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sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Grandes matérias esportivas do Jornal da República: “A Portuguesa tropeçou em Sócrates” (10/9/1979)

CORINTHIANS 2, PORTUGUESA 0

 

A Portuguesa tropeçou em Sócrates

Ele deu passe para os dois gols e quebrou a invencibilidade da Portuguesa


TONICO DUARTE

 

O estádio do Pacaembu faz com que qualquer jogo de futebol tenha o sabor dos velhos tempos. A frase pode encerrar uma semelhança com propagandas de cigarro ou licor, mas é cheia de verdade. Talvez pela sua arquitetura, concebida em pleno Estado Novo, que faz lembrar um circo romano. Pena que tanto aconchego tenha sido estragado por Paulo Maluf que, na sua época de prefeito de São Paulo, demoliu a concha acústica para construir o tobogã, um monstrengo de concreto que não tem nada a ver com o estilo do resto do conjunto.

Foi lá que, ontem, como nos velhos tempos, o Corinthians venceu a Portuguesa por 2 a 0, quebrando uma série invicta de 13 jogos. E a sua torcida teve mais uma vez o prazer de assistir o requintado futebol de Sócrates. É neste estádio que encontro o velho comentarista Mauro Pinheiro, da rádio Bandeirantes. Com aquele seu aplomb Mauro lembra o passado e, coincidentemente, o Corinthians e o Pacaembu sempre tiveram uma história em comum: “Aqui existe um aconchego, como se o estádio criasse vida para receber a torcida com carinho”.

Talvez por isso, no Pacaembu, a torcida do Corinthians se sinta em casa. E se espalha muito à vontade: os “Gaviões”, a “Camisa 12”, até a pequena e nova “Evolução Corintiana”, muito provavelmente uma torcida darwinista. Gritam palavrões, choram, enchem a cara e brigam com a maior naturalidade. Daniel Criosto, por exemplo, quis mostrar para a namorada Elzinha que era machão. Havia alguém sentado em seu lugar, nas numeradas cobertas, e ele não teve dúvidas – deu um tremendo tabefe na cara do atrevido. Elzinha, em prantos: “Deixa pra lá Daniel”...

O jogo começa e a Portuguesa está melhor. Mas nem por isso a torcida deixa de festejar. Afinal, o serviço de alto-falantes informa que, em Rio Preto, o América vai ganhando do Palmeiras. E o Palmeiras é o arqui-inimigo de toda aquela gente. Surgem os primeiros gritos de “porco, porco”. A pequena torcida da Portuguesa protesta e a ira dos corintianos se volta contra ela: “Burro, burro”.... - tanta vaia que a Portuguesa nem parece um time da cidade.

Rita Lee se diverte com tudo isso. Ela assistiu ao jogo na cabine da Globo, convidada por Osmar Santos. E Rita comenta que vê como se estivesse fazendo um dos seus deliciosos rocks. Talvez, um dia, ela realmente venha fazer uma canção para Sócrates: “É impressionante o nível da transação da cabeça do Sócrates. Isto aqui é uma festa, e ele é a parte maravilhosa de tudo”.

Mas o Pacaembu, ao longo dos tempos, também tem uma tradição de ser um importante ponto de contato político. No salão de mármore onde agora é servido o cafezinho para jornalistas, cartolas, eternos bocas-livres e políticos, o deputado federal Caio Pompeu de Toledo arregimenta os seus eventuais futuros eleitores. Elegante, calças bem cortadas, Caio é sempre solícito e simpático, se bem que os inimigos políticos costumam partir para algumas ilações, como, por exemplo, dizer que tão cordata figura iniciou-se politicamente no CCC.

No segundo tempo, a torcida do Corinthians sossega: o time começa a render um pouco mais. Dentro de campo, o juiz José de Assis Aragão pensa, ao que me informam, no fim-de-semana prolongado que poderia estar passando e São Sebastião. Aragão havia alugado, junto com alguns amigos, uma casa na praia e pedira licença à Federação. O presidente Nabi Abi Chedid lhe teria prometido que, ontem, ele seria escalado para apitar em São José dos Campos, de onde depois, desceria para o litoral. Ilusão: Aragão apitou o principal jogo da rodada e foi obrigado a esquecer os seus sonhos de ganhar uma cor morena, quem sabe jogar um futebolzinho.

Enquanto isso, Sócrates vai demolindo a Portuguesa. Em duas jogadas pessoais, aos 13 e aos 39 minutos, ele deixou Palhinha e Romeu prontos para marcar os 2 a 0. E, não bastasse tudo isso, aos 16 minutos levou uma solada de Bolívar, aturou-se ao chão, reclamou do juiz, fez com que a torcida iniciasse o inevitável “bicha, bicha”, pedindo pênalti. Terminada a partida, nos vestiários, ele ri e faz confissões com a sua genial simplicidade:

“Pênalti nada, só! Eu me joguei no chão, bem que temei cavar, mas o Aragão não entrou”.

No outro vestiário, João Avelino pode ter perdido o jogo, mas não perdeu a malandragem. Ele consola um grupo de chorosos lusitanos – “ai, Jesus, que lástima”. João repete o seu filósofo de cabeceira, Neném Prancha:

“Lástima nada, vamos para outro. Futebol é como sorveteria, tem pra todo quanto é gosto”.

Lá fora já é noite, e as menininhas de sempre esperam ansiosas pelos seus olimpianos. A torcida vai deixando o velho estádio e mais uma vez, “Corintia” parece ser a voz que vem da cidade.

 

O JOGO FOI ASSIM:

Corinthians 2, Portuguesa 0

Corinthians

Jairo; Zé Maria, Amaral, Djalma e Vladimir; Caçapava, Basílio e Palhinha (Biro-Biro); Vaguinho, Sócrates e Wilsinho (Romeu).

