Uma conversa franca com o diretor de Eu Sei Que Vou Te Amar sobre a vontade secreta dos casais transarem com outros parceiros, Festival de Cannes e Dilson Funaro para presidente
O próximo filme do cineasta Arnaldo Jabor vai ser sobre
o livro O Amante, de Marguerite
Duras. Ou sobre A Primeira Selvagem,
de William Faulkner. Ou, quem sabe, Vestido
de Noiva, de Nelson Rodrigues, ou ainda Reflexos
do Baile de Antônio Callado. Existe ainda uma boa possiblidade de não ser
sobre nenhum desses temas: ele está em constante processo de reelaboração de
planos. Em duas hipóteses, porém, pode se apostar sem grande risco: vai
provocar muita polêmica e vai ser um sucesso.
Pois a carreira de Jabor tem sido – uma fusão de
talento questionador com o êxito comercial, sobretudo a partir de Toda Nudez Será Castigada (1972),
considerada por muitos críticos como a melhor transposição para o cinema de uma
obra de Nélson Rodrigues. O ponto alto em matéria de público, é claro, foi Eu Te Amo (1981), que, batendo nos 4
milhões de espectadores, é uma das vinte maiores bilheterias da história do
cinema brasileiro, já foi exibido em 21 países estrangeiros e catapultou de vez
Sônia Braga para o estrelato internacional. Mas Jabor tem mostrado capacidade
de tocar a alma do público mesmo quando a explosiva sensualidade de uma estrela
sexy não está presente. É o caso de Eu
Sei Que Vou Te Amar, com Fernanda Torres e o estreante Thales Pan Chacon,
que, apesar de ser basicamente “um filme sobre um casal sentado em cima da cama
e conversando”, como exagera bem-humoradamente o próprio Jabor, é um dos
grandes sucessos de 1986 – até agosto, já fora visto por mais de 1,3 milhão de
pessoas.
O filme, na verdade, é uma funda reflexão sobrea a
beleza e a grandiosidade, mas também as limitações e as impossibilidades
contidas no fato de duas pessoas, se amarem e tentarem viver juntas,
simbolizando num casal sem nome que se reencontra após três meses de separação.
Junto com o filme, Jabor lançou um romance com o mesmo título – também
best-seller -, que lhe serviu de base para filmar. E, entre outras entrevistas
– tudo considerado por ele “parte da mesma obra de arte” -, concedeu um
explosivo depoimento sobre o amor ao Jornal
do Brasil, significativamente intitulado “O amor deixa muito a desejar”.
Ali, investiu contra a forma como o amor é organizado e a fidelidade conjugal,
analisou ferinamente o machismo de boa parte dos homens brasileiros e pregou a
reconquista “da animalidade perdida”, a luta pela aventura e, até, o direito à
solidão.
Foi uma bomba. “Teve algumas mulheres que me
telefonaram, algumas chorando, dizendo que haviam guardado na gaveta para ler
sempre”, conta Jabor.
Não poderia ser diferente para quem se considera um
artista desde os 12 anos, época de suas primeiras poesias, e que acredita ser
função vital da arte “tirar o sossego dos cidadãos”. Jabor só se formou em
Direto na PUC carioca, depois de ter estudado com os jesuítas do Colégio Santo
Inácio, “para ser simpático com a família”. Os pais eram “um casal bem anos
dourados”: o pai, descendente de libaneses, um capitão da Aeronáutica,
ex-alpinista, hoje brigadeiro da reserva, “que voava e cabeça pra baixo e era
uma figura poética, um alucinado, um personagem de Oswald de Andrade”, a mãe,
de origem alemã, “linda, uma espécie de Greta Garbo da Tijuca”.
O cinema resultou de toda uma militância cultural que
incluiu desde a montagem de peças de sua autoria no colégio até a participação,
como membro fundador e autor de peças que correram o Brasil, do célebre Centro
Popular de Cultura (CPC) da UNE. Vital, também, foi sua passagem pelo semanário
O Metropolitano, da União Metropolitana
dos Estudantes do Rio – uma vanguardista experiência de jornalismo, oito
páginas que circulavam aos domingos em todo o país, encartadas no extinto
Diário de Notícias por criativa extravagância de seu proprietário, João Dantas.
Tratava-se de um fervilhante caldeirão de ideias por onde passaram fornadas de
intelectuais, dos cineastas Glauber Rocha e Cacá Diegues aos críticos de arte
Roberto Pontual e Ferreira Gullar, do humorista Henfil ao teatrólogo Oduvaldo
Vianna Filho ou o futuro deputado Marcelo Cerqueira. Um dia, em 1962, quando
ambos militavam no jornal, o grande amigo Cacá Diegues disse a Jabor: “Acho que
eu vou fazer cinema”. Num estalo, sem mais nem menos, Jabor definiria seu
próprio destino com quatro palavras: “Então eu também vou”.
Deu certo: do experimentalismo de seu primeiro filme, o
documentário O Circo (1965), Jabor
conseguiu atrair as atenções com o longa-metragem de “cinema verdade” Opinião Pública (1967). O insucesso de Pindorama (1970), que o próprio Jabor
considerou ambicioso demais, não impediu o estouro, dois anos depois, de Tuda Nudez, a que se seguiu, em 1975,
outra boa obra baseada em Nelson Rodrigues, O
Casamento, e em 1978, a bem-humorada e caótica metáfora sobre a classe
média brasileira, Tudo Bem, que
reuniu pela primeira vez Fernanda Montenegro, Gianfrancesco Guarnieri e Paulo
Gracindo no cinema.
Seus filmes lhe trouxeram uma conta coleção de prêmios
– incluindo festivais como o de Berlim, o de Pesaro, na Itália, o de San
Francisco, o do Museu de Arte Moderna de Nova York, os de Brasília e Gramado,
sem contar a exibição hors-concours de Eu Te amo em Cannes, em 1981, e o prêmio
de Mulher Atriz em Cannes este ano para Fernanda Torres por Eu Sei Que Vou Te
Amar. Nem os prêmios nem o sucesso comercial, porém, permitiram que Arnaldo
Jabor ficasse rico. “Eu Te Amo fez mais de 4 milhões de dólares nos Estados
Unidos, mas nós (o produtor foi o homem de TV Walter Clark) só recebemos 100
mil dólares”, vocifera Jabor, que responsabiliza “a máfia de Hollywood, seu
sistema de contabilidade e sua estrutura advocatícia superbem montada” por
fenômenos desse tipo. Tudo o que sobrou de seu filme mais rentável, assim, ele
aplicou num apartamento que deixou para a segunda ex-mulher, a psicanalista
Eleonora Barbosa Melo, com quem esteve casado por dez anos, e para as filhas
Carolina, de 11 anos, e Juliana, de 9. (Jabor e a primeira mulher, a artista
plástica Teresa Simões, não tiveram filhos.) Agora, com a renda que espera
obter com Eu Sei Que Vou Te Amar,
Jabor pretende comprar um apartamento para si.
A dura postura crítica de Jabor com relação ao cinema
americano, que ele considera hoje controlado pelas empresas de seguro
garantidoras dos investimentos na produção ao ponto de virtualmente ditarem o
tom de boa parte da dramaturgia internacional, não o impede de ter um projeto
sendo examinado em Hollywood. É um filme baseado em Reflexos do Baile, uma
história de sequestro político e guerrilheiros urbanos, com personagens que vão
de um favelado carioca ao embaixador da Suíça, o papa e o presidente dos
Estados Unidos. Jabor quer que a história de Callado, em suas mãos, se
transforme “numa grande farsa dramática com personagens internacionais”. E
justifica: “Eu quero criar incompreensões. Meu próximo filme tem que ser um
objeto não totalmente compreensível, um objeto de inquietação, de pesquisa”.
Para entrevistar esse irrequieto cineasta profissional
da cultura brasileira e, ultimamente, pensador do amor - função que
adicionalmente o habilita o sucesso que seu 1 metro e 90 e seus olhos verdes
fazem com que as mulheres -, PLAYBOY enviou ao Rio de Janeiro o editor especial
Ricardo A. Setti. Seu relato:
“Se eu tivesse que fazer alguma queixa da missão que
recebi, diria (brincando, é claro): ‘Vocês não poderiam me arranjar alguém
menos inteligente para entrevistar?’ Porque com Arnaldo Jabor, é assim: as
ideias fluem aos borbotões e, concorde-se ou não com elas, são expostas com tal
brilho e entusiasmo que nem sempre ele se dá ao trabalho de responder às
perguntas ao pé da letra. Em nossos encontros, cordialíssimos, realizados em
parte de uma manhã e duas tardes, mais de uma vez eu o despertei para o fato de
que, diretor de cinema, ele estava tentando dirigir, também a entrevista. Jabor
ria muito.
