sábado, 5 de março de 2022

Entrevista com Arnaldo Jabor em outubro de 1986

Uma conversa franca com o diretor de Eu Sei Que Vou Te Amar sobre a vontade secreta dos casais transarem com outros parceiros, Festival de Cannes e Dilson Funaro para presidente

 


O próximo filme do cineasta Arnaldo Jabor vai ser sobre o livro O Amante, de Marguerite Duras. Ou sobre A Primeira Selvagem, de William Faulkner. Ou, quem sabe, Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, ou ainda Reflexos do Baile de Antônio Callado. Existe ainda uma boa possiblidade de não ser sobre nenhum desses temas: ele está em constante processo de reelaboração de planos. Em duas hipóteses, porém, pode se apostar sem grande risco: vai provocar muita polêmica e vai ser um sucesso.

 

Pois a carreira de Jabor tem sido – uma fusão de talento questionador com o êxito comercial, sobretudo a partir de Toda Nudez Será Castigada (1972), considerada por muitos críticos como a melhor transposição para o cinema de uma obra de Nélson Rodrigues. O ponto alto em matéria de público, é claro, foi Eu Te Amo (1981), que, batendo nos 4 milhões de espectadores, é uma das vinte maiores bilheterias da história do cinema brasileiro, já foi exibido em 21 países estrangeiros e catapultou de vez Sônia Braga para o estrelato internacional. Mas Jabor tem mostrado capacidade de tocar a alma do público mesmo quando a explosiva sensualidade de uma estrela sexy não está presente. É o caso de Eu Sei Que Vou Te Amar, com Fernanda Torres e o estreante Thales Pan Chacon, que, apesar de ser basicamente “um filme sobre um casal sentado em cima da cama e conversando”, como exagera bem-humoradamente o próprio Jabor, é um dos grandes sucessos de 1986 – até agosto, já fora visto por mais de 1,3 milhão de pessoas.

 

O filme, na verdade, é uma funda reflexão sobrea a beleza e a grandiosidade, mas também as limitações e as impossibilidades contidas no fato de duas pessoas, se amarem e tentarem viver juntas, simbolizando num casal sem nome que se reencontra após três meses de separação. Junto com o filme, Jabor lançou um romance com o mesmo título – também best-seller -, que lhe serviu de base para filmar. E, entre outras entrevistas – tudo considerado por ele “parte da mesma obra de arte” -, concedeu um explosivo depoimento sobre o amor ao Jornal do Brasil, significativamente intitulado “O amor deixa muito a desejar”. Ali, investiu contra a forma como o amor é organizado e a fidelidade conjugal, analisou ferinamente o machismo de boa parte dos homens brasileiros e pregou a reconquista “da animalidade perdida”, a luta pela aventura e, até, o direito à solidão.

 

Foi uma bomba. “Teve algumas mulheres que me telefonaram, algumas chorando, dizendo que haviam guardado na gaveta para ler sempre”, conta Jabor.

 

Não poderia ser diferente para quem se considera um artista desde os 12 anos, época de suas primeiras poesias, e que acredita ser função vital da arte “tirar o sossego dos cidadãos”. Jabor só se formou em Direto na PUC carioca, depois de ter estudado com os jesuítas do Colégio Santo Inácio, “para ser simpático com a família”. Os pais eram “um casal bem anos dourados”: o pai, descendente de libaneses, um capitão da Aeronáutica, ex-alpinista, hoje brigadeiro da reserva, “que voava e cabeça pra baixo e era uma figura poética, um alucinado, um personagem de Oswald de Andrade”, a mãe, de origem alemã, “linda, uma espécie de Greta Garbo da Tijuca”.

 

O cinema resultou de toda uma militância cultural que incluiu desde a montagem de peças de sua autoria no colégio até a participação, como membro fundador e autor de peças que correram o Brasil, do célebre Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE. Vital, também, foi sua passagem pelo semanário O Metropolitano, da União Metropolitana dos Estudantes do Rio – uma vanguardista experiência de jornalismo, oito páginas que circulavam aos domingos em todo o país, encartadas no extinto Diário de Notícias por criativa extravagância de seu proprietário, João Dantas. Tratava-se de um fervilhante caldeirão de ideias por onde passaram fornadas de intelectuais, dos cineastas Glauber Rocha e Cacá Diegues aos críticos de arte Roberto Pontual e Ferreira Gullar, do humorista Henfil ao teatrólogo Oduvaldo Vianna Filho ou o futuro deputado Marcelo Cerqueira. Um dia, em 1962, quando ambos militavam no jornal, o grande amigo Cacá Diegues disse a Jabor: “Acho que eu vou fazer cinema”. Num estalo, sem mais nem menos, Jabor definiria seu próprio destino com quatro palavras: “Então eu também vou”.

 

Deu certo: do experimentalismo de seu primeiro filme, o documentário O Circo (1965), Jabor conseguiu atrair as atenções com o longa-metragem de “cinema verdade” Opinião Pública (1967). O insucesso de Pindorama (1970), que o próprio Jabor considerou ambicioso demais, não impediu o estouro, dois anos depois, de Tuda Nudez, a que se seguiu, em 1975, outra boa obra baseada em Nelson Rodrigues, O Casamento, e em 1978, a bem-humorada e caótica metáfora sobre a classe média brasileira, Tudo Bem, que reuniu pela primeira vez Fernanda Montenegro, Gianfrancesco Guarnieri e Paulo Gracindo no cinema.

 

Seus filmes lhe trouxeram uma conta coleção de prêmios – incluindo festivais como o de Berlim, o de Pesaro, na Itália, o de San Francisco, o do Museu de Arte Moderna de Nova York, os de Brasília e Gramado, sem contar a exibição hors-concours de Eu Te amo em Cannes, em 1981, e o prêmio de Mulher Atriz em Cannes este ano para Fernanda Torres por Eu Sei Que Vou Te Amar. Nem os prêmios nem o sucesso comercial, porém, permitiram que Arnaldo Jabor ficasse rico. “Eu Te Amo fez mais de 4 milhões de dólares nos Estados Unidos, mas nós (o produtor foi o homem de TV Walter Clark) só recebemos 100 mil dólares”, vocifera Jabor, que responsabiliza “a máfia de Hollywood, seu sistema de contabilidade e sua estrutura advocatícia superbem montada” por fenômenos desse tipo. Tudo o que sobrou de seu filme mais rentável, assim, ele aplicou num apartamento que deixou para a segunda ex-mulher, a psicanalista Eleonora Barbosa Melo, com quem esteve casado por dez anos, e para as filhas Carolina, de 11 anos, e Juliana, de 9. (Jabor e a primeira mulher, a artista plástica Teresa Simões, não tiveram filhos.) Agora, com a renda que espera obter com Eu Sei Que Vou Te Amar, Jabor pretende comprar um apartamento para si.

 

A dura postura crítica de Jabor com relação ao cinema americano, que ele considera hoje controlado pelas empresas de seguro garantidoras dos investimentos na produção ao ponto de virtualmente ditarem o tom de boa parte da dramaturgia internacional, não o impede de ter um projeto sendo examinado em Hollywood. É um filme baseado em Reflexos do Baile, uma história de sequestro político e guerrilheiros urbanos, com personagens que vão de um favelado carioca ao embaixador da Suíça, o papa e o presidente dos Estados Unidos. Jabor quer que a história de Callado, em suas mãos, se transforme “numa grande farsa dramática com personagens internacionais”. E justifica: “Eu quero criar incompreensões. Meu próximo filme tem que ser um objeto não totalmente compreensível, um objeto de inquietação, de pesquisa”.

 

Para entrevistar esse irrequieto cineasta profissional da cultura brasileira e, ultimamente, pensador do amor - função que adicionalmente o habilita o sucesso que seu 1 metro e 90 e seus olhos verdes fazem com que as mulheres -, PLAYBOY enviou ao Rio de Janeiro o editor especial Ricardo A. Setti. Seu relato:

 

“Se eu tivesse que fazer alguma queixa da missão que recebi, diria (brincando, é claro): ‘Vocês não poderiam me arranjar alguém menos inteligente para entrevistar?’ Porque com Arnaldo Jabor, é assim: as ideias fluem aos borbotões e, concorde-se ou não com elas, são expostas com tal brilho e entusiasmo que nem sempre ele se dá ao trabalho de responder às perguntas ao pé da letra. Em nossos encontros, cordialíssimos, realizados em parte de uma manhã e duas tardes, mais de uma vez eu o despertei para o fato de que, diretor de cinema, ele estava tentando dirigir, também a entrevista. Jabor ria muito.

