quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Grandes matérias esportivas do Jornal da República: “Sai Ademir, fica em campo a mediocridade” (3/10/1979)

Sai Ademir, fica em campo a mediocridade


 

Ele se deu prazo até dezembro, para voltar. Terá 38 anos, o que complica. O consolo pode ser uma despedida em janeiro, com Clodoaldo jogando seu adeus pelo Santos. Sem o “Divino”, o futebol fica mais pobre

                                                                   

TONICO DUARTE

 

Ademir impõe com

seu jogo o ritmo do

chumbo (e o peso),

da lesma,

da câmara lenta,

do homem

dentro do pesadelo.”

Ademir da Guia de João Cabral de Melo Neto

 

Perdão, velho Domingos: não cheguei a vê-lo jogar, mas garanto que seu filho foi melhor. Mil desculpas aos puristas, idiotas da objetividade: farei aqui uma declaração de amor ao gênio de um diamante verdadeiro. Chama-lo de “Divino”, simplesmente de “Divino”, é criar limites maniqueístas para o seu talento infernal. Também é pouco defini-lo como “nome, sobrenome e futebol de craque”, como fez Armando Nogueira. O seu brilho extrapolou e/ou sublimou todos os rótulos.

Se tivesse nascido músico seria Stravinsky; se tivesse nascido pintor, seria Picasso. Nasceu jogador de bola – Ademir da Guia.

Quem viu, viu; quem não viu, não verá de novo. Com a mesma sutil descrição com que assombrou todo mundo nestes últimos vinte anos, Ademir está deixando o futebol. E deixa mais pobre um esporte que não terá Ademir da Guia. Depois de dois anos parado, ele deu um prazo até dezembro. Até lá, já com 38 anos de idade, tentará voltar. Mas já considera esta hipótese como improvável.

Fica faltando apenas o mea máxima culpa daqueles medíocres (bom dia, Zagalo), que passaram anos a taxá-lo de “jogador lento”. Mas que esses brilharecos saibam que, do alto da sua genialidade, o grande Ademir da Guia não os tem em mau conceito. Ainda que haja uma unanimidade nacional em torno das injustiças por ele sofridas, Ademir trata do assunto com a sua conhecida humildade olímpica: “Eu não reclamaria por um lugar nem no time do Palmeiras”.

E não me arrependo de não ter reclamado, pois é o meu jeito de ser. Além do mais, havia Gérson, Dirceu Lopes, Rivellino para a minha posição. Talvez eles fossem mesmo melhores que eu”.

Quem ficava louco com isso era o pai, o igualmente legendário Domingos da Guia. Brigava com o filho, dizia que ele tinha de exigir os seus direitos, dava murros de ódio na mesa. Um dia, foi até o vestiário do Botafogo para tomar satisfações com Zagalo. E Ademir, nada. Limitava-se a flutuar a sua talentosa dignidade por gramados paulistas, sem se importas com os esquecimentos. Era o somatório do prazer plástico e estético num festival de belo absoluto. Hoje, olhando para trás, ele sabe que escreveu uma das mais maravilhosas páginas do futebol brasileiro. Mas sua modéstia é maior do que tudo: “Acho que eu fui um bom jogador, mas sempre procurei manter a tranquilidade. No futebol, um dia a gente é ídolo, noutro, cai em desgraça. Por isso mesmo tem que ser humilde".

Esta humildade, não raro, chega ao paroxismo. Ainda hoje, Ademir fica ruborizado, se desconcerta todo, ao ouvir um rasgado elogio. Marcamos a entrevista e nos desencontramos. Pois não é que ele ficou esperando no carro, com ilimitada paciência. Ao me ver, no estacionamento do Parque Antártica, tocou a buzina e lascou de lá, como um iniciante cabeça-de-bagre que estivesse precisando de promoção: “Pois é, rapaz, estava te esperando. Pensei que você não vinha mais. As opiniões sobre o papel que Ademir da Guia representou no futebol brasileiro são convergentes. Ao escutar seu nome, o folclórico Filpo Nuñez levanta-se, coloca a mão sobre o peito, num respeito sincero. Os olhos de Oswaldo Brandão brilham, como quem mal pudesse controlar as emoções. Para Sócrates, ele foi “um gênio injustiçado”. O velho Oscar Paulilo, funcionário do Palmeiras há mais de cinquenta anos, é capaz de desviar um rosário de histórias, desde o dia 23 de agosto de 61, quando Ademir cruzou os portões do Parque Antártica pela primeira vez.