Portuguesa

Everton; Edson, Daniel Gonzalez, Bolívar e Toninho Fraga; Luciano, Eudes e Enéas; Zair (Carrasco), Rui Lima e Jorge Luís.

Juiz: José de Assis Aragão

Renda: Cr$ 2.390.760,00

Público pagante: 51.143 pessoas

Gols: Palhinha aos 13´e Romeu aos 39´do segundo tempo.

Cartão amarelo: Enéas.

 


Publicado originalmente no Jornal da República em 10 de setembro de 1989, edição 13

 

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Grandes matérias esportivas do Jornal da República: “O Santos ainda pode ser bicampeão” (16/11/1979)

SANTOS 4, NOROESTE 0

O Santos ainda pode ser bicampeão

 


TONICO DUARTE

 

O Noroeste conseguiu transformar a comemoração dos noventa anos da República num autêntico Dia das Mães. Ao perder de 4 a 0 para o Santos, ontem no Parque Antártica, a equipe de Bauru foi tão maternal e compreensiva quanto aquela senhora que, dizem, padece num paraíso. E o agradecido Santos, que só não fez mais por pura preguiça, conservou suas chances de chegar à final. Mas é difícil, pois precisa vencer, agora, o Palmeiras e o Guarani.

Até que o Santos começou indeciso, com Pita, seu pior jogador, errando muitos passes. Em compensação, lá na esquerda, João Paulo fazia gato e sapato de Borges e de todos aqueles que se atrevessem a marca-lo. Foi assim que, logo aos 5 minutos, ele driblou na velocidade a Tobias e Jorge Fernandes, deu a Juari, recebeu de volta e fez 1 a 0.

Três minutos depois, aos 8´, foi a vez de Nilton Batata passar facilmente por Santos, cruzar para trás, e encontrar Juari colocando rente à trave direita de João Marcos: 2 a 0. A esse gol, o centroavante santista denominou “despedida de solteiro”. Hoje, ás 18 horas, Juari casa-se com Márcia, uma professora santista.

Estava tão fácil que o Noroeste só conseguiu chutar sua primeira bola no gol de Pais aos 26 minutos, num arremate torto de Wallace. Mas, aos 28´, em nova falha da defesa, o Santos chegaria ao seu terceiro gol: João Paulo lançou Juari, Ednaldo quis colocar ordem na casa e acabou tocando por cobertura, fazendo contra. Entretanto o juiz José Pereira da Silva deu esse gol como sendo de Juari.

O segundo tempo começou e o Santos continuou desperdiçando a mamata que o Noroeste lhe oferecida. O último gol do jogo aconteceu aos 21 minutos: Pita chutou, João Marcos rebateu e Rubens Feijão pulou de “peixinho” para fazer 4 a 0. Depois disso, o jogo passou à dar sono e, para quebrar a monotonia, a torcida pediu a entrada de Ailton Lira, no que foi prontamente atendida por Pepe. O próprio técnico, nos vestiários, confessaria a sua surpresa diante do futebol ridículo do Noroeste: “Foi realmente um jogo muito fácil para o Santos. Mas, por um lado, isto é bom, pois temos de guardar as nossas forças para estes dois jogos dificílimos que teremos pela frente”.

Ao lado de Pepe, quase sem ser notado, estava Dorval. O ex-ponta direita do Santos aparente bem menos que os seus atuais 44 anos de idade. Metido num elegante safári azul, Dorval cumprimentava Pepe e desejava-lhe boa sorte nos próximos jogos: “Eu vou precisar mesmo” – respondeu Pepe.

Súbito, ambos começaram a lembrar os velhos tempos e chegaram a mesma conclusão: “Hoje em dia, o futebol perdeu sua beleza”.

 

O JOGO FOI ASSIM

SANTOS: Pais; Nelson, Cassiá, Fernando e Gilberto; Gilberto Costa, Pita e Rubens Feijão (Ailton Lira); Nilton Batata, Juari e João Paulo

NOROESTE- João Marcos; Borges, Tobias, Jorge Fernandes e Santos; Ednaldo, Helinho e Mardoni (Salomão); Jorge Maravilha, Leia e Wallace.

Juiz – José Pereira da Silva

Renda – Cr$ 840.370,00

Público pagante – 14.541 pessoas

Gols- João Paulo, aos 5´, Juari aos 8´ e aos 28´do primeiro tempo. Rubens Feijão aos 2´do segundo tempo.

Cartões amarelos- Ednaldo e Wallace.

 


Publicado originalmente no Jornal da República em 16 de novembro de 1979, edição 70

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Grandes matérias esportivas do Jornal da República: “Uma vitória da torcida santista?” (1/10/1979)

PALMEIRAS 2, SANTOS 1

 

Uma vitória da torcida santista?

 



A derrota de ontem deve custar – para alívio geral – a cabeça do técnico Hílton Chaves

 

TONICO DUARTE

Cacau é dessas figuras que vivem de pequenos expedientes, um biscate aqui, outro ali – personagem ao vivo e em cores de João Antônio. Ontem ele acordou cedo, foi ao Anhangabaú vender umas quinquilharias, a fim de livrar um dinheiro para ver o seu Santos jogar. Tinha que arrumar o suficiente para o ônibus, ingresso para a geral e um gole de “51”, porque ninguém é de ferro. Cacau conseguiu, mas que decepção: o Santos perdeu de 2 a 1 para o Palmeiras e agora está muito mais remota a sua participação no terceiro turno, que realmente decidirá este monstrengo chamado Campeonato Paulista.

Quando o jogo terminou, Cacau já encontrara os culpados por mais um fracasso santista: Pais e o técnico Hílton Chaves. Ele reclamava do goleiro – “tomou um gol torto daqueles”, referindo-se ao “frango” no gol olímpico de Baroninho, ainda no primeiro tempo. Quanto ao técnico, pelo menos uma satisfação: Hílton deverá deixar o clube ainda hoje, demitido pelos dirigentes. E o pobre Cacau meteu-se numa briga com alguns palmeirenses, quase virando notícia do repórter policial Beija-Flor.