As gravações se deram na ampla sala do apartamento
alugado que Jabor ocupa em um daqueles prédios em Ipanema com ar de casa, sem
elevador e dotados de escadarias de mármore branco. Bem na Rua Barão de
Jaguaripe, incrustado entre a Lagoa e o Leblon, no quartel-general de brilho
nacional, ele se dá ao luxo extra de ter um castanheiro à sua janela, no
terceiro andar: a árvore, plantada na rua, é mais alta que o pequeno edifício.
Ele me convidou para almoçar a certa altura – um brasileiríssimo
cardápio de arroz, feijão-preto, frango com ervilhas, purê de batatas e salada
de couve-flor servido pela empregada Leda, que cuida da casa. (Jabor vive
sozinho, embora seja sintonizado a uma relação que ele classifica de ‘amorzade’
com a empresária de moda e militante em tempo integral do bom gosto Glorinha
Kalil, que vive em São Paulo). Uma das sessões contou com a eventual
participação das duas filhas do entrevistado, que mora com a mãe e, como fazem
com frequência, vieram passar uns dias com Jabor. Como o leitor verá, elas
ajudaram com muita eficiência a esclarecer certas questões. Estão,
definitivamente, saindo ao pai”.
PLAYBOY- Na esteira do
lançamento de Eu Sei Que Vou Te Amar,
você colocou em debate questões importantes sobre amor e sexo.
JABOR- Foi.
PLAYBOY- Nem longo
depoimento ao Jornal do Brasil, você
disse que o casamento “tira a aventura existencial das pessoas”, que os casais
brasileiros “estão engordando”, que é necessário “fazer lipoaspiração na alma”.
Você vê tanta infelicidade assim por aí?
JABOR- Eu não vejo nenhum casal feliz. É muito raro
você ver um casalzinho feliz numa boa. Você vê casaizinhos reprimidos numa
média. Não é isso? Você vê uma certa tristeza (algo irônico) no seio das famílias, um tédio no seio dos casais,
das mesas a quatro, dos jantares nos restaurantes. Isso me dá um certo favor,
porque por outro lado eu também quero me casar, eu também quero amar. Eu não
sou uma pedra Eu também acho o amor o máximo. Agora, as formas organizadas de
amor são apavorantes. Elas são feitas de horários, de compromissos, ainda de
fidelidade, de reclamações mútuas, de um desejo (bilateral) que se supõe eterno, quando o desejo é na verdade
múltiplo. Essas formas organizadas de amor são feitas de fidelidade, mas a
mulher quer dar para outros homens, e o homem quer comer outras mulheres. Está
todo mundo embananado nessa situação, e não foi o homem que criou isso.
PLAYBOY- Foi a mulher então?
JABOR- Foram as mulheres que criaram. Porque quem
começou a querer se libertar foram elas, que eram escravas centenárias, e agora
estão escravizadas na cozinha ou na exploração de sua nudez, da sua
sexualidade, estão escravizadas na fidelidade ou na sua objetificação sexual.
Elas são objeto da nossa punheta e da nossa violência. Eu vejo por exemplo em
mulheres sexy, mulheres famosas que eu conheço, o quanto elas são infelizes.
Mulheres que todo mundo quer comer e que estão espantosamente solitárias, de
uma solidão apavorante. Os símbolos sexuais estão cada vez mais sozinhos, sendo
contemplados pelas multidões infinitas de punheteiros machistas pelo Brasil
afora. Mas ninguém ama um símbolo
sexual. Então, o que criou a chamada crise do relacionamento homem-mulher foi
um desejo enorme que a mulher tinha de sair desse bode todo. Foi a pílula que
criou isso. Foi a capacidade e o desejo de infidelidade, foi o desejo de sair
da posição de virtude.
PLAYBOY- Você acha que os
homens em geral estão conseguindo manejar bem essa situação?
JABOR- Isso criou o medo do macho. Crise do casal é o
nome literário para esconder outra coisa mais concreta chamada medo da dor de
corno. Este discurso de que eu me aproprio é na verdade um discurso feminino. A
mulher é responsável por essa revolução, e ela tem que ser dado esse crédito. E
muitos homens deveriam agradecer a essas mulheres o sofrimento que elas lhes
deram e os chifres que lhes foram impostos.
PLAYBOY- Agradecer os
chifres?
JABOR- Sim, porque eles viviam mergulhados nas trevas.
Só os cornos (risos) verão a Deus. O
sujeito machista que é corno deveria se ajoelhar e agradecer, porque pela
primeira vez foi tocado pela condição humana. O machista traído é tocado pela
luz da verdade pela primeira vez. Caso contrário, ele passaria a vida toda com
suas camisas de voile e seus
reluzentes automóveis vermelhos, dando gargalhadas nas churrascarias,
presidindo a infelicidade da mulher e a própria ignorância e pastoridade de sua
vida. O macho enquistado, o macho “maçaroca” mesmo, o macho “empada” só conhece
a verdade ou pela experiência do corno, ou pelo perigo da perda da identidade
sexual, o medo do homossexualismo. Fora isso, ele continua integral, ele
continua um grande paralelepípedo de estupidez, que gera o fascismo, que gera a
propriedade privada gananciosa, que gera o latifúndio.
PLAYBOY- E essa luz da
verdade, qual é?
JABOR- A verdade é que a mulher é um pobre ser humano
igual a ele, com direitos iguais, e que de repente quer viver, quer ser livre,
quer experimentar sexualmente mais do que um só homem, quer poder trabalhar
fora, quer poder ser feliz, ter que necessariamente se desculpar. Ela tem o
direito de se apaixonar por outro homem. Tem o direito de se apaixonar por
outra mulher. Tem o direito de ir pra puta que a pariu!
PLAYBOY- Você se referiu à
questão da forma como o amor é organizado, à rotina das relações, à
obrigatoriedade da fidelidade. Mas como é isto na sua própria pele? Para você é
viável um relacionamento aberto com uma mulher?
JABOR- Acho viável, sim. (Pausa. Pensa um pouco) Eu não só acho como não consigo compreender
um amor feito de aprisionamento mútuo. Não quero que nenhuma mulher me seja
incondicionalmente fiel, como também não quero ter uma mulher que seja
basicamente infiel o tempo todo. O maravilhoso do amor é a vivência do
imaginário do amor, o lugar para onde ele te remete – um espaço poético, de
poetização da vida e do mundo. A natureza, as pessoas, a vida ficam mais
bonitas quando você está apaixonado. O amor é um grande LSD, é um êxtase. O que
eu quero, então, o importante mesmo é isso.
PLAYBOY- Sim, mas na sua
vida, no seu passado, como foi que... ?
JABOR- (Interrompendo)
Vou te falar tudo. Como todo macho brasileiro, tive dificuldade para entender
isso. Tive muitas mulheres, e fui aprendendo isso à medida que perdi algumas
mulheres. Uma das formas de elaborar o complexo de Édipo é através da perda da
mulher. Eu enganei muita gente, fui enganado também. Nesse jogo, nessa ciranda
louca, aprendi muito.
PLAYBOY- E agora, então...
JABOR- Hoje em dia, acho perfeitamente plausível para
mim que uma mulher que eu ame transe eventualmente com outros caras. Não quero
que ninguém seja fiel a mim porra nenhuma, entendeu? Não quero nada disso. Eu
quero fidelidade a esse sentimento mágico (do
amor), que ela saiba curtir ao máximo essa coisa enquanto está viva. Não
dou prazo para mulher nenhuma, nem pra ela nem pra mim. Não fico um minuto a
mais com uma mulher além do momento em que eu tiver certeza de que não quero
ficar com ela.
PLAYBOY- Será sempre assim?
JABOR- Lógico que nem tudo é claro assim. Sou um pobre
homem como qualquer outro. Posso perfeitamente apaixonar amanhã de manhã pelo
Anjo Azul e ficar de quatro cantando có-có-ri-có, como ficou o Emil Jennings
naquele filme do (diretor alemão Josef)
Sternberg (O Anjo Azul). Posso ficar
perfeitamente um débil mental, de quatro, numa boa. Mas pretende cada vez mais
tentar...Não quero ficar nessa alternativa única de ou promiscuidade sem amor
ou fidelidade careta. Será possível que não há outra coisa um pouco mais sadia,
meu Deus, pro homem e pra mulher? Deve haver.
PLAYBOY- Você fala tanto em
amor, e no entanto nesse depoimento ao Jornal
do Brasil chegou a dizer que “não amar também é beautiful”. Como é?