 

As gravações se deram na ampla sala do apartamento alugado que Jabor ocupa em um daqueles prédios em Ipanema com ar de casa, sem elevador e dotados de escadarias de mármore branco. Bem na Rua Barão de Jaguaripe, incrustado entre a Lagoa e o Leblon, no quartel-general de brilho nacional, ele se dá ao luxo extra de ter um castanheiro à sua janela, no terceiro andar: a árvore, plantada na rua, é mais alta que o pequeno edifício.

 

Ele me convidou para almoçar a certa altura – um brasileiríssimo cardápio de arroz, feijão-preto, frango com ervilhas, purê de batatas e salada de couve-flor servido pela empregada Leda, que cuida da casa. (Jabor vive sozinho, embora seja sintonizado a uma relação que ele classifica de ‘amorzade’ com a empresária de moda e militante em tempo integral do bom gosto Glorinha Kalil, que vive em São Paulo). Uma das sessões contou com a eventual participação das duas filhas do entrevistado, que mora com a mãe e, como fazem com frequência, vieram passar uns dias com Jabor. Como o leitor verá, elas ajudaram com muita eficiência a esclarecer certas questões. Estão, definitivamente, saindo ao pai”.

 

PLAYBOY- Na esteira do lançamento de Eu Sei Que Vou Te Amar, você colocou em debate questões importantes sobre amor e sexo.

JABOR- Foi.

 

PLAYBOY- Nem longo depoimento ao Jornal do Brasil, você disse que o casamento “tira a aventura existencial das pessoas”, que os casais brasileiros “estão engordando”, que é necessário “fazer lipoaspiração na alma”. Você vê tanta infelicidade assim por aí?

JABOR- Eu não vejo nenhum casal feliz. É muito raro você ver um casalzinho feliz numa boa. Você vê casaizinhos reprimidos numa média. Não é isso? Você vê uma certa tristeza (algo irônico) no seio das famílias, um tédio no seio dos casais, das mesas a quatro, dos jantares nos restaurantes. Isso me dá um certo favor, porque por outro lado eu também quero me casar, eu também quero amar. Eu não sou uma pedra Eu também acho o amor o máximo. Agora, as formas organizadas de amor são apavorantes. Elas são feitas de horários, de compromissos, ainda de fidelidade, de reclamações mútuas, de um desejo (bilateral) que se supõe eterno, quando o desejo é na verdade múltiplo. Essas formas organizadas de amor são feitas de fidelidade, mas a mulher quer dar para outros homens, e o homem quer comer outras mulheres. Está todo mundo embananado nessa situação, e não foi o homem que criou isso.

 

PLAYBOY- Foi a mulher então?

JABOR- Foram as mulheres que criaram. Porque quem começou a querer se libertar foram elas, que eram escravas centenárias, e agora estão escravizadas na cozinha ou na exploração de sua nudez, da sua sexualidade, estão escravizadas na fidelidade ou na sua objetificação sexual. Elas são objeto da nossa punheta e da nossa violência. Eu vejo por exemplo em mulheres sexy, mulheres famosas que eu conheço, o quanto elas são infelizes. Mulheres que todo mundo quer comer e que estão espantosamente solitárias, de uma solidão apavorante. Os símbolos sexuais estão cada vez mais sozinhos, sendo contemplados pelas multidões infinitas de punheteiros machistas pelo Brasil afora. Mas ninguém ama um símbolo sexual. Então, o que criou a chamada crise do relacionamento homem-mulher foi um desejo enorme que a mulher tinha de sair desse bode todo. Foi a pílula que criou isso. Foi a capacidade e o desejo de infidelidade, foi o desejo de sair da posição de virtude.

 

PLAYBOY- Você acha que os homens em geral estão conseguindo manejar bem essa situação?

JABOR- Isso criou o medo do macho. Crise do casal é o nome literário para esconder outra coisa mais concreta chamada medo da dor de corno. Este discurso de que eu me aproprio é na verdade um discurso feminino. A mulher é responsável por essa revolução, e ela tem que ser dado esse crédito. E muitos homens deveriam agradecer a essas mulheres o sofrimento que elas lhes deram e os chifres que lhes foram impostos.

 

PLAYBOY- Agradecer os chifres?

JABOR- Sim, porque eles viviam mergulhados nas trevas. Só os cornos (risos) verão a Deus. O sujeito machista que é corno deveria se ajoelhar e agradecer, porque pela primeira vez foi tocado pela condição humana. O machista traído é tocado pela luz da verdade pela primeira vez. Caso contrário, ele passaria a vida toda com suas camisas de voile e seus reluzentes automóveis vermelhos, dando gargalhadas nas churrascarias, presidindo a infelicidade da mulher e a própria ignorância e pastoridade de sua vida. O macho enquistado, o macho “maçaroca” mesmo, o macho “empada” só conhece a verdade ou pela experiência do corno, ou pelo perigo da perda da identidade sexual, o medo do homossexualismo. Fora isso, ele continua integral, ele continua um grande paralelepípedo de estupidez, que gera o fascismo, que gera a propriedade privada gananciosa, que gera o latifúndio.

 

PLAYBOY- E essa luz da verdade, qual é?

JABOR- A verdade é que a mulher é um pobre ser humano igual a ele, com direitos iguais, e que de repente quer viver, quer ser livre, quer experimentar sexualmente mais do que um só homem, quer poder trabalhar fora, quer poder ser feliz, ter que necessariamente se desculpar. Ela tem o direito de se apaixonar por outro homem. Tem o direito de se apaixonar por outra mulher. Tem o direito de ir pra puta que a pariu!

 

PLAYBOY- Você se referiu à questão da forma como o amor é organizado, à rotina das relações, à obrigatoriedade da fidelidade. Mas como é isto na sua própria pele? Para você é viável um relacionamento aberto com uma mulher?

JABOR- Acho viável, sim. (Pausa. Pensa um pouco) Eu não só acho como não consigo compreender um amor feito de aprisionamento mútuo. Não quero que nenhuma mulher me seja incondicionalmente fiel, como também não quero ter uma mulher que seja basicamente infiel o tempo todo. O maravilhoso do amor é a vivência do imaginário do amor, o lugar para onde ele te remete – um espaço poético, de poetização da vida e do mundo. A natureza, as pessoas, a vida ficam mais bonitas quando você está apaixonado. O amor é um grande LSD, é um êxtase. O que eu quero, então, o importante mesmo é isso.

 

PLAYBOY- Sim, mas na sua vida, no seu passado, como foi que... ?

JABOR- (Interrompendo) Vou te falar tudo. Como todo macho brasileiro, tive dificuldade para entender isso. Tive muitas mulheres, e fui aprendendo isso à medida que perdi algumas mulheres. Uma das formas de elaborar o complexo de Édipo é através da perda da mulher. Eu enganei muita gente, fui enganado também. Nesse jogo, nessa ciranda louca, aprendi muito.

 

PLAYBOY- E agora, então...

JABOR- Hoje em dia, acho perfeitamente plausível para mim que uma mulher que eu ame transe eventualmente com outros caras. Não quero que ninguém seja fiel a mim porra nenhuma, entendeu? Não quero nada disso. Eu quero fidelidade a esse sentimento mágico (do amor), que ela saiba curtir ao máximo essa coisa enquanto está viva. Não dou prazo para mulher nenhuma, nem pra ela nem pra mim. Não fico um minuto a mais com uma mulher além do momento em que eu tiver certeza de que não quero ficar com ela.

 

PLAYBOY- Será sempre assim?

JABOR- Lógico que nem tudo é claro assim. Sou um pobre homem como qualquer outro. Posso perfeitamente apaixonar amanhã de manhã pelo Anjo Azul e ficar de quatro cantando có-có-ri-có, como ficou o Emil Jennings naquele filme do (diretor alemão Josef) Sternberg (O Anjo Azul). Posso ficar perfeitamente um débil mental, de quatro, numa boa. Mas pretende cada vez mais tentar...Não quero ficar nessa alternativa única de ou promiscuidade sem amor ou fidelidade careta. Será possível que não há outra coisa um pouco mais sadia, meu Deus, pro homem e pra mulher? Deve haver.

 

PLAYBOY- Você fala tanto em amor, e no entanto nesse depoimento ao Jornal do Brasil chegou a dizer que “não amar também é beautiful”. Como é?

