Capítulo 2: Caminhos
Caminhos
Por Paulo César Saraceni
O TBC, Teatro Brasileiro
de Comédia, depois do sucesso em São Paulo, estava abrindo filial no Rio. O
primeiro espetáculo carioca seria Seis personagens à procura de um autor,
de Pirandelo, e a produção da pela procurava elenco de figurantes para
trabalhar ao lado de Cacilda Becker e Luís Linhares, sob a direção de Adolfo
Celi. Brutus Pedreira, crítico de teatro, me convidou para fazer um teste.
(Brutus tinha sido ator em Limite e me contava como Mário Peixoto era, e como
era Limite. Eu morria de curiosidade. Ele dizia que havia uns rolos de copião
guardados a sete chaves. Um dia me mostrou, fiquei maravilhado.) Fiz o teste e
passei. Comigo, Ana Beatriz, que seria a atriz de Rio, 40 graus, do Nelson
Pereira dos Santos, naquele mesmo ano. Vannucci também fez o teste e passou.
Cacilda era apaixonante. Que presença de palco! Representava com os nervos
explodindo, elétrica e genial. Eu me perdia em cena, olhando a Cacilda
representar. Celi dirigia bem os atores e tinha muito carisma. Luís Linhares,
grande ator, que o Cinema Novo não esqueceu.
Depois, fui assistente de direção de Ziembinski, no Pinga fogo. A cenografia
era de Josep Guerreiro, ator extraordinário, a pessoa humana mais bonita quer
alguém podia conhecer. Guerreirinho ficou logo meu grande amigo. Bebíamos muito
e falávamos de Orson Welles. Quantas noites e madrugadas bebendo e
rindo...Guerreirinho era hilário demais, com uma inteligência rápida e atraente
– grande Guerreirinho.
O TBC tinha um sentido
profissional muito maior do que o que se fazia no Rio. Era diferente do cinema
da Vera Cruz ou do industrial Franco Zampari. Diretores e cenógrafos italianos
se deram melhor no teatro brasileiro do que no cinema, que exigia mais vivência
do país, coisa que eles não tinham. E na Vera Cruz, bastava dizer que se
trabalhou com Rossellini, que logo davam um filme para vê-lo dirigir. Não só na
Vera Cruz, mas na Multifilmes e na Maristela. Os técnicos ingleses,
principalmente os trazidos por Alberto Cavalcanti para o Brasil, funcionavam,
mas roteirista e diretor italiano só foram aprender cinema aqui, e em quase
nada contribuíram para o cinema brasileiro.
Como seria possível fazer
um projeto enorme e dispendioso como esse sem chamar Humberto Mauro, Adhemar
Gonzaga e Mário Peixoto? Chamaram o Alberto Cavalcanti, que estava há muito
tempo longe do Brasil, com filmes e carreira vitoriosa na França e na
Inglaterra, locais bem diferentes de São Paulo nos anos 50. Mesmo assim,
Alberto Cavalcanti fez um belo filme, Canto do mar, em Pernambuco, e escreveu
um livro importante, Filme e realidade. Mas o certo é que, se em vez de se
preocupar somente com a produção de filmes esse grupo cuidasse também da
distribuição e exibição deles, para conquistar o mercado nacional para os
filmes nacionais, a história dessa frustrada e decepcionante indústria
paulistas teria sido diferente.
Já no teatro era
diferente. Ziembinski tinha vindo antes, tinha pego, de cara, o universo de
Nélson Rodrigues, um dos maiores teatrólogos do nosso tempo. Quem viu o
espetáculo em que ele transformou Vestido de noiva não cansava de elogiar.
Zimba era o rei da luz, experimento muito a luz do Brasil e revolucionou o
teatro brasileiro. Me convidou para ser seu assistente, era muito simpático e
muito humano. Homossexual, a ponto de não entender um artista que não fosse.
Guerreirinho, e depois o crítico de teatro, professor e encenador João Augusto
me faziam de anjo da guarda. Já estava acostumado a pular e cair fora de
qualquer cantada. Mas, como Zimba, não foi fácil...Minha sorte é que ele estava
apaixonado por um ator em São Paulo e ainda não se mudara inteiramente para o
Rio. Eu, com meus vinte anos, e sabendo pouco de teatro, tive a incumbência de
ensaiar Cacilda Becker. Ela era genial e me ensinou muito. Com que sentido
humano e profissional Cacilda me deixava corrigí-la! Quando não concordava,
interpretava de dois modos para eu poder escolher melhor. Quase sempre ela
tinha razão, mas ás vezes eu dizia preferir o meu modo só para ver se ela
aceitava, e ela aceitava. Isso me deu muita moral. Cacilda, grande atriz e ser
humano, mulher excepcional!
Magra de se ver os ossos das costelas, trinta e tantos anos, Cacilda Becker
tanto poderia fazer a mais linda mulher, a mais charmosa e sensual, como um
menino de doze anos, em Pinga fogo. Eu estava siderado pela sua personalidade.
Não pensava noutra coisa. Nada poderia ter sido melhor para mim, que queria o
melhor para o meu cinema e estava inteiramente virgem em conhecimentos de
representação e iluminação, do que pegar de cara esses dois monstros sagrados
da arte cênica brasileira dos anos 50: Cacilda e a luz de Ziembinski. Certa
vez, ela me convidou para passar o texto da peça em seu apê, em Copacabana.
Convidou os atores também. Três horas da tarde, encontro marcado, cheguei lá.
