segunda-feira, 14 de março de 2022

Por Dentro do Cinema Novo, minha viagem por Paulo César Saraceni, capítulo 1: Vontade de filmar

Capítulo I: Vontade de filmar

 


Por Paulo César Saraceni

 

Eu era craque. Desde menino, sentia-me atraído pela bola. Nascido na Gávea, com leve passagem pela praça N.S. da Paz, em Ipanema, fui morar por dez anos no Riachuelo, estação da Central, Zona Norte do Rio. Guilherme, meu pai, era o sétimo dos nove filhos que o engenheiro italiano Angelo Saraceni, nascido em Milão, dividiu com minha avó Guilhermina Ruggeri Saraceni, nascida em Siena.

 

Eu morria de medo do meu avô, que era de um rigor total. Viera para o Brasil para dirigir, primeiro, a Estação da Luz, em São Paulo, depois a Central no Rio. Morava numa chácara, na Tijuca, que tinha até cachoeira. Na mesa do almoço ou jantar – formalíssimos -, eu levava porradas com uma colher para não me precipitar, tinha que esperar a reza, agradecendo antes a Deus aquela macarronada deliciosa que minha avó fazia.

 

Já meu pai, apesar de nascido em São Paulo, ficou inteiramente carioca. Casara com minha mãe, Maria da Conceição Ribeiro Lima e Castro, a Mariá, doce mineira que veio cedo para o Rio, morar em Botafogo. Minha mãe era filha de jurista, e sua mãe, que não conheci, tocava piano muito bem. Família tradicional mineira, não gostava nada da fama de meu pai, boêmio e jogador. Meu pai teve que raptar minha mãe, para casar. Isto significou que ela teve que trabalhar desde cedo no Ministério da Justiça. Mas ela curtia. Moravam com a gente, no Riachuelo, duas irmãs de minha avó, as italianas Macarmela e Cantanina. Eu, com minha irmã Norma e meu primo Almir, aprontava muito com elas. Mas foi uma infância deliciosa, cercada de muitos tios, tias, primos e primas.

 

Enquanto estivemos na Zona Norte, vivíamos sempre juntos. Senti muito a separação deles quando fomos morar em laranjeiras. Eu vivia entre as peladas de rua e o meu quarto fechado, onde criava mil jogos e histórias com figurinhas cortadas de jornais e revistas, ou as que vinham nas balas que minha mãe e meu pai não esqueciam de trazer. Sabia fazer gols de montão, mas o que eu gostava mesmo era de armar as jogadas para os companheiros.

 

Minha mãe acompanhava meu pai, e via que nossa vida oscilava: um dia estava ali em cima, champanhe francês, os amigos, Dorival Caymmi; noutro dia, tinha que vender o piano, que ela insistia que minha irmã aprendesse, apesar de Norma preferir escrever, ou colecionar livros. Era um vaivém do piano, dependendo se o betting, o bolo davam ou não, ou ainda se as roletas dos cassinos, Atlântico ou da Urca, fossem favoráveis.

 

Mas Guilherme era pessoa séria. Trabalhava como despachante numa grande loja de departamentos e, junto com seu irmão Romualdo, era muito querido e competente. Ás vezes, ele se complicava, pois sempre tomava as dores dos mais fracos, detestava autoritarismo, era amigo dos humildes e, até 1946, foi presitsta. Rompeu com o Cavaleiro da Esperança porque o grande líder comunista brasileiro se aliou a Getúlio Vargas, ao sair da prisão. Não podia perdoar que Prestes esquecesse a deportação de sua mulher, Olga Benário, para a Alemanha, onde certamente seria morta, como foi, por Hitler. Minha mãe continuava getulista.

 

Sérgio, meu irmão, era sete anos mais velho que eu, e tinha outra turma. Mas, com ele, eu conheci a festa. Ele me levou num dia de carnaval a Madureira, onde saímos nos blocos sujos e na Portela, e onde vi Natal e Paulo da Portela. Jamais esqueci o sensualismo das mulatas e do samba. Logo comecei a dar meus passos de mestre-sala; era fácil, parecia futebol. Com Sérgio e meu primo Ceci aprendi a amar política e distribuí cédulas de Luís Carlos Prestes, candidato a senador, e deputados comunistas em 1946. Comecei a gostar de ler, meus primeiros livros foram de Jorge Amado – O Cavaleiro da Esperança era um deles – e vários Krishnamurti. Li Lima Barreto antes de Machado de Assis.

 

No Riachuelo, havia o cinema Modelo, que passava quatro filmes por semana; nunca perdi um só filme. Eu era muito namorador, me lembro de Lea, uma loura do morro da Mangueira, das irmãs Vanda e Valquiria, mas me liguei mesmo numa negra, babá de um dos meus primos, que tinha me ensinado os primeiros acordes do sexo. Eram os mesmos que eu sentia na sala escura do cinema Modelo.

 

Rebelde nos colégios que frequentei no primário, fui expulso duas vezes. Uma, me lembro, foi porque escrevi numa dissertação esculhambando o Duque de Caxias. Mas, surpreendentemente, passei no admissão e continuei estudando, mas sempre preferindo ler e assistir filmes do que estudar ou prestar atenção ás aulas. Meus pais foram de uma paciência perfeita, sempre ao meu lado.

                                           

Estava jogando no América Júnior, em Campos Sales, quando assistindo a um treino de natação, me apaixonei por Valquíria, grande campeã brasileira de nado borboleta. Vivia paquerando seus treinos e acabei entrando também na equipe do América, que estava, naquele tempo, pau a pau com o Fluminense e o Icaraí, de Niterói, disputando a hegemonia da natação infanto-juvenil do Rio. Com Valquíria comecei a frequentar os cinemas da praça Saens Peña. Olinda, América, Metro-Tijuca, Saens Peña e Carioca. No Meiér, com meu primo Rômulo, íamos aos cinemas Para Todos e Mascote. Tenho a impressão de ter visto no Mascote Roma Cidade Aberta e Paisá, de Rossellini, em 1947 ou 48, não sei como.

 

Nas férias, íamos a Ibicuí, praia que fica no caminho de Mangaratiba, Angra dos Reis e Parati, com meus primos Haroldo, Sílvio, Lucíola, Teresinha e Rômulo, e seus pais Nina (irmã do papai) e o professor Ernesto Marrecas, grande diretor e proprietário do colégio Dois de Dezembro, no Méier. Eu adorava paquerar minha prima Lucíola, mais velha que eu, linda como uma atriz do neo-realismo italiano.

 

Mas o melhor era ir a Itaipava, ou a Pedro do rio, onde meu tio Romualdo e minha tia Bibi tinham um sítio. Ia com meu primo Almir e minha irmã Norma. Lá, jogávamos futebol, vôlei e basquete, e também muito baralho e sinuca. Nós três nos tornamos inseparáveis, e Almir era mais que um irmão. Tio Romualdo e tia Bibi foram os grandes personagens da minha infância.

 

Mudamos para a rua Marechal Bittencourt, para uma casa enorme, com um quintal com todas as frutas que existem no Rio. Nós, tio Romualdo e tia Bibi, e mais os primos Horácio e Geni. Horácio inventava mil jogos e me ensinou a jogar bilhar.

 

Foi nessa ocasião que conheci os cinemas de Copacabana. Meus pais e os do Almir deixavam a gente, sempre com minha irmã Norma, nos cinemas Roxy, Rian e outros ali de Copacabana, enquanto faziam suas andanças pelos cassinos, e depois do Jockey, onde corríamos pela grama verdade como se fôssemos cavalos.

 

Foi ali, na casa enorme da Marechal Bittencourt, na mesa imensa da sala de jantar, que vi meu pai chegar com uns sacos também enormes de dinheiro e depositar na mesa, enchendo-a por completo. Havia ganhou sozinho o primeiro betting duplo acumulado. Vieram jornalistas, meu pai deu entrevistas para o rádio e jornal e distribuiu dinheiro com os amigos humildes.