JABOR- (Meio irritado) Não é isso. Não é isso. Aquela entrevista, e as coisas que andei dizendo, são uma mistura do que eu sou com o filme. Não se pode fazer um filme sozinho. Um filme não é uma coisa separada de você. Uma obra de arte tem que ser uma coisa quase conceitual, é quase um trabalho de body art. Eu acho que sou um living theater, em que se misturam o que sou e o que eu faço. Quando lanço um filme ou um livro, quero que eles estejam dentro de uma nuvem de palavras e de opiniões e que sejam o centro de um evento, mas apenas o centro. E que o evento se complete, por exemplo, pelas entrevistas que dou. Quer dizer, o filme, o livro, o videocassete que saiu, as entrevistas, tudo o que eu falei são obra de arte junto com o filme. Porque a única função que vejo para um artista na sociedade é provocar crises, é provocar polêmicas. A finalidade do artista é acabar com a tranquilidade dos cidadãos, é fazer uma psicanálise da sociedade, mais do que fazer uma conscientização, que é uma função dos anos 50 – aquela coisa de que a obra de arte serviria para ensinar as pessoas a modificar a sociedade.

 

PLAYBOY- Perfeito. Mas o fato é que suas declarações sobre o amor, somadas ou não ao filme, tiveram grande impacto.

JABOR- Quando eu falo de amor, eu estou falando de outras coisas também. Eu não sou um consultor sentimental. A Glória Kalil disse que a repercussão de meu filme se deve ao fato de que o filme e as entrevistas sobre ele provocaram uma espécie de “choque amorodoxo”, ou “erotodoxo” – acho isso uma coisa muito inteligente que a Glória falou. Então, quando eu falo de amor eu estou trazendo para o público uma série de experiências vividas psicologicamente por mim, um brasileiro datado historicamente, e, ao mesmo tempo, eu também sou um observador do país. Então eu tenho que me apresentar como prova do crime e, simultaneamente, falar sobre as coisas em que estou pensando. Pra que isso? Pra melhorar o Brasil? Não, mas para ajudar as coisas a se mexerem. Porque a tendência à inércia, que é próximo à morte, está sempre presente na sociedade, na organização das coisas.

 

PLAYBOY- Ainda dentro do tema homem-mulher, existe uma grande curiosidade envolvendo o trabalho de um cineasta que já dirigiu mulheres belíssimas, como Sônia Braga e Vera Fischer. A aproximação que se cria nas filmagens não produz um envolvimento do diretor com a estrela?

JABOR- De mim para elas, não. Eu tenho uma perversão: quando estou filmando uma mulher, eu não amo aquilo que filmo. Eu uso. O ator é um pouco uma coisa para ser utilizada. Sendo assim, se eu me apaixonar pela atriz, não sai filme? Eu nunca tive essa experiência.

 

PLAYBOY- Alguma atriz já se apaixonou por você?

JABOR- Já.

 

PLAYBOY- Como é que foi?

JABOR- Eu achei ótimo, só que não correspondi muito a essa paixão. Mas também é importante não decepcionar (a pessoa), porque você está fazendo um jogo. Fazer um filme é um jogo sujo, não é um jogo limpo, não. Arte (risos) é um jogo sujo. Essa mania de achar que arte é uma coisa limpa...Arte é uma grande escrotidão, no fundo. A arte é também uma grande sujeira. Eu me lembro de um personagem do Pasolini – acho que é de Teorema – um pintor, que dizia: “As pessoas veem meus quadros e acham aquilo sublime, e não sabem o esforço, o medo e o horror que passei para dar aquela impressão de tranquilidade”. Então, existe um lado impotente no diretor que dirige belas mulheres.

 

PLAYBOY- E belas mulheres foram o que não faltou nos seus filmes, não?

JABOR- Eu trabalhei com as seguintes atrizes principais: Ítala Nandi, Darlene Glória, Adriana Prieto, Fernanda Montenegro, Zezé Motta, Regina Casé, Sônia Braga, Vera Fischer, Fernanda Torres...É isso? Será que não esqueci nenhuma? (Pausa) O que é que você quer saber? (Em tom de brincadeira) Quem eu transei? (Risos)

 

PLAYBOY- Bem, poderia ser...

JABOR- Eu não comi ninguém. (Abandonando temporariamente o tom de brincadeira). Ei, isso aí não é pra botar na entrevista, heim? Pelo amor de Deus, eu estou brincando. (Agora com tom autodepreciativo, irônico) Não comi ninguém. Eu não como ninguém. Eu sou o anti-Daniel Filho. Eu sou o anticomedor. Eu não sou de nada.

 

PLAYBOY- Mas você disse que uma estrela se apaixonou por você. Quem foi?

JABOR- Nenhuma. Mentira minha. (Voltando o ar de brincadeira) Não! Todas se apaixonaram por mim e continuam apaixonadas por mim, entendeu? Todas me amam profundamente e eu, naturalmente, as renego, as rejeito. E quanto mais eu as rejeito, mais elas me amam. (Dirigindo-se para o gravador) Isto é uma brincadeira, hein? Sic! Sic! Não falando sério, cada...

 

PLAYBOY- Mas isso é sério. É relevante para o leitor saber.

JABOR- (Dizendo sobre a brincadeira) Eu não tive caso de amor com nenhuma delas, mas com todas as atrizes (de meus filmes) eu tenho um envolvimento psicológico muito grande, porque se não o personagem não sai direito. Mas, por outro lado, se você se envolver muito, tiver uma transa de amor, sexual, com a atriz, também atrapalha. Então, mantive essa distância.

 

PLAYBOY- E vontade de?

JABOR- Fiquei com vontade disso algumas vezes. (Pausa) Não vou dizer por quais, mas me segurei, porque (cinema) é feito uma coisa de psicanalista. Um psicanalista não pode comer clientes.

 

PLAYBOY- Dos atores e atrizes com quem você trabalhou, quais lhe deram mais satisfação?

JABOR- (Pensa) Sônia Braga e Fernanda Montenegro. Aprendi muito com a Fernanda, que é uma mulher de sabedoria espantosa e intelectualmente incrível. E aprendi cinema com a Sônia.

 

PLAYBOY- Em que sentido?

JABOR- A Sônia tem uma sensibilidade cinematográfica extraordinária. Se ela não gosta de uma coisa, pode fazer de novo, porque elas ente o que vai aparecer na tela. Ela trabalha para o que vai aparecer e não para o que está fazendo na hora.

 

PLAYBOY- Você acha que a Sônia Braga mudou com esse sucesso internacional acentuado pela indicação dela para o Oscar com O Beijo da Mulher Aranha?

JABOR- Você não faz ideia de como ela é conhecida internacionalmente. Ela é um grande sucesso. Em Cannes, ela levantava meia hora para atravessar o mar de repórteres e fotógrafos paparazzi que sempre estavam a seu redor. A Sônia, além de ser uma das maiores atrizes do cinema mundial, é um gênio fotogênico e uma pessoa extraordinária. Como todos nós (do cinema brasileiro), sofre um pouco a barra pesada do sistema internacional de cinema. Mas conquistou um prestígio que nenhuma atriz brasileira tem.

 

PLAYBOY- Pergunto de novo: ela mudou com o sucesso?

JABOR- Não, ela só melhora como pessoa. Acho que agora ela está numa nova fase em sua vida em que vai ter que recapitalizar esse sucesso para ela. Acho que está na hora de a Sônia voltar para o Brasil, não no sentido de retornar à terra natal, mas voltar para daqui se reciclar e de novo atirar para fora.

 

PLAYBOY- Que grau de relação você tem com ela?

JABOR- Ela é muito amiga, é uma irmã que eu tenho, uma pessoa que eu adoro.

 

PLAYBOY- E a Vera Fischer?

JABOR- É uma grande atriz e uma mulher muito bela. Mas trabalhei poucos dias com ela. Tinha vontade de fazer um trabalho mais profundo com a Vera. Acho que ela pode render muito mais ainda do que já rendeu. Ela tem que...Ela já é louca, não é que ela tenha que enlouquecer mais. Talvez ela tenha que “desgermanizar” algumas coisas. Aí ela poderia fazer coisas muito loucas. Mas é uma grande atriz. Pensando bem, não tem que fazer nada, aliás. Basta filmar.

