quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Grandes matérias esportivas do Jornal da República: "A vida torta de Mané Garrincha" (27/08/1979), Ricardo Kotscho, Jornal da República

PIRAPOZINHO, 26 - URGENTE- Apareceu aqui hoje, nas barrancas do Paranapanema, um cidadão de nome Manuel Francisco dos Santos, dizendo-se Mané Garrincha. A notícia da sua presença colocou em polvorosa esta pequena cidade de 30 mil habitantes. “Mas ele não está doente no Rio?”. Hospedou-se na pensão do Morais, junto com a equipe do Milionários F.C. Ganhou buquê de flores, placa de prata e beijos de moças bonitas, no Estádio Municipal. O juiz apita, Garrincha com a bola. O lateral-esquerdo, Antônio Carlos, 25 anos, o Bunda Baixa, vai em cima dele, Garrincha faz que vai, mas não vai, a torcida dá risada. Viajou 1.100 quilômetros, oito horas e meia de ônibus, para jogar 45 minutos e ganhar seis mil cruzeiros de cachê. Saiu de campo suado, sujo e feliz.

 

A vida torta de Mané Garrincha

 




Da alegria do povo à obscuridade de um treinador de meninos

 

RICARDO KOTSCHO

 

Dias atrás na televisão, a voz cavernosa de Sargentelli fazia um apelo dramático ao presidente da República para ajudar o Mané, dar pelo menos uma casa para ele morar. Enquanto as imagens mostravam seus dribles e gols fantásticos, ficava a impressão de que do velho ídolo só restara um indigente sem teto. Um dos seus poucos amigos de depois da queda, porém, me garantiu que Garrincha tem várias propriedades em Pau Grande, apartamento alugado no Rio, casa com piscina em Bangu, dinheiro emprestado (10 mil cruzeiros por mês em promissórias), e um salário de 23 mil cruzeiros como técnico da futebol da Legião Brasileira de Assistência.

Manoel Francisco dos Santos, o Garrincha famoso, agora apenas um Mané, havia voltado às manchetes no começo de agosto. Internado às pressas num hospital carioca, falavam que ele estava muito mal, na maior miséria, maluco, à beira da morte, mas ninguém explicava direito o que aconteceu. E  depois não se falou mais nele. Sempre foi assim na vida desse menino de uns 45 anos (nem sobre a sua idade entra-se em um acordo), com nome de passarinho vira-lata (Garrincha, ele mesmo explica, é passarinho vadio até para cantar) e um montão de filhos (contando nos dedos e puxando pela memória, lembra de pelo menos doze). As fotografias publicadas pelos jornais quando ele foi internado eram assustadoras, o rosto inchado, disforme, coisa daqueles retratos de Greta Garbo depois de velha. Foi só uma disfunção intestinal, diziam umas notícias, outras falavam em alcoolismo crônico e havia mesmo quem jurasse que a grave doença de Garrincha era a saudade.

Saudade do quê, de quem? Saudade dele mesmo, do Garrincha que brincava com a bola como Chaplin com o cinema e por onde passava com suas pernas tortas se divertia, divertindo os outros. “Seu problema é imaturidade emocional” – diagnosticou o médico Carlo Henrique Melo, que cuidou do nosso Carlitos no quarto 209 da Casa da Saúde Ênio Serra. “Enquanto jogava, mostrava no desempenho da profissão um raciocínio rápido. Quando parou, entrou numa fase de depressão e regrediu emocionalmente”. Garrincha estava com hipertensão arterial, encefalopatia hipertensiva e perda de consciência quando foi levado ao hospital por sua atual companheira, Vanderléia (viúva do ponta-direita Jorginho Carvoeiro, que morreu de leucemia), numa noite de sábado. Ela o encontrara num bar em Bangu, onde mora hoje com os pais de Vanderléia, com um jeito muito esquisito, calado e arredio, justo ele que não trocava nada por uma boa brincadeira. Ainda no hospital, ainda drogado, ele só chamava por Nílton Santos, seu maior amigo, compadre e confidente. Mas não o reconheceu quando Nílton foi visita-lo.

Foi sem muitas esperanças de falar com ele – “O Mané não está dizendo coisa com coisa”, me desanimaram no Rio – que fui encontra-lo há dez dias na velha colônia de férias do Ministério da Fazenda em Paulo de Frontin, pequena cidade da região serrana, a 80 quilômetros do Rio. Além do mais, dizia-se, haviam montado um verdadeiro cordão sanitário em torno de Garrincha com psiquiatras, neurologistas, assistentes sociais, psicólogos e o diabo para apressar a sua recuperação.

O velho casarão no topo da serra parecia abandonado e foi com muito custo que encontrei alguém para perguntar pelo hóspede ilustre – e único, naquela quarta-feira fria e chuvosa de inverno. Eram quatro horas da tarde e Garrincha estava no quarto assistindo a desenhos animados na televisão com sua filha Márcia (19 anos, a única das suas filhas que mora com ele; nascida da união dele com dona Iraci, colega de fábrica em Pau Grande, para a casa de quem sempre voltou quando brigava com seus amores no Rio).