Antes do jogo começar, Beija-Flor andava de um lado para o outro do saguão do Morumbi. Quem o escuta pelo rádio, narrando com tanta violência, não imagina que ele seja baixinho. Pensamos logo de um Fleury com o microfone em punho, pronto a dar aquele conhecido prefixo: “Polícia chamandooooo!”.

Beija-Flor é ligeiramente estrábico, esconde os olhos atrás das lentes grossas. Usa bigodinho à lá “Vampiro de Curitiba” e o cabelo preto vaselinado para trás. Parece, na verdade, uma miniatura de Jânio Quadros.

Mas, no saguão do Morumbi, vai acontecendo o inusitado. Primeiro, a estranha chegada do presidente do Corinthians. Vicente Matheus, que não tinha nada o que fazer ali. Matheus, uma gargantilha de ouro com a efígie de São Jorge, puxa-me para um canto e, entre suas gargalhadas, lasca uma daquelas tiradas que fazem a delícia de seus críticos: “Ei, não vai dizer que sou palmeirense, hein?”.

Outro acontecimento insólito é a presença de uma parafernália cinematográfica, gritos de luzes “luzes, câmera, ação”. O cineasta Djalma Batista utilizou o saguão do Morumbi como cenário de seu primeiro longa-metragem, a estória do jogador de futebol Asa Branca, que deverá ser lançado em abril do ano que vem. O take que estava sendo filmado era sobre a estreia de Asa Branca num time grande. Asa não foi bem e o ambiente no clube imaginário está bastante conturbada: “Esta é uma estória do sonho brasileiro, daquele jogador do interior que vem arriscar a sorte num time grande. Já rodamos 20% do filme, com o financiamento da Embrafilme”, diz Djalma, parecendo deslumbrado com o ambiente.

O jogo está para começar. Dentro das novas normas do CND – quem atrasar paga multa -, os dois times estão em campo bem antes das 16 horas. Gilmar chama atenção por seu novo uniforme: calção preto brilhante, camisa azul vistosa, com recortes brancos na gola com duas faixas paralelas ao longo das mangas. O goleiro do Palmeiras trata de explicar tanta elegância: “Além da parte técnica, é preciso aprimorar o visual”.

Começa a partida, e o Santos parece ligeiramente melhor. Sua torcida já ensaia o conhecido coro para o adversário – “um, dois, três, quatro, cinco mil. Queremos que o Palmeiras vá pra...”, rimando com alguma coisa que não era varonil ou céu de anil. Mas é o Santos quem sofre o primeiro gol, aos 40 minutos do primeiro tempo: Baroninho cobra um escanteio pelo lado direito e – pasmam-se as duas torcidas – está feito o gol olímpico. É bem verdade que Pais colaborou, numa falha incrível.

Pais também colaboraria no segundo, aos 38 da fase final, saindo do gol atabalhoadamente, permitindo que Pedrinho concluísse com facilidade para a meta vazia. Na verdade, há muito que o goleiro sofrera um evidente descontrole emocional. Primeiro, ele tentou agredir Jorginho, depois foi tomar satisfações com o incipiente juiz João Leopoldo Ayeta.

O nervosismo parecia tomar conta de alguns jogadores do Santos, como Nílton Batata, que andou trocando pontapés com Baroninho e Pedrinho. O azar maior foi do lateral-esquerdo do Palmeiras, que revidou e acabou sendo expulso. Aos 40, num de seus raros momentos de lucidez, o Santos diminuiu através de Juari.

Do clássico – se é que se pode utilizar este qualificativo para o jogo – restou mais uma vez a prova de incompetência dos homens que dirigem o futebol paulista. Apenas 21.363 pessoas pagaram ingresso, porque ninguém aguenta mais tanto desvario. Ficou também a doce saudade daquele tempo em que o Palmeiras era o único time capaz de fazer frente aqueles onze gênios que formavam a maravilhosa equipe do Santos. De um lado havia Pelé, do outro Ademir da Guia. Hoje, quando vai a campo, a torcida já sabe que será insultada pelo joguinho de Nílton Batata, Baroninho e quejandos.

 

O JOGO FOI ASSIM

Palmeiras 2, Santos 1

Palmeiras – Gilmar; Rosemiro, Silva, Soter e Pedrinho; Pires, Jorge Mendonça (Mococa) e Zé Mário (Carlos Alberto); Jorginho, César e Baroninho.

Santos – País; Nélson, Cassiá, Fernando e Washington; Gilberto Costa, Rubens Feijão (Célio) e Toninho Vieira (Cardim); Nílton Batata, Juari e João Paulo.

Juiz: João Leopoldo Ayeta.

A renda foi ridícula: Cr$ 1.162.780,00. Apenas 21.363 pessoas pagaram ingresso, o que já é muito para o nível técnico do campeonato paulista.

Gols: Baroninho aos 40´do primeiro tempo. Pedrinho aos 38´e Juari aos 40´do segundo.

Cartões amarelos: Cassiá, Nílton Batata e Silva.

Cartão vermelho: Pedrinho.

 



Publicado originalmente no Jornal da República em 1º de outubro de 1979, edição 31  

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Grandes matérias esportivas do Jornal da República: “O coração luso bate de puro orgulho” (31/08/1979)

 INVENCIBILIDADE

O coração luso bate de puro orgulho

Mais uma rodada sem derrota. A Portuguesa renasceu em campo e na alma de algumas dezenas de Manueis e Joaquins

 


TONICO DUARTE

O Canindé é uma pequena fatia da zona norte da cidade, cheia de labirintos de ruas tortuosas, becos sem saída e poeira. Lá, os caminhões de fretes que seguem para todo país fazem entroncamento. O ar cheira a doce e pão fresco, aromas que vem das várias padarias e fábricas de doces, todas elas de portugueses. Eles se estabeleceram ali, a partir do começo do século, deixando a terrinha para fazer a América. E, nada mais natural, por aqueles lados acabou surgindo Associação Portuguesa de Desportos, conhecida na intimidade como “Lusa” ou “Burrinha”. A Portuguesa sempre quis assumir o status de time grande.