 

PLAYBOY- Como você mesmo disse há pouco, o que você tem falado sobre o amor faz parte de seu filme Eu Sei Que Vou Te Amar. Proponho passarmos a ele. Como surgiu a ideia do filme?

JABOR- Surgiu pelo desejo de fazer um filme não cinematográfico, um filme literário, porque acho que a literatura tem muito a dar ao cinema contemporâneo. O cinema contemporâneo está corrompido pela imagem. A imagem contemporânea é perversa, fetichista e reacionária. É muito fácil hoje em dia fazer uma bela fotografia, uma imagem interessante ou uma montagem rápida, confusional. O videoclipe é o coroamento da boçalidade de imagem do mundo contemporâneo.

 

PLAYBOY- Por quê?

JABOR- O videoclipe diz que tudo se pode montar, faz o elogio da confusão mental de hoje em dia, como se o mundo fosse confuso. Então ele monta Hitler com sabonete, mulher nua e bomba atômica, um cantor de rock com tanques de guerra. Tudo se junta num videoclipe, mas nem tudo se monta. Nem tampouco o mundo contemporâneo é confuso ou ilógico. Os idiotas e os intelectuais superficiais pensaram que ele é ilógico, que ele é dark ou sem sentido, quando ele tem um sentido sinistro e apavorante, pois, por trás dessa aparente disparidade ilógica, existe uma grande lógica que o comanda que é, basicamente, o sistema financeiro internacional, a usura internacional.

 

PLAYBOY- Então, você tinha vontade de fazer um filme que desse valor à palavra?

JABOR- Eu tinha vários motivos para fazer Eu Sei Que Vou Te Amar. Primeiro, esse desejo de fazer uma coisa simples, calma, fácil, que não tivesse que obedecer às regras de produção do cinema internacional de mercado, que tem que ter ação, violência, sexo, amor, brutalidade, rapidez, contraluz, realismo crível, princípio, meio e fim etc. Segundo, não havia grana no Brasil na época. Há um ano e meio a recessão estava comendo tudo. Então, eu estava um dia no escritório de um amigo meu, o Jorge Peregrino, que cuidava do mercado externo na Embrafilme, e falei: “Pô, eu fiz um filme que foi um sucesso de bilheteria, tenho que fazer outro e não tenho dinheiro. Vou acabar fazendo um filme sobre um homem e uma mulher sentados numa cama conversando”. Aí eu parei e pensei: “Por que não?” Fui pra casa e falei: “Porra, que boa ideia! Pode ser um filme do cacete”. Aí eu comecei imediatamente a escrever sobre isso.

 

PLAYBOY- Além de sua própria experiência, você se inspirou em alguém?

JABOR- Fui casado duas vezes e tinha me separado dois anos antes da minha segunda mulher. Foi difícil, uma separação depois de dez anos de casado é muito dolorosa. Eu estava ainda muito tomado por essa experiência e escolhi fazer um filme sobre um casal tentando se separar, que acho uma base dramática muito interessante, porque vejo muita gente nessa situação. Mas o filme é uma montagem de experiências que tive não só no segundo, como no primeiro casamento, de experiências de amigos meus, de namoradas que eu tive. Tem ali coisas que aconteceram com o (psicanalista) Eduardo Mascarenhas, com o (cineasta) Cacá Diegues, com o (cineasta) Miguel Faria, coisas que ouvi, li e vi. É uma colagem dessas loucuras das pessoas querendo amar.

 

PLAYBOY- Por que você escolheu a Fernanda Torres para atriz?

JABOR- Ela tem cara de inocente, e eu acho que inocência e perversão são duas coisas muito próximas. Eu queria uma inocente, e não uma perversa, dizendo perversões. A Fernanda tem uma imensa mistura de santa com louca. Ela tem essa tensão e o filme precisa dessa tensão que ela tem e que o Thales (Pan Chacon) tem.

                      

PLAYBOY- Como você o escolheu?

JABOR- O Walter Clark me mandou dar uma olhada no musical A Chorus Line, eu fui lá ver e ele era o ator principal. Eu achei ele fantástico e o chamei. O Thales é um homem muito másculo mas não é machista, não é violento. É um homem doce. Acho essa ambiguidade fundamental para o filme. Acho que outra das razões do sucesso do filme é o fato de que as pessoas ficam espantadas com aquelas coisas sendo ditas no cinema com aquela desfaçatez, com aquela limpidez e clareza - coisas que em geral são vorazmente escondidas pelas pessoas, com medo de si mesmas. É um filme amoral, nesse sentido, que liberta as pessoas; elas se sentem aliviadas quando veem porque, porra, elas vivem reprimidas, por si mesmas ou por outros. Elas descobrem que o que escondiam desesperadamente como loucura é mostrado ali com grande liberdade. Então, os homens que porventura têm desejos homossexuais reprimidos e veem isso ser explicitado no filme sentem-se aliviados. As mulheres, que em grande número desejam a promiscuidade sexual muito mais do que pensam, sentem-se felizes quando a Fernanda Torres, com a sua cara de inocente diz: “Toda mulher brasileira devia ser louca e prostituta”. A Fernanda e o Thales contribuem para essa sinceridade do filme porque são límpidos com suas expressões.

 

PLAYBOY- Você chegou antes a cogitar de outra atriz para o filme?

JABOR- Eu tinha pensado em fazer com a Sônia Braga. Ela ia fazer, depois não podia. Só que o filme ia ficar muito complicado, eu pensei até em que fosse falado em inglês, ele chegou a ser vertido para o inglês – e vou talvez montar a história como peça de teatro no circuito off-Broadway em Nova York. Mas na verdade, quando vi a Fernanda, tive certeza absoluta de que tinha que fazer com ela.

 

PLAYBOY- Como foi seu relacionamento com os atores no seu filme?

JABOR- O filme foi um grande psicodrama de três pessoas: Arnaldo Jabor, Fernanda Torres e Thales Pan Chacon – dois jovens e um homem de meia-idade (risos) -, em que a minha experiência e o meu texto eram reprocessados pela juventude deles. Dessa contraposição saiu uma terceira coisa, que era o que o filme virou. O filme é uma história de amor. Eu descobri nos cinemas, quando começou a passar, vendo as multidões de garotos e garotas que foram assisti-lo, que era um Love Story dos anos 80, um Love Story pós-punk, porque começa com happy end.

 

PLAYBOY- A Fernanda Torres acabou ganhando o prêmio de melhor atriz em Cannes com o seu filme. É verdade que a Sônia Braga jogou o peso dos eu charme e do seu prestígio para influenciar a premiação da Fernanda?

JABOR- Isso não é verdade. A Sônia Braga, é lógico, gostou muito do filme e o defendeu para ganhar prêmios, defendeu a Fernandinha – mas não foi só ela, o (diretor de cinema filipino) Lino Broca gostou muito, outros gostaram. O prêmio só se dá com um número mínimo de votos, tinha dez pessoas no júri.

 

PLAYBOY- Mas a própria Fernanda foi quem levantou a hipótese de favorecimento.

JABOR- Isso é uma ingenuidade da Fernanda, e desconhecimento. Ela não estava lá e não pode saber isso. Eu estava. Não houve nada disso.

 

PLAYBOY- O que você achou da Fernanda não ir a Cannes receber o prêmio?

JABOR- Ela não pôde ir porque estava gravando novela na Globo.

 

PLAYBOY- Uma viagem internacional de 48 horas, com ida, volta e estada...

JABOR- Não dava. Ela não sabia (que ia ganhar). Ninguém sabia. Ela ficou na dúvida se ia ganhar ou não e teve medo de chegar lá e não acontecer porra nenhuma. Ela só foi para o dia da exibição. Depois, eu telefonei um dia antes da premiação para ela: “Vamos lá, Fernanda. Venha. Pode ser que você ganhe. Existem esperanças”.

 

PLAYBOY- E ela?

JABOR- Ela disse: “Eu não vou porque tenho medo de não ganhar nada e depois vão ficar me gozando”. (Risos) É só isso, as coisas são simples.

 

PLAYBOY- Além da emoção por ter ganho o prêmio, o que chamou sua atenção em Cannes este ano?

JABOR- Bem, o festival que alguns jurados americanos do festival fizeram...Esse Sydney Pollack, por exemplo, que fez esse filme de quinta categoria que ganhou o Oscar (Entre Dois Amores, com Robert Redford e Meryl Streep). É um mistério, não sei como essa porcaria pôde ganhar um Oscar. É um dos piores filmes que já vi: medíocre, fascista, colonizado, burro, inculto, mal filmado.

