sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Grandes matérias esportivas do Jornal da República: “O futebol em cor e ao vivo” (16/10/1979), Jornal da República

SHOW DE RÁDIO

O futebol em cor e ao vivo


Tem torcedor que está até dormindo durante os jogos do campeonato paulista mas pede para acordar quando começa o “Show de Rádio” que a Jovem Pan criou a nove anos para alegrar o futebol

TONICO DUARTE

Ritmo frenético, rugas de preocupação na testa. Quem o vê na máquina de escrever vai logo imaginando uma imensa tragédia: terremoto no Rio de Janeiro, sequestro da rainha da Inglaterra, indicação do coronel Erasmo para o Ministério da Justiça. Mas não é nada disso. Estevam Bourrol Sangirardi leva muito a sério a produção de uma das coisas mais engraçadas do rádio brasileiro. É de sua cabeça que brota o Show de Rádio, com que a Jovem Pan consegue alegrar o mais decepcionado dos torcedores.

A cabeça de Sangirardi é um eclético condomínio. Lá coabitam personagens da mais variada procedência: Didu Morumbi, o bandido Zé Trombada, o macumbeiro Joca, o bêbado Lança-chamas, entre outros. E apesar de tanta seriedade (Sangirardi veste-se com apuro, tem maneiras refinadas), basta que ele abra a boca para que todos em volta morram de rir. É capaz de tiradas como essa: “...aí o Charles Miller virou-se para o Mário Vianna e disse – Marinho este jogo ainda vai pegar...”.

Ele é o primeiro da equipe de oito pessoas a chegar. No topo de um edifício da avenida Paulista, a Pan parece uma aeronave intergaláctica: tubulações de alumínio aparecendo, parafernália sonora, um mundo de potenciômetros e medidores de frequência. Logo em seguida, chegam Alaor Coutinho e Sérgio Leite, que fazem aquelas deliciosas paródias sobre os times de futebol. Pergunto ao Sanja há quanto tempo ele trabalha em rádio, mas quem responde é o Sérgio: “Você já ouviu falar em Guiulhermo Marconi? Pois é, ele e o Sanja começaram juntos...”.

Na verdade, Sanja não é tão velho assim – deve ter uns 50 anos – e o Show de Rádio existe há 9 anos. Ele surgiu na Copa de 70, pela necessidade de se fazer algo diferente, que desse brilho à monotonia daquele conhecido círculo vicioso transmissão-comentário-reportagem. Os personagens surgiram nessa época. Didu Morumbi foi inspirado em Didu da Silva Campos, a parte 10 do “casal 20” de Ibrahim Sued (Thereza são outros 10); Beicinho e Zé Trombada nasceram a partir de dois tipos que Sangirardi observou num botequim perto do Parque São Jorge; o comendador Fumagalli é um daqueles comendadores que pululam o Parque Antártica, com título adquirido na feira; Joca é o típico macumbeiro corintiano. E assim por diante.

A rádio Camanducaia, no entanto, surgiu por acidente. Certo dia, gravando de brincadeira, Odair Batista empostou a voz e lascou de lá: “Rádio Camanducaia, falando para o Brasil e sussurrando para o mundo”. Pegou. Depois surgiu a Rede Ponta de TV – “a única transmissora de tevê em áudio. Nós fornecemos o som e a imagem fica por conta da sua imaginação inteligente e fertilizante” – numa evidente gozação com a Globo.

“Mas nós somos imparciais. Gozamos até a nossa emissora. Veja, por exemplo, a Rádio Jovem Jegue”.

A Rádio Jovem Jegue – “um coice no éter, um zurro no comunicamento”- é uma gozação com a própria Pan. Ela possui “um quilowatt de potência” e tem personagens como Tarciso Varize, o homem do templo e o locutor Zé Mistério, a versão nordestina de José Silvério, chefe de esportes da equipe da Pan. Sanja, entretanto, ainda não está satisfeito. Sonha em partir para um programa igual, só que de política: “Mas isso só depois de configurada a abertura. Eu não vou fazer um troço que nem o Planeta dos Homens, que acaba enaltecendo os políticos. O negócio vai ser gozado, mas de porrada”.

Ainda falta uma hora para o programa começar, e protegidos por um biombo, Alaor Coutinho e Sérgio Leite vão fazendo paródias. A do Corinthians tem por base o partido-alto “Perdoa” de Paulinho da Viola, a quem Sérgio imita com perfeição. Certa vez, Sérgio imitou Chico Buarque, numa paródia sobre a Seleção, e alguns jornais chegaram a publicar que o compositor era o mais novo contratado do Show de Rádio. Alaor se queixa:

“Tou frio hoje bicho”.