Bem, há pouco mais de um mês atrás ninguém era capaz de dar um centavo para ela. Era uma equipe a beira da indigência, apresentando um futebol combalido. Em campo, o amontoado de jogadores fazia lembrar o exército de Brancaleone. E, imaginem fez um longo jejum de vitórias, coisa de mais de quarenta jogos. Uma humilhação. Mas, a coisa mudou de repente. Há mais de um mês, exatamente onze jogos, a Portuguesa está invicta. Partiu para a façanha, fazendo com que os alegres patrícios levassem a mão ao coração...ai, Jesus!

Mineiramente. O responsável por tudo isso, dizem as boas e as más línguas, é João Avelino, 48 anos, mineiro. No caso, a mineirice significa mais uma virtude do que, propriamente um atributo geográfico. Ele tem um estilo, vamos dizer, caipiro-malandresco. De João, há histórias fantásticas: certa vez, treinando um time do Norte, mandou diminuir o gol onde ficaria o seu goleiro, ao mesmo tempo em que aumentava o adversário. Acredita em macumba e conhece, na palma da mão, todos os jogadores brasileiros, de norte a sul.

Na manhã de ontem fui falar com ele, tentar descobrir o segredo dessa Fênix-Portuguesa. João estava cansado da viagem de volta de Marília onde, na noite anterior, o time empatara sem gols. “Mas perdemos uma cacetada deles”. Baixinho, gordinho mas elegante, vai logo soltando uma das frases de efeito do seu repertório:

“O segredo é atacar em leque e defender em espinha de peixe”.

João me conta que, para fazer o time funcionar, teve um trabalho estafante. Buscou jogadores pelo país inteiro, uma cosmopolitice. E, dizem, acabou até rompendo com o “cumpade” Osvaldo Brandão, que abandonou a equipe por não acreditar na possibilidade de sucesso. O velho Brandão, todos sabem, nunca foi padeiro de fazer bom pão com farinha de qualidade inferior. João, ao contrário, está acostumado a montar times.

Migrantes. Primeiro foi preciso fazer uma devassa, mandar uns dez jogadores embora. Depois, foram chegando os outros, escolhidos à dedo por João e comprados com os parcos recursos do Departamento de Futebol profissional. Isto porque o presidente Osvaldo Teixeira Duarte, homem que passa da explosão para o choro compulsivo em segundos, tem a única preocupação de imortalizar-se através de um estádio faraônico, na boca do povo, o “Tamancão”.

A Portuguesa parece um autêntico escritório de migração. Chegaram jogadores de Minas, de Pernambuco, Sergipe, Rio de Janeiro até do Piauí, de onde vieram Cacá e Rui Lima. A timidez deste grupo, juntou-se a experiência dos veteranos Moisés e Luciano, além de ter surgido praticamente do nada, o artilheiro Caio. Mas, fundamentalmente, renasceu o futebol cheio de requinte de Enéas, atacante que, até bem pouco tempo, parecia não querer nada com nada. Um dos poucos jogadores deste país que utiliza bem palavras como “defasagem” ou “geopolítica”, Enéas está com sua eterna cara de sono:

“No momento atual, creio que não podemos nos deixar levar pela empolgação. O trabalho deve continuar de maneira tranquila porque, em paz, conseguiremos atingir os objetivos a que nos propusemos”.

Caravelas. Mas, junto com o futebol do time, renasceu o orgulho lusitano. No Canindé existem duas tribunas livres: o quiosque, dentro do clube e o bar do Abílio, fora. Ali são elogiados e esculhambados com igual desenvoltura os jogadores, o técnico, o presidente do clube, dona Pintassilgo, enfim, tudo. E também jogam sueca, coisa tão tipicamente portuguesa como o fado. O velho Bernardino Barrigana, homenzarrão que anda sempre de paletó, calças e chinelos, explica tão arraigado sentimento nativista: “Isto vem do tempo das caravelas, quando Cabral descobriu o Brasil e Colombo, a América Latina”.

Barigana é da Extremadura, Abílio, da Beira Alta, duas regiões distintas. Um torce para o Benfica, outro para o Porto e, invariavelmente, acabam discutindo. Mas comovem-se com programas como “A Grande Portuguesa”, na Rádio Jornal, onde o apresentador Wilson Brasil – na verdade, o descendente de árabes Wilson Reinak Miziara – faz longas dissertações sobre a terrinha. Coisa cheia de saudade. O ex-grumete artilheiro da Marinha Portuguesa e fadista ocasional Nicolau Marques Osório afirma que igual ao sangue lusitano só mesmo um bom vinho verde: “Os dois estão sempre a ferver”.

Apesar do “sangue a ferver”, e de sua sempre lembrada condição de ex-militar, Nicolau é um homem extremamente cordial. Viveu uns tempos em Lisboa, o que o acento alfacinha denúncia. Oferece a mim e ao fotógrafo João Bittar dois “papos-secos”, pãezinhos redondos que o fazem lembrar a capital da terra – “uma delícia, provem” mas diz que só canta os fados castiços depois de uma ou duas bagaceiras. Nicolau nos mostra, com muito orgulho, sua carteirinha de associado da Portuguesa – “esta equipe vai ser um espanto, oh pá”.

Com todo esse orgulho pelo time, digno das melhores tradições, ninguém mais liga para aquelas histórias folclóricas e humorísticas envolvendo portugueses. Como daquela motoniveladora que foi esquecida dentro do estádio, depois de concluído o primeiro anel da construção. Não havia por onde a geringonça pudesse sair e os patrícios fizeram longos conselhos de guerra: enterravam ou desmontavam o engenho para retirá-lo por partes? No fim, optaram pela segunda hipótese.

