trepar, já não é tão
importante – como posso entrar no cio e sair à cata feito louco, mas será uma
coisa profundamente interna. Porque eu já consigo dividir quando é o meu ser
querendo e quando é a minha neurose machista querendo, entendeu? Só que,
atualmente, estou dando mais valor quando é o meu ser querendo. Mesmo que seja
só uma transa erótica, tudo bem. “Vamos lá?” “Vamos sim”. Mas sem aquela
obrigação.
Quer dizer que, depois de
trinta anos na praça, você já não está inteiramente disponível?
Eu já não estou sempre à disposição. Não estou mais
naquela de dizer: “Sou um objeto sexual!”. Claro, é ótimo ser comido. Mas só na
hora em que eu quiser. Porra, mostrar que é macho só porque comeu mais uma?
Apenas para botar mais uma mulher no catálogo? Sendo que, ás vezes, o cara não
faz nem seleção de qualidade! E só porque ela estalou o dedo e ele estava lá.
Lógico que vão dizer: “Ah, isso deve ser um problema do Daniel...” Mas eu tenho
certeza de que, quem disser isso, estará dizendo só por cauda da História que o
obriga a ser esse macho no cio diário. Então eu digo o seguinte: eu já broxei
várias vezes, porque na maioria das vezes não estava com vontade de trepar,
estava me forçando. Todo mundo já broxou na vida. Menos o Ziraldo, como ele
mesmo disse ao PLAYBOY. Você sabe que eu fiquei preocupado com o Ziraldo? Putz!
O Ziraldo nunca broxou, rapaz! Ele não devia estar relaxado quando disso isso.
Porque broxar é uma das melhores coisas que pode ter. É como se o teu pau
estivesse te dizendo: “Malandro, não força a barra, não seja uma puta”.
Você também já teve a
fissura da performance?
Ah, mas claro! Aquela coisa de envernizar o pau, fazer
uma exibição de várias posições, aquele circo. Tanto que consideravam um atleta
sexual. E só estou falando disso porque, hoje em dia, acho tudo uma grande
besteira. Não era uma coisa de dentro para fora, sabe? Eu pensava assim: “Agora
vou fazer isso ou aquilo e fazer ela doida”. Enquanto ela podia estar pensando:
“Pô! Mas esse cara está me dando uma canseira que puta que pariu!” E outros
grilos que nos enfiaram na cabeça e que fundiram a cuca da gente.
Então, qual é a solução?
Não sei qual é a solução, mas – orra meu!-, não dava
para cada um descobrir naturalmente a sua própria sexualidade? Não dava para o
sexo ser uma coisa espontânea e natural, sem tantos compromissos de macheza, de
performance, de tamanho de pau? O que
eu posso fazer é levar na prática isso que estou dizendo. E talvez por isso o
sexo seja hoje para mim uma coisa muito mais solta e alegre.
Chamada da entrevista na capa da edição de janeiro de 1981 |
Publicado originalmente na revista “Playboy” em janeiro
de 1981
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