Cacilda me recebeu de penhoar, dava para ver seu corpo magro e sensual. Chovia,
os outros atores não chegavam. Conservamos muito sobre cinema, eu ela adorava e
tinha feito tão pouco. Só Floradas na serra. Perguntou-me se eu tinha
gostado. Eu disse que não. Ela começou a falar mal dos jovens que só pensavam
em filmes estrangeiros. Concordei. Estava fascinado pelos seus gestos, pelas
suas inflexões naturais e teatrais ao mesmo tempo, tentei falar sobre a dificuldade
do ator de teatro no cinema. Ela não concordou. Falei de Ladrões de
bicicleta, de De Sica, e Francisco, arauto de Deus, de Rossellini.
De atores não profissionais no cinema. Discutimos, mas ela me ofereceu vinho,
começamos a rir e a concordar um com o outro. O cinema é uma arte imensa, dá
para todo mundo, e quem tiver maior paixão por ele fará melhor. Chovia
intensamente, os atores não chegavam, seu corpo debaixo da combinação branca
tinha os contornos de um animal felino e sensual. Comecei a pensar que não
haveria ensaio algum. Era o encontro de um homem e uma mulher. Enchi meu copo
de vinho e tomei-o num gole. Botei um Frank Sinatra na vitrola e começamos a
dançar. A Senti seu corpo colocado no meu, beijei meus cabelos. A campainha
tocou: entraram Sílvia Orthof e os outros atores. Ensaiamos até o fim da noite.
Era ensaio, mesmo!
Zimba cuidava dos mínimos
detalhes, e como sabia que eu queria fazer cinema e me interessava por luz, se
esmerava. Aprendi demais naquele espetáculo. Quando fui assistente de Eugênio
Kusnet, meses depois, tive que fazer teste, e fiz exatamente o papel de Cacilda
em Pinga fogo; fiz igual a ela, com as mesmas inflexões, os mesmos gestos.
Cacilda havia me impregnado. Demorei muito a esquecê-la.
Em 1968, já em Brasília,
depois de sua morte, eu concorria no festival com Capitu, quando vi um
documentário sobre ela, em que ela dizia estar muito triste porque aqueles
meninos tão talentosos do Cinema Novo jamais a tinham convidado para fazer um
filme. Achei que ela estava falando comigo e caí num choro convulsivo. Foi uma
grande sacanagem mesmo, minha e de meus amigos. Mas agente filmava tão pouco e
era tão difícil seguir uma linha, um estilo, a vida mudava tanto, tudo só
insegurança...É uma das minhas inúmeras frustrações, não ter feito um filme com
Cacilda Becker e Sérgio Cardoso. Tirar aquela capa de segurança dos dois,
deixa-los virgens, e cair em cima daquele se todo sensibilidade, ossos e nervos
energéticos, ao lado de um grande ator que era Sérgio Cardoso.
Eugênio Kuznet era uma
criança que brincava de fazer teatro. Grande ator e ainda melhor como homem de
teatro. Sensacional, ia moldando os personagens como um escultor a sua matéria.
Ótima aquisição. Ele participou de todos os caminhos de renovação do teatro
brasileiro. Grande sujeito que, nascido russo, virou um dos nossos. No tempo em
que trabalhei com Eugênio, eu já estava voltando inteiramente para o cinema.
Fizeram um roteiro com Otávio de Faria, adaptação do terceiro volume de
“Tragédia Burguesa”, Lodo das ruas, e estava louco para filmá-lo.
Chamaria Cacilda e Sérgio Cardoso, Sérgio Brito, Margarida Rey, Guerreirinho,
Nélson Dantas, Roberto Clero, Napoleão Muniz Freire, e Érico de Farias para o
papel de Armando, o protagonista. Mas como arranjar dinheiro?
Eu andava muito com
Guerreirinho e João Augusto, e fui conhecendo o pessoal de Ipanema, dos bares
Veloso, Jangadeiro, Zeppelin, e frequentava o Gôndola, na Sá Ferreira, posto 5,
em Copa. Guerreirinho me apresentou o Midosi, o Zequinha Stelita, o Walter
Athedemus, e depois a Liliane Lacerda de Meneses, uma das mulheres fundamentais
para se conhecer a história dos anos 50 no Rio de Janeiro.
Foi também em 1955 que
votei pela primeira vez. E votei no ganhador – Juscelino Kubitschek. Os anos JK
foram os mais democráticos e otimistas que o Brasil já teve, altíssimo astral.
JK acreditava no povo brasileiro e seus artistas. Os cambas-canções falando das
fossas, tipo Nora Ney, Maysa, etc, saídos da tragédia e do suicídio de Getúlio
Vargas, iam aos poucos sendo substituídos pelas notas breves da Bossa Nova,
movimento extraordinariamente criador.
Outro impacto
cinematográfico em 1955: vi Viaggio in Italia 25 vezes numa semana, e só
pensava nesse filme, que inaugurava um cinema de puro sentimento. Um cinema
completamente diferente e sem nenhuma pirotecnia vanguardista. Filme de amor,
com o maior happy end da história do cinema. Uma atriz de cinema tem de
ser como a Ingrid Bergman em Viaggio: que delicadeza! Um filme autoral e
intemporal, real e abstrato ao mesmo tempo. Tempo do Espírito.
“Não mais corpos, mas
puras imagens ascéticas, onde o próprio pensamento se torna grave, opaco”.
Era a teoria de André
Bazin, do Cinema Impuro. Era o Cinema Total de que Eisenstein falava. Era o
Cinema. Que cineasta é Rossellini, meu Deus, capaz de mil revoluções em cada
filme. Roma, cidade aberta e Paisá; Alemanha, ano zero e Amore;
Francisco, arauto de Deus, onde aqueles padres santos viravam
passarinhos. E agora, a fase Ingrid, o amor mais amor, da arte do amor =
cinema. Stromboli, Europa 51, e agora esse Viaggio. Sem
nunca deixar de falar do home, do humanismo, da razão poética, do seu país e do
planeta Terra. Que gênio total. Onde vais parar, Roberto?