JABOR- (Meio
irritado) Não é isso. Não é isso. Aquela entrevista, e as coisas que andei
dizendo, são uma mistura do que eu sou com o filme. Não se pode fazer um filme
sozinho. Um filme não é uma coisa separada de você. Uma obra de arte tem que
ser uma coisa quase conceitual, é quase um trabalho de body art. Eu acho que sou um living
theater, em que se misturam o que sou e o que eu faço. Quando lanço um
filme ou um livro, quero que eles estejam dentro de uma nuvem de palavras e de
opiniões e que sejam o centro de um evento, mas apenas o centro. E que o evento
se complete, por exemplo, pelas entrevistas que dou. Quer dizer, o filme, o
livro, o videocassete que saiu, as entrevistas, tudo o que eu falei são obra de
arte junto com o filme. Porque a única função que vejo para um artista na
sociedade é provocar crises, é provocar polêmicas. A finalidade do artista é
acabar com a tranquilidade dos cidadãos, é fazer uma psicanálise da sociedade,
mais do que fazer uma conscientização, que é uma função dos anos 50 – aquela
coisa de que a obra de arte serviria para ensinar as pessoas a modificar a
sociedade.
PLAYBOY- Perfeito. Mas o
fato é que suas declarações sobre o amor, somadas ou não ao filme, tiveram
grande impacto.
JABOR- Quando eu falo de amor, eu estou falando de
outras coisas também. Eu não sou um consultor sentimental. A Glória Kalil disse
que a repercussão de meu filme se deve ao fato de que o filme e as entrevistas
sobre ele provocaram uma espécie de “choque amorodoxo”, ou “erotodoxo” – acho
isso uma coisa muito inteligente que a Glória falou. Então, quando eu falo de
amor eu estou trazendo para o público uma série de experiências vividas
psicologicamente por mim, um brasileiro datado historicamente, e, ao mesmo
tempo, eu também sou um observador do país. Então eu tenho que me apresentar
como prova do crime e, simultaneamente, falar sobre as coisas em que estou
pensando. Pra que isso? Pra melhorar o Brasil? Não, mas para ajudar as coisas a
se mexerem. Porque a tendência à inércia, que é próximo à morte, está sempre
presente na sociedade, na organização das coisas.
PLAYBOY- Ainda dentro do
tema homem-mulher, existe uma grande curiosidade envolvendo o trabalho de um
cineasta que já dirigiu mulheres belíssimas, como Sônia Braga e Vera Fischer. A
aproximação que se cria nas filmagens não produz um envolvimento do diretor com
a estrela?
JABOR- De mim para elas, não. Eu tenho uma perversão:
quando estou filmando uma mulher, eu não amo aquilo que filmo. Eu uso. O ator é
um pouco uma coisa para ser utilizada. Sendo assim, se eu me apaixonar pela
atriz, não sai filme? Eu nunca tive essa experiência.
PLAYBOY- Alguma atriz já se
apaixonou por você?
JABOR- Já.
PLAYBOY- Como é que foi?
JABOR- Eu achei ótimo, só que não correspondi muito a
essa paixão. Mas também é importante não decepcionar (a pessoa), porque você está fazendo um jogo. Fazer um filme é um
jogo sujo, não é um jogo limpo, não. Arte (risos)
é um jogo sujo. Essa mania de achar que arte é uma coisa limpa...Arte é uma
grande escrotidão, no fundo. A arte é também uma grande sujeira. Eu me lembro
de um personagem do Pasolini – acho que é de Teorema – um pintor, que dizia: “As pessoas veem meus quadros e
acham aquilo sublime, e não sabem o esforço, o medo e o horror que passei para dar
aquela impressão de tranquilidade”. Então, existe um lado impotente no diretor
que dirige belas mulheres.
PLAYBOY- E belas mulheres
foram o que não faltou nos seus filmes, não?
JABOR- Eu trabalhei com as seguintes atrizes
principais: Ítala Nandi, Darlene Glória, Adriana Prieto, Fernanda Montenegro,
Zezé Motta, Regina Casé, Sônia Braga, Vera Fischer, Fernanda Torres...É isso?
Será que não esqueci nenhuma? (Pausa)
O que é que você quer saber? (Em tom de
brincadeira) Quem eu transei? (Risos)
PLAYBOY- Bem, poderia ser...
JABOR- Eu não comi ninguém. (Abandonando
temporariamente o tom de brincadeira). Ei, isso aí não é pra botar na
entrevista, heim? Pelo amor de Deus, eu estou brincando. (Agora com tom autodepreciativo, irônico) Não comi ninguém. Eu não
como ninguém. Eu sou o anti-Daniel Filho. Eu sou o anticomedor. Eu não sou de
nada.
PLAYBOY- Mas você disse que
uma estrela se apaixonou por você. Quem foi?
JABOR- Nenhuma. Mentira minha. (Voltando o ar de brincadeira) Não! Todas se apaixonaram por mim e
continuam apaixonadas por mim, entendeu? Todas me amam profundamente e eu,
naturalmente, as renego, as rejeito. E quanto mais eu as rejeito, mais elas me
amam. (Dirigindo-se para o gravador)
Isto é uma brincadeira, hein? Sic! Sic! Não falando sério, cada...
PLAYBOY- Mas isso é sério. É
relevante para o leitor saber.
JABOR- (Dizendo
sobre a brincadeira) Eu não tive caso de amor com nenhuma delas, mas com
todas as atrizes (de meus filmes) eu tenho
um envolvimento psicológico muito grande, porque se não o personagem não sai
direito. Mas, por outro lado, se você se envolver muito, tiver uma transa de
amor, sexual, com a atriz, também atrapalha. Então, mantive essa distância.
PLAYBOY- E vontade de?
JABOR- Fiquei com vontade disso algumas vezes. (Pausa) Não vou dizer por quais, mas me
segurei, porque (cinema) é feito uma
coisa de psicanalista. Um psicanalista não pode comer clientes.
PLAYBOY- Dos atores e
atrizes com quem você trabalhou, quais lhe deram mais satisfação?
JABOR- (Pensa)
Sônia Braga e Fernanda Montenegro. Aprendi muito com a Fernanda, que é uma
mulher de sabedoria espantosa e intelectualmente incrível. E aprendi cinema com
a Sônia.
PLAYBOY- Em que sentido?
JABOR- A Sônia tem uma sensibilidade cinematográfica
extraordinária. Se ela não gosta de uma coisa, pode fazer de novo, porque elas
ente o que vai aparecer na tela. Ela trabalha para o que vai aparecer e não
para o que está fazendo na hora.
PLAYBOY- Você acha que a
Sônia Braga mudou com esse sucesso internacional acentuado pela indicação dela
para o Oscar com O Beijo da Mulher Aranha?
JABOR- Você não faz ideia de como ela é conhecida
internacionalmente. Ela é um grande sucesso. Em Cannes, ela levantava meia hora
para atravessar o mar de repórteres e fotógrafos paparazzi que sempre estavam a seu redor. A Sônia, além de ser uma
das maiores atrizes do cinema mundial, é um gênio fotogênico e uma pessoa
extraordinária. Como todos nós (do cinema
brasileiro), sofre um pouco a barra pesada do sistema internacional de
cinema. Mas conquistou um prestígio que nenhuma atriz brasileira tem.
PLAYBOY- Pergunto de novo:
ela mudou com o sucesso?
JABOR- Não, ela só melhora como pessoa. Acho que agora
ela está numa nova fase em sua vida em que vai ter que recapitalizar esse
sucesso para ela. Acho que está na hora de a Sônia voltar para o Brasil, não no
sentido de retornar à terra natal, mas voltar para daqui se reciclar e de novo
atirar para fora.
PLAYBOY- Que grau de relação
você tem com ela?
JABOR- Ela é muito amiga, é uma irmã que eu tenho, uma
pessoa que eu adoro.
PLAYBOY- E a Vera Fischer?
JABOR- É uma grande atriz e uma mulher muito bela. Mas
trabalhei poucos dias com ela. Tinha vontade de fazer um trabalho mais profundo
com a Vera. Acho que ela pode render muito mais ainda do que já rendeu. Ela tem
que...Ela já é louca, não é que ela tenha que enlouquecer mais. Talvez ela
tenha que “desgermanizar” algumas coisas. Aí ela poderia fazer coisas muito
loucas. Mas é uma grande atriz. Pensando bem, não tem que fazer nada, aliás.
Basta filmar.