 

PLAYBOY- Tudo isso?

JABOR- É um filme muito ruim, mesmo. Esse cara, rapaz, esse cara...(Pausa) eu estou falando isso porque já achava antes do festival, disse ao Jornal do Brasil. Eu nem sabia que ele ia ser o presidente do júri. Talvez, se eu soubesse (risos), eu não tivesse nem dito. Mas disse. Estou só repetindo o que já dissera, e que se confirmou, vendo-o em Cannes, vendo como ele é medíocre, sabujo...

 

PLAYBOY- O que é que ele fez?

JABOR- Meu filme ele simplesmente não entendeu, não sabe do que se trata. Ele não teve capacidade de compreender aquele filme, duas pessoas falando. Está tão deformado pela perversão hollywoodiana que ele não sabe.

 

PLAYBOY- E qual é a evidência que você tinha para achar isso?

JABOR- (Enfático) Eu sei, eu tive informações de que ele não entendeu nada! E outras pessoas do júri, surpreendentemente. Este István Szabó (cineasta húngaro), um cara considerado um bom diretor, que fez Mephisto, um filme interessante, também não entendeu. As pessoas estão acostumadas a uma caretice internacional ditada pela máfia de Hollywood que elas não entendem.

 

PLAYBOY- Que amigos do cinema estrangeiro você reviu em Cannes? O Bernardo Bertolucci estava lá?

JABOR- O Bertolucci é muito meu amigo, nós nos conhecemos desde 1969, mas ele não estava lá. Ele está na China, começando um filme depois de cinco anos de sacrifícios e humilhações por parte do sistema de Hollywood.

 

PLAYBOY- Além do Bertolucci, você é amigo de cineastas como Fellini e Bergman?

JABOR- Eles vivem num mundo muito à parte, são monstros sagrados. Eu conheço alguns: o Marco Bellocchio, conheci o (François) Truffaut, almocei uma vez com Orson Welles em Los Angeles, conheci Fritz Lang, tomei um porre com (Luis) Buñuel e o Glauber Rocha...

 

PLAYBOY- Como foi isso?

JABOR- Foi em 1968. Estávamos o Glauber, eu e o Buñuel. O Buñuel já estava meio surdo. Foi quando ele ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza com o filme A Bela da Tarde, com a Catherine Deneuve. Ele estava nervosíssimo, de smoking e nervosíssimo, e a gente foi tomar um porre em frente ao Hotel Excelsior, no Lido de Veneza. Então ficamos lá num bar, ele, Glauber e eu, enchendo a cara. Ele era fantástico. Parecia assim um brasileirão...

 

PLAYBOY- Você se lembra do que falaram?

JABOR- Conversamos em espanhol. Ele ficava dizendo: (Imita a voz) “Estos franceses, estes críticos son todos unos cabrones, son todos unos mierdas”, ? “Cabrones”. Ele era do cacete, era extraordinário. Já o Fritz Lang era pervertido sexual, ficava querendo que a gente arranjasse transas pra ele, a gente não sabia nem se era mulher ou homem que ele queria (...). O grande Fritz Lang – em Veneza! -, eu e Glauber. A gente ficava meio irritado porque ele era amicíssimo de nós dois mas, no fundo, ele queria que a gente arranjasse transas. (...) o Fritz Lang, sabe? Mas era um gênio. (Empostando a voz) Atenção, que eu o considero um dos maiores cineastas que já houve no mundo. Ele já estava muito doido, com 80 anos.

 

PLAYBOY- Mas como aconteceu de vocês ficarem amigos do Fritz Lang?

JABOR- O Lang já conhecia o Glauber e eu o admirava, porque nessa época o Glauber já era conhecido pelo sucesso extraordinário de Deus e o Diabo na Terra do Sol, em 1964. Aliás, quando o Glauber fez o filme, que foi um furor, um grande sucesso em Cannes, ele só não ganhou a Palma de Ouro porque (aumentando o tom de voz) o jurado russo foi contra. Achou que o filme era muito de esquerda! O jurado soviético é que tirou o prêmio do Glauber, pra você ver como o Glauber era um homem de esquerda! Quer dizer, o idiota do stalinista é que fulminou Deus e o Diabo, que era para ter ganho no mínimo o prêmio de melhor direção – que o Glauber só iria ganhar oito anos depois, com O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro. Bem, o fato é que o Glauber na época de Deus e o Diabo foi muito saudado pelo Buñuel, que declarou ter visto aquele o melhor filme que ele havia visto nos últimos anos. Foi aí também o Fritz Lang ficou amigo do Glauber.

 

PLAYBOY- Ainda no capítulo de grandes mitos do cinema mundial: como foi esse seu almoço com o Orson Welles?

JABOR- Foi em Los Angeles, quando eu estava fazendo o contrato para o lançamento de Eu Te Amo nos Estados Unidos. Fui com uma amiga comum, francesa, que mora em Los Angeles, num restaurante onde ele tinha mesa fixa. Ela me apresentou para o Orson Welles, aquela figura absolutamente gigantesca, que estava comendo um Steak au Poivre. Ele falou sobre It´s All True, aquele filme que ele tentou fazer no Brasil. A primeira coisa que ele disse, em português, foi: (Faz sotaque) “Muito prazer, muito prazer”. Depois ele me perguntou: “How is Grande Otelo?”. Foi, é claro, um contato meio rápido, mas o que me impressionou, de todo modo, é que ele era uma espécie de grande curiosidade de Hollywood. A superioridade daquele homem em relação à mediocridade de Hollywood era de um milênio de diferença. Parecia um gigante, um Golias, cercado por 10 mil Davis por todos os lados, todos ao mesmo tempo fascinados por sua grandiosidade e odiando sua genialidade.

 

PLAYBOY- Vamos para outro homem considerado genial, e visivelmente importante em sua vida: Glauber Rocha. Como era a sua relação com ele?

JABOR- Glauber era um gênio extraordinário. As gerações mais jovens não tem ideia de sua importância porque só viram os filmes que ele fez no fim da vida. Quer dizer, talvez não tenham entendido a importância de Deus e o Diabo, Terra em Transe, O Dragão da Maldade. Porque os filmes dele abriram um buraco no tempo. Com ele, foi a primeira vez que o Terceiro Mundo exportou reflexão para o exterior. O Glauber pegou a linguagem do colonizador e reexportou, fazendo uma análise crítica do colonizador. Eu tive a honra de ser amigo pessoal daquele gênio raro, que foi sacrificado pela mediocridade brasileira, que morreu de desgosto de ver tanta burrice e tanta estupidez.

 

PLAYBOY- Outra pessoa fundamental em seu trabalho, e aparentemente em sua vida, foi o Nelson Rodrigues. Como vocês se relacionaram?

JABOR- Ele era uma espécie de avô ou pai artístico que eu tinha. Era uma pessoa extraordinária. Eu falava com o Nelson todo dia, de 1972 até a morte dele, em 1980. Todo santo dia me telefonava e, quando eu atendia o telefone, ele me falava assim: (Imita a voz grave e pastosa de Nelson Rodrigues) “Mas Jabor, você é uma pessoa tão importante, atendendo o próprio telefone! Você é um contínuo de si mesmo” (risos). Tudo o que ele falava tinha um sentido transcendental. Até seu “bom-dia” tinha um sentido a mais, porque o Nelson era a paródia viva do brasileiro, a paródia viva da estupidez brasileira. Ele tinha uma visão transversal do Brasil que pouca gente tem. Mesmo os intelectuais brasileiros mais sofisticados não têm o sentido irônico que Nelson Rodrigues tinha. O Nelson não era um homem erudito, o que aliás o salvou de uma série de defeitos que a literatura brasileira tem. Sua importância é ter ficado num lugar à parte na literatura brasileira. Ele não entrou no Panteon “grave” da literatura brasileira. Ele ficou fazendo uma careta, piscando um olho no canto do Panteon. Ele tinha uma frase genial: (Imita a voz) “O problema dos personagens é que nenhum deles sabe bater um escanteio bem”. Isso pode se aplicar aos literatos brasileiros. O problema deles é que nenhum sabe bater um córner.

(Neste momento a filha mais velha, Carolina, de 11 anos, olhos azuis e aparelhos nos dentes, chega com o motorista, Tarcísio, e diz para o pai: “Hello, baby”. A outra filha, Juliana, de 9, vem para a sala. Jabor agrada as duas.)