No cineclube da Faculdade
de Filosofia, na Maison de France, na ABI, no MAM, muitas retrospectivas. O
Atalante, de Jean Vigo. Règle de jeu, de Renoir, L´Age d or,
de Buñuel. Aleluia e Fountainhead, de King Vidor. Nossa cultura
cinematográfica esatava ficando boa. Muitas conversas depois das seções, nos
bares. Uma semana inteira conversando com Leon Hirszman, que era um carioca do
Grajaú, judeu, comunista e superinteligente, estudante de Engenharia, capaz de
terminar de escrever os livros inacabados do Eisenstein. Conversa sobre
montagem intelectual e atração. Conversa sobre Deus e a realidade política
brasileira. Eu continua prestista, mas não conhecia nada por Marx, ficava meio
por fora, preferia Nietzsche. Quando falava em Rossellini, via que a turma passava
a falar de produção. Gostava de falar com Joaquim Pedro e Saulo Pereira de
Melo, alunos prediletos de Plínio Sussekind da Rocha, outra vertente do Chaplin
Club. Marcos Faria e Miguel Borges faziam tabelinha, e não acreditavam que se
pudesse fazer cinema no Brasil sem antes fazer a revolução. Mas que revolução?
Viver no Rio no tempo de JK era mais que revolução. Todo mundo era arquiteto e
tinha um violão na mão. Brasília ia unir o Brasil, íamos conhecer os
nordestinos mesmo, não mais os paraíbas, os pernambucanos e os baianos, porque
os cearenses estavam todos aqui. Aurora (Sunrise), de Murnau,
passou na Filosofia e o pau comeu, parecíamos relembrar as discussões do
Chaplin Club. Está certo, eu dizia, que Eisenstein é um gênio, mas o cinema que
eu quero fazer parece mais com Greed, Aurora, City lights,
Joana d´Arc, de Dreyer, e o L´Âge d´or de Buñuel.
Com JK, o Rio estava uma
festa. Portela na cabeça. Muito sol e praias de explodir o coração. As mulheres
cada vez mais generosas e lânguidas. Muita cultura acontecendo. Dolores Duran,
Johhny Alf, Os Cariocas, Tom e João Gilberto. A música ficando mais leve, no
som e na letra – Vinícius de Moraes.
Em 1956, depois de
recusar muitos convites para fazer teatro, aceito um da nova Companhia Teatral
de Celi, Tônia Carrero e Paulo Autran. Aceitei por Shakespeare. Era Otelo. Mas
não me arrependi, foi bom o convívio com a bela Tônia, atriz cheia de charme e
leveza. Celi tinha deixado Cacilda e casado com Tônia. O italiano não era
fácil. Paulo Autran como Otelo, pintado de negro, teria que enfrentar um grande
Iago, Felipe Wagner. Este estava ótimo como Iago, nunca mais Felipe teve outro
papel à sua altura. Tônia fazia uma Dersdêmona deliciosa. Inocente ela não era;
talvez um pouco leviana. Mas sempre linda, mesmo em sua morte. Paulo Autran
queria me convencer a tomar aulas de dicção. Achava que eu podia ser um bom
ator, mas precisava trabalhar a dicção. Eu nunca quis ser ator.
Mas atuei em televisão,
como ator, no Teatrinho Trol da TV Tupi, sob a direção de Fábio Sabag, fazendo
papéis de príncipe. E depois, como ator, num espetáculo de Luís de Lima: A
descoberta do Novo Mundo. Eu já tinha assistido, em 1952, Jean-Louis Barrault
fazer estas mímicas, no Teatro Municipal. Era gostoso exercitar a dança, sem
música. Parecia um carnaval mudo. Luís de Lima era competente. Nesse espetáculo
conheci Oswaldo Loureiro. Mas, em cinema, não apareci nada para fazer. Eu tinha
medo de virar Ítalo Jacques, que conheci no Vermelhinho, bom papo, mas tinha
quinhentos roteiros inéditos. Era só dar o tema, e ele te apresentava o roteiro
pronto, no dia seguinte.
Nesse tempo, na mesa de
Otávio de Faria, conheci o grande Leopardo, figura para mim já mítica de tanto
ouvir histórias inacreditáveis a seu respeito, de conhecer seus livros e ter
lido no livro de Alberto Cavalcanti que ele fizera o melhor copião que
Cavalcanti já tinha visto. E olha que Cavalcanti, além de ter feito filmes
geniais, na fase francesa e inglesa, foi assistente de Renoir, amigo de David
Lean, e conheceu Jean Vigo. O Leopardo era o romancista, poeta, pintor, homem
de teatro e cineasta. Lúcio Cardoso – um artista genial. Quando lhe foi
apresentado, Lúcio estava sério, introspectivo e calado, mas aos poucos foi se
transformando num moleque, não parava na cadeira. Uma hora estava à direita de
Otávio, outra atrás, ou à esquerda, falava muito, era extremamente sedutor.
Poderia ter uma câmera invisível, queria filmar de todos os ângulos
imagináveis. Lúcio contava para Otávio o final que estava escrevendo para A
crônica da casa assassinada. Era pura emoção, os dois grandes escritores se
envolviam, se comoviam. Otávio vibrava e Lúcio ria, chorava, bebia e se
movimentava sem parar, inventando na hora o que iria escrever depois, num outro
bar, usando qualquer papel que achasse. Lúcio trabalhava o tempo todo nos
bares, bebendo, conversando, seduzindo homens e mulheres. As mulheres eram
loucos por Lúcio, e ele fazia com que elas dessem festas e mais festas. Lúcio
desenhava, escrevia romances e, ao mesmo tempo, contos, poesia e ainda seu diário.