Ritmo líquido se infiltrando no adversário, grosso, de dentro, impondo-lhe o que ele deseja, mandando nele, apodrecendo-o”.

Ele é surpreendente. Certa vez, em Guadalajara, descansava à beira da piscina do hotel quando os companheiros resolveram jogá-lo dentro d´água. Ademir caiu, foi e voltou submerso, com uma elegância de fazer inveja a Jesse Vassalo. Só então, os pasmados jogadores do Palmeiras ficaram sabendo que, antes do futebol, ele havia sido campeão juvenil de natação pelo Bangu.

Outro episódio serve bem para mostrar a personalidade desse olimpiano. Em 65, numa de suas raras convocações para a Seleção, Ademir chegou à União Soviética. No hotel, conheceu um admirador nativo com quem passava horas e horas conversando. Até aí tudo bem, só que Ademir não sabia falar “olá” em russo, nem o russinho sabia pronunciar uma vírgula de português.

Por seu passe, o Palmeiras pagou quatro cruzeiros. Ele ainda era juvenil, e quem o trouxe foi o boss do Palmeiras, Delphino Facchina. Na época, o cartola encontrou-se no aeroporto com el brujo Fleitas Solich, que treinava o Flamengo. Ao saber da irrisória quantia, Solich não se conteve: “Vocês não pagaram nem uma perna dele”.

Quase vinte anos depois, Ademir está triste. É a mágoa de ter de abandonar o futebol como se nada tivesse acontecido. Gostaria de uma festa, não por vaidade, mas para guardar o bom momento na lembrança. Os dois últimos anos foram de angústia, primeiro pela contusão na planta do pé, depois pelo problema de sinusite e carne esponjosa no nariz: “Na minha idade, a recuperação é mais difícil. Eu lamento esse final de carreira, mas parece que vão fazer uma festa. Será no início do ano, num jogo entre Santos e Palmeiras, quando eu e o Clodoaldo nos despedirmos dos nossos dois clubes”.

É bem verdade que a despedida não trará problemas financeiros para Ademir. Sua situação econômica é tão sólida quanto a vida familiar (esposa, a chilena Ximena e um casal de filhos). Seguiu o conselho do pai, aplicou todo o dinheiro ganho. Mora numa mansão no estilo normando nos altos do Pacaembu, muito perto de um dos seus sacrários. É o morador mais famoso da rua: dá bom-dia ao padeiro, assina autógrafos na camisa do rapaz da Light, conversa pacientemente com os vizinhos. O reduto é de são-paulinos, ‘mas todos acabaram torcedores daquele mulato sarará, olhos de um azul muito claro, fino, solícito, - o propósito do bom vizinho.

Ademir não é de falar muito. Aqueles que o conhecem ficaram surpresos com a sua performance num dos últimos Fantástico. Ele fez algumas embaixadas, riu, contou casos da maneira mais descontraída possível. Foi o milagre. Nele, a bola era uma extensão do corpo. Mandava no objeto esférico como se houvesse algo de feitiço, numa relação mágica entre o animado e o inanimado. E podia guardar todo silêncio que quisesse: brilho, talento, genialidade, são também uma forma de linguagem.

Ritmo morno, de andar na areia, de água doente de alagados, entorpecendo e então atando o mais irrequieto adversário”.

 

Publicado originalmente no Jornal da República de 3 de outubro de 1979, edição 33

 

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