PLAYBOY- Como você mesmo
disse há pouco, o que você tem falado sobre o amor faz parte de seu filme Eu Sei Que Vou Te Amar. Proponho
passarmos a ele. Como surgiu a ideia do filme?
JABOR- Surgiu pelo desejo de fazer um filme não
cinematográfico, um filme literário, porque acho que a literatura tem muito a
dar ao cinema contemporâneo. O cinema contemporâneo está corrompido pela
imagem. A imagem contemporânea é perversa, fetichista e reacionária. É muito
fácil hoje em dia fazer uma bela fotografia, uma imagem interessante ou uma
montagem rápida, confusional. O videoclipe é o coroamento da boçalidade de
imagem do mundo contemporâneo.
PLAYBOY- Por quê?
JABOR- O videoclipe diz que tudo se pode montar, faz o
elogio da confusão mental de hoje em dia, como se o mundo fosse confuso. Então
ele monta Hitler com sabonete, mulher nua e bomba atômica, um cantor de rock
com tanques de guerra. Tudo se junta num videoclipe, mas nem tudo se monta. Nem
tampouco o mundo contemporâneo é confuso ou ilógico. Os idiotas e os
intelectuais superficiais pensaram que ele é ilógico, que ele é dark ou sem sentido, quando ele tem um
sentido sinistro e apavorante, pois, por trás dessa aparente disparidade
ilógica, existe uma grande lógica que o comanda que é, basicamente, o sistema
financeiro internacional, a usura internacional.
PLAYBOY- Então, você tinha
vontade de fazer um filme que desse valor à palavra?
JABOR- Eu tinha vários motivos para fazer Eu Sei Que Vou Te Amar. Primeiro, esse
desejo de fazer uma coisa simples, calma, fácil, que não tivesse que obedecer
às regras de produção do cinema internacional de mercado, que tem que ter ação,
violência, sexo, amor, brutalidade, rapidez, contraluz, realismo crível, princípio,
meio e fim etc. Segundo, não havia grana no Brasil na época. Há um ano e meio a
recessão estava comendo tudo. Então, eu estava um dia no escritório de um amigo
meu, o Jorge Peregrino, que cuidava do mercado externo na Embrafilme, e falei:
“Pô, eu fiz um filme que foi um sucesso de bilheteria, tenho que fazer outro e
não tenho dinheiro. Vou acabar fazendo um filme sobre um homem e uma mulher
sentados numa cama conversando”. Aí eu parei e pensei: “Por que não?” Fui pra
casa e falei: “Porra, que boa ideia! Pode ser um filme do cacete”. Aí eu
comecei imediatamente a escrever sobre isso.
PLAYBOY- Além de sua própria
experiência, você se inspirou em alguém?
JABOR- Fui casado duas vezes e tinha me separado dois
anos antes da minha segunda mulher. Foi difícil, uma separação depois de dez
anos de casado é muito dolorosa. Eu estava ainda muito tomado por essa
experiência e escolhi fazer um filme sobre um casal tentando se separar, que
acho uma base dramática muito interessante, porque vejo muita gente nessa situação.
Mas o filme é uma montagem de experiências que tive não só no segundo, como no
primeiro casamento, de experiências de amigos meus, de namoradas que eu tive.
Tem ali coisas que aconteceram com o (psicanalista)
Eduardo Mascarenhas, com o (cineasta)
Cacá Diegues, com o (cineasta) Miguel
Faria, coisas que ouvi, li e vi. É uma colagem dessas loucuras das pessoas
querendo amar.
PLAYBOY- Por que você
escolheu a Fernanda Torres para atriz?
JABOR- Ela tem cara de inocente, e eu acho que
inocência e perversão são duas coisas muito próximas. Eu queria uma inocente, e
não uma perversa, dizendo perversões. A Fernanda tem uma imensa mistura de
santa com louca. Ela tem essa tensão e o filme precisa dessa tensão que ela tem
e que o Thales (Pan Chacon) tem.
PLAYBOY- Como você o
escolheu?
JABOR- O Walter Clark me mandou dar uma olhada no
musical A Chorus Line, eu fui lá ver
e ele era o ator principal. Eu achei ele fantástico e o chamei. O Thales é um
homem muito másculo mas não é machista, não é violento. É um homem doce. Acho
essa ambiguidade fundamental para o filme. Acho que outra das razões do sucesso
do filme é o fato de que as pessoas ficam espantadas com aquelas coisas sendo
ditas no cinema com aquela desfaçatez, com aquela limpidez e clareza - coisas
que em geral são vorazmente escondidas pelas pessoas, com medo de si mesmas. É
um filme amoral, nesse sentido, que liberta as pessoas; elas se sentem
aliviadas quando veem porque, porra, elas vivem reprimidas, por si mesmas ou
por outros. Elas descobrem que o que escondiam desesperadamente como loucura é
mostrado ali com grande liberdade. Então, os homens que porventura têm desejos
homossexuais reprimidos e veem isso ser explicitado no filme sentem-se
aliviados. As mulheres, que em grande número desejam a promiscuidade sexual
muito mais do que pensam, sentem-se felizes quando a Fernanda Torres, com a sua
cara de inocente diz: “Toda mulher brasileira devia ser louca e prostituta”. A
Fernanda e o Thales contribuem para essa sinceridade do filme porque são
límpidos com suas expressões.
PLAYBOY- Você chegou antes a
cogitar de outra atriz para o filme?
JABOR- Eu tinha pensado em fazer com a Sônia Braga. Ela
ia fazer, depois não podia. Só que o filme ia ficar muito complicado, eu pensei
até em que fosse falado em inglês, ele chegou a ser vertido para o inglês – e
vou talvez montar a história como peça de teatro no circuito off-Broadway em
Nova York. Mas na verdade, quando vi a Fernanda, tive certeza absoluta de que
tinha que fazer com ela.
PLAYBOY- Como foi seu
relacionamento com os atores no seu filme?
JABOR- O filme foi um grande psicodrama de três
pessoas: Arnaldo Jabor, Fernanda Torres e Thales Pan Chacon – dois jovens e um
homem de meia-idade (risos) -, em que
a minha experiência e o meu texto eram reprocessados pela juventude deles.
Dessa contraposição saiu uma terceira coisa, que era o que o filme virou. O
filme é uma história de amor. Eu descobri nos cinemas, quando começou a passar,
vendo as multidões de garotos e garotas que foram assisti-lo, que era um Love Story dos anos 80, um Love Story pós-punk, porque começa com happy end.
PLAYBOY- A Fernanda Torres
acabou ganhando o prêmio de melhor atriz em Cannes com o seu filme. É verdade
que a Sônia Braga jogou o peso dos eu charme e do seu prestígio para
influenciar a premiação da Fernanda?
JABOR- Isso não é verdade. A Sônia Braga, é lógico,
gostou muito do filme e o defendeu para ganhar prêmios, defendeu a Fernandinha
– mas não foi só ela, o (diretor de
cinema filipino) Lino Broca gostou muito, outros gostaram. O prêmio só se
dá com um número mínimo de votos, tinha dez pessoas no júri.
PLAYBOY- Mas a própria
Fernanda foi quem levantou a hipótese de favorecimento.
JABOR- Isso é uma ingenuidade da Fernanda, e
desconhecimento. Ela não estava lá e não pode saber isso. Eu estava. Não houve
nada disso.
PLAYBOY- O que você achou da
Fernanda não ir a Cannes receber o prêmio?
JABOR- Ela não pôde ir porque estava gravando novela na
Globo.
PLAYBOY- Uma viagem
internacional de 48 horas, com ida, volta e estada...
JABOR- Não dava. Ela não sabia (que ia ganhar). Ninguém sabia. Ela ficou na dúvida se ia ganhar ou
não e teve medo de chegar lá e não acontecer porra nenhuma. Ela só foi para o
dia da exibição. Depois, eu telefonei um dia antes da premiação para ela: “Vamos
lá, Fernanda. Venha. Pode ser que você ganhe. Existem esperanças”.
PLAYBOY- E ela?
JABOR- Ela disse: “Eu não vou porque tenho medo de não
ganhar nada e depois vão ficar me gozando”. (Risos) É só isso, as coisas são simples.
PLAYBOY- Além da emoção por ter
ganho o prêmio, o que chamou sua atenção em Cannes este ano?
JABOR- Bem, o festival que alguns jurados americanos do
festival fizeram...Esse Sydney Pollack, por exemplo, que fez esse filme de
quinta categoria que ganhou o Oscar (Entre
Dois Amores, com Robert Redford e Meryl Streep). É um mistério, não sei
como essa porcaria pôde ganhar um Oscar. É um dos piores filmes que já vi:
medíocre, fascista, colonizado, burro, inculto, mal filmado.