 

Publicado originalmente no Jornal da República em 31 de agosto de 1979, edição 5

terça-feira, 28 de setembro de 2021

Grandes matérias esportivas do Jornal da República: “Ontem o Juventus anarquizou mais um” (13/09/1979)

TRADIÇÃO

Ontem, o Juventus anarquizou mais um

Não é á toa que nasceu na Mooca, entre as chaminés, filho espiritual de Bakunin

 


TONICO DUARTE

 

O patrono do Juventus é um certo conde Rodolpho Crespi, nobre italiano de Turim, antigo proprietário de um cotonifício que existia na Mooca. Mas bem que poderia ser Proudhon, Bakunin ou Malatesta. Os seus 55 anos de vida são entremeados de passagens tipicamente anarquistas, como o fato de ter sido ele um dos últimos times do futebol paulista a ter admitido a estrutura profissional. É também o “Moleque Travesso”, sempre pronto a surpreender os times grandes com as suas estilingadas certeiras. E surgiu na Mooca, fundado pelos operários do cotonifício de tal conde, das indústrias Matarazzo, da São Paulo Alpargatas e da Companhia Antarctica Paulista – todos de origem italiana.

Já não é tão pequeno quanto possa parecer, mas continua – e vai continuar sempre – atrevido.

 

A casa é humilde, mas decente

 

Ontem, a estilingada deste mini Palmeiras acertou em cheio o América de Rio Preto. O Juventus venceu por 1 a 0, com um gol do veterano centroavante Bebeto, aos trinta minutos do segundo tempo. O jogo foi realizado no velho estádio Conde Rodolpho Crespi que, apesar da iminência social, é no mínimo acanhado com aquele seu gramado que faz lembrar o menor dos campos de várzea. Lá, a gente tem a impressão de que logo na entrada receberá três tapinhas nas costas: “Pode entrar, a casa é humilde mas decente”.

Hoje em dia, o Clube Atlético Juventus tem cerca de 130 mil associados, possui um dos grandes conjuntos poliesportivos da cidade e é considerado, por sua parte social, um dos maiores da América do Sul. Mas nem sempre foi assim. Corria o ano de 1924 e, entre os imigrantes operários da Mooca, certas doutrinas exóticas encontravam eco. A velha Mooca ainda está lá, com suas chaminés apontando para o céu, as ruas poeirentas daquele começo de Zona Leste, um trânsito infernal.

 

De um Crespi a um Zé da Farmácia

 

Para os moradores mais antigos, o espaço físico que recebeu o conceito abstrato do bairro é como se fosse uma grande casa. O Beppo conhece o Dino, que conhece o Giuseppe, que conhece o Salvatore, que conhece o Luigi. Todos se encontram em setembro, na festa de San Genaro, numa igreja da baixa Mooca. Bem, alguém aportuguesou o nome do santo para São Januário, mas o próprio Juventus se aportuguesou. Hoje em dia, o poder já não pertence a um Crespi, mas ao Egydio Pereira, aos Ferreira de Oliveira. O presidente é um Ferreira Pinto – José, Filho – também conhecido por Zé da Farmácia, homem poderoso do futebol e da política.

Entretanto, o Juventus continua sendo um vício, o time do bairro ou talvez até uma forma de se revoltar contra os times grandes, a estrutura oficial do futebol. Anarquismo?

“Não sei” – diz me o torcedor Sebastião de Andrade -, “acho que torcer para o Juventus é mais divertido do que qualquer outro. Além do mais eu não simpatizo com os grandes”.

 

Nome de turco

 

Perto, pertíssimo, estão os jogadores patinando na lama. O juiz Pedro Inácio Filho foi logo saudado com o apelido de “Boca de Litro”. Ataliba não está no time. Contam-me que, depois de ter sido um dos artilheiros do campeonato paulista do ano passado, ele ficou mascarado – “com nome de turco não podia dar boa coisa”, diz um torcedor e Brida saco-o do time. A Mooca também tem os seus gossips. E o Juventus a sua enciclopédia, um gentil-homem de 52 anos chamado Sérgio Agarelli.

Ele me conta que o clube surgiu com o nome de Extra São Paulo, no dia 200 de abril de 1924. Pouco depois, passaria para Cotonifício Rodolpho Crespi FC. Em 33, passou a integrar a Divisão Especial, mas os operários italianos se recusaram a aceitar, de imediato, o profissionalismo. Um ano depois, houve um racha no seio da família e surgiu o Fiorentino, que não vingou. O Juventus, com esse nome, existia desde 30.

Por volta de 40, o falecido jornalista Thomaz Mazzoni apelidou-o de “Moleque Travesso”: afinal, no conhecido “fortim” da Rua Javari, onde permanece até hoje, era muito difícil vencê-lo. Ao que parece, uma das tradicionais vítimas de suas estilingadas sempre foi o Corinthians: “Nós sempre fomos mestres em acertar os grandes” – diz Agarelli.

O jogo termina e o pequeno placar colocado num dos cantos do estádio indica: Juventus 1, Visitante 0. O “Boca de Litro”, sai protegido pelos PMs, enquanto a Mooca joga para o alto a sua fumaça. Estes anticonvencionais torcedores estão satisfeitos: o “Moleque” acabara de praticar outra molecagem.

O JOGO FOI ASSIM

Juventus: Sérgio, Deodoro, Fagundes, Jair Gonçalves e Paulinho; Cedenir, Ivo e César; Mica (Ataliba), Bebeto e Anchieta (Cuca).

América: Luís Fernando, Berto, Mauro, Aílton Silva e Ademir Gomes; Gérson Andreotti, Cléo e Arlem (Serginho); Marinho, Luís Fernando Gaúcho e Osnir (Mazolinha).