De calção, camiseta e chinelos, andando lentamente e com o corpo mais curvado que de costume, fios brancos invadindo o cabelo e a barba, tinha tudo de um Garrincha aposentado, mas não de um Garrincha doente à beira da morte. Cumprimentou-me com a alegria de um velho amigo – e eu que nunca o havia visto na vida – e foi logo falando do passarinho que pegou, um tranca-ferro bonito. O passarinho, ficaria sabendo depois, não foi ele quem pegou, pertence a um empregado da colônia. Mas Garrincha tinha razão, ou alguém duvida que ele iria ficar com o passarinho? No seu mundo, não há, nunca houve, uma separação nítida entre realidade e fantasia.

Antes que lhe fizesse qualquer pergunta, a caminho do imenso salão de refeições da colônia, onde passamos sentados o resto da tarde recolhendo fragmentos de sua vida, Garrincha foi logo dizendo: “Agora, não tenho mais nada, gente boa. Mas passei um susto danado...Foi aquela maldita pimenta...Eu estava pensando que era herói, comendo uma danada de uma pimenta...Não sou herói mais não...”.

Faz uns quatro meses que as coisas começaram a piorar para o seu lado, desde que Elza Soares, de quem se separou há uns dois anos, não o deixou mais ver o seu filho Manoel Garrincha dos Santos, de três (o primeiro filho homem, depois de tanta mulher, que ele ficou nascer) e pela primeira vez na vida Mané virou “João” e entrou em desespero, passou a beber conhaque de manhã, o dia todo, a qualquer hora. Bem, Elza alega nas conversas com amigos que se separou de Garrincha porque ele já estava bebendo demais “e eu não quero ver o Mané morto na minha cama”. Segundo o Garrincha, Elza o traiu. Seja como for, o homem lembrado como tudo começou não tem mais nada de “Garrincha, a alegria do povo”. É um homem triste, mas que não deixa de rir da própria desgraça. Só fica feliz mesmo quando lembra do passado.

Dá uma longa espiada em volta, acende um cigarro. “Sabe, se eu tivesse que ficar um ano todo aqui não teria problema. Eu vivo bem em qualquer lugar. Jogador de futebol não tem pátria, um dia está aqui, outro dia na Arábia Saudita, na Arábia maldita, qualquer lugar...” E dá risada. Só que agora ele não é mais jogador de futebol, o riso fica parado no meio do caminho, mas ele não desiste. Lembra logo o convite que recebeu do governo de Honduras para passar 15 dias lá “treinando meninos”.

“Não fui porque me ofereceram muito pouco, 2.500 dólares. Ainda se fosse uns cinco mil dólares, já daria uns 20 mil cruzeiros, né? Aí eu iria. Nunca fui doido por dinheiro, mas agora já ligo um pouquinho”. Se não for para ganhar muito dinheiro diz que prefere treinar os meninos da LBA. “Levo esse trabalho muito a sério. Treinar criança de família pobre é bom, porque não é para ganhar jogo, só para tirar as crianças dos vícios das ruas”. Ao lado de outros ex-jogadores, como Vavá, Jair da Rosa Pinto, Índio, Garrincha é um professor ambulante que vai treinar meninos em Caxias, Nilópolis, São João do Meriti, Piabetá.

“Oito desses meninos hoje são profissionais. Está frio, né? Espera um pouco que vou tirar meu passarinho lá de fora”.

Mais um café, outro cigarro, as lembranças de Garrincha agora param no “jogo da gratidão”, em 73. “Até o Pelé jogou, o Maracanã estava cheio. Mas teve muito roubo. Só me deram um milhão e trezentos, já viu uma coisa dessas? O Maracanã cheio...Aí a Elza cismou de comprar uma churrascaria, aquela lá perto do campo do América, o Bigode do Meu Tio. Mas se eu não entendo nada de churrascaria, nem ela, roubaram a gente, né? Em três meses, deu 300 mil de prejuízo. Mulher quando cisma com uma coisa, sai de perto...Vem com uma conversa mansa, uma conversa boa...” Garrincha não conta, mas com o dinheiro do jogo cismou de comprar também uma Mercedes e uma casa na Barra da Tijuca. Exatamente dez anos ante desse jogo beneficente, ele estava no auge da carreira. Voltara do Chile como o grande herói do bicampeonato mundial. Chovia convites e o Botafogo jogava quase todo dia, batendo em todo mundo. Tinha acabado de dar 3 a 0 no Fluminense, três gols de Garrincha, quando num amistoso na Bahia, um certo lateral esquerdo de nome Pesão caiu em cima da sua perna direita, afetando o joelho. Levado por um amigo para o Hospital dos Acidentados, no Rio, foi-lhe recomendado pelo médico Mário Jorge Carvalho um tratamento sério, três meses de absoluto repouso. Mas o Botafogo tinha uma excursão marcada para a Itália e se Garrincha não fosse sua cota seria cortada pela metade. E lá foi Garrincha com o joelho inchado – “tiravam o derrame com uma injeção e depois faziam uma infiltração, eu sei que fiz seis jogos”. O suficiente para o Juventus comprar seu passe por 700 mil dólares. “Cheguei a posar com a camisa do Juventus e tudo, ia ganhar uma nota, mas aí o presidente do Botafogo, o Paulo Azeredo, pediu um milhão de dólares e não deu certo o negócio”.