PLAYBOY- Tudo isso?
JABOR- É um filme muito ruim, mesmo. Esse cara, rapaz,
esse cara...(Pausa) eu estou falando
isso porque já achava antes do festival, disse ao Jornal do Brasil. Eu nem sabia que ele ia ser o presidente do júri.
Talvez, se eu soubesse (risos), eu
não tivesse nem dito. Mas disse. Estou só repetindo o que já dissera, e que se
confirmou, vendo-o em Cannes, vendo como ele é medíocre, sabujo...
PLAYBOY- O que é que ele
fez?
JABOR- Meu filme ele simplesmente não entendeu, não
sabe do que se trata. Ele não teve capacidade de compreender aquele filme, duas
pessoas falando. Está tão deformado pela perversão hollywoodiana que ele não
sabe.
PLAYBOY- E qual é a
evidência que você tinha para achar isso?
JABOR- (Enfático)
Eu sei, eu tive informações de que ele não entendeu nada! E outras pessoas do
júri, surpreendentemente. Este István Szabó (cineasta húngaro), um cara considerado um bom diretor, que fez Mephisto, um filme interessante, também
não entendeu. As pessoas estão acostumadas a uma caretice internacional ditada
pela máfia de Hollywood que elas não entendem.
PLAYBOY- Que amigos do
cinema estrangeiro você reviu em Cannes? O Bernardo Bertolucci estava lá?
JABOR- O Bertolucci é muito meu amigo, nós nos
conhecemos desde 1969, mas ele não estava lá. Ele está na China, começando um
filme depois de cinco anos de sacrifícios e humilhações por parte do sistema de
Hollywood.
PLAYBOY- Além do Bertolucci,
você é amigo de cineastas como Fellini e Bergman?
JABOR- Eles vivem num mundo muito à parte, são monstros
sagrados. Eu conheço alguns: o Marco Bellocchio, conheci o (François) Truffaut, almocei uma vez com
Orson Welles em Los Angeles, conheci Fritz Lang, tomei um porre com (Luis) Buñuel e o Glauber Rocha...
PLAYBOY- Como foi isso?
JABOR- Foi em 1968. Estávamos o Glauber, eu e o Buñuel.
O Buñuel já estava meio surdo. Foi quando ele ganhou o Leão de Ouro no Festival
de Veneza com o filme A Bela da Tarde,
com a Catherine Deneuve. Ele estava nervosíssimo, de smoking e nervosíssimo, e
a gente foi tomar um porre em frente ao Hotel Excelsior, no Lido de Veneza.
Então ficamos lá num bar, ele, Glauber e eu, enchendo a cara. Ele era
fantástico. Parecia assim um brasileirão...
PLAYBOY- Você se lembra do
que falaram?
JABOR- Conversamos em espanhol. Ele ficava dizendo: (Imita
a voz) “Estos franceses, estes críticos
son todos unos cabrones, son todos unos mierdas”, ? “Cabrones”. Ele era do cacete, era extraordinário. Já o Fritz Lang
era pervertido sexual, ficava querendo que a gente arranjasse transas pra ele,
a gente não sabia nem se era mulher ou homem que ele queria (...). O grande Fritz Lang – em Veneza! -, eu e Glauber. A gente ficava
meio irritado porque ele era amicíssimo de nós dois mas, no fundo, ele queria
que a gente arranjasse transas. (...) o
Fritz Lang, sabe? Mas era um gênio. (Empostando
a voz) Atenção, que eu o considero um dos maiores cineastas que já houve no
mundo. Ele já estava muito doido, com 80 anos.
PLAYBOY- Mas como aconteceu
de vocês ficarem amigos do Fritz Lang?
JABOR- O Lang já conhecia o Glauber e eu o admirava,
porque nessa época o Glauber já era conhecido pelo sucesso extraordinário de
Deus e o Diabo na Terra do Sol, em 1964. Aliás, quando o Glauber fez o filme,
que foi um furor, um grande sucesso em Cannes, ele só não ganhou a Palma de
Ouro porque (aumentando o tom de voz)
o jurado russo foi contra. Achou que o filme era muito de esquerda! O jurado
soviético é que tirou o prêmio do Glauber, pra você ver como o Glauber era um
homem de esquerda! Quer dizer, o idiota do stalinista é que fulminou Deus e o Diabo, que era para ter ganho
no mínimo o prêmio de melhor direção – que o Glauber só iria ganhar oito anos
depois, com O Dragão da Maldade Contra o
Santo Guerreiro. Bem, o fato é que o Glauber na época de Deus e o Diabo foi muito saudado pelo
Buñuel, que declarou ter visto aquele o melhor filme que ele havia visto nos
últimos anos. Foi aí também o Fritz Lang ficou amigo do Glauber.
PLAYBOY- Ainda no capítulo
de grandes mitos do cinema mundial: como foi esse seu almoço com o Orson
Welles?
JABOR- Foi em Los Angeles, quando eu estava fazendo o
contrato para o lançamento de Eu Te Amo
nos Estados Unidos. Fui com uma amiga comum, francesa, que mora em Los Angeles,
num restaurante onde ele tinha mesa fixa. Ela me apresentou para o Orson
Welles, aquela figura absolutamente gigantesca, que estava comendo um Steak au
Poivre. Ele falou sobre It´s All True,
aquele filme que ele tentou fazer no Brasil. A primeira coisa que ele disse, em
português, foi: (Faz sotaque) “Muito
prazer, muito prazer”. Depois ele me perguntou: “How is Grande Otelo?”. Foi, é claro, um contato meio rápido, mas o
que me impressionou, de todo modo, é que ele era uma espécie de grande curiosidade
de Hollywood. A superioridade daquele homem em relação à mediocridade de
Hollywood era de um milênio de diferença. Parecia um gigante, um Golias,
cercado por 10 mil Davis por todos os lados, todos ao mesmo tempo fascinados
por sua grandiosidade e odiando sua genialidade.
PLAYBOY- Vamos para outro
homem considerado genial, e visivelmente importante em sua vida: Glauber Rocha.
Como era a sua relação com ele?
JABOR- Glauber era um gênio extraordinário. As gerações
mais jovens não tem ideia de sua importância porque só viram os filmes que ele
fez no fim da vida. Quer dizer, talvez não tenham entendido a importância de Deus e o Diabo, Terra em Transe, O Dragão da
Maldade. Porque os filmes dele abriram um buraco no tempo. Com ele, foi a
primeira vez que o Terceiro Mundo exportou reflexão para o exterior. O Glauber
pegou a linguagem do colonizador e reexportou, fazendo uma análise crítica do
colonizador. Eu tive a honra de ser amigo pessoal daquele gênio raro, que foi
sacrificado pela mediocridade brasileira, que morreu de desgosto de ver tanta
burrice e tanta estupidez.
PLAYBOY- Outra pessoa
fundamental em seu trabalho, e aparentemente em sua vida, foi o Nelson
Rodrigues. Como vocês se relacionaram?
JABOR- Ele era uma espécie de avô ou pai artístico que
eu tinha. Era uma pessoa extraordinária. Eu falava com o Nelson todo dia, de
1972 até a morte dele, em 1980. Todo santo dia me telefonava e, quando eu
atendia o telefone, ele me falava assim: (Imita
a voz grave e pastosa de Nelson Rodrigues) “Mas Jabor, você é uma pessoa
tão importante, atendendo o próprio telefone! Você é um contínuo de si mesmo” (risos). Tudo o que ele falava tinha um
sentido transcendental. Até seu “bom-dia” tinha um sentido a mais, porque o
Nelson era a paródia viva do brasileiro, a paródia viva da estupidez
brasileira. Ele tinha uma visão transversal do Brasil que pouca gente tem.
Mesmo os intelectuais brasileiros mais sofisticados não têm o sentido irônico
que Nelson Rodrigues tinha. O Nelson não era um homem erudito, o que aliás o
salvou de uma série de defeitos que a literatura brasileira tem. Sua
importância é ter ficado num lugar à parte na literatura brasileira. Ele não
entrou no Panteon “grave” da literatura brasileira. Ele ficou fazendo uma
careta, piscando um olho no canto do Panteon. Ele tinha uma frase genial: (Imita a voz) “O problema dos personagens
é que nenhum deles sabe bater um escanteio bem”. Isso pode se aplicar aos
literatos brasileiros. O problema deles é que nenhum sabe bater um córner.
(Neste momento a
filha mais velha, Carolina, de 11 anos, olhos azuis e aparelhos nos dentes,
chega com o motorista, Tarcísio, e diz para o pai: “Hello, baby”. A outra
filha, Juliana, de 9, vem para a sala. Jabor agrada as duas.)