Ao lado, Sangirardi tem um ataque de riso. Acabou de bolar um novo quadro: toca o telefone e uma voz de mulher (Alaor) igualzinho aquela do CVV atende: “CBD, boa noite”. Do outro lado da linha: “Preciso de ajuda. Sou jogador de futebol e estou desesperado. Jogo terça, quarta, quinta, sexta, sábado, domingo. Não, segunda não!!”. Na sequência, um locutor anuncia que Nabi Abi Chedid está pleiteando a inclusão de mais um dia da semana.

Dentro do estúdio, técnico e locutores morrem de rir, quase como amadores. Sanja, Alaor, Sérgio, Escova e Odair acotovelam-se. Agora o imitado é Walter Abrahão, que vai para o ar com o nome de Walter Cobrão – “tá gordo; beservem, senhores”. E anuncia os novos e inéditos filmes da TV Jupi: “Bonanza, Nacional Kid, aquele que avôa, Minha amiga Flika...”.

O relógio eletrônico está marcando 20 horas em ponto, e da equipe só sobrou Sangirardi. Ele faz um sinal com o polegar para o técnico, código que significa que vai terminar o Show de Rádio. Deixa o estúdio e, com a fisionomia séria, grita:

“Arquibaaaald, Arquibaaaald...”.

Não era mais o Sanja. Era o Didu Morumbi.

 

A turma que vive na cuca do Sanja

 

Lança-chamas e o amor pela Vila

Lança-chamas ainda vive em 1963. Até hoje ele comemora (com quatro garrafas de cachaça por dia) a conquista do bicampeonato mundial pelo Santos. Para aguentar este homérico porre, só mesmo o seu fiel amigo Zé das Docas, que, com a musculatura possante de estivador, costuma servir de bengala ao Lança. De madrugada, ambos podem ser vistos caminhando trôpegos pela bacia do Mercado – Zé levando o companheiro para ao albergue noturno. Quando Pelé deixou o Santos, em 74, Zé foi um dos guarda-costas do Rei. Naquele dia, ele arrumou uma camisa 10 para o Lança, que curtia a dor-de-cotovelo de despedida em mais uma bebedeira. Olhando de perto, a gente percebe que a camisa já foi branca.

 

Morumbi em petit comitê

Didu Morumbi acordou com o tilintar do telefone lilás. Do outro lado da linha, seu amigo Giscard (d´Estaing) convidavao-o para um petit comitê no Eliseu. Oh, dúvida cruel: no mesmo horário, ele teria um jantar de negócios com Henry (Ford III), em Nova Iorque. Era um problema sério. Colocou o robe de seda chinesa e perambulou pelo tríplex de cobertura. Na biblioteca cinza-ratinho, o mordomo Archibald já havia arrumado o braeakfast – salmão e suco de cenoura. Dois eram os motivos para dor de cabeça: o pilequinho dc “Veuve Clicquot” da noite anterior (acompanhado de Zózimo, Maitê d´Orey e seu xará Souza Campos), e mais uma derrota do São Paulo. Disgusting.

 

Joca nos marafos da vida

Joca deu um pontapé no despacho, fazendo voar marafo, velas, charutos e desmanchando o ponto riscado no chão com a pemba. Estava furioso: o Curingão empatara com o São Bento. Nesse instante, uma voz retumbou dentro do barraca: “que qui é isso, tá me estranhando?” Era Jojó (São Jorge), prevenindo que não atuaria outro desrespeito. Coitado do Joca, este equilibrista da vida. Sofre com o Curingão, aguenta, o bode Balthazar que vive dizendo “mééé, assim não da pééé” e mora com a Nega que, por sinal, é muda. Mas teve um dia em que a Nega falou. Foi quando o Corinthians conquistou o título paulista, há dois anos. Naquele dia, São Jorge apeou do cavalo e operou-se o milagre.

 

Fumagalli e o Palestra

O comendador Fumagalli alisou a pança. Havia acabado de devorar um pratarrão de fettuccine ai pesto, preparado e servido por um velho amigo. Acariciou a cabeça de Waldemar Fiúme, o cachorro que fala, e liquidou o resto de chianti. A noninha surgiu com uma garrafa de anisete, tudo para comemorar a liderança isolada do Palestra. “Ah, o Palestra” – pensou o comendador – “só da satisfaçon pra gente”. Do armário, a noninha trouxe o velho bandolim, uma herança da família Fumagalli, onde começou a dedilhar uma cançoneta napolitana. A sala se encheu com a voz possante do comendador, que aproveitou a ocasião para conclamar os presentes a outro brinde. Ao Palestra, naturalmente.

 

Publicado originalmente no Jornal da República em 16 de outubro de 1979, edição 44

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