 

Mas minha mãe aproveitou-se de um descuido dele e pegou grande parte para realizar o seu sonho: voltar para a Zona Sul, onde seus irmãos moravam, e para Botafogo, lugar de sua infância que ela não esquecia. Fomos morar em Laranjeiras, onde tio Abel e tia Belmira, com suas filhas Mirtes e Vanda, haviam comprado um apartamento – edifício Zacatecas, número 210 da rua das Laranjeiras. Quando Mariá deu entrada para a compra do apartamento, nós estávamos morando em outra rua do Riachuelo, a Alice Figueiredo, perto do Rocha,

 

O Zacatecas é um edifício de quinze andares e três blocos, quase uma comunidade. Aproveitando a natação, entrei logo como sócio-atleta do Fluminense, meu time graças à grande negra Aparecia que trabalhava com a gente, um misto de babá e cozinheira que tinha pintado seu quarto de vermelho, verde e branco, e decorado as paredes com as escalações campeãs do Tricolor. Era tão Fluminense que seu apelido era Batatais, nome do grande goleiro tricampeão.

 

Morar na Zona Sul era bem diferente. No início foi muito difícil. Eu me assustei com os nadadores do Fluminense, eram menos livres, muito educados. Eu dava muita gafe, não sabia conversar como eles, brincar como eles. Mas graças ao nosso treinador Hélio Lobo, que era de esquerda e, como eu, tinha vindo da Zona Norte, e à minha amizade com os irmãos Márvio e Sílvio Kelly – que moravam em Santa Teresa – e os gêmeos Arlindo e Lula Fiães, fui-me adaptando. Mas seria um complexo de inferioridade, sem causas bem definidas.

 

Já no Liceu Francês, onde estudei, foi mais fácil, principalmente por causa de minha amizade com dois caras brilhantes: Zé Henrique Belo e Albino Pinheiro. O Ghigia – apelido do Zé Henrique – adorava jazz e cinema como eu, desenhava e pintava, era um artista, o primeiro artista que conheci. Com ele, frequentei muito o Politeama, o São Luís, no Largo do Machado, o Asteca, no Catete, e o Pathé, na Cinelândia, onde víamos todos os filmes dos franceses Marcel Carné, Duviviver, René Clair e, o melhor de todos, Jean Renoir. Adorei o Jour de fête, de Tati e os filmes italianos. E também as jam sessions, não perdíamos uma. Com Albino íamos beber. Com ele conheci o Lamas e os bordéis.

 

A turma do Liceu tinha muitos artistas, com quem eu gostava de conversar, sem saber a razão. Tinha o Aurismar Rocha, que a gente achava quadrado, tinha a inteligência do Ivan Lessa, que era agressivo porque morria de ciúmes da mãe; tinha o Gianfrancesco Guarnieri, dramaturgo e comunista; o Maurício Nabuco, que também desenhava bem; o Sérgio Cherques, que tinha dois irmãos: um ator, Jorge, e outro cineasta, o Sanin; o Zevi Ghivelder, que queria ser bailarino e acabou jornalista; e o Jaquito Maidante; o Zé Rui. Foi uma turma de que tenho saudades até hoje. Também gostava muito das meninas do Liceu. Apaixonei-me por uma tremenda nadadora e linda gata, Ana Lúcia de Santa Rita, e por uma tremenda bailarina clássica, Ana Maria Vanzer, que, com seu andar de pés abertos de bailarina, vinha encantar nossos recreios como se fosse o próprio Chaplin que baixasse ali. Por pura babaquice, não me declarei às duas, preferindo amar à distância, passando trotes e escrevendo bilhetes anônimos. Uma, eu namorei, mas não quis ir aos sexos. As meninas não tinham se liberado ainda, mas algumas garotas da General Glicério e do Anglo-Americano era o sucesso das avant-premières do São Luís. “Faziam de tudo” – como nós, cafajestes, dizíamos, nas rodas de chope no Lamas ou no receio do Liceu.

 

No Fluminense, fiz parte da equipe hexacampeã de natação e formamos uma equipe imbatível, no polo aquático. Roberto Lara, depois Amauri, no gol; Everaldo, Sílvio e Márvio Kelly, Ademar Grijó, Douglas, Saraceni e João Gonçalves.

 

No polo aquático, eu tinha muito talento, na natação menos, mas o futebol era a minha paixão. Largava os treinos de natação e ia jogar minhas peladas. Sempre fui considerado um craque nos times do Riachuelo, no Sampaio, no Méier, no América Júnior – onde jogava até no time dos maiores, e onde Zagalo despontava -, no time do Liceu e no time que jogava no Instituto de Surdos e Mudos, onde joguei com Chico Anísio e seu irmão Zelito, cujo técnico era o Jair Francisco, famoso depois como técnico profissional. Mas foi no infantil do Fluminense que comecei a aparecer.


Valdemar Bacalhau, como era conhecido, foi chamado pela diretoria do Fluminense para recrutar jovens de até dezesseis anos, para fazer um time de base que pudesse subir e integrar o time dos juvenis, já tricampeão na categoria. Com ele trabalhava um negrinho, baixinho mas muito elegante, de fala como muitos naquele tempo, tinha fama de fanchone. Formou um grande time, que ficou invicto por dois anos. Despontavam no time três boas-pintas: Mário César, meio-de-campo, pela direita, que jogava um bolão, muita técnica e elegância; Élbio, ponta-de-lança dos mais perfeitos que conheci, e o Sarra, meio-de-campo pela esquerda. (Sarra era o meu apelido. Devido à dificuldade de falarem Saraceni, ficou Sarraceni, Sarra. Havia também um grande jogador espanhol que fez sucesso na Copa de 50, no Brasil, que se chamava Zarra).

 

A maior vitória do time foi na decisão do campeonato contra o Vasco, em São Januário, preliminar do Brasil versus Uruguai pela Copa Rio Branco, que, por ironia, o Brasil ganhou. Mas o nosso jogo estava duro, 1 a 1, faltando três minutos para acabar o jogo, casa cheia, 50 mil pessoas no estádio, Mário César lança Élbio pela direita que cruza de primeira, eu entro como um furacão, mato a bola no peito e encubro, com leve toque, o goleiro vascaíno: 2 a 1 para o Fluminense, bicampeão infanto-juvenil.

 

Eu e o Élbio éramos muito amigos, ele morava na rua Correia Dutra, onde jogávamos peladas memoráveis. Fazia parte, também, destas peladas o Joel, que nessa ocasião estudava no colégio Zacarias, também no Catete, grande adversário do Liceu Francês, e depois ponta-direita do Flamengo e da Seleção Brasileira. Joel, na seleção campeã de 1958, cedeu seu posto para nada menos do que Garrincha. Não é brincadeira. O pai e a mãe do Élbio eram figuras adoráveis. Eu adorava conversar com seu pai, Ricardo, que era paulista de Santos; pintor, fazia, para ganhar a vida, molduras requintadíssimas. E era vermelho, com muita consciência política.

 

A porta do Lamas, no Largo do Machado, onde passávamos os dias mexendo com as garotas, ficou famosa.

 

Por lá passavam os brotos, as mulheres casadas, as mulheres e homens do povo, mulatas que não estavam no gibi, prostitutas, cafetões, domésticas e homossexuais.

 

Havia uma bicha famosa, Araponga, careca. Sério, grande figura, morava no edifício do Politeama. Outro que moprríamos de medo era um fanchone comunista. Élbio era a alegria deles, tinha pele morena, cabelos lisos, bumbum empinado e um sorriso sedutor; tinha também lindos dentes alvos e mantinha um segredo – nunca se sabia se ele topava ou não. Era meio Capitu. Apresentei-lhe Ghigia, e os três fizemos um trio da pesada. Depois, quando Ghigia viajou para Belo Horizonte, seu irmão Renato o substituiu.