Juiz: Pedro Inácio Filho, “Boca de Litro”, segundo a torcida.

Renda: Cr$ 87.970,00, para um público pagante de 1.769 pessoas.

Gol: Bebeto, aos trinta minutos do segundo tempo.

 

Publicado originalmente no “Jornal da República” em 13 de setembro de 1979, edição 16

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Grandes matérias esportivas do Jornal da República: “Sai Ademir, fica em campo a mediocridade” (3/10/1979)

Sai Ademir, fica em campo a mediocridade


 

Ele se deu prazo até dezembro, para voltar. Terá 38 anos, o que complica. O consolo pode ser uma despedida em janeiro, com Clodoaldo jogando seu adeus pelo Santos. Sem o “Divino”, o futebol fica mais pobre

                                                                   

TONICO DUARTE

 

Ademir impõe com

seu jogo o ritmo do

chumbo (e o peso),

da lesma,

da câmara lenta,

do homem

dentro do pesadelo.”

Ademir da Guia de João Cabral de Melo Neto

 

Perdão, velho Domingos: não cheguei a vê-lo jogar, mas garanto que seu filho foi melhor. Mil desculpas aos puristas, idiotas da objetividade: farei aqui uma declaração de amor ao gênio de um diamante verdadeiro. Chama-lo de “Divino”, simplesmente de “Divino”, é criar limites maniqueístas para o seu talento infernal. Também é pouco defini-lo como “nome, sobrenome e futebol de craque”, como fez Armando Nogueira. O seu brilho extrapolou e/ou sublimou todos os rótulos.

Se tivesse nascido músico seria Stravinsky; se tivesse nascido pintor, seria Picasso. Nasceu jogador de bola – Ademir da Guia.

Quem viu, viu; quem não viu, não verá de novo. Com a mesma sutil descrição com que assombrou todo mundo nestes últimos vinte anos, Ademir está deixando o futebol. E deixa mais pobre um esporte que não terá Ademir da Guia. Depois de dois anos parado, ele deu um prazo até dezembro. Até lá, já com 38 anos de idade, tentará voltar. Mas já considera esta hipótese como improvável.

Fica faltando apenas o mea máxima culpa daqueles medíocres (bom dia, Zagalo), que passaram anos a taxá-lo de “jogador lento”. Mas que esses brilharecos saibam que, do alto da sua genialidade, o grande Ademir da Guia não os tem em mau conceito. Ainda que haja uma unanimidade nacional em torno das injustiças por ele sofridas, Ademir trata do assunto com a sua conhecida humildade olímpica: “Eu não reclamaria por um lugar nem no time do Palmeiras”.

E não me arrependo de não ter reclamado, pois é o meu jeito de ser. Além do mais, havia Gérson, Dirceu Lopes, Rivellino para a minha posição. Talvez eles fossem mesmo melhores que eu”.

Quem ficava louco com isso era o pai, o igualmente legendário Domingos da Guia. Brigava com o filho, dizia que ele tinha de exigir os seus direitos, dava murros de ódio na mesa. Um dia, foi até o vestiário do Botafogo para tomar satisfações com Zagalo. E Ademir, nada. Limitava-se a flutuar a sua talentosa dignidade por gramados paulistas, sem se importas com os esquecimentos. Era o somatório do prazer plástico e estético num festival de belo absoluto. Hoje, olhando para trás, ele sabe que escreveu uma das mais maravilhosas páginas do futebol brasileiro. Mas sua modéstia é maior do que tudo: “Acho que eu fui um bom jogador, mas sempre procurei manter a tranquilidade. No futebol, um dia a gente é ídolo, noutro, cai em desgraça. Por isso mesmo tem que ser humilde".

Esta humildade, não raro, chega ao paroxismo. Ainda hoje, Ademir fica ruborizado, se desconcerta todo, ao ouvir um rasgado elogio. Marcamos a entrevista e nos desencontramos. Pois não é que ele ficou esperando no carro, com ilimitada paciência. Ao me ver, no estacionamento do Parque Antártica, tocou a buzina e lascou de lá, como um iniciante cabeça-de-bagre que estivesse precisando de promoção: “Pois é, rapaz, estava te esperando. Pensei que você não vinha mais. As opiniões sobre o papel que Ademir da Guia representou no futebol brasileiro são convergentes. Ao escutar seu nome, o folclórico Filpo Nuñez levanta-se, coloca a mão sobre o peito, num respeito sincero. Os olhos de Oswaldo Brandão brilham, como quem mal pudesse controlar as emoções. Para Sócrates, ele foi “um gênio injustiçado”. O velho Oscar Paulilo, funcionário do Palmeiras há mais de cinquenta anos, é capaz de desviar um rosário de histórias, desde o dia 23 de agosto de 61, quando Ademir cruzou os portões do Parque Antártica pela primeira vez.

Ritmo líquido se infiltrando no adversário, grosso, de dentro, impondo-lhe o que ele deseja, mandando nele, apodrecendo-o”.

Ele é surpreendente. Certa vez, em Guadalajara, descansava à beira da piscina do hotel quando os companheiros resolveram jogá-lo dentro d´água. Ademir caiu, foi e voltou submerso, com uma elegância de fazer inveja a Jesse Vassalo. Só então, os pasmados jogadores do Palmeiras ficaram sabendo que, antes do futebol, ele havia sido campeão juvenil de natação pelo Bangu.

Outro episódio serve bem para mostrar a personalidade desse olimpiano. Em 65, numa de suas raras convocações para a Seleção, Ademir chegou à União Soviética. No hotel, conheceu um admirador nativo com quem passava horas e horas conversando. Até aí tudo bem, só que Ademir não sabia falar “olá” em russo, nem o russinho sabia pronunciar uma vírgula de português.