JABOR- Elas deram entrevista à revista Claudia outro
dia, não foi? Bem, voltando ao Nelson. Ele morreu antes de Eu Te Amo ficar pronto. Não era uma história dele, ele ficava com
ciúme e dizia: (Imita) “Você não tem
mais coragem de fazer mais um filme meu porque tem medo de que o Partido
Comunista te critique, que a esquerda te critique”. E eu: “Nelson, não é isso.
Eu já fiz dois filmes seus, agora chega”. Sobre Eu Te Amo, ele ficava perguntando pelo telefone todo dia: “Mas,
Jabor, eu quero saber o seguinte: se Deus perguntasse pra você: ‘O filme tá bom
ou não tá bom?’, o que você responderia pra Deus?” Eu dizia que achava que
estava bom, que estava fazendo o possível. E ele: “Mas eu quero saber qual é a
opinião do assaltante”.
PLAYBOY- O que ele queria
dizer?
JABOR- Essa é genial. Eu perguntei: “Que assaltante?”
Ele: “O assaltante, Jabor. O assaltante é o sujeito que está fugindo da polícia
na Cinelândia porque bateu uma carteira, entra no cinema para se refugiar no
escuro, assiste ao filme por acaso. Se ele gostar, o filme é bom. Se não
gostar, o filme é ruim. No julgamento da obra de arte, o importante é a opinião
do assaltante”.
PLAYBOY- Você foi muito
patrulhado por filmar obras do Nelson Rodrigues?
JABOR- Quando eu fiz Toda Nudez, a esquerda caiu de porrada em cima de mim. Quando eu
disse que o fascismo podia ser de direita ou de esquerda, só faltei apanhar.
Alguns cineastas pensaram até em escrever um manifesto que seria publicado no Jornal do Brasil contra o filme. Eles
não puderam porque, no dia em que pensavam publicar, o filme foi retirado de
cartaz pela polícia. Até metralhadora dentro de cinema houve. A ditadura
brasileira, o general (Antonio)
Bandeira (então diretor da Polícia
Federal) diziam que o filme não podia terminar com o garoto fugindo com o
ladrão boliviano. O filme estava há nove semanas em cartaz, era o maior sucesso
de bilheteria no Brasil na época e, por grande ironia, ao mesmo tempo em que
era tirado de cartaz aqui, representava oficialmente o Brasil no Festival de
Berlim. Aí ganhou o Urso de Prata e foi um tal escândalo internacional – porque
foi noticiado no mundo inteiro – que o embaixador do Brasil na França, que era
o general (Aurélio de) Lyra Tavares,
recomendou ao governo que deixasse o filme voltar a cartaz.
PLAYBOY- Você se referiu há
pouco ao fato de muitos intelectuais brasileiros não saberem bater um
escanteio, falou num quase-manifesto contra um filme seu. O que você acha dos
intelectuais brasileiros?
JABOR- Eu acho que o “bode” no Brasil ainda é visto
como uma coisa “séria”, e que a alegria ainda é ligada à irresponsabilidade.
Mas acho que a grande importância que o tropicalismo, o Caetano Veloso e o
Gilberto Gil tiveram foi que eles trouxeram o conceito de alegria para o
pensamento brasileiro. Isso é novo, é uma coisa revolucionária na cultura
brasileira. No Brasil, ainda se liga muito cultura com sepultura, literatura
com sepultura, profundidade com dificuldade, seriedade com “bode”. Mas existe
uma tradição profundamente moderna, atual na cultura brasileira – das músicas
populares dos morros cariocas, dos grandes compositores populares com seu savoir faire, da música dor-de-cotovelo
que dá a volta por cima -, que não pode ser abandonada. Porque se impressionar
com a morte é uma coisa muito antiga e muito fácil. É muito fácil ser
“profundo” com a morte, ser “profundo” falando da tragédia de viver, falando
que a morte é inevitável. É muito mais difícil compreender o universo sem Deus
do que com Deus. Profundo é você falar da vida sabendo que vai morrer, é falar
da alegria sabendo que a tragédia existe. Talvez para o brasileiro seja muito
mais revolucionário ser feliz do que ser infeliz, ser alegre do que ser
bodeado.
PLAYBOY- Essa nova postura
do brasileiro pode sair de onde?
JABOR- Espero que surja de um Brasil reaquecido
economicamente, com reformas feitas. Porque uma das coisas importantes numa
reforma como a agrária, por exemplo, além de dinamizar economicamente o país,
dar terra a quem está morrendo de fome, é acabar com o que há de pior no
Brasil, e que é o grande quisto, o grande câncer reacionário nacional, que vai
desde o latifundiário de extrema direita até o padre que o combate. Porque o
reacionarismo assume formas sutis e insuspeitas, e pode atingir homens progressistas
como os padres que estão fazendo a luta contra os latifundiários mas foram
contra a liberação do filme do Jean-Luc Godard (Je Vous Salue Marie). Eu já disse antes: é muito fácil para um
padre ser a favor de Marx. Eu quero ver é ser a favor de Freud!
PLAYBOY- Falando de
reacionarismos, você acha que o intelectual brasileiro em algum aspecto é
reacionário?
JABOR- O intelectual também é reacionário. Eu sou,
todos nós somos, todos nós queremos nos apegar a uma boa consciência. Eu não
estou me excluindo disso não, viu? Sinto em mim os mesmos impulsos que regem
outros dos chamados próceres da cultura brasileira. Cada um tem um feudozinho e
fica agarrado a sua descoberta. Eu, se tiver forças, quero ser capaz de rever
minhas posições, ser capaz de fazer do meu próximo filme algo que nada tenha a
ver com o atual. A única coisa que o intelectual no Brasil tem que fazer é
arriscar a própria pele, a própria razão. Quando andei falando essas coisas
toda sobre amor e sexo, no fundo eu estava querendo dizer o seguinte: vamos ver
se a gente questiona e se expõe um pouco mais ao ridículo, cacete! O que tem de
bom nos artistas ou intelectuais brasileiros foi quando eles se expuseram ao
ridículo.
PLAYBOY- Quem se expôs ao
ridículo?
JABOR- Glauber Rocha foi um homem que morreu exposto ao
mais sublime ridículo. A maior grandeza dele foi sempre a capacidade de se
expor. É a grandeza de nossos grandes artistas e poetas, é a grandeza de Oswald
de Andrade, é a grandeza, embora em menor grau, macunaímica, do Mário de
Andrade, é a grandeza do (diretor de
teatro) Zé Celso (Martinez Corrêa),
com que eu impliquei uma época...
PLAYBOY- Você meteu o pau
nele, não?
JABOR- Mas numa boa, porque adoro o Zé Celso e tenho
grande admiração por ele. Impliquei porque achei que ele não estava
trabalhando, que estava perdendo tempo com besteira...
PLAYBOY- Mas não foi só você
que achou, não é?
JABOR- É, as pessoas ficavam chamando ele de decano do
ócio, como disse (o jornalista) Telmo
Martino. Ele tem razão. O Zé Celso passou dez anos vagabundeando e vivendo do
sucesso que tinha amealhado anteriormente. O Zé Celso é uma mente de fogo, ele
não pode...
PLAYBOY- Você acha que
combina com essa mente de fogo pedir dinheiro ao Maluf?
JABOR- Combina isso. Isso tudo é criatividade. No
início achei que era babaquice, mas depois ele escreveu um artigo na Folha de S. Paulo, quando reuniu todos
os personagens e transformou o Maluf num personagem, e eu achei genial. Ele fez
um grande happening com o Maluf, um genial teatro vivo, com aquela transação de
obter dinheiro para o Teatro Oficina. Ele criou uma dramaturgia nova, como já
tinha criado antes.
PLAYBOY- Quem mais sabe se expor?
JABOR- A Sônia Braga sempre soube se expor ao ridículo.
Ficou nua! Tornou-se símbolo sexual do Brasil! A Fernanda Montenegro sempre
soube se expor ao absurdo em suas representações.
PLAYBOY- Você inclui entre
os intelectuais que se expuseram ou se expõem o senador Fernando Henrique
Cardoso, com sua candidatura a prefeito de São Paulo?
JABOR- Grande trabalho intelectual, o do Fernando
Henrique! Um homem do porte dele, que foi para a rua. Que tentativa moderna!
Que coisa moderna ele ser político, tendo que enfrentar o tédio e as mãos que o
agarraram durante a campanha política.
PLAYBOY- E ainda por cima
perdeu para o Jânio Quadros.