 

Íamos muito ao restaurante Recreio, na praça José de Alencar. Ali, vimos o grande Heleno de Freitas, figura imponente, de beleza e sedução. Grande jogador, grande temperamento, viciado em lança-perfume – uma glória. Havia sempre muitos intelectuais e certa vez o crítico de cinema Van Jafa, descobrindo que Ghigia era pintor e gostava como eu de Van Gogh, nos disse: “Cuidado com o amarelo!” e recitou seu poema: “Hipopótamos da Zona Sul, Hipopótamos da Zona Norte, tudo azul, tudo azul, tudo azul”. Havia o Cuca, homem de teatro, bom papo, que nos falou de Fernando Pessoa e adorava um conto de Drummond chamado “Gerente”, a história de um gerente de banco, muito conceituado na praça, que adorava ir às festas do soçaite e que, ao cumprimentar as madames, beijava-lhes as mãos, sugando, disfarçadamente, um dedo, que podia ser o mindinho ou o indicador. Mas Cuca, quando de porre, atacava mesmo; fugir de suas cantadas era uma proeza. O Recreio parecia Paris: “Uma festa”, dizia o besta Nicola.

 

- Como é que você sabe? Nunca foi lá!

 

Ele respondia e apontava uma mulher gostosa, vestida com casaco de pele, parecendo champanhe. Parecia mesmo. E Ghigia sacaneava:

 

- Nada melhor do que aprender na escola da vida de Nicolá-Le Noire.


Adorávamos penetrar nos bailes de carnaval. Subíamos pelo morro, no meio do matagal, chegando até a janela e, depois, dávamos um salto e íamos cair no meio do salão do Baile do Cartola, do Fluminense. Nadando, entramos no baile do Iate Clube; carregando cestas de sanduíche, no Baile dos Casados, na galeria Comercial. E mil outros: o maior deles foi o High Life, com o famoso delegado Padilha na porta. Logo ele, que dera entrevista aos jornais e rádios dizendo que com ele não haveria penetra. Armamos um caso na porta com umas americanas desacompanhadas e, falando um inglês qualquer, passamos na maior calma pelo delegado otário, famoso por mandar colocar uma maçã na calça das pessoas para saber se a boca da calça era apertada; se fosse, era malandro. Mandava prender.

 

A praia que frequentávamos era a do Flamengo, antes de o Aterro ser feito. Tinha umas pedras de onde se podia saltar em grandes mergulhos e umas mulheres que davam, dentro d´água ou nas pedras mesmo. Pentelhando, sempre vinha o bancário Zezinho, vidrado no Élbio, e que pagava tudo pra gente, gastava uma nota, pois estávamos sempre acompanhados de lindas garotas. O meia Jean Carlo frequentava o pedaço, já no time principal do Fluminense. Tinha uma habilidade com a bola como nunca vi. Certa vez nos ensinou a travar uma moeda com pé, com o bonde andando. Fizemos sucesso, e eu então, que sempre pegava o bonde para ir ao Liceu em frente ao Zacatecas e viajava no estribo, pagava travando a moeda e depois jogando na mão do cobrador, e descia na porta do colégio, de costas, evidentemente.

 

Tinha largado a natação, não dava mais, com aqueles chopes ou cuba-libres em companhia de Albino. Mas continuava jogando polo aquático e agora fazia parte do juvenil de futebol do Fluminense. Ia bem nos dois esportes, mas havia briga dos diretores dos dois. Aquilo já estava torrando a minha paciência; eu tinha que me decidir. Não dava mais para ser como o Preguinho, que foi campeão em vários esportes nos anos 1930. Mas eu era teimoso, joguei até basquete no Botafogo, cujo técnico era o gordo Guilherme, o rei da boca.

 

Naquele dia, num treino do juvenil, nada dava certo, o gramado de Álvaro Chaves estava o fino, mas a bola vinha quicando, batia na canela, os passes não saíam, os chutes ridículos. Os 22 em campo, efetivos e reservas, estavam preocupados com a porta que dava para a parte social do clube. Todos esperavam a chegada do Doutô, que, junto com João Coelho Neto, o Preguinho, filho do escritor Coelho Neto, bancava e orientava aqueles vários times vencedores dos últimos cinco anos, de 1946 a 1951. O Doutô, que chegava da Europa, era o escritor Otávio de Faria, romancista da “Tragédia Burguesa”, romance cíclico que prometia: quinze volumes. O dobro de Proust. Além do mais, Otávio era crítico de cinema e fundara o Chaplin Club e a primeira revista de crítica de cinema no Brasil. E isto no tempo do cinema mudo!

 

No campo, ninguém sabia que eu sabia das coisas. Naquele tempo eu lia escondido. Somente com Ghigia eu falava de cinema e arte. Minha emoção era diferente dos demais jogadores, pois eu tinha lido o primeiro volume da “Tragédia Burguesa”, Mundos mortos, livro que eu tinha achado de ler na casa do tio Rui. Vi o nome Otávio de Faria, peguei o livro e não larguei mais. Foi uma porrada, quase tão forte como outra que eu tomei mais tarde, em 1954, em São Paulo, vendo o filme Greed (Ouro e maldição), de Stroheim.

 

Otávio foi a pessoa mais democrática e afetiva que conheci. Era baixo, 1,61m, vestia-se sempre de terno e gravata, e, muitas vezes, mesmo com um sol de rachar, usava guarda-chuva. Não perdia um treino do juvenil  e era ele que “molhava as nossas mãos”, como dizíamos, deixando um “cinquentinha”, que quebrava o maior galho pois éramos amadores em 1951. Eu e Élbio éramos aos amigos que ele sempre escolhia, desde o tempo em que Heleno de Freitas e Orlando ficaram seus amigos, quando jogavam no juvenil do Fluminense. Jantávamos sempre no Recreio e esticávamos no Lamas, onde encontrávamos pela madrugada jogando sinuca, quando não tinha jogo, é claro, pois Otávio queria ganhar o futebol de todos os domingos. Sua mesa ficava cheia, e ele tinha muitos amigos na noite. Os garçons adoravam o Otávio, e era sempre ele quem pagava a conta. Vivia de rendas, tinha família rica, mas era bom na Bolsa e escrevia artigos de literatura e cinema em jornais e revistas. A “Tragédia Burguesa”, que era como chamava a série de romances que escrevia, se esgotava logo, mas a edição era pequena. Dali, para meu espanto, não vinha muito dinheiro. O time não tinha muito ciúme de mim e de Élbio, porque Otávio era discreto e perfeito na amizade que dedicava a todos. Gostava de saber dos problemas de todos e, sem que ninguém percebesse, ia resolvendo os casos de cada um. A dupla que ele formava com Preguinho era imbatível. O Fluminense deve a eles vários campeonatos conquistados, não só no juvenil, mas também nos aspirantes e nos profissionais, além de ter formado centenas de craques para o futebol brasileiro.

 

O Santos, que depois foi chamado “o Santos de Pelé”, veio pescar muito em Laranjeiras. E olhe que este era o momento glorioso do bicampeonato seguido do futebol brasileiro de 58 na Suécia e de 62 no Chile, tempo em que iriam surgir Pelé e Garrincha! Em 1951, jogavam no time de cinema do Fluminense: Didi e Telê, um formado em Madureira, o outro em Laranjeiras, no juvenil de 49 a 50, vindo de Minas. Otávio levava a maior fé no olho do Nicola, que via o craque promissor pelo perfume que emanava da bola que ele tocasse. Élbio tinha idade para três anos de juvenil, e eu pensava que tinha dois anos. Verifiquei mais tarde que os cartolas contavam a partir do ano em que você tinha nascido: nasci em novembro de 1933, logo quando acabasse o campeonato de 1952, eu teria ainda 18 anos. Mas os cartolas contavam 52 – 33 = 19. Que burrice! Isto me deixou muito puto.