JABOR- Elas deram entrevista à revista Claudia outro dia, não foi? Bem, voltando ao Nelson. Ele morreu antes de Eu Te Amo ficar pronto. Não era uma história dele, ele ficava com ciúme e dizia: (Imita) “Você não tem mais coragem de fazer mais um filme meu porque tem medo de que o Partido Comunista te critique, que a esquerda te critique”. E eu: “Nelson, não é isso. Eu já fiz dois filmes seus, agora chega”. Sobre Eu Te Amo, ele ficava perguntando pelo telefone todo dia: “Mas, Jabor, eu quero saber o seguinte: se Deus perguntasse pra você: ‘O filme tá bom ou não tá bom?’, o que você responderia pra Deus?” Eu dizia que achava que estava bom, que estava fazendo o possível. E ele: “Mas eu quero saber qual é a opinião do assaltante”.

 

PLAYBOY- O que ele queria dizer?

JABOR- Essa é genial. Eu perguntei: “Que assaltante?” Ele: “O assaltante, Jabor. O assaltante é o sujeito que está fugindo da polícia na Cinelândia porque bateu uma carteira, entra no cinema para se refugiar no escuro, assiste ao filme por acaso. Se ele gostar, o filme é bom. Se não gostar, o filme é ruim. No julgamento da obra de arte, o importante é a opinião do assaltante”.

 

PLAYBOY- Você foi muito patrulhado por filmar obras do Nelson Rodrigues?

JABOR- Quando eu fiz Toda Nudez, a esquerda caiu de porrada em cima de mim. Quando eu disse que o fascismo podia ser de direita ou de esquerda, só faltei apanhar. Alguns cineastas pensaram até em escrever um manifesto que seria publicado no Jornal do Brasil contra o filme. Eles não puderam porque, no dia em que pensavam publicar, o filme foi retirado de cartaz pela polícia. Até metralhadora dentro de cinema houve. A ditadura brasileira, o general (Antonio) Bandeira (então diretor da Polícia Federal) diziam que o filme não podia terminar com o garoto fugindo com o ladrão boliviano. O filme estava há nove semanas em cartaz, era o maior sucesso de bilheteria no Brasil na época e, por grande ironia, ao mesmo tempo em que era tirado de cartaz aqui, representava oficialmente o Brasil no Festival de Berlim. Aí ganhou o Urso de Prata e foi um tal escândalo internacional – porque foi noticiado no mundo inteiro – que o embaixador do Brasil na França, que era o general (Aurélio de) Lyra Tavares, recomendou ao governo que deixasse o filme voltar a cartaz.

 

PLAYBOY- Você se referiu há pouco ao fato de muitos intelectuais brasileiros não saberem bater um escanteio, falou num quase-manifesto contra um filme seu. O que você acha dos intelectuais brasileiros?

JABOR- Eu acho que o “bode” no Brasil ainda é visto como uma coisa “séria”, e que a alegria ainda é ligada à irresponsabilidade. Mas acho que a grande importância que o tropicalismo, o Caetano Veloso e o Gilberto Gil tiveram foi que eles trouxeram o conceito de alegria para o pensamento brasileiro. Isso é novo, é uma coisa revolucionária na cultura brasileira. No Brasil, ainda se liga muito cultura com sepultura, literatura com sepultura, profundidade com dificuldade, seriedade com “bode”. Mas existe uma tradição profundamente moderna, atual na cultura brasileira – das músicas populares dos morros cariocas, dos grandes compositores populares com seu savoir faire, da música dor-de-cotovelo que dá a volta por cima -, que não pode ser abandonada. Porque se impressionar com a morte é uma coisa muito antiga e muito fácil. É muito fácil ser “profundo” com a morte, ser “profundo” falando da tragédia de viver, falando que a morte é inevitável. É muito mais difícil compreender o universo sem Deus do que com Deus. Profundo é você falar da vida sabendo que vai morrer, é falar da alegria sabendo que a tragédia existe. Talvez para o brasileiro seja muito mais revolucionário ser feliz do que ser infeliz, ser alegre do que ser bodeado.

 

PLAYBOY- Essa nova postura do brasileiro pode sair de onde?

JABOR- Espero que surja de um Brasil reaquecido economicamente, com reformas feitas. Porque uma das coisas importantes numa reforma como a agrária, por exemplo, além de dinamizar economicamente o país, dar terra a quem está morrendo de fome, é acabar com o que há de pior no Brasil, e que é o grande quisto, o grande câncer reacionário nacional, que vai desde o latifundiário de extrema direita até o padre que o combate. Porque o reacionarismo assume formas sutis e insuspeitas, e pode atingir homens progressistas como os padres que estão fazendo a luta contra os latifundiários mas foram contra a liberação do filme do Jean-Luc Godard (Je Vous Salue Marie). Eu já disse antes: é muito fácil para um padre ser a favor de Marx. Eu quero ver é ser a favor de Freud!

 

PLAYBOY- Falando de reacionarismos, você acha que o intelectual brasileiro em algum aspecto é reacionário?

JABOR- O intelectual também é reacionário. Eu sou, todos nós somos, todos nós queremos nos apegar a uma boa consciência. Eu não estou me excluindo disso não, viu? Sinto em mim os mesmos impulsos que regem outros dos chamados próceres da cultura brasileira. Cada um tem um feudozinho e fica agarrado a sua descoberta. Eu, se tiver forças, quero ser capaz de rever minhas posições, ser capaz de fazer do meu próximo filme algo que nada tenha a ver com o atual. A única coisa que o intelectual no Brasil tem que fazer é arriscar a própria pele, a própria razão. Quando andei falando essas coisas toda sobre amor e sexo, no fundo eu estava querendo dizer o seguinte: vamos ver se a gente questiona e se expõe um pouco mais ao ridículo, cacete! O que tem de bom nos artistas ou intelectuais brasileiros foi quando eles se expuseram ao ridículo.

 

PLAYBOY- Quem se expôs ao ridículo?

JABOR- Glauber Rocha foi um homem que morreu exposto ao mais sublime ridículo. A maior grandeza dele foi sempre a capacidade de se expor. É a grandeza de nossos grandes artistas e poetas, é a grandeza de Oswald de Andrade, é a grandeza, embora em menor grau, macunaímica, do Mário de Andrade, é a grandeza do (diretor de teatro) Zé Celso (Martinez Corrêa), com que eu impliquei uma época...

 

PLAYBOY- Você meteu o pau nele, não?

JABOR- Mas numa boa, porque adoro o Zé Celso e tenho grande admiração por ele. Impliquei porque achei que ele não estava trabalhando, que estava perdendo tempo com besteira...

 

PLAYBOY- Mas não foi só você que achou, não é?

JABOR- É, as pessoas ficavam chamando ele de decano do ócio, como disse (o jornalista) Telmo Martino. Ele tem razão. O Zé Celso passou dez anos vagabundeando e vivendo do sucesso que tinha amealhado anteriormente. O Zé Celso é uma mente de fogo, ele não pode...

 

PLAYBOY- Você acha que combina com essa mente de fogo pedir dinheiro ao Maluf?

JABOR- Combina isso. Isso tudo é criatividade. No início achei que era babaquice, mas depois ele escreveu um artigo na Folha de S. Paulo, quando reuniu todos os personagens e transformou o Maluf num personagem, e eu achei genial. Ele fez um grande happening com o Maluf, um genial teatro vivo, com aquela transação de obter dinheiro para o Teatro Oficina. Ele criou uma dramaturgia nova, como já tinha criado antes.

 

PLAYBOY- Quem mais sabe se expor?

JABOR- A Sônia Braga sempre soube se expor ao ridículo. Ficou nua! Tornou-se símbolo sexual do Brasil! A Fernanda Montenegro sempre soube se expor ao absurdo em suas representações.

 

PLAYBOY- Você inclui entre os intelectuais que se expuseram ou se expõem o senador Fernando Henrique Cardoso, com sua candidatura a prefeito de São Paulo?

JABOR- Grande trabalho intelectual, o do Fernando Henrique! Um homem do porte dele, que foi para a rua. Que tentativa moderna! Que coisa moderna ele ser político, tendo que enfrentar o tédio e as mãos que o agarraram durante a campanha política.

 

PLAYBOY- E ainda por cima perdeu para o Jânio Quadros.