Era uma usina de criação.
Para parar o Otávio e o
Lúcio quando começavam a falar da Crônica, só mesmo o Antonio da Nova Monteiro,
elogiando Veneza e contando seus encontros amorosos nas gôndolas da cidade, frisando
bem, em sua voz de barítono e sotaque de gaúcho, quase sempre desmunhecando,
que Veneza era a cidade mais linda do mundo. Marcos Konder Reis ria a ponto de
cair no chão. Otávio saía em defesa de Florença, que ele amava. Mais tarde eu
conheceria as duas cidades e os dois tinham razão (depois do Rio e de Roma).
Mas Lúcio, que nunca saíra do Brasil, dizia que a cidade mais linda do mundo
era Juiz de Fora. Rindo.
Em 1957, fui trabalhar
com Joaquim Pedro na Saga Filmes, empresa histórica do movimento. Os sócios
eram os cineastas Sérgio Montagna, que tinha feito o IDHEC, de Paris, e o
Gerson Tavares, que fez o Centro Sperimentale de Cinematografia de Roma. O
Gerson, com um documentário feito no Brasil tinha ganho um prêmio no Festival
de Bilbao, na Espanha. O Sa e o Ga da Saga eram tirados das letras iniciais de
Sérgio e Gerson. Eles pretendiam fazer comerciais para tevê e documentários
institucionais. Eu e Joaquim, que andávamos muito juntos naquele tempo,
partimos para a Saga com muita esperança e acreditando no projeto. Eles tinham
um bom equipamento de filmagem: Cameflex, câmera que ele tinha sido de
Frederico Fellini. Estudamos bastante a câmera. O livro de Leon Kulechov, Tratado
da realização cinematográfica, em versão espanhola, acabara de sair e nós,
mais o pessoal da Filosofia, o sabíamos de cor e salteado, de tanto ler e
reler. Leon Hirszman, então, dava show de teoria de montagem.
Ninguém se preocupava com
o som naquele tempo. O negócio era a imagem. Eu discutia muito com o Joaquim,
que já havia praticado com o Saulo Pereira de Melo e uma câmera 16mm Bolex, mas
Joaquim não acertava fazer plano e contraplano. Ele pulava o eixo de 180 graus
onde a câmera era colocada e os personagens falavam de costas um para o outro,
era engraçado. Joaquim, mesmo vendo o resultado das filmagens, não se conformava,
era muito teimoso e orgulhoso, não se convencia de que estava errado. A mesma
coisa, eu soube mais tarde, acontecia com o cineasta americano Stanley Kubrick.
No caso do Joaquim, deve ter sido porque nós tínhamos horror à fórmula dos
filmes de Hollywood, de montar, artificialmente, o corte de plano e contraplano
para não cansar os espectadores, fórmula copiada mais tarde pela TV Globo.
Gostávamos ou da montagem de atração, de choque, de Eisenstein, ou do plano
sequência, que Orson Welles usava nos seus primeiros filmes, principalmente Cidadão
Kane – e eu acrescentava Rosselini, é claro.
Fizemos alguns comerciais
na Saga, mas enquanto esperávamos no escritório, que era no Centro da cidade,
em plena Cinelândia, por algum pedido de serviço, conhecemos o pessoal da
equipe de Nélson Pereira dos Santos, de Rio, 40 graus e Rio, Zona
Norte. Nélson havia alugado uma sala junto à Saga e vinha muita gente
cobrar dinheiro lá. Dinheiro que estava atrasado muito tempo, mas todos
adoravam o Nélson. Ele também ia lá de vez em quando. Era muito simpático,
delicado e irônico, devia ter uns trinta anos e a gente ficava impressionado de
um paulista iniciar sua carreira como diretor, no Rio, e ainda por cima fazendo
filmes que falavam de futebol e samba. Nélson era do Partidão, mas na noite. Só
mesmo no período JK Nèlson poderia ter feito esses filmes e, apesar da
liberação de Rio, 40 graus, um delegado boçal argumentava que nunca tinha feito
calor de 40 graus no Rio. Nélson tinha feito o filme em produção precaríssima,
com uma equipe que atuava acima de tudo por amor ao projeto. E Nélson era
neo-realista, naquele tempo. Leon adorava Nélson.
O cinema brasileiro,
nessa época só Rio e São Paulo, tinha feito filmes interessantes. No Rio, Alex
Viany tinha feito dois, Agulha no palheiro, também neo-realista
marxista, e Rua sem sol, revelando duas atrizes de talento, Glauce Rocha
e a cantora Dóris Monteiro. Amei um bicheiro, de Jorge Ilelli, e Moleque Tião,
de José Carlos Burle, com ótimo roteiro de Alinor Azevedo e o extraordinário
ator Grande Otelo. O resto era chanchada produzida pelos exibidores para
cumprir o ridículo decreto de 8 por 1. Mas a chanchada, que era feita para as
crianças, revelava ótimos atores como José Lewgoy, Wilson Grey e iniciava
Maurício do Vale, Hugo Carvana e Joel Barcelos.
Em São Paulo, havia o
bergmaniano Estranho encontro, de Walter Hugo Khouri, bom primeiro
filme. Além desses, Ravina, de Rubem Biáfora, versão de O morro dos
ventos uivantes, Cara de fogo, de Galileu Garcia, e o simpático e
bom O grande momento, de Roberto Santos.