 

Otávio ficou espantado quando soube que já tinha lido Mundos mortos, e mais ainda quando comentei que tinha achado do filme que acabara de ver em avant-première no São Luís, The Quiet Man (Depois do Vendaval), de John Ford. Ele já tinha visto passar pelo juvenil do Fluminense muitos estudantes de direito, medicina, arquitetura etc, mas um craque que tivesse lido um livro dele e conhecesse John Ford era demais. Vimos muitos filmes juntos e discutimos muito, também. Ele me emprestou muitos livros de literatura, filosofia e cinema. E li sem parar. Cheguei a ler, nessa ocasião, um livro por dia, tal era a minha sede e vontade de descontar minha ignorância e poder conversar com Otávio e os amigos que ele me apresentava.

 

Naquele tempo eu tinha abandonado a natação, continuava com o polo aquático, apesar de não treinar tanto, mas era só tabelar com o Mávio e o Grijó e deixar aquele monstro de energia que era João Gonçalves voltar a mil para retomar a bola, tabelar e deixar o Douglas na cara do gol.

 

No futebol, nosso time seguia na frente. O pentacampeonato estava no bolso. Gradim, que era o técnico, preparava já um supertime para 52.

 

O resto do tempo, eu lia e via filmes.

 

Otávio escreveu para o Jornal das Letras uma serie de artigos sobre a história do cinema, que me emprestou. Dava um banho nos demais críticos brasileiros, porque viajava todos os anos e conhecia filmes que nunca chegavam aqui. Além do mais, conhecendo bem filosofia e outras artes, ficava difícil para os outros. E depois, cinema para ele era arte. Nascido em 1908, precocemente se apaixonou pelo cinema, viu e leu os teóricos franceses que, por causa de Griffith, e principalmente Chaplin (o grande gênio para ele), reconheceram na época (1920) uma linguagem própria, elevando o cinema ao status de sétima arte. Rigoroso, só gostava do que era bom mesmo. Amigo de Mário Peixoto, influenciou e deu muita força para a realização de Limite, a primeira obra-prima do cinema nacional, integrada na vanguarda cinematográfica internacional.

 

Mas Otávio, em 1948, escrevia:

 

Na derradeira de suas Considerações inatuais, em 1876, defendendo Wagner e a nova música. Nietzsche explica como e por que a linguagem literária das palavras se tornou impotente para exprimir os sentimentos do homem, para satisfazer a sua necessidade de se comunicar com os outros, etc. Desvirtuada da expressão dos sentimentos para a do pensamento, possuída pela vertigem das palavras sonoras, ela se torna a escrava da eloquência.

 

Naquele momento era a música wagneriana que resolvia a crise prevista por Nietzsche. Depois, ele brigaria com Wagner e mudaria um pouco. Eu ouvi de Roland Corbisier, mais tarde que Otávio de Faria era “o maior conhecedor de Nietzsche no Brasil”. Mas o grande filósofo alemão não previa o evento do cinema, como fez Bergson, seu continuador, que dizia, em 1908: “O mecanismo do nosso conhecimento usual é de natureza cinematográfica”. Ao que Otávio retrucava: “Os teóricos do cinema tiram logo estas conclusões. A expressão por imagens é, portanto, para a criação artística, a mais poderosa, a mais rica de todas as formas de expressão”.

 

Imaginem uma pessoa como eu, amando o cinema como eu amava, lendo isso, e neste nível. Aí, ficava difícil ir para o campo para um lançamento para o ponta-esquerda, tipo Escurinho. Era dose! Mas o Otávio com sua humildade genial, me corrigia e ensinava. Como da vez em que o vi em pleno Maracanã, em pé, como sempre fazia, com o guarda-chuva para o alto, seguindo a arrancada sensacional de Escurinho para mais um gol tricolor, gritando: “Toda a vida! Toda a vida! Toda a vida!”.

 

Otávio demorou muito a acreditar no cinema falado – “o grande culpado da transformação”, como disse o poeta Noel. Ele crescera com o cinema mudo. Basta ver como foi possível, em plena década de 1920 no Brasil, a Otávio de Faria, Plínio Sussekind da Rocha, Almir de Castro e Cláudio Pinto criar um cineclube como o Chaplin Club e uma revista, Fan, especializada em cinema, quando somente em 1952 seria fundada uma cinemateca brasileira, em São Paulo, graças a Paulo Emílio Salles Gomes e Francisco Luís de Almeida Sales! Otávio e seus amigos fizeram um cineclube e uma revista cinematográfica que se nivelava, e ás vezes superava, os cineclubes e as revistas de cinema do mundo inteiro! Na década de 20, é dose! Durante as noitadas de pileque, junto com Élbio, Zé Henrique Belo, Zé Henrique jogador, e Bento, de Botafogo 28, sétimo andar, com vista para a enseada de Botafogo, fazíamos uma linha de passe com Otávio, no gol (um porta delicioso, que separava a sala de visitas da sala de jantar e do escritório, onde havia uma estante de vários metros até o teto, com milhares de livros, todos lidos). Pois neste apartamento eu vi, com meus próprios olhos, e não posso esquecer, uma foto de Charlie Chaplin, com uma dedicatória cheia de admiração, espanto e surpresa pela qualidade daquela revista e daquele cineclube no Brasil. A revista se chamava Fan. E o cineclube, Chaplin.

 

O cinema, “a arte do século, música dos olhos”. Ainda em 1948, Otávio continuava saudoso da fase muda. Foi Otávio de Faria, com seus amigos do Chaplin Club, quem defendeu e permitiu a entrada do grande cinema soviético de Eisenstein, Pudovkin, Dovjenko e Dziga Vertov. Mesmo sendo de direita, Otávio jamais deixou de defender o filme artístico e de qualidade, fosse qual fosse a ideologia. Graças ao Chaplin Club, e graças às viagens de Otávio, as gerações de 20, 30 e 40 conheceram o melhor cinema do mundo...Daí haver podido surgir no Brasil dois grandes cineastas como Mário Peixoto e Humberto Mauro, e críticos como Paulo Emílio Salles Gomes e Almeida Sales.

 

Otávio, ainda defendendo o mudo, citava René Swob: “O cinema é o testemunho da autenticidade do gesto, que é como a justificação da pantomima que Chaplin defendia. O home, complexo de gestos”.

 

Charlie Chaplin dizia: “Não existe arte nos filmes falados. Dar voz ao cinema é o mesmo que colocar palavras numa sinfonia de Beethoven. Ela não basta em si mesma? Quem lembraria de substituir as joias pintadas num quadro de Rembrandt por verdadeiros diamantes? O cinema é imagem e ilusão”.


Cito a briga do Chaplin Club em defesa do cinema mudo porque ela influenciou bastante o grupo do cinema novo, já que nos anos de 1953 a 1958 frequentamos bastante o cineclube da Faculdade de Filosofia, cujo animado cultural era Plínio Sussekind, outro fundados do Chaplin Club, juntamente com Almir de Castro e Cláudio Pinto. Logo, a influência de Otávio em mim e em Plínio em Joaquim Pedro, Saulo Pereira de Melo, Marcos Farias, Leon Hirszman, Miguel Borges, Carlos Pérez – o primeiro grupo do Rio de Janeiro a formar a formar o cinema que iria ser chamado de Cinema Novo – era forte. Daí a nossa dificuldade, no primeiro manifesto do “movimento”. Nessa época, 1954-55, eu já seguia o crítico francês André Bazin e sua defesa do cinema impuro; já tinha sido marcado, definitivamente, por Viaggio in Italia de Roberto Rossellini.