Por seu passe, o Palmeiras pagou quatro cruzeiros. Ele ainda era juvenil, e quem o trouxe foi o boss do Palmeiras, Delphino Facchina. Na época, o cartola encontrou-se no aeroporto com el brujo Fleitas Solich, que treinava o Flamengo. Ao saber da irrisória quantia, Solich não se conteve: “Vocês não pagaram nem uma perna dele”.

Quase vinte anos depois, Ademir está triste. É a mágoa de ter de abandonar o futebol como se nada tivesse acontecido. Gostaria de uma festa, não por vaidade, mas para guardar o bom momento na lembrança. Os dois últimos anos foram de angústia, primeiro pela contusão na planta do pé, depois pelo problema de sinusite e carne esponjosa no nariz: “Na minha idade, a recuperação é mais difícil. Eu lamento esse final de carreira, mas parece que vão fazer uma festa. Será no início do ano, num jogo entre Santos e Palmeiras, quando eu e o Clodoaldo nos despedirmos dos nossos dois clubes”.

É bem verdade que a despedida não trará problemas financeiros para Ademir. Sua situação econômica é tão sólida quanto a vida familiar (esposa, a chilena Ximena e um casal de filhos). Seguiu o conselho do pai, aplicou todo o dinheiro ganho. Mora numa mansão no estilo normando nos altos do Pacaembu, muito perto de um dos seus sacrários. É o morador mais famoso da rua: dá bom-dia ao padeiro, assina autógrafos na camisa do rapaz da Light, conversa pacientemente com os vizinhos. O reduto é de são-paulinos, ‘mas todos acabaram torcedores daquele mulato sarará, olhos de um azul muito claro, fino, solícito, - o propósito do bom vizinho.

Ademir não é de falar muito. Aqueles que o conhecem ficaram surpresos com a sua performance num dos últimos Fantástico. Ele fez algumas embaixadas, riu, contou casos da maneira mais descontraída possível. Foi o milagre. Nele, a bola era uma extensão do corpo. Mandava no objeto esférico como se houvesse algo de feitiço, numa relação mágica entre o animado e o inanimado. E podia guardar todo silêncio que quisesse: brilho, talento, genialidade, são também uma forma de linguagem.

Ritmo morno, de andar na areia, de água doente de alagados, entorpecendo e então atando o mais irrequieto adversário”.

 

Publicado originalmente no Jornal da República de 3 de outubro de 1979, edição 33

 

sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Grandes matérias esportivas do Jornal da República: “O futebol em cor e ao vivo” (16/10/1979), Jornal da República

SHOW DE RÁDIO

O futebol em cor e ao vivo


Tem torcedor que está até dormindo durante os jogos do campeonato paulista mas pede para acordar quando começa o “Show de Rádio” que a Jovem Pan criou a nove anos para alegrar o futebol

TONICO DUARTE

Ritmo frenético, rugas de preocupação na testa. Quem o vê na máquina de escrever vai logo imaginando uma imensa tragédia: terremoto no Rio de Janeiro, sequestro da rainha da Inglaterra, indicação do coronel Erasmo para o Ministério da Justiça. Mas não é nada disso. Estevam Bourrol Sangirardi leva muito a sério a produção de uma das coisas mais engraçadas do rádio brasileiro. É de sua cabeça que brota o Show de Rádio, com que a Jovem Pan consegue alegrar o mais decepcionado dos torcedores.

A cabeça de Sangirardi é um eclético condomínio. Lá coabitam personagens da mais variada procedência: Didu Morumbi, o bandido Zé Trombada, o macumbeiro Joca, o bêbado Lança-chamas, entre outros. E apesar de tanta seriedade (Sangirardi veste-se com apuro, tem maneiras refinadas), basta que ele abra a boca para que todos em volta morram de rir. É capaz de tiradas como essa: “...aí o Charles Miller virou-se para o Mário Vianna e disse – Marinho este jogo ainda vai pegar...”.

Ele é o primeiro da equipe de oito pessoas a chegar. No topo de um edifício da avenida Paulista, a Pan parece uma aeronave intergaláctica: tubulações de alumínio aparecendo, parafernália sonora, um mundo de potenciômetros e medidores de frequência. Logo em seguida, chegam Alaor Coutinho e Sérgio Leite, que fazem aquelas deliciosas paródias sobre os times de futebol. Pergunto ao Sanja há quanto tempo ele trabalha em rádio, mas quem responde é o Sérgio: “Você já ouviu falar em Guiulhermo Marconi? Pois é, ele e o Sanja começaram juntos...”.

Na verdade, Sanja não é tão velho assim – deve ter uns 50 anos – e o Show de Rádio existe há 9 anos. Ele surgiu na Copa de 70, pela necessidade de se fazer algo diferente, que desse brilho à monotonia daquele conhecido círculo vicioso transmissão-comentário-reportagem. Os personagens surgiram nessa época. Didu Morumbi foi inspirado em Didu da Silva Campos, a parte 10 do “casal 20” de Ibrahim Sued (Thereza são outros 10); Beicinho e Zé Trombada nasceram a partir de dois tipos que Sangirardi observou num botequim perto do Parque São Jorge; o comendador Fumagalli é um daqueles comendadores que pululam o Parque Antártica, com título adquirido na feira; Joca é o típico macumbeiro corintiano. E assim por diante.

A rádio Camanducaia, no entanto, surgiu por acidente. Certo dia, gravando de brincadeira, Odair Batista empostou a voz e lascou de lá: “Rádio Camanducaia, falando para o Brasil e sussurrando para o mundo”. Pegou. Depois surgiu a Rede Ponta de TV – “a única transmissora de tevê em áudio. Nós fornecemos o som e a imagem fica por conta da sua imaginação inteligente e fertilizante” – numa evidente gozação com a Globo.

“Mas nós somos imparciais. Gozamos até a nossa emissora. Veja, por exemplo, a Rádio Jovem Jegue”.