Na verdade, o nosso mercado
era inteiramente dominado pelos americanos, que pintavam e bordavam neste
quintal latino-americano. Acho que Hollywood não seria essa potência industrial
(chegando, no seu auge, a ser a terceira indústria americana) sem que houvesse
essa casa-da-mãe-joana que eram o Brasil e os tristes países da América Latina.
Existia e existe, até hoje, um tal tratado do Gatt, que faz com que os
americanos comprem nosso café em troca de deixarmos os filmes deles entrarem
aqui sem pagar nenhum imposto, enquanto a matéria-prima, o filme virgem,
negativo e positivo, para fazermos nossos filmes, paga um imposto louco. Os
políticos brasileiros nunca quiseram tomar conhecimento dessa verdadeira
imposição de cultura, mercadorias, produtos industriais, costumes, doenças e seus
remédios, tudo que os americanos fabricam lá e vendem aqui, fazendo a nossa
cabeça de forma descomunal. Os políticos fugiam, e fogem até hoje, quando os
cineastas brasileiros falam do Gatt A ponto de os americanos terem como
embaixador de Hollywood no Brasil o senhor Harry Stone. Este senhor até que se
casou com uma brasileira da alta sociedade e vive dando, há quarenta anos,
coquetéis e anta-premières dos indicados para os Oscars, convidando os
empresários e políticos brasileiros, para que não mexam no Gatt
cinematográfico. A coisa é tão séria que até um grande político como Tancredo
Neves esqueceu, quando eleito indiretamente presidente do Brasil e em visita à
Casa Branca, que Zequinha Sarney – filho do vice, depois presidente José Sarney
– tinha conseguido passar no Congresso uma lei que está na Constituição até
hoje, modificando esta política. Continuam fingindo que ela não exista.
Tancredo levou um susto quando se viu cercado de todo o governo Reagan,
gritando contra a lei que mexia no Gatt e dificultava um pouco a prática dessa
vergonha contra a cultura e o povo brasileiros. A lei de José Sarney Filho foi
encostada.
Em 1957-58, a gente sabia
que derrubar o Gatt era difícil, mas íamos fazer filmes mesmo com esses gatos e
ratos exibidores, que defendem com unhas e dentes as suas mansões do Alto
Leblon em troca de caixas de uísque escocês. O mercado cinematográfico
brasileiro é uma vergonha.
Tínhamos, como produto
industrial, a chanchada, que dava certo. Era uma fórmula de filmes baratos e
sem pretensão, assentados sobre o talento de Oscarito e Grande Otelo na
comunicação com o público, principalmente o infanto-juvenil. Produzia e
distribuía pelos exibidores, proprietários das salas de cinema: os Severiano
Ribeiro – avô, pai, filho e neto. A Atlântida era um monopólio, semelhante ao
que a TV Globo é hoje. Não queria incomodar as fitas americanas, queriam apenas
o espaço do decreto 8 por 1. O cinema e a realidade brasileira ficavam
ausentes. Preferiam a farsa do cinema americano. Mas havia um público grande e
formavam técnicos e atores. Com a chegada da televisão, a doença e morte de
Oscarito, a chanchada morreu.
Os grandes e monumentais
estúdios paulistas estavam fechando as portas. Haviam desperdiçado a chance de
criar um mercado nacional e humilhado um grande cineasta, Alberto Cavalcanti,
que se vingou escrevendo um ótimo livro sobre cinema e linguagem, e ainda
metendo o pau naqueles pretensiosos empresários ítalo-brasileiros, tipo Franco
Zampari, com seus filmes escapistas, mentirosos e incompetentes. E também não
cuidaram da distribuição e exibição de filmes caros. O único que deu certo foi O
cangaceiro, porque venderam a preço fixo, baratinho, para a Colúmbia,
empresa americana que o distribuiu no mundo inteiro, com um lucro formidável. O
cangaceiro, do ótimo Lima Barreto, ganhou prêmios como filme de aventura e
pela música no Festival de Cannes, e fez muito sucesso. Anos depois, já
enlouquecido, Lima Barreto mostrava o telegrama de congratulação do famoso
diretor Akira Kurosawa. Apesar do lucro e do sucesso de O cangaceiro,
Lima Barreto não pôde realizar o filme que seria sua obra-prima, O sertanejo.
Ninguém quis banca-lo. Eu ficava louco e pensava: que país é este que deixa
Mário Peixoto numa ilha, Humberto Mauro fazendo documentários geniais que
ninguém vê, no INCE, deixa Cavalcanti ir embora, não termina Mulher de longe
de Lúcio Cardoso e enlouquece Lima Barreto? Quem serão as próximas vítimas?
Deveriam ser muitas, a considerar os jovens que assistiam entusiasmados às
retrospectivas do cinema americano, no MAM, francês, na Maison, italiano, na
Unitalia, alemão, na embaixada deles, japonês etc. (Que maravilha Ozu e
Mizoguschi.) O entusiasmo pelo cinema era grande. E o Tratado, de Koulechov,
fazia com que perdêssemos horas de sono e o pouco dinheiro que tínhamos nas
rodadas de chope dos bares...
Toda aquela luta heróica
dos que conseguiram fazer filmes sérios ainda estava longe da minha pretensão
de fazer Stroheim, Murnau, Buñuel, Ford, Welles e principalmente Rossellini.
Era um sonho, e eu curtia e dizia: sem pretensão e tesão nãos e chega a lugar
algum.