 

Mas, voltando a 1951, o time do juvenil do Fluminense foi pentacampeão e o time de cima exibia dois craques completos no meio-de-campo campeão: Didi e Telê. Era um time quente. Castilho e Veludo no gol, Píndaro, Pinheiro, Lafaiete, Bigode, e tinha no melhor do time, a linha Telê, Orlando (Pingo de Ouro), Carlyle, Didi e Rodrigues. A folha-seca de Didi mudou o futebol brasileiro; todo craque ou menino promissor queria imitá-lo. Eu ficava horas vendo Didi, que era um príncipe negro, vindo de Madureira, treinar. Cheguei a treinar com ele, e a emoção foi forte. Didi raciocinava na velocidade de um bólido. Graças ao esporte, eu ia passando de ano no científico do Ateneu São Luís, onde estudei junto com Márvio, Sílvio Kelly e João Gonçalves – os quatro formamos um revezamento que bateu vários recordes no campeonato estudantil de natação.

 

O ano de 1952 foi uma tristeza para mim. Eu queria ir para as Olimpíadas de Helsinque. Márvio e Sílvio iriam. Márvio no polo aquático e Sílvio na natação. Fui convocado em dois esportes (coisa rara naquela época, antes só me lembro de ter ouvido o Preguinho dizer que ele tinha sido uma vez). Eu tinha que optar. Escolhi pelo coração: futebol. Fiquei como reserva de Vavá, que naquele tempo jogava no meio-de-campo, camisa 10. Na última semana, os cartolas resolveram levar só dezoito jogadores e eu fui cortado. Não gostei. Depois teve aquela história do ano de 1933, do meu nascimento. Eu não podia mais jogar no juvenil, apesar de ter dezoito anos; só faria dezenove quando o campeonato já tivesse terminado.

 

Em 1952, o Fluminense deixou de ser hexacampeão por um ponto, e acho que fiz muita falta ao time, nos jogos decisivos. Ganhou o Bangu, que tinha o Zózimo, depois campeão do mundo pela Seleção Brasileira de 1962. Em 1953, Otávio e Preguinho deixaram a direção do juvenil e nunca mais o Fluminense teve uma organização básica como aquela. Fiquei treinando com o time profissional e joguei no time de cima em vários jogos pelo interior do Brasil. Zezé Moreira queria que eu assinasse contrato. Joguei num time que era muito bom: Veludo, Lafaiete, Pinheiro, Ramiro e Getúlio; Edmílson, João Carlos e Sarro; Robson, Larry e Quincas. Mas fui adiando o contrato.

 

Entrei para a revista Latina, onde eu fazia crítica de cinema e a paginação. Estava gostando. Fiz uma bela entrevista com Otávio, escrevi críticas sobre Rossellini, De Sica, Luzes da ribalta. Via filmes e estava entusiasmado com meus amigos da Faculdade de Filosofia. Entrara, para espanto e alegria dos meus pais, para a Faculdade de Direito do Catete. E lia sem parar, romances e Cahiers du Cinéma. Meu pai custara muito a acreditar no craque que tinha em casa. Ele mesmo fora um ótimo center-half na juventude. Meu tio Pedro, irmão da mamãe, era diretor de futebol do Flamengo, me levou para treinar lá, e eu acabei com o treino, fazendo dois gols, um de bicicleta. Acabou sendo difícil não ficar no Flamengo, mas meu pai começou a achar bom que eu assinasse contrato com o Fluminense. Briga na família, não assinei com nenhum dos dois clubes. Papai achou que eu era parecido com Zizinho...Era exagero...

 

Resolvi, quando a revista Latina acabou, ir trabalhar com meu pai na alfândega, como despachante. Mas ficava lendo ficção o tempo todo e papai viu que eu não dava para entender de contêineres e trabalho burocrático. Viu que eu só pensava em cinema, e cinema só se fosse na Itália ou nos Estados Unidos, e concluiu que eu estava maluco. Lia todo Machado de Assis, Dostoievski, Faulkner, Proust e Kafka.

 

Foi da janela do escritório do meu pai que vi o povo na rua depois do suicídio de Getúlio Vargas. Perplexidade, insegurança, desespero e revolta. Me meti no meio do povão e chutava tudo que via no chão. Bastaria uma palavra de ordem e o povo tomaria o Palácio do Catete, enfrentando tanques e canhões. Foi Deus quem segurou aquele povo para que houvesse eleições livres e fôssemos viver o único período de verdadeira democracia que conheci – com Juscelino Kubitscheck.

 

Eu não tinha hora para dormir, ficava até tarde no Lamas, conversando sobre literatura e cinema com Otávio ou jogando partidas sensacionais de sinuca com Élbio, Ghigia, o próprio Otávio, João e Roberto. No futebol, eu, Élbio e Mário César jogávamos num time chamado Meanda, todos os domingos, no Colégio Militar; íamos direto, sem dormir: o jogo era ás nove da manhã. Formamos um time de ex-juvenis do Fluminense que ficou por dois anos. O time era bom demais, havia a elegância do craque Mário César, o Élbio, o Zé Henrique, fazendo os gols com as bolas que eu lançava, deixando-os cara a cara com os goleiros. Tínhamos um fôlego de mil gatos. Num domingo de 1953, Rafael de Almeida Magalhães fez uma seleção de jogadores de praia e eles vieram jogar contra a gente. Resultado: 9 a 1 Meanda. O time era imbatível.

 

Quando o Lamas fechava e o papo ainda não tinha terminado, Otávio me levava em casa, no Zacatecas, e o papo continuava, eu, de esquerda, ele, de direita, mas eu ia aprendendo o seu “diálogo democrático”, que nem Sócrates era capaz de tanta maiêutica com o Otávio. Entrávamos na Pinheiro Machado, passávamos pelo Fluminense, entrávamos na Farani, até a Praia de Botafogo 28 (onde ele morava), e aí eu tomava um táxi, já destruído por tanta cultura. Sempre gostei de andar de madrugada, pensando, conversando.

 

Nos sábados, eu e o Élbio começamos a frequentar os bares de Copacabana, onde Otávio se encontrava com seus amigos, ou no Scaramouche, na rua Bolívar, ou no Collón, na Constante Ramos, ao lado do cinema Rian (nem o bar, nem o cinema existem mais), ou no Alcazar, na avenida Atlântida. Ali conheci o poeta Marcos Konder Reis, outra grande influência que tive durante todo esse tempo. Marcos era catarinense e sabia de tudo. Qualquer assunto ele transformava em poesia, e vivia só para isso. Sua família era de políticos de Santa Catarina, tendo seu pai e irmão sido já governadores catarinenses. Marcos era puro coração e cheio de ternura. Ele também não gostava das minhas ideias de esquerda, mas poesia não tem bandeira, ficamos grandes amigos, e ele me levou para conhecer sua turma: Sebastião, Lígia de Moraes, irmã de Vinícius, Manfredo, Serginho, Leonardo, Mozart, Augusto, Chiquinho Brasil e principalmente Alair Oliveira Gomes, um dos intelectuais mais modernos e completos que conheci. E ainda o Geraldo Markan, o Marcos Lima. As conversas transcorriam como se Proust baixasse e conversasse com Faulkner ou Hölderlin. Eu adorava o tom frívolo que escondia uma grande profundidade nas emoções. Manfredo, que era romeno e esteve em campo de concentração, me disse que haveria uma grande revolução na Rússia e o muro de Berlim iria cair, para desespero dos comunistas – estávamos em 1955 ou 56.

 

Foi na mesa de Otávio que conheci Sandrinha. Era pequena, branco, mas bem morena, corpo e vivacidade de mulher feita. Olhos negros de gata, pronta a arranchar qualquer coração sensível que passasse à sua frente, mas de uma ternura sem limite, também. Sandrinha foi trazida por um amigo de Otávio para ser o seu caso. Otávio ficou excitado, mas viu logo que Sandrinha estava a fim de rapazes da mesa, que éramos eu e o Élbio. Quando vi que Otávio tinha deixado o campo livre, mergulhei de cabeça. Foi meu primeiro caso sério, de juntos dormir todos os dias, de trepar o dia inteiro. Renato Belo, irmão de Ghigia, tinha uns amigos dentistas que moravam em Copacabana, cada um num posto diferente. Fiquei amigo do Rodolfo, Carlinhos Fernandes e outros amigos queridos, que me emprestavam seus leitos para que eu e Sandrinha botássemos para fora toda aquela energia e tesão.