Garrincha renderia um bom dinheiro para o Botafogo, que o vendeu já arrebentado para o Corinthians em 1966. Depois da Copa da Inglaterra, foi contratado pelo Flamengo. O técnico Tim garantia que ainda recuperaria Garrincha, até que encontraram uma garrafa de pinga debaixo da sua cama na concentração. Acabou indo para a Itália. Ainda esperava fazer um bom contrato. Mas o único que conseguiu foi o de relações públicas do Instituto Brasileiro de Café. “Até que eu não me queixava. Mas a Elza cismou de vir embora para o Brasil e começou a desgraçar. Entrou um tal de Camilo no IBC e me mandaram embora de lá. Disseram que não queriam nada de futebol no IBC, mas eu não estava lá como jogador...Era relações públicas...Eu gostava lá da Itália. Quer dizer, tinha o inverno, mas você precisava ver que roupas bonitas eu usava lá no inverno. Brasileiro era o que não faltava lá em casa. E todo mundo levava uma cachacinha...Mas eu gostava mais de conhaque, por causa do frio. Eu gostava porque na rua os caras não entendiam nada do que eu falava. Entrava num bar e falava pro cara: o arrombado, me dá uma caninha aí. E o cara lá, naquela: Que parla?, que parla? Aí eu falava: Que parla nada, dá uma coca-cola mesmo...

Na volta ao Brasil, Garrincha ainda jogaria no Olaria, na Portuguesa carioca, andou por vários cantos, mas não tinha mais jeito e ele não se conformava, de ter deixar o futebol. Por isso, desde aquele seu jogo de despedida em 73, voltou mais ao Maracanã. “O futebol hoje está muito diferente. Muito toque de bola, demora para chegar no gol. Nosso negócio sempre foi contra-ataque, jogadas rápidas, os gringos ficavam loucos com isso. Parece que escreveram para eles: você pega a bola, faz assim, faz assado e se não dá certo eles ficam perdidos. Desse pessoal que está aí só gosto do Júlio César, do Flamengo, que vai lá na linha de fundo que nem eu”.

Além das lembranças, ele não cuidou nada nesses tempos em que ia à linha de fundo e centrava, meio gol feito. Sua espingarda ele deu de presente a um amigo quando saiu de Pau Grande e foi morar no Rio, em 63. (“Quando a gente vai para a cidade desacostuma tudo, não gosto mais de matar, não, não tenho coragem, só pego passarinho no alçapão”). E o roupão da Copa de 62 foi-se embora. Estava fazendo frio em Pau Grande, Garrincha estava com o roupão, veio um amigo reclamar que nunca ganhava nada dele. E Garrincha ficou só de sunga. “Só tenho uns troféus, mas também estou dando. As pessoas guardam para mim, mostram para as visitas e assim todo mundo lembra do Garrincha. Que adianta ficar nos caixotes lá em casa, não tenho onde por?...”.

De tantas vezes que mudou de casa nos últimos tempos ele nem tem ânimo de tirar os troféus das caixas. “Olha, se eu não mudei de casa umas 17 vezes com a Elza, foi pouco. A mulher parecia cigana. Ás vezes eu até saia para a rua, só pegava o endereço novo e falava: de noite apareço lá”. Sua última parada é a casa dos pais de Vanderléia, no Rio da Prata, em Bangu, onde mora há quase dois anos. “Mas o velho está querendo a casa de volta, porque quando chove molha dentro...”. Ao se referir às suas famílias, ele fala “o pessoal de Bangu, o pessoal de Pau Grande, o pessoal do Rio”. No dia dos pais foi pessoal de todo lado visita-lo na colônia de férias, tanta gente que Garrincha teve de almoçar duas vezes. Só faltava encontrar o compadre Nílton Santos. “O cumpadre dizia sempre que a maior felicidade dele foi jogar sempre no meu time, se não ele tava liquidado...”.

Vieram avisar que estava na hora de jantar. Fazia frio em Paulo de Frontin e nada de se conseguir localizar algum médico que desse alta para Garrincha. “Eu quero ir embora daqui, já estou bom. Me telefonaram hoje de São Paulo convidando para ser técnico do Milionários. Mas logo eu? Tem tanta gente, o Dudu, o Djalma Santos, o Bellini, eu vou falar o quê para eles, como eles devem jogar? Eu mesmo falar comigo mesmo como devo jogar, já viu uma coisa dessas? Eu quero é jogar. Semana que vem a gente se vê em São Paulo. Toma cuidado aí com a estradinha, de noite é muito perigoso”. De noite contei essas histórias para o psiquiatra Eros Sucena Martins Teixeira, um dos fundadores do “Grupo de Psico-Síntese”. Que sintetizou: “Garrincha é um anjo”.

 

Publicado originalmente no Jornal da República em 27 de agosto de 1979, edição 1