Mas eu pensava também na
tragédia que foi o incêndio da Cinemateca Brasileira em São Paulo. Muita coisa
tinha se perdido, talvez o copião do Lúcio. Que tristeza, um país sem memória e
ao mesmo tempo com pessoas tão preparadas como Paulo Emílio Salles Gomes, aluno
predileto de Henri Langlois. Logo o Henri, que foi capaz, no tempo da Segunda
Guerra, fugindo dos nazistas, de esconder todas aquelas latas de cópias de
filmes no seu apartamento, no banheiro, tudo para salvar a memória do cinema.
Aliás, o cinema só existe ainda graças a esse gesto do Langlois. O gordo e
terno menino Henri. Paulo Emílio começou seu caminho pelo cinema brasileiro sob
o signo desta tragédia. Não deixou que isto acontecesse, mas deve ter sofrido
muito com o incêndio.
Em 1958, Rossellini chega
ao Brasil para se encontrar com Josué de Castro, Samuel Wainer e empresários
brasileiros, e filmar Geografia da fome. Ele acabara de filmar Índia, filme
sobre aquele país, com vários especiais para a tevê. Eu não tinha visto ainda,
o que só faria mais tarde. Achei todo ele paixão e arte. Humaníssimo, até a
medula. Místico, transcendental. Dava transcendência àquela realidade,
barra-pesada mas constante, à espera de que o mundo se tornasse mais espiritual
e saísse desse materialismo louco que só leva à violência. Afinal, o seu
profeta, Gandhi, deixou uma mensagem tão forte como a de Jesus Cristo. Gandhi
sofreu muito, viu, depois da libertação da Índia, formarem-se mil tribos que se
matavam entre si e não pôde levantar um braço sequer. Sofreu como Cristo. A
Índia é a maior produtora de filmes para o mundo. Faz filmes só para o seu
mercado. Nós não gostamos, mas o povo hindu também acha ridículos os filmes
americanos. O povo hindu de Rossellini está esperando a política espiritual de
Gandhi.
Rossellini olhou o
Nordeste e teve a mesma visão de Euclides da Cunha – o nordestino é antes de
tudo um forte. Ele não poderia seguir os pensamentos marxistas de Josué de
Castro e sua turma. Adorou o Nordeste e os nordestinos, e queria cantar esse
povo formidável que havia conseguido fazer uma civilização em cidades e locais
com climas e condições sufocantes. Vi Rossellini falando para um público de
surdos na ABI. O público não
podia entender que ele quisesse cantar a miséria brasileira, mas eu tinha lido
no Cahiers du Cinéma, num depoimento do seu assistente de direção, que
Rosselini conversava horas com os místicos hindus em pocilgas, cercados de
porcos, em Bombaim. E conseguiu se comunicar com líderes de tribos que falavam
num dialeto que nenhum tradutor entendia. Rossellini bateu longos papos e ainda
lhes preparou uma macarronada à moda de lá.
Rossellini já estava no
espiritual.
Saí da ABI, fui até o
Vermelhinho e escrevi um artigo sobre Viaggio in Italia. Filme
inesperado, cheio de espera. Ensaio sobre o tempo e o amor. O tempo morto do
cinema, onde Rossellini faz as pausas, para meditações. Um ato criador, com
toda ternura e amor pela sua Ingrid, ser maravilhoso que se converte com sua
sensibilidade e intuição corajosa para cumprir seu gesto, a renúncia de um
mundo que ela dominava e reinava, o mundo de Hollywood, para enfrentar aquela
realidade latina em que “o coração tem razões que a própria razão desconhece”,
como disse Ismael Silva do Estácio. Ela é amor, é compreensão, e cai de cabeça
na Itália amada do grande mestre. Antiespetacular, filme de penetração na
realidade do momento em que se filma, sem ideias preconcebidas, apenas
elaborando as coisas banais da vida, os pequenos detalhes, em que a narrativa é
conduzida pelas almas das personagens.
Fugindo de todas as
fórmulas e ideias apriorísticas, as sequencias vão se formando, conduzidas pela
realidade, de onde o cineasta tira tudo. O diretor está ali para pedir que ela
aconteça, sempre oferenda da Graça, um presente de Deus, como o sol despontando
no meio de um temporal.
Rossellini já tinha
filmado São Francisco de Assis e seus discípulos, como se fossem passarinhos,
com humildade de santo. Ele está à altura de Sócrates, Picasso, Mozart e
Faulkner. Seu Viaggio é o desfile da Portela na avenida sob a direção de
Natal. Viaggio é puro presente: nas Catacumbas, no casal vitimado pelo
Vesúvio em Pompéia, milênios atrás. É tempo do Espírito.
Pensando, agora, no que
senti quando Rossellini falava do Nordeste, acho que ele pensava no seu filme Índia.
Era também tempo do Espírito.
Quando Otávio de Faria,
mais tarde, entrou para a Academia Brasileira de Letras, fez um belíssimo
discurso – ninguém precisava se esforçar para defender o Espírito, porque o
Espírito existe. Era outra vez Viaggio in Italia.
Nesse tempo eu morava em
Laranjeiras, não no Zacatecas. Sérgio tinha casado com nossa prima Nair e
estavam morando com seus filhos, Patrícia, Serginho e Denise. Norma e3stava
noiva para casar. Meus pais, sempre batalhando com muito interesse pela vida.