 

Fui trabalhar no banco da Prefeitura, emprego arranjado por minha mãe e um primo dela. Trabalhei três meses e foi um suplício. Mas aluguei um apê em Copa e vivia casado com Sandrinha – eu adorava a Sandrinha, mas sentia que a minha não era essa, ainda. Na mesa de Otávio aos sábados, havia o Antonio da Nova Monteiro, um tipo engraçadíssimo: alto funcionário do banco e como prêmio, também, a aposentadoria. Pois não é que ele sai do banco, toma um táxi, não antes de escolher o motorista, e ruma para Campos Sales, sede do América. Segue com o motorista para a quadra de basquete e coloca o motorista na arquibancada deserta. No centro da quadra, tira dos bolsos umas castanholas e começa a andar, freneticamente, uma dança flamenca!

 

Antonio vivia dizendo que eu, com aquela vida de casado, estava engordando uns quilinhos – o que não era verdade, pois estava mais era chupado de tanto amar a Sandrinha. Aí, comecei a me afastar dela. Foi difícil, pois nem eu mesmo queria. Vivia tomando porres e indo esperar as vedetes do teatro de revista ou as mulatas que saíam com Albino, enormes e lindas; me perdia em orgias loucas, fugindo do casamento e do banco, esperando o Festival de Cinema Internacional de São Paulo, que seria em março de 1954.

 

Na Lagoa, em seu belo apê, Sérgio Malta, ator de chanchada e amigo meu de Laranjeiras e do Largo do Machado, dava festas maravilhosas que sempre acabavam em surubas monumentais. Eu vivia lá, onde as ressacas e as dores de consciência eram terríveis, por Sandrinha e pelos personagens morais da “Tragédia Burguesa”. Sentia-me como os personagens, e sofria. Otávio tinha a capacidade de criar personagens que a gente jurava havê-los encontrado nas esquinas da vida e, pior ainda, a gente se sentia na pele deles. Minhas provas na faculdade eram verdadeiras críticas de cinema, ou filmes que eu inventava, colocando um ou outro nome técnico do direito romano, canônico civil, penal ou internacional...Nunca entendi bem como aquilo funcionava e ia, a duras penas, passando de ano. Cheguei até o quinto ano, quando tranquei a matrícula.

 

Gostava, como gosto até hoje, de andar pelo Centro da cidade. Da Lapa até o Campo de Santana, a praça da República, a Primeira de Março, até a praça Mauá. Subir Santa Teresa, conhecer todos os prédios velhos do Rio...Eu adorava a praça Tiradentes, o teatro Recreio, o cinema Íris ou Ideal, que abria o teto nos dias de calor. Foi ali que vi dois filmes de Buñuel que me enlouqueceram de prazer: El e Morro dos ventos uivantes, versão de Buñuel. Comecei a armar minha ida para São Paulo, onde haveria um festival internacional de cinema.

 

No Amarelinho ou no Vermelhinho, bares frequentados por artistas, no Centro da cidade, conheci uma turma que era amiga do José Carlos Burle, que, por sua vez, ia fazer um filme em São Paulo. Me enturmei, mas nem sequer passava pela minha cabeça fazer cinema, ser ator ou qualquer coisa; eu queria ir para São Paulo, para conhecer André Bazin e Erich von Stroheim.

 

Ver Greed, conhecer atrizes italianas...Mas o jeito era entrar na equipe de O comprador de fazendas, segunda versão. Que, aliás, não houve. A esta altura, pedi licença no banco e tomei um trem. Desci na Estação da Luz e adorei. Fiquei horas por ali, vendo a Estação da Luz, que para mim já era cinema.

 

Antes disso, porém, passei um sufoco. Enquanto arrumava a mala, recebi um telefonema de uma amiga dizendo que Sandrinha tinha esvaziado um tubo de tranquilizantes e estava em estado de coma no hospital. Foram mil pedidos, para Deus e de amor, até convencê-la de que eu tinha um encontro com Stroheim e não podia perder. A partir dali, Sandrinha nunca mais quis me ver. Nos vimos depois, mas ela fugiu de mim. Ficou com medo.

 

No último número da Revista Latina (1954), saiu minha entrevista com Otávio:

 

- Você pensa ainda se pode fazer oposição entre cinema silencioso e cinema falado?

 

- Como um problema de estética cinematográfica, claro que sim. Como um problema de destino do silencioso, não. Trata-se de uma etapa vencida, ultrapassada. O cinema caminhou muito e não se pode mais pensar em voltar atrás. A imagem, naturalmente, continua a ser o elemento fundamental de expressão cinematográfica. O problema é, como sempre foi, conseguir que o sim, isto é, a palavra, não pese demais sobre ela – não a esmague. No início dos talkies, a palavra parasitou e asfixiou de tal modo a imagem que se pôde chegar a duvidar do futuro do cinema como arte. Mas a força da imagem aos poucos ressurgiu e vai se impor. E ela aí está, viva, esperando apenas ao gênios criadores que saibam manejar convenientemente. O problema do som foi um simples problema de “digestão” para o cinema dos nossos dias, como está sendo o problema da cor. E como vai ser, amanhã, o do relevo. Acredito cegamente que o cinema como arte chegará ao fim de todos esses desagradáveis trabalhos estomacais e, então, poderá cuidar de definir com mais segurança o seu destino estético. Apenas, antes de chegar a isso, quantos anos ainda não teremos de padecer incríveis tecnicolors e cinemascopes?...

 

- Você acha que as produções europeias são superiores às americanas?

 

- Se considerarmos a produção real – a que é exibida na Europa e que nós quase não vemos, apenas adivinhamos através de raras obras-primas -, não resta a menor dúvida de que a produção europeia é superior á americana. Aliás, quase tudo o que existe de essencial, em matéria de cinema, tem vindo (pelo menos nestes últimos trinta anos) da Europa. De fato, é o velho Ocidente que a luz nos tem chegado, seja diretamente (produção local: Eisenstein, Pudovkin, Dreyer, Renoir, Clair, Carné, Carol Reed, David Lean, De Sica, Rossellini, Visconti, etc), seja indiretamente (grandes realizadores e cenaristas, atores, tudo importado pelos Estados Unidos, a peso de ouro: Stroheim, Lubitsch, Murnau, Sternberg, Fejos, Sjöström, Stiller, Garbo, Negri, Jannings, Bergman (Ingrid), Wilder, Lang, Litvak, Olivier, Dmitrik etc...E não falamos no maior de todos, o clown inglês: Charlie Chaplin). É bem verdade que essa nítida superioridade começa a ficar seriamente ameçada com o nefasto sistema das co-produções. Admito que, do ponto de vista comercial, tenha sido uma ótima solução, para companhias à beira da falência. Do ponto de vista artístico, pelo menos até agora, tem sido um desastre. A falta de autenticidade desses filmes, mistos que não são carne nem peixe, que não exprimem as qualidades italianas nem as americanas, nem as francesas, verdadeiros cocktails de grandes talentos perdidos na mediocridade agradável e “avaselinada” dos “Dom Camilos” de todas as espécies – eis o grande perigo que ronda o cinema europeu dos nossos dias.

O europeu, na América, conseguiu grandes momentos de cinema. O americano, na Europa (pelo menos até agora), não conseguiu senão estragar o bom cinema italiano e o bom cinema francês, sem dar nada das suas reais e indiscutíveis qualidades cinematográficas.

 

- A mudança de Chaplin para a Europa influenciará o equilíbrio Europa-Estados Unidos?