JABOR- É, houve uma vitória do mal. A estupidez brasileira é grande. Mas não tem importância! O trabalho que ele fez foi muito bom. E ainda expôs a treva.

 

PLAYBOY- E os intelectuais do PT, como o Francisco Weffort?

JABOR- Não conheço pessoalmente o Weffort, mas sei que é um homem de valor. Mas não sou petista. Há um certo ranço de obreirismo nos intelectuais do PT que me aflige um pouco. Acho meio fácil ser petista para ser intelectual. Existem posições mais complicadas. Mas não quero aprofundar isso porque não os conheço e posso ser injusto com eles. O que acho é que aos intelectuais e artistas cabe agora produzir coisas um pouco contra o que eles sabem, depois de, durante a ditadura, estarmos todos enquistados em dez certezas. É aí que pode surgir uma nova coisa na cultura brasileira, em todas as áreas. É por isso que eu acho que foi um barato o que os jovens economistas fizeram, o Plano Cruzado.

 

PLAYBOY- O que você achou dos economistas que fizeram o Plano Cruzado?

JABOR- Eles questionaram um método de trabalho. Eles tiveram uma originalidade enorme porque fizeram uma reforma econômica sui generis no mundo, um trabalho político novo, que é um trabalho político não-ideológico, não-messiânico, não-impressionista. Foram técnicos. Isso é o novo. A esquerda com capacidade técnica é uma coisa extraordinária, porque a esquerda é romântica e não-pragmática. Como eu disse na televisão, os meus ídolos não são gente como o Bob Dylan, mas eles.

 

PLAYBOY- Mas como é que o intelectual brasileiro vai dar essa virada que você defende? Ele não tem, em muitos casos, uma mala cheia de certezas?

JABOR- (Sem responder) O que é um intelectual? É um sujeito que tem medo de trepar e que vai ler quando tem 12 anos idade. Agora, depois ele pode utilizar essa loucura e transformar numa loucura boa.

 

PLAYBOY- Você também ficou lendo e vez de trepar, nessa época?

JABOR- Quando eu era adolescente, em vez de ficar namorando as meninas, eu ficava lendo. Hoje em dia sou feliz por isso, porque aprendi muitas coisas, mas ao mesmo tempo deploro as trepadas que não dei, as mulheres que não comi e os livros que fiquei lendo no lugar.

 

PLAYBOY- E isso é irreparável?

JABOR- Irreparável. As mulheres que eu não comi são irreparáveis. Graças a Deus, li bons livros (risos), embora tenha perdido grandes mulheres.

 

PLAYBOY- Bem, mas você se recuperou depois, certamente...

JABOR- Recuperei. Graças a Deus, hoje em dia leio bons autores e como boas mulheres (risos).

 

PLAYBOY- E quando foi que uma grande mulher pela primeira vez substituiu um grande livro?

JABOR- A mulher que me deflorou (irônico), foi quando eu tinha 16 anos. Olha que coisa, anos dourados, que coisa extraordinária, que coisa (risos) anos 50! Eu tinha 16 anos e fui assistir à ópera La Traviata no Teatro Municipal com amigos.

 

PLAYBOY- Que começo luxuoso, hein?

JABOR- Olha que coisa fina! Estávamos numa frisa, comprada com uma vaquinha, quando no hall, entre o primeiro e o segundo ator, uma moça começou a me dar bola. Uma moça bonita, morena. Eu fiquei completamente em pânico. “Meu Deus, tem uma mulher me dando bola”. Não era uma menina, era uma mulher. Ela veio se aproximando, eu era muito tímido, muito magro, embora bonitinho e tudo. Era uma aeromoça da Real Aerovias.

 

PLAYBOY- Aeromoça?

JABOR- Olha que coisa! Da Real Aerovias! Então ela falou: “Vamos sair dessa ópera e vamos lá pra casa”. Eu estava tão nervoso que fiquei potente mas não conseguia gozar, demorei muito. Então a mulher ficou fascinada, achando que eu era um veterano, quando ela mal sabia que ali estava um baila de debutantes.

 

PLAYBOY- Ela foi uma precursora, não?

JABOR- É. Aí fiquei namorando com ela um tempão.

 

PLAYBOY- Essa moça descobriu depois que aquela tinha sido sua primeira vez?

JABOR- Não me lembro. Mas eu me lembro que em cima da penteadeira dela tinha um retrato do Tony Curtis. E eu fiquei apaixonadíssimo. Não me esqueço. Você vê que eu fui nas asas da Panair com ela...

 

PLAYBOY- Nessa mesma época, pelo que se sabe de sua biografia, você também fez sua iniciação política, que passou pelo CPC da UNE e por aquela fase do nacionalismo. Como esse fundador do CPC da UNE se define politicamente?

JABOR- Sou socialista e a favor do aumento da qualidade de vida das pessoas.

 

PLAYBOY- Dos modelos de socialismo existentes, tem algum que se aproxime do que você acha razoável?

JABOR- Sou a favor do socialismo progressivo, mas fascinado pelo gradualismo das etapas. Tenho horror ao messianismo, que é coisa burra, individualista e nascísica. O Brasil não pode, é claro, passar diretamente para o socialismo, ainda tem que se organizar em termos capitalistas. Acho que há coisas muito boas em Cuba, país pelo qual tenho grande admiração, como tenho também pela Suécia, por alguns aspectos da China e da União Soviética e pelos aspectos de liberdade que há nos Estados Unidos. Sou contra a estupidez da falta de liberdade na União Soviética, mas a favor do socialismo. Não é possível que a raça humana não possa produzir um socialismo livre. É uma coisa tão simples, meu Deus!

 

PLAYBOY- Que grau de expectativa a Nova República atingiu você?

JABOR- Acho que o primeiro capítulo foi muito bom. O choque heterodoxo na economia me deixou muito emocionado, porque nunca tinha visto uma sociedade se mexer dessa forma. Pela primeira vez eu vi a população se sentir a sociedade civil. Porque não é movimento de massas, só ir ao comício e depois ir embora pra casa foi na campanha das diretas – que foi, é óbvio, uma coisa boa. Mas a campanha das diretas era um movimento de oposição, e a eleição do Tancredo e do Sarney foi um movimento de oposição. Então era uma reivindicação reativa. Com o cruzado, vimos a população numa atitude ativa. Mas agora vem a parte mais difícil, que é a reforma das estruturas econômicas e sociais. Acho que a Nova República tinha que cooptar o Exército para a nossa mudança estrutural, para o governo fazer três coisas fundamentais: a reforma agrária, a renegociação séria da dívida externa e a luta contra a miséria brutal que existe no Brasil. O Plano Cruzado foi importantíssimo, mas ele contrariou relativamente poucos interesses. O governo precisa ter coragem de contrariar, agora, os interesses poderosíssimos dos capitalistas improdutivos, dos latifundiários e do imperialismo americano, da usura internacional. Eles são os três inimigos da Nova república. E têm alguma coisa em comum, que é o extremo conservadorismo de suas mentes, de suas sexualidades, de um mundo gerenciado pelo sentimento de morte e o aniquilamento das diferenças, do desejo humano e da alegria de viver. E, além das coisas fundamentos que eu citei, há outras mudanças importantes a fazer, claro.

 

PLAYBOY- Por exemplo?

JABOR- O Brasil é um país muito reacionário, muito careta, muito sem aventura. E não falo só de aventura sexual. A gente pega a sexualidade porque ela é a base do sistema (risos). Embaixo de tudo, junto com a luta de classes, tem a sexualidade queimando fundo, juntinho. Na base do conservadorismo brasileiro tem um conservadorismo sexual muito grande. Quando você vê a estupidez e a boçalidade da resistência à reforma agrária, por exemplo, nota que por trás daquilo há um machismo, uma voracidade, um desejo de manutenção de uma situação...Outro dia li uma entrevista de um desses canalhas da UDR (União Democrática Ruralista, organização de fazendeiros). Você vê que tudo o que eles dizem culmina na propriedade privada, e ela abrange desde as terras improdutivas até a esposa triste. Como dizia Rimbaud “il faut changer la vie”. Quer dizer, é a vida que pode e deve ser reinventada e aventurosa.

 

PLAYBOY- Só para não perder o fio de uma resposta que você deu há pouco: incluir o Exército na política, como você propôs, não é por definição inadequado, negativo?