Eu morava agora na rua das Laranjeiras 550, onde também morava Liliane Lacerda
de Menses. Liliane era famosa pela beleza de seu desenho gráfico, seus traços
tinham a linha sensível de Matisse. Pela sua fortuna e generosidade, contavam
que Stroheim e Orson Welles haviam interrompido suas filmagens e lev antado de
suas cadeiras de diretor para conhecer aquela mulher magnífica. Loura, pele
branquíssima, um sorriso cubista de Picasso. Na casa de Liliane bebia-se para
valer, de manhã à noite. Lá, eu encontrava com Guerreirinho, Midosi, Zequinha
Stelita, Rogério e Marcelo Corção, Fernando Filpo e seu irmão, Ivan Lessa, o
escultor Ceschiatti e o pintor cenógrafo Athos Bulcão; os dois últimos
ajudariam Oscar Niemeyer a fazer Brasília. Depois vieram Ana Letícia, Ismael
Cardim, Caio Mourão, Marcos Konder Reis, Albino Pinheiro, Aluísio Magalhães,
Otávio Lins e tantos outros e outras. Tinha sempre festa na casa de Liliane. A
família dela possuía terras na Barra da Tijuca, que, em 1958, era um lugar
muito longe, onde a gente só ia para comer siri ou uma donzela. Rolava muito
álcool, gim, ruim, vinho, o que passasse pela frente. E muito papo, danças e
ideias. Eu ria muito com Guerreirinho chamando a gente de “Los Enteados”.
Seguíamos Liliane e seu motorista pelo Veloso, Jangada, Zeppelin, cinemas,
teatros, exposições de pintura, pelo Beco das Garrafas, ouvindo Bossa Nova. E
quando chegava em Laranjeiras, era festa com muita dança e alegria. Nas festas
a fantasia, Otávio Lin inventava cada uma sensacional.
Eu devia ser muito
moralista, pois Liliane sempre me perguntava o que era certo e o que era
errado. Um dia, respondi que, a priori, não havia nada certo ou errado,
nenhum tipo de censura, a priori, mas no momento da ação ou do gesto eu
sabia que havia o certo e o errado. Acho que me lembrei de Didi: quando pega na
veia é o certo. Quando não dá errado.
Liliane tinha uma maneira
de jogar o cabelo para trás que desconcertava, topava qualquer tipo de conversa
ou aventura, estava sempre pronta.
Guerreirinho gostava
muito de Orson Welles. Vimos várias vezes Confidential Report. Do Mister
Akadin (Grilhões do passado) sabíamos diálogos de cor e os usávamos
para tudo, rindo muito do resultado. Guerreirinho fazia as mesmas inflexões. Falávamos
muito como deveria ter sido genial a filmagem de Orson Welles no Brasil, em
1941-42, e o trabalho com Grande Otelo. O episódio dos cearenses que vieram de
jangada de Fortaleza ao Rio. João Saldanha diz que chegaram ao Jardim de Alá.
ARKO tem que deixar ele acabar o filme. Um dia vão ganhar muito dinheiro com o
filme. Quando ele morrer, como naquele filme de Jacques Becker sobre
Modigliani, com Gérard Philipe – o marchand ia comprando barato os quadros,
esperando ele morrer, para vende-los caríssimos.
-Madame está com sede. É
melhor abrir outra caixa de gim. – Assim viviam “Los Enteados”. Liliane era os
anos 50 do Rio. Zona Sul. Laranjeiras. Ipanema. Abelha-mestra, tive medo de
ficar com ela. Havia um clima viscontiniano e eu tinha que fazer o meu caminho
– meu viaggio in Itália.
Aos sábados eu ia à casa
de Alair Oliveira Gomes. Ele estava voltando das olhas gregas e nos contava
suas impressões. Fizeram belas fotos. Genial o Alair que, além de tudo, era
fotógrafo também. Dizia que só a Costa do Sol do estado do Rio se comparava ás
ilhas gregas. Marcos Konder Reis, que adorava o Brasil e tinha uma incrível
capacidade de permanecer na infância, dizia que Altair não conhecia Santa
Catarina.
Florianópolis, quando, lá
da praia de Fora, a gente fica olhando para a cidade e a ponte ao cair da
tarde; o encanto cresce, como de um canteiro, a planta entorpecente, e
consiste, não sei por que, numa pontada de adeus, qualquer coisa contra o
pêito, uma saudade, mas do lado de lá; e se levanta e se abate, como as sete
lâminas de uma lembrança, cujo nome é agonia. Sim, talvez o que eu pudesse fazer
de mais maravilhoso, nesse intervalo, fosse mesmo pôr o pé na estrada, de
cidade em cidade, e pelo campo...O campo é sempre como o andante, uma coisa
encantada.
Que poeta, o Marcos
Konder! Escrevia sem parar. Acompanhou, participando de tudo, o nascimento do
Cinema Novo e discutia política, vivia nossas angústias e nossas alegrias.
Marcos sempre defendeu um cinema poético, antecipou em vários anos as teses do
cinema poético de Pasolini. Marcos é o nosso Hölderlin. Nessa altura, ler os
seus livros era um prazer inenarrável, gostoso, como a primeira bola que ganhei
de presente de minha mãe. Marcos é tão amante de Deus e do Deus do seu Deus que
devia ser canonizado como poeta.
O clima na casa da Alair
era tão caloroso e fraternal que num sábado eu levei Albino e ele acabou
chorando ao ouvir Madame Butterfly.
Depois íamos encontra o
Otávio, que, como grande mestre-de-cerimônia que era, falava logo de suas
impressões sobre os filmes que estavam em cartaz na cidade. O assunto era
Federico Fellini. Depois de lermos várias entrevistas sensacionais nos jornais,
revistas ou nos livros, começamos a ver sua obra. O Rio se encantava com I
Vitteloni, La Strada, Il Bidoni, Notte di Cabiria. Federico Fellini dava para
invadirmos as madrugadas daqueles sábados.