 

- Admitamos que esse equilíbrio exista ou esteja a ponto de existir. Não me parece que a mudança de Chaplin para a Europa possa influir decisivamente sobre ele. Por maior que Chaplin seja, o maior de todos, trata-se de uma personalidade, de uma obra única e sem par, independente do resto da produção mundial. Chaplin é um cinema dentro do cinema. Excede em muito o âmbito do nacional e do continental, pouco tendo a ver como batalha Europa-Estados Unidos.

 

- O que você achou de Luzes da ribalta?

 

- Parece que muita gente boa andou torcendo o nariz para Limelight. Tenho tanta pena!...Enfim, se trata de questão de gosto, valha-me o meu. Há muitos anos (precisamente desde City Lights, Luzes na cidade, 1931) eu não tinha uma satisfação tão grande. Evidentemente, Limelight não atinge o mesmo nível cinematográfico de City Lights ou de Gold Rush (Em busca do ouro). Ou talvez não seja narrado com aquela perfeição inexcedível de Monsieur Verdoux. Mas, do ponto de vista emocional, creio que estamos diante de uma das mais autênticas obras-primas do cinema. Naturalmente, há os que insistem em prestar atenção aos “lugares comuns”...

 

- Os filmes europeus exibidos entre nós representam realmente o que de melhor se faz na Europa?

 

- Em absoluto. Acho mesmo que, a rigor, pelo que nos é exibido, não devíamos nem mesmo falar em cinema europeu. A porcentagem dos grandes filmes europeus que temos ocasião de ver é mínima. E, quase sempre, os filmes passam com um atraso de quatro, cinco anos. (A não ser quando oferecem possibilidades de escândalo.) Refiro-me especialmente às produções francesas e italianas e, em parte, às inglesas, que são as principais, deixando de lado as russas, que também não são mostradas por motivo igualmente antiartístico. Raramente nos é dado acompanhar o desenvolvimento de um diretor francês ou italiano – a não ser que ele o faça através de uma Silvana Mangano ou de uma Martine Carol. Inútil, aliás, qualquer nova reclamação: os responsáveis pela propaganda dos países em questão não pensam sequer em se mover por uma bagatela dessas. Ou nos sugerirão um remédio oportuno nessa época de “aranhismo”: comprem uma passagem num aviãozinho e vão assistir esses filmezinhos em Paris ou em Roma. É tão baratinho!...

 

- Quais são os melhores filmes que você viu até hoje?

 

- Apesar ser muito difícil isolar dez ou quinze, arrisco essa enumeração: Luzes da cidade, de Chaplin, valendo pela obra toda, que poderia figurar aqui com exceção de O grande ditador e Tempos modernos; Encouraçado Potenkim, de Eisenstein; Tempestade sobre Ásia, de Pudovkin; O lírio partido de Griffith; Ouro e maldição, de Stroheim; A última gargalhada, de Murnau; Aleluia, de King Vidor; O gabinete do dr. Caligari, de Robert Wiene; A caixa de Pandora de Pabst; O cadáver vivo, de Ozep; A paixão de Joana d´Arc de Dreyer; A besta humana, de Renoir; Boulevard do crime, de Carné; Domínio dos bárbaros, de John  Ford; e Ladrões de bicicleta, de De Sica. Convém salientar que muitos desses filmes, como A besta humana ou Tempestade sobre a Ásia, são escolhidos mais como representativos da obra de seus realizadores do que como filmes em si, não obstante possuem valor intrínseco indiscutível.

 

- O que você pensa do atual cinema nacional?

 

- Peso que, apesar de todo o inefável progresso material que se vem verificando e de algumas realizações já bem aceitáveis como O cangaceiro e O canto do mar, vamos indo pessimamente. Nem devemos nos enganar com esses pequenos oásis. À sombra do 8 por 1 – monumento de desatino e infelicidade de um governo monumentalmente destinado e infeliz – caminhamos segura e inabalavelmente para o desastre total. Nem poderia deixar de ser assim. O estabelecimento do coeficiente de 8 por 1 sem uma “censura” ou “peneira” competente e bem orientada (penso no acerto com que Cavalcanti viu o problema no seu tão discutido relatório...) foi um verdadeiro crime contra a formação do cinema nacional. O resultado, aliás, já está pelas nossas telas – e não há mais pejorativos para os nossos críticos inventarem, se quiserem falar com seriedade desses já famosos “abacaxis”. A nós cabe aguenta-los, sonhando apenas com um governo que, num novo decreto, multiplique por 8 por dez e deixe o 1 onde ele merece ficar. Talvez então se comece a pensar em qualidade em vez de quantidade e um Cavalcanti não tenha mais de passar pela humilhação de assinar um Simão, o Caolho.

 

- Você gostou de O cangaceiro?

 

- Muito. Acho mesmo que, desde Limite, de Mário Peixoto (lá pelos idos de 1931), o cinema nacional não tinha um momento tão alto. Evidentemente, há muita coisa a discutir, a rejeitar. Já se falou, aliás, bastante (demais, mesmo) desses defeitos de um filme que tem tanta coisa a ser elogiada. Para mim, foi uma surpresa, uma grande e agradável surpresa- e tanto maior quanto foi a única, talvez, nestes últimos anos de cinema nacional. Do seu realizador, prefiro não dizer nada e aguardar, com O sertanejo, a confirmação de suas inegáveis qualidades de visualizador.

 

- O que você acha dos filmes de Cavalcanti no Brasil?

- Acho que, depois de Simão, o Caolho, Cavalcanti precisava bem ter realizado O canto do mar para se redimir aos nossos olhos. Não que o filme me agrade integralmente. Com o delírio desconexo dentro do qual se moveu, dificilmente Cavalcanti poderia sair vitorioso. O filme não “arma”, mas o seu realizado está o tempo todo presente, pessoa, expressivo, convincente, relembrando sempre o grande diretor que durante tantos anos acompanhamos ao longo dos seus sucessos na França e na Inglaterra. E a verdade, abem triste verdade me parece ser esta: o nosso meio cinematográfico ainda não permite que ele nos dê a exata medida do seu talento.

 

- O que pensa da ideia de fazer um argumento cinematográfico?

 

- A ideia é ótima, o tempo é que é pouco, infelizmente. Aliás – e não falando de um velho plano de César, cenário épico, que me acompanharia há vários anos –, tenho em projeto um argumento que se deverá intitular O outro. Trata-se de uma história fantástica, meio mistério policial, difícil de ser arquitetada, mas não impossível de ser filmada. Além de O outro, conto tirar um pequeno cenário do meu romance O lodo das ruas, isolando o episódio central. E ainda há Os enviados de Deus que, esse, nem sonha com filmagem...Projetos, naturalmente.

 

São Paulo se movimentava muito, culturalmente, naquele ano de 1954. Havia já a Cinemateca Brasileira e eu lia as críticas e os ensaios de Paulo Emílio e Almeida Sales. Sabia que Paulo Emílio, que tinha fugido da cadeia na ditadura do Estado Novo e se exilara em Paris, frequentando a cinemateca francesa de Henri Laglois, Mary Merson, Lott Eisner, era um grande pesquisador. Escrevera o primeiro livro em francês, não traduzido ainda nesta época para o português, sobre o grande cineasta francês Jean Vigo, morto aos 29 anos, e que é uma das glórias do cinema. Além disso, Paulo Emílio tinha descoberto para os franceses a figura histórica de um anarquista importantíssimo – o pai de Jean Vigo, Almereyda.

 

Do poeta e crítico Francisco Luís de Almeida Sales, nascido em Jundiaí e que elevou o nível da crítica cinematográfica em São Paulo e no Brasil, sabia-se, ou eu soube em São Paulo, que tinha conhecido Abel Gance. O cineasta francês deixara em suas mãos uma cópia integral e autêntica de Napoleão e lhe pedira que fundasse uma cinemateca no Brasil. Estava assim cumprida a promessa de um grande brasileiro, que se tornou o presidente da Cinemateca Brasileira e, para todos nós, o Presidente. Eu pensava assim: que bom viver num país assim, que além de já ter possuído em 1927 um Chaplin Club e de ter tido em 1940 um crítico como Vinícius de Moraes, tem agora esses dois: Paulo Emílio e Almeida Sales. André Bazin vai se sentir bem nesse meio, espero.