JABOR- É uma pergunta difícil de responder, porque a resposta implica fina raciocínio político. É sutil a tarefa de incluir os militares na vida pública, mas não é possível que eles só entrem em último caso, só com uma atitude golpista. O Exército nasceu para guerrear. Então, tem que guerrear a miséria, a violência, a fome e a injustiça. Os militares dão duro, são brasileiros que podem ajudar na reforma social do país.

 

PLAYBOY- Em quem você gostaria de votar para presidente? Há algum líder que o comova, que o interesse?

JABOR- Para presidente? (Sem hesitar) Fernando Henrique Cardoso. Dilson Funaro.

 

PLAYBOY- O que você acha de Brizola?

JABOR- Acho um brilhante político antigo, porque é messiânico, impressionista e individualista. É uma esquerda que ficou arcaica depois do Plano Cruzado. Acho o Brizola uma coisa populista que, se Deus quiser, está acabando no Brasil.

 

PLAYBOY- Você vai votar em que partido na Constituinte?

JABOR- Não vou votar em partido nenhum. Vou votar em pessoas.

 

PLAYBOY- E já escolheu?

JABOR- Ainda não. Eu ia votar no Eduardo Mascarenhas, ele desistiu (de ser candidato). Vou escolher entre os mais inteligentes, os mais modernos, os menos vinculados à sordidez brasileira, que é imensa.

 

PLAYBOY- Você falou na possibilidade de votar no Eduardo Mascarenhas, que é seu amigo. O que você acha dele?

JABOR- O Eduardo e eu fizemos um pacto narcísico em que um estimula o outro a melhorar, a lutar. A gente troca: ele nunca foi meu psicanalista, mas ao mesmo tempo é, e eu sou psicanalista dele. O Eduardo é visto por alguns como vaidoso, mas é uma pessoa muito inteligente e muito generosa, que se expõe muito e é às vezes mal compreendido pelos anões.

 

PLAYBOY- Você tem muitos outros amigos pelo que se sabe. Fale de mais um que seja conhecido do público.

JABOR- A gente tem sempre um ministério de amigos, né? Meu querido amigo de 25 anos é o Cacá Diegues. Ele é meu ministro – não no sentido de que sou o presidente, porque eu também sou ministro dele para outras coisas – da lucidez, da sabedoria política e de uma espécie de paternidade substituta. Ele me dá bons conselhos, me dá esporros – “Não faz isso, deixa de ser babaca” – e ás vezes até faço um ato falho, chamando ele sem querer de papai e não de Cacá.

 

PLAYBOY- E mulheres?

JABOR- A Glória Kalil, uma grande e terna amiga, que é uma coisa mais que amiga e que a gente não sabe exatamente o que é. Talvez seja uma “amorzade”, eu não sei o nome dessa coisa que eu tenho com ela e que terá muitas evoluções ainda, se Deus quiser. Tem a Ana Lúcia Magalhães Pinto, psicanalista, responsável pelos projetos culturais do Banco Nacional. Minha primeira mulher, Teresa Simões, pintora, minha segunda mulher, Eleonora Barbosa Melo, psicanalista...

 

PLAYBOY- É possível ser amigo de ex-mulher?

JABOR- Sou amigo de todas, porque, se não for amigo delas, vou ser amigo de quem? (Risos) Elas tiveram a paciência de me suportar. E tenho uma porção de outras pessoas amigas. Daqui a pouco vai ter gente carente aí dizendo que não me lembrei deles.

 

PLAYBOY- Tem dois que pelo que se sabe são hors concours na lista: seu pai e sua mãe. Eles viram todos os seus filmes?

JABOR- Todos.

 

PLAYBOY- Gostaram?

JABOR- Mamãe gosta de tudo o que eu faço, naturalmente. (A filha Juliana, presente na sala, observa com atenção.)

 

PLAYBOY- Mas e se ela falasse com Deus, como diria o Nelson Rodrigues, ele diria que gostou?

JULIANA- (Interrompendo) Mas o vovô não!

JABOR- Vovô...Meu pai não gosta de tudo. De algumas coisas gosta mais, outras menos. Papai é mais severo.

 

PLAYBOY- A restrição é estética ou...

JABOR- Ás vezes ele implica. Ele não explica muito, não. Mas gosta da maioria, gosta muito. De alguma forma eu...

JULIANA- Mas desse último o vovô não gostou...

JABOR-...Dou um pouco de aventura para a vida deles, também. Acho que a minha existência esquisita faz a minha família se ligar.

 

PLAYBOY- Embora seus filmes sejam para adultos, suas filhas já viram?

JABOR- Todos. Viram até Eu Te Amo, escondidas de mim. (Brinca com as duas) Elas não prestam.

 

PLAYBOY- E o que elas acharam?

JABOR- Pergunta pra elas. (Pausa) Elas adoram.

 

PLAYBOY- (Para Juliana) Você gostou?

JULIANA- Eu só vi O Circo, Toda Nudez, Eu Te Amo, Eu Sei Que Vou Te Amar e Tudo Bem.

 

PLAYBOY- E de qual gostou mais?

JULIANA- Eu Te Amo.

JABOR- (Brincando, dirigindo-se às filhas) É que tem casal transando, e elas no colégio só falam nisso, né?

JULIANA- Eu não.

JABOR- Tá na idade. É normal. Nove, dez anos começa a conversar.

JULIANA- O que eu mais gostei foi Eu Te Amo. O Circo eu odiei, acho muito triste. Eu Sei Que Vou Te Amar eu gostei. E Tudo Bem eu gostei

(Jabor a essa altura já está comendo torradas com queijo branco.)

                                                

PLAYBOY- Você tem cuidados com o corpo?

JABOR- Tenho. Faço ginástica todo dia em casa. Ás vezes corro, mas acho chato, demora muito. Eu não fumo, acho a pior coisa do mundo, bebo pouco, não como comidas pesadas, me drogo socialmente. (Em tom de zombaria)

 

PLAYBOY- Já que você falou no assunto: a revista Veja faz há algum tempo uma reportagem mostrando que as pessoas que criam, que têm que tomar decisões, que têm que brilhar no trabalho estão recorrendo maciçamente à cocaína. O que você acha disso?

JABOR- Acho droga péssimo. Acho cocaína um bode. Já experimentei todas as drogas existentes, mas acho tudo um bode. Quem se droga não está com nada, não adianta nada para a criação, pelo contrário, atrapalha. Antigamente se fumava muita maconha para fazer filme. E um amigo meu inteligentíssimo, o Mair Tavares, montador do meu filme, cunhou uma frase ótima: “Filmou louco, tem que montar louco – e assistir louco”. Se não, não combina. (Risos) A droga é a arma do fraco. Não sou contra o uso dela como brincadeira. Já usei tudo, tudo. Tomei qualquer droga que você possa mencionar. Agora, como brincadeira, nunca como uma coisa séria.

 

PLAYBOY- Você também notado essa tendência apontada pela Veja?

JABOR- Há uma calamidade pública no Brasil, visível: as pessoas estão se drogando muito. Cocaína demais e álcool demais. Agora, a culpa maior é da oferta, de um lado, e de outro da sordidez nacional, mais uma vez, além da falta da capacidade de construir a própria alegria.

CAROLINA- (Acabando de entrar na sala) Pai, heroína?

JABOR- (Para a filha) Heroína eu nunca tomei, não.

CAROLINA- (Sem ouvir) Que horror! Você gosta?

JABOR- Eu nunca tomei heroína.

CAROLINA- Ah, mas cocaína?

JABOR- Cocaína eu já experimentei, sim, senhora.

CAROLINA- Nossa! E você gostou?

JABOR- É engraçado experimentar só para saber como é. Mas faz muito mal para a saúde.

 

PLAYBOY- Falamos tanto de amor, e para encerrar esta entrevista, vamos voltar a ele: em seu depoimento ao Jornal do Brasil você disse que, depois de experiências e sofrimentos com o amor, você descobrira a amizade como uma forma mais simpática e serena de gostar, sem aquele caráter eterno e indiscutível do amor. Ainda pensa assim?

JABOR- Não, esse negócio é mentira. Não acho mais isso. Mudei. (Risos) Não acho que a amizade possa de forma alguma substituir a magia do amor, não. O amor é que dá sentido transcendental às coisas. A amizade não dá sentido transcendental a porra nenhuma. A amizade é ótimo, mas para descansar.

JULIANA- (Interrompendo) Ah pai, não fala indecência...

JABOR- Não tem nada de indecência. Por acaso amor é feio?

 

Publicado originalmente na revista “Playboy” em outubro de 1986

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