JABOR- É, houve uma vitória do mal. A estupidez
brasileira é grande. Mas não tem importância! O trabalho que ele fez foi muito
bom. E ainda expôs a treva.
PLAYBOY- E os intelectuais
do PT, como o Francisco Weffort?
JABOR- Não conheço pessoalmente o Weffort, mas sei que
é um homem de valor. Mas não sou petista. Há um certo ranço de obreirismo nos
intelectuais do PT que me aflige um pouco. Acho meio fácil ser petista para ser
intelectual. Existem posições mais complicadas. Mas não quero aprofundar isso
porque não os conheço e posso ser injusto com eles. O que acho é que aos
intelectuais e artistas cabe agora produzir coisas um pouco contra o que eles
sabem, depois de, durante a ditadura, estarmos todos enquistados em dez
certezas. É aí que pode surgir uma nova coisa na cultura brasileira, em todas
as áreas. É por isso que eu acho que foi um barato o que os jovens economistas
fizeram, o Plano Cruzado.
PLAYBOY- O que você achou
dos economistas que fizeram o Plano Cruzado?
JABOR- Eles questionaram um método de trabalho. Eles
tiveram uma originalidade enorme porque fizeram uma reforma econômica sui
generis no mundo, um trabalho político novo, que é um trabalho político
não-ideológico, não-messiânico, não-impressionista. Foram técnicos. Isso é o
novo. A esquerda com capacidade técnica é uma coisa extraordinária, porque a
esquerda é romântica e não-pragmática. Como eu disse na televisão, os meus
ídolos não são gente como o Bob Dylan, mas eles.
PLAYBOY- Mas como é que o
intelectual brasileiro vai dar essa virada que você defende? Ele não tem, em
muitos casos, uma mala cheia de certezas?
JABOR- (Sem
responder) O que é um intelectual? É um sujeito que tem medo de trepar e
que vai ler quando tem 12 anos idade. Agora, depois ele pode utilizar essa
loucura e transformar numa loucura boa.
PLAYBOY- Você também ficou
lendo e vez de trepar, nessa época?
JABOR- Quando eu era adolescente, em vez de ficar namorando
as meninas, eu ficava lendo. Hoje em dia sou feliz por isso, porque aprendi
muitas coisas, mas ao mesmo tempo deploro as trepadas que não dei, as mulheres
que não comi e os livros que fiquei lendo no lugar.
PLAYBOY- E isso é
irreparável?
JABOR- Irreparável. As mulheres que eu não comi são
irreparáveis. Graças a Deus, li bons livros (risos), embora tenha perdido grandes mulheres.
PLAYBOY- Bem, mas você se
recuperou depois, certamente...
JABOR- Recuperei. Graças a Deus, hoje em dia leio bons
autores e como boas mulheres (risos).
PLAYBOY- E quando foi que
uma grande mulher pela primeira vez substituiu um grande livro?
JABOR- A mulher que me deflorou (irônico), foi quando
eu tinha 16 anos. Olha que coisa, anos dourados, que coisa extraordinária, que
coisa (risos) anos 50! Eu tinha 16 anos e fui assistir à ópera La Traviata no
Teatro Municipal com amigos.
PLAYBOY- Que começo luxuoso,
hein?
JABOR- Olha que coisa fina! Estávamos numa frisa,
comprada com uma vaquinha, quando no hall, entre o primeiro e o segundo ator,
uma moça começou a me dar bola. Uma moça bonita, morena. Eu fiquei
completamente em pânico. “Meu Deus, tem uma mulher me dando bola”. Não era uma
menina, era uma mulher. Ela veio se aproximando, eu era muito tímido, muito
magro, embora bonitinho e tudo. Era uma aeromoça da Real Aerovias.
PLAYBOY- Aeromoça?
JABOR- Olha que coisa! Da Real Aerovias! Então ela falou:
“Vamos sair dessa ópera e vamos lá pra casa”. Eu estava tão nervoso que fiquei
potente mas não conseguia gozar, demorei muito. Então a mulher ficou fascinada,
achando que eu era um veterano, quando ela mal sabia que ali estava um baila de
debutantes.
PLAYBOY- Ela foi uma
precursora, não?
JABOR- É. Aí fiquei namorando com ela um tempão.
PLAYBOY- Essa moça descobriu
depois que aquela tinha sido sua primeira vez?
JABOR- Não me lembro. Mas eu me lembro que em cima da
penteadeira dela tinha um retrato do Tony Curtis. E eu fiquei apaixonadíssimo.
Não me esqueço. Você vê que eu fui nas asas da Panair com ela...
PLAYBOY- Nessa mesma época,
pelo que se sabe de sua biografia, você também fez sua iniciação política, que
passou pelo CPC da UNE e por aquela fase do nacionalismo. Como esse fundador do
CPC da UNE se define politicamente?
JABOR- Sou socialista e a favor do aumento da qualidade
de vida das pessoas.
PLAYBOY- Dos modelos de
socialismo existentes, tem algum que se aproxime do que você acha razoável?
JABOR- Sou a favor do socialismo progressivo, mas
fascinado pelo gradualismo das etapas. Tenho horror ao messianismo, que é coisa
burra, individualista e nascísica. O Brasil não pode, é claro, passar
diretamente para o socialismo, ainda tem que se organizar em termos
capitalistas. Acho que há coisas muito boas em Cuba, país pelo qual tenho
grande admiração, como tenho também pela Suécia, por alguns aspectos da China e
da União Soviética e pelos aspectos de liberdade que há nos Estados Unidos. Sou
contra a estupidez da falta de liberdade na União Soviética, mas a favor do
socialismo. Não é possível que a raça humana não possa produzir um socialismo
livre. É uma coisa tão simples, meu Deus!
PLAYBOY- Que grau de
expectativa a Nova República atingiu você?
JABOR- Acho que o primeiro capítulo foi muito bom. O
choque heterodoxo na economia me deixou muito emocionado, porque nunca tinha
visto uma sociedade se mexer dessa forma. Pela primeira vez eu vi a população
se sentir a sociedade civil. Porque não é movimento de massas, só ir ao comício
e depois ir embora pra casa foi na campanha das diretas – que foi, é óbvio, uma
coisa boa. Mas a campanha das diretas era um movimento de oposição, e a eleição
do Tancredo e do Sarney foi um movimento de oposição. Então era uma reivindicação
reativa. Com o cruzado, vimos a população numa atitude ativa. Mas agora vem a
parte mais difícil, que é a reforma das estruturas econômicas e sociais. Acho
que a Nova República tinha que cooptar o Exército para a nossa mudança
estrutural, para o governo fazer três coisas fundamentais: a reforma agrária, a
renegociação séria da dívida externa e a luta contra a miséria brutal que
existe no Brasil. O Plano Cruzado foi importantíssimo, mas ele contrariou
relativamente poucos interesses. O governo precisa ter coragem de contrariar,
agora, os interesses poderosíssimos dos capitalistas improdutivos, dos
latifundiários e do imperialismo americano, da usura internacional. Eles são os
três inimigos da Nova república. E têm alguma coisa em comum, que é o extremo
conservadorismo de suas mentes, de suas sexualidades, de um mundo gerenciado
pelo sentimento de morte e o aniquilamento das diferenças, do desejo humano e
da alegria de viver. E, além das coisas fundamentos que eu citei, há outras
mudanças importantes a fazer, claro.
PLAYBOY- Por exemplo?
JABOR- O Brasil é um país muito reacionário, muito
careta, muito sem aventura. E não falo só de aventura sexual. A gente pega a
sexualidade porque ela é a base do sistema (risos).
Embaixo de tudo, junto com a luta de classes, tem a sexualidade queimando
fundo, juntinho. Na base do conservadorismo brasileiro tem um conservadorismo
sexual muito grande. Quando você vê a estupidez e a boçalidade da resistência à
reforma agrária, por exemplo, nota que por trás daquilo há um machismo, uma
voracidade, um desejo de manutenção de uma situação...Outro dia li uma
entrevista de um desses canalhas da UDR (União
Democrática Ruralista, organização de fazendeiros). Você vê que tudo o que
eles dizem culmina na propriedade privada, e ela abrange desde as terras
improdutivas até a esposa triste. Como dizia Rimbaud “il faut changer la vie”. Quer dizer, é a vida que pode e deve ser
reinventada e aventurosa.
PLAYBOY- Só para não perder
o fio de uma resposta que você deu há pouco: incluir o Exército na política,
como você propôs, não é por definição inadequado, negativo?