 

Em São Paulo, não perdia um debate nem os filmes que me interessavam. Não tive coragem de me aproximar de ninguém, ou melhor, me aproximava, mas só ficava ouvindo. Achei que André Bazin já estava doente, mas que estava feliz no Brasil. A grande vedete era Erich von Stroheim. Suas expressões eram impenetráveis. Sempre o grande cineasta, que sabia ser o ator perfeito de todos os seus filmes., uma das personalidades mais inquietantes da história do cinema.

 

Conheci Aurora Duarte e seu marido, o produtor Mota, e fiquei impressionado com a garota que queria ser mais do que somente a atriz do Canto do mar de Alberto Cavalcanti.

 

Ficava meio perdido em São Paulo, morando ás vezes na casa de uns primos, outras vezes em hotéis baratos, sem saber onde iria amanhecer, já pronto para descolar uma entrada para o cinema, estadia, ou almoço. Eu ia aonde Stroheim ou Bazin se metiam. Quatro anos depois eu faria o mesmo com Roberto Rossellini, quando ele veio ao Brasil a convite de Josué de Castro estudar a possibilidade de filmar Geografia da fome. Só fui tiete duas vezes, mas fui até mergulhar de cabeça: nas fotos de Rossellini, no Rio, eu estou em todas, ou quase todas. Rossellini tinha tanta certeza de que eu estava atrás dele, que me acendeu um cigarro de costas – sentindo que eu tinha pego um cigarro, ele, com seu isqueiro, sem se virar, o acendeu para mim.

 

Arnaldo Figueiredo, produtor de José Carlos Burle, se espantava com meu amor pelo cinema e pela expectativa de ver Greed, sem conseguir, evidentemente.

 

Casa cheia, cinema lotado, consegui um lugar lá em cima no Cine Metrópolis, nas fileiras de trás. Mas ouvi perfeitamente a apresentação de Almeida Sales e Paulo Emílio fizeram, com a eloquência sinuosa das palavras largadas como um passe perfeito de Didi, cheia de folhas-secas, precisas, generosas, perfumadas de encanto. Vi Stroheim apertar seu coração. Já Paulo Emílio era pura ópera de Mozart e Wagner, tentando com todo o seu ser passar para os espectadores aquele raríssimo e brilhante momento de dar a palavra a tão grande cineasta. Foi lindo. Erich Stroheim falou com seu inglês de alemão, prussiano. Eu não entendia, mas...Era preciso? Percebia que Stroheim estava contente com a homenagem, que estava contente com o neo-realismo que vinha lavar sua alma e que ele há muito esperava. Naquela noite Stroheim deixou de ser o mordomo de Glória Swanson no belíssimo filme de Billy Wilder, Sunset Boulevard, e voltou a ser o grande diretor que colocara essa extraordinária atriz no píncaro da fama. “Fez” neo-realismo em 1923. Zavattini, Rosselini, De Sica, Visconti, lembrem-se e vejam Greed e Marcha nupcial. Genial. Greed (Ouro e maldição, em português).

 

O clima estava tenso, emocionalmente. As luzes se apagaram e começou um dos filmes mais perfeitos da história do cinema. Cinema era isso! Sem dúvida.

 

Não me lembro mais do que aconteceu depois daquele momento, só me lembro de ter sido atingido por um raio. Bateu forte. Saí do cinema, sozinho e quietinho, sem responder aos cumprimentos, e espantoso, ninguém dizia coisa com coisa, eu não sabia se era eu que estava vendo assim, ou se era assim mesmo. Saí do cinema para ficar só, tentar descobrir o que estava sentindo. Barafunda na minha cabeça, resultado de estar lendo e forçando demais o meu cérebro? Ali, estava diante da arte, da maior das artes, quem era eu para ficar com aquelas coisas? Afora, o Ghigia, conhecem algum artista? Tens na tua infância algum conhecimento, fora o pessoal das escolas de samba, o Delegado da Mangueira, ou o Didi ou o Zizinho? Tens artista na família? O melhor era voltar para a Sandrinha e assinar com Zezé Moreira o contrato de profissional e esquecer de querer ser intelectual e artista. Eu sofria.

 

Passei a noite caminhando pela praça da República, bem embaixo do prédio do Presidente Almeida Sales, sem saber, sem saber também onde ir. Sabia que eu queria fazer cinema. E Cinema Brasileiro, assim como Greed me ensinara.

 

Que rigor, meu Deus! Que rigor! Que potência! O prazer de estar filmando. O poder, que só é importante se for glorioso. Nenhuma complacência. Amor, apenas. Eu via o filme como se o estivesse fazendo. Naquele momento eu era o filme, era os personagens, era o bandido e o mocinho, era a mocinha também.

 

Peguei a mala e me piquei para o Rio. Com alma nova. Queria fazer cinema, tinha vinte anos e ia procurar saber como se faz um filme no Brasil. Conhecer uma câmera (nem fotografar eu sabia), conhecer as leis do 8 por 1 que Otávio era contra, mas, se com 8 por 1 é ruim, o ideal seria 1 por 1: para cada filme estrangeiro, um nacional. O cinema não é também uma indústria cultural, é a cultura de um país. Real. As escolas de samba não eram a expressão popular máxima do Rio de Janeiro e do Brasil? Podia ser melhor, como sonhava Paulo da Portela: educar e alimentar aquele pessoal do morro, dar-lhe uma profissão digna, dar amor e felicidade, que era o que ele, o povo, queria! Mas a vida é barra-pesada, e ainda injusta. Mas, se a crítica brasileira tinha Paulo Emílio, Almeida Sales, Otávio de Faria e Plínio Sussekind, é sinal de que pode dar pé. Como se faz para filmar o Brasil? Dê no que der, vamos lá!

 

No Rio, fui procurar o Sani Chesques, irmão do Sérgio, meus amigos do Liceu Francês. Sani era assistente de Carlos Manga na Atlântida e estavam filmando O golpe, com Oscarito. Sani me botou como segundo assistente. Falei com Cyll Farney, que era o produtor-executivo, e entrei no estúdio. Manga dirigia Oscarito, fazendo com que ele exagerasse ainda mais os trejeitos. Comecei a passar mal. Não era isso que eu queria, Stroheim não era assim. Nem Mário Peixoto, nem Humberto Mauro eram assim. Dei meia-volta e fui embora.


Com Carlos Manga me dei mal três vezes. Esta, uma outra mais tarde, quando comecei a namorar sua ex-mulher, e ela, ao saber que eu queria fazer cinema, me pediu pelo amor de Deus para não procura-la mais...E outra bem mais tarde, acho que já nos anos 80, quando o encontrei na porta da embaixada do Brasil em Roma e passei direto, sem cumprimenta-lo (confesso que de uma forma cafajeste, hoje me penitencio).

 

Assim, eu me encontrava na seguinte situação: não queria mais assinar contrato com o Fluminense; não queria mais voltar para o banco, nem para o escritório do meu pai ou do meu irmão Sérgio; como advogado, nem pensar! Comecei a frequentar o Vermelhinho. Lá, conheci os críticos Muniz Viana, Eli Azeredo, Salviano Cavalcanti de Paiva, Décio Vieira Otoni, José Sanz – com que logo simpatizei e de quem fiquei amigo -, Alex Viany, que já era cineasta e para quem eu olhava com muita admiração, e Lima Barreto, que eu vira em São Paulo, durante o Festival. Eu me sentava nas mesas e ficava conversando enquanto tomava uns chopes, procurando uma dica para dar minhas opiniões e saber onde estavam filmando no Rio.

 

Publicado originalmente em SARACENI, Paulo César. Por dentro do Cinema Novo: minha viagem. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.