Otávio era um amigo que
colocava a amizade à frente de tudo. Lúcio Cardoso me contou que quando estava
na maior depressão, querendo se matar, numa rua deserta de Ipanema, Copa ou
Leblon, olhava para trás e via o vulto de Otávio se escondendo atrás de uma
árvore. E eu, sempre presente a conversa de dois romancistas como Otávio e
Lúcio, e na companhia de um poeta como Marcos, me sentia preparado para o que
desse e viesse.
Nas tardes de domingo eu
ia com Marcos à casa de Lelena Cardoso, a grande romancista e irmã de Lúcio,
que me ensinou a ouvir música. Era ouvir Mozart e Brahms em sua casa e beber
seu vinho rosso, tinto, febril. Lelena-pura-mineira-pura-beleza, com seus olhos
de garota levada, brincando em seus cabelos brancos. Lelena é música e devoção.
Cansei da Saga Filmes. Eu
e Joaquim resolvemos convidar Saulo, Marcos Faria, Miguel Borges, Cláudio Melo
e Sousa, que era poeta neoconcretista, Mário Jacques e Haroldo Martins para
fazer uns curtas em 16mm. Fizemos um concurso de roteiros, e houve reunião na
casa do Joaquim, que morava ainda embaixo de onde morou, anos depois, com seus
pais, dr. Rodrigo de Melo Franco e dona Graciema. Joaquim tinha uma irmã,
Clara. As reuniões nasciam da nossa vontade de filmar. Eu queria filmar um
roteiro que tirei das conversas de Otávio com Maros. Marcos tinha lido os
originais de um livro de Otávio, que seria o sétimo volume da “Tragédia
Burguesa”, chamado Atração. Otávio o achava muito forte e estava preocupado com
repercussões escandalosas...Deixaria para publicar mais tarde. Fiquei
interessado no assunto e fui contra. Ei lia cada livro de Otávio atentamente e
com muita expectativa e emoção. Discuti muito, não entendia as razões, achei-as
absurdas, defendia o ponto de vista de Faulkner – numa entrevista o grande
escritor americano defendeu o descompromisso do escritor e artista. Disse:
O artista não tem
importância. Só é importante o que ele cria. Todos nós, escritores, malogramos
quanto a alcançar nosso sonho de perfeição. É por isso que ele continua a
trabalhar, tentando, novamente, se superar. E isso é muito saudável. Claro quer
ele não conseguirá realizar seu trabalho, a imagem de seu sonho. Se
conseguisse, só lhe restaria cortar a garganta. Um artista é impelido por
demônios, não sabe a razão por que o escolheram. É completamente amoral, no
sentido de que roubará, tomará emprestado, esmolará, ou furtará e quem quer que
seja, a fim de realizar seu trabalho. A única responsabilidade do escritor é
para com sua arte. Será inteiramente implacável, se for bom escritor.
Alimenta um sonho. Esse
sonho o angustia tanto que precisa se libertar dele. Até então, não tem paz. O
resto não importa, honra orgulho, decência, segurança, felicidade. Se o
escritor tiver de roubar sua própria mãe, não hesitará. Uma obra de arte vale
mais que várias mulheres idosas. A arte nada tem a ver com paz e contentamento.
O melhor emprego de um
escritor seria o de dirigente de um bordel. É o meio perfeito para um artista
trabalhar. Dá-lhe perfeita liberdade econômica, vê-se livre do medo e da fome –
tem um teto em cima da cabeça e coisa alguma para fazer. Salvo cuidar de umas
escritas e contas simples e ir pagar mensalmente à polícia local. O lugar é
quieto durante as horas matutinas, o melhor momento do dia para se escrever. Há
bastante vida social à noite, se ele quiser participar dela, evitando o tédio,
dá-lhe certa posição na sociedade. Todos os inquilinos da casa são mulheres, e
o tratam com deferência, chamando-o de senhor. Todos os contrabandistas de
bebida da vizinhança também o chamam de senhor. E ele pode tratar os policiais
pelos seus nomes de batismo.
Assim o único ambiente de que o artista necessita é o que lhe possa
proporcionar paz, solidão e qualquer prazer que possa obter por um preço não
muito elevado. Um ambiente que não seja assim só pode fazer subir sua pressão
arterial, e ele passará mais tempo frustrado e ofendido. Segundo minha própria
experiência, as únicas ferramentas de que necessito para meu ofício: papel,
lápis, comida e um pouco de uísque.
Entrevistador: Bourbon, o
senhor quer dizer?
Faulkner: Não, não sou
assim tão exigente. Entre um uísque e nada, prefiro uísque. O escritor não tem
tempo de se preocupar com o êxito, ou ficar rico. O êxito tem algo de feminino,
assemelha-se a uma mulher. (...)
Na minha opinião, é uma
vergonha que haja tanto trabalho no mundo. Uma das coisas mais tristes é que a
única coisa que um homem pode fazer durante oito horas diárias, dia após dia, é
trabalhar. A gente não pode comer, beber ou fazer amor durante oito horas
diárias, só o que pode fazer é trabalhar. Eis por que o homem torna-se a si
próprio e a todos os demais tão miseráveis e infelizes.
Achei genial esta
entrevista, parecia Lúcio Cardoso. Lembrei-me de uma festa em sua casa na rua
Joana Angélica, em Ipanema. Lúcio morava num edifício de três andares; pedia
aos moleques da praça Nossa Senhora da Paz para assustar os moradores dos
outros apartamentos e eles mudavam na mesma hora.
Lúcio morava no prédio,
sozinho. Perto da Lagoa, no apartamento onde hoje mora Lita, fotógrafa baiana,
gente fina. Mas Lúcio deu uma festa de arromba e não convidou o Roniquito,
apelido