JABOR- É uma pergunta difícil de responder, porque a
resposta implica fina raciocínio político. É sutil a tarefa de incluir os
militares na vida pública, mas não é possível que eles só entrem em último
caso, só com uma atitude golpista. O Exército nasceu para guerrear. Então, tem
que guerrear a miséria, a violência, a fome e a injustiça. Os militares dão
duro, são brasileiros que podem ajudar na reforma social do país.
PLAYBOY- Em quem você
gostaria de votar para presidente? Há algum líder que o comova, que o
interesse?
JABOR- Para presidente? (Sem hesitar) Fernando Henrique Cardoso. Dilson Funaro.
PLAYBOY- O que você acha de
Brizola?
JABOR- Acho um brilhante político antigo, porque é
messiânico, impressionista e individualista. É uma esquerda que ficou arcaica
depois do Plano Cruzado. Acho o Brizola uma coisa populista que, se Deus
quiser, está acabando no Brasil.
PLAYBOY- Você vai votar em
que partido na Constituinte?
JABOR- Não vou votar em partido nenhum. Vou votar em
pessoas.
PLAYBOY- E já escolheu?
JABOR- Ainda não. Eu ia votar no Eduardo Mascarenhas,
ele desistiu (de ser candidato). Vou
escolher entre os mais inteligentes, os mais modernos, os menos vinculados à
sordidez brasileira, que é imensa.
PLAYBOY- Você falou na
possibilidade de votar no Eduardo Mascarenhas, que é seu amigo. O que você acha
dele?
JABOR- O Eduardo e eu fizemos um pacto narcísico em que
um estimula o outro a melhorar, a lutar. A gente troca: ele nunca foi meu
psicanalista, mas ao mesmo tempo é, e eu sou psicanalista dele. O Eduardo é
visto por alguns como vaidoso, mas é uma pessoa muito inteligente e muito
generosa, que se expõe muito e é às vezes mal compreendido pelos anões.
PLAYBOY- Você tem muitos
outros amigos pelo que se sabe. Fale de mais um que seja conhecido do público.
JABOR- A gente tem sempre um ministério de amigos, né?
Meu querido amigo de 25 anos é o Cacá Diegues. Ele é meu ministro – não no
sentido de que sou o presidente, porque eu também sou ministro dele para outras
coisas – da lucidez, da sabedoria política e de uma espécie de paternidade
substituta. Ele me dá bons conselhos, me dá esporros – “Não faz isso, deixa de
ser babaca” – e ás vezes até faço um ato falho, chamando ele sem querer de
papai e não de Cacá.
PLAYBOY- E mulheres?
JABOR- A Glória Kalil, uma grande e terna amiga, que é uma
coisa mais que amiga e que a gente não sabe exatamente o que é. Talvez seja uma
“amorzade”, eu não sei o nome dessa coisa que eu tenho com ela e que terá
muitas evoluções ainda, se Deus quiser. Tem a Ana Lúcia Magalhães Pinto,
psicanalista, responsável pelos projetos culturais do Banco Nacional. Minha
primeira mulher, Teresa Simões, pintora, minha segunda mulher, Eleonora Barbosa
Melo, psicanalista...
PLAYBOY- É possível ser
amigo de ex-mulher?
JABOR- Sou amigo de todas, porque, se não for amigo
delas, vou ser amigo de quem? (Risos)
Elas tiveram a paciência de me suportar. E tenho uma porção de outras pessoas
amigas. Daqui a pouco vai ter gente carente aí dizendo que não me lembrei
deles.
PLAYBOY- Tem dois que pelo
que se sabe são hors concours na lista:
seu pai e sua mãe. Eles viram todos os seus filmes?
JABOR- Todos.
PLAYBOY- Gostaram?
JABOR- Mamãe gosta de tudo o que eu faço, naturalmente.
(A filha Juliana, presente na sala,
observa com atenção.)
PLAYBOY- Mas e se ela
falasse com Deus, como diria o Nelson Rodrigues, ele diria que gostou?
JULIANA- (Interrompendo)
Mas o vovô não!
JABOR- Vovô...Meu pai não gosta de tudo. De algumas
coisas gosta mais, outras menos. Papai é mais severo.
PLAYBOY- A restrição é
estética ou...
JABOR- Ás vezes ele implica. Ele não explica muito,
não. Mas gosta da maioria, gosta muito. De alguma forma eu...
JULIANA- Mas desse último o vovô não gostou...
JABOR-...Dou um pouco de aventura para a vida deles,
também. Acho que a minha existência esquisita faz a minha família se ligar.
PLAYBOY- Embora seus filmes
sejam para adultos, suas filhas já viram?
JABOR- Todos. Viram até Eu Te Amo, escondidas de mim. (Brinca
com as duas) Elas não prestam.
PLAYBOY- E o que elas
acharam?
JABOR- Pergunta pra elas. (Pausa) Elas adoram.
PLAYBOY- (Para Juliana) Você gostou?
JULIANA- Eu só vi O
Circo, Toda Nudez, Eu Te Amo, Eu Sei Que Vou Te Amar e Tudo Bem.
PLAYBOY- E de qual gostou
mais?
JULIANA- Eu Te Amo.
JABOR- (Brincando,
dirigindo-se às filhas) É que tem casal transando, e elas no colégio só
falam nisso, né?
JULIANA- Eu não.
JABOR- Tá na idade. É normal. Nove, dez anos começa a
conversar.
JULIANA- O que eu mais gostei foi Eu Te Amo. O Circo eu
odiei, acho muito triste. Eu Sei Que Vou
Te Amar eu gostei. E Tudo Bem eu
gostei
(Jabor a essa
altura já está comendo torradas com queijo branco.)
PLAYBOY- Você tem cuidados
com o corpo?
JABOR- Tenho. Faço ginástica todo dia em casa. Ás vezes
corro, mas acho chato, demora muito. Eu não fumo, acho a pior coisa do mundo,
bebo pouco, não como comidas pesadas, me drogo socialmente. (Em tom de zombaria)
PLAYBOY- Já que você falou
no assunto: a revista Veja faz há
algum tempo uma reportagem mostrando que as pessoas que criam, que têm que tomar
decisões, que têm que brilhar no trabalho estão recorrendo maciçamente à
cocaína. O que você acha disso?
JABOR- Acho droga péssimo. Acho cocaína um bode. Já
experimentei todas as drogas existentes, mas acho tudo um bode. Quem se droga
não está com nada, não adianta nada para a criação, pelo contrário, atrapalha.
Antigamente se fumava muita maconha para fazer filme. E um amigo meu
inteligentíssimo, o Mair Tavares, montador do meu filme, cunhou uma frase
ótima: “Filmou louco, tem que montar louco – e assistir louco”. Se não, não
combina. (Risos) A droga é a arma do
fraco. Não sou contra o uso dela como brincadeira. Já usei tudo, tudo. Tomei
qualquer droga que você possa mencionar. Agora, como brincadeira, nunca como
uma coisa séria.
PLAYBOY- Você também notado
essa tendência apontada pela Veja?
JABOR- Há uma calamidade pública no Brasil, visível: as
pessoas estão se drogando muito. Cocaína demais e álcool demais. Agora, a culpa
maior é da oferta, de um lado, e de outro da sordidez nacional, mais uma vez,
além da falta da capacidade de construir a própria alegria.
CAROLINA- (Acabando
de entrar na sala) Pai, heroína?
JABOR- (Para a
filha) Heroína eu nunca tomei, não.
CAROLINA- (Sem
ouvir) Que horror! Você gosta?
JABOR- Eu nunca tomei heroína.
CAROLINA- Ah, mas cocaína?
JABOR- Cocaína eu já experimentei, sim, senhora.
CAROLINA- Nossa! E você gostou?
JABOR- É engraçado experimentar só para saber como é.
Mas faz muito mal para a saúde.
PLAYBOY- Falamos tanto de
amor, e para encerrar esta entrevista, vamos voltar a ele: em seu depoimento ao
Jornal do Brasil você disse que,
depois de experiências e sofrimentos com o amor, você descobrira a amizade como
uma forma mais simpática e serena de gostar, sem aquele caráter eterno e
indiscutível do amor. Ainda pensa assim?
JABOR- Não, esse negócio é mentira. Não acho mais isso.
Mudei. (Risos) Não acho que a amizade possa de forma alguma substituir a magia
do amor, não. O amor é que dá sentido transcendental às coisas. A amizade não
dá sentido transcendental a porra nenhuma. A amizade é ótimo, mas para
descansar.
JULIANA- (Interrompendo)
Ah pai, não fala indecência...
JABOR- Não tem nada de indecência. Por acaso amor é
feio?
Publicado originalmente na revista “Playboy” em outubro
de 1986
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