A Rádio Jovem Jegue – “um coice no éter, um zurro no comunicamento”- é uma gozação com a própria Pan. Ela possui “um quilowatt de potência” e tem personagens como Tarciso Varize, o homem do templo e o locutor Zé Mistério, a versão nordestina de José Silvério, chefe de esportes da equipe da Pan. Sanja, entretanto, ainda não está satisfeito. Sonha em partir para um programa igual, só que de política: “Mas isso só depois de configurada a abertura. Eu não vou fazer um troço que nem o Planeta dos Homens, que acaba enaltecendo os políticos. O negócio vai ser gozado, mas de porrada”.

Ainda falta uma hora para o programa começar, e protegidos por um biombo, Alaor Coutinho e Sérgio Leite vão fazendo paródias. A do Corinthians tem por base o partido-alto “Perdoa” de Paulinho da Viola, a quem Sérgio imita com perfeição. Certa vez, Sérgio imitou Chico Buarque, numa paródia sobre a Seleção, e alguns jornais chegaram a publicar que o compositor era o mais novo contratado do Show de Rádio. Alaor se queixa:

“Tou frio hoje bicho”.

Ao lado, Sangirardi tem um ataque de riso. Acabou de bolar um novo quadro: toca o telefone e uma voz de mulher (Alaor) igualzinho aquela do CVV atende: “CBD, boa noite”. Do outro lado da linha: “Preciso de ajuda. Sou jogador de futebol e estou desesperado. Jogo terça, quarta, quinta, sexta, sábado, domingo. Não, segunda não!!”. Na sequência, um locutor anuncia que Nabi Abi Chedid está pleiteando a inclusão de mais um dia da semana.

Dentro do estúdio, técnico e locutores morrem de rir, quase como amadores. Sanja, Alaor, Sérgio, Escova e Odair acotovelam-se. Agora o imitado é Walter Abrahão, que vai para o ar com o nome de Walter Cobrão – “tá gordo; beservem, senhores”. E anuncia os novos e inéditos filmes da TV Jupi: “Bonanza, Nacional Kid, aquele que avôa, Minha amiga Flika...”.

O relógio eletrônico está marcando 20 horas em ponto, e da equipe só sobrou Sangirardi. Ele faz um sinal com o polegar para o técnico, código que significa que vai terminar o Show de Rádio. Deixa o estúdio e, com a fisionomia séria, grita:

“Arquibaaaald, Arquibaaaald...”.

Não era mais o Sanja. Era o Didu Morumbi.

 

A turma que vive na cuca do Sanja

 

Lança-chamas e o amor pela Vila

Lança-chamas ainda vive em 1963. Até hoje ele comemora (com quatro garrafas de cachaça por dia) a conquista do bicampeonato mundial pelo Santos. Para aguentar este homérico porre, só mesmo o seu fiel amigo Zé das Docas, que, com a musculatura possante de estivador, costuma servir de bengala ao Lança. De madrugada, ambos podem ser vistos caminhando trôpegos pela bacia do Mercado – Zé levando o companheiro para ao albergue noturno. Quando Pelé deixou o Santos, em 74, Zé foi um dos guarda-costas do Rei. Naquele dia, ele arrumou uma camisa 10 para o Lança, que curtia a dor-de-cotovelo de despedida em mais uma bebedeira. Olhando de perto, a gente percebe que a camisa já foi branca.

 

Morumbi em petit comitê

Didu Morumbi acordou com o tilintar do telefone lilás. Do outro lado da linha, seu amigo Giscard (d´Estaing) convidavao-o para um petit comitê no Eliseu. Oh, dúvida cruel: no mesmo horário, ele teria um jantar de negócios com Henry (Ford III), em Nova Iorque. Era um problema sério. Colocou o robe de seda chinesa e perambulou pelo tríplex de cobertura. Na biblioteca cinza-ratinho, o mordomo Archibald já havia arrumado o braeakfast – salmão e suco de cenoura. Dois eram os motivos para dor de cabeça: o pilequinho dc “Veuve Clicquot” da noite anterior (acompanhado de Zózimo, Maitê d´Orey e seu xará Souza Campos), e mais uma derrota do São Paulo. Disgusting.

 

Joca nos marafos da vida

Joca deu um pontapé no despacho, fazendo voar marafo, velas, charutos e desmanchando o ponto riscado no chão com a pemba. Estava furioso: o Curingão empatara com o São Bento. Nesse instante, uma voz retumbou dentro do barraca: “que qui é isso, tá me estranhando?” Era Jojó (São Jorge), prevenindo que não atuaria outro desrespeito. Coitado do Joca, este equilibrista da vida. Sofre com o Curingão, aguenta, o bode Balthazar que vive dizendo “mééé, assim não da pééé” e mora com a Nega que, por sinal, é muda. Mas teve um dia em que a Nega falou. Foi quando o Corinthians conquistou o título paulista, há dois anos. Naquele dia, São Jorge apeou do cavalo e operou-se o milagre.

 

Fumagalli e o Palestra

O comendador Fumagalli alisou a pança. Havia acabado de devorar um pratarrão de fettuccine ai pesto, preparado e servido por um velho amigo. Acariciou a cabeça de Waldemar Fiúme, o cachorro que fala, e liquidou o resto de chianti. A noninha surgiu com uma garrafa de anisete, tudo para comemorar a liderança isolada do Palestra. “Ah, o Palestra” – pensou o comendador – “só da satisfaçon pra gente”. Do armário, a noninha trouxe o velho bandolim, uma herança da família Fumagalli, onde começou a dedilhar uma cançoneta napolitana. A sala se encheu com a voz possante do comendador, que aproveitou a ocasião para conclamar os presentes a outro brinde. Ao Palestra, naturalmente.

 

Publicado originalmente no Jornal da República em 16 de outubro de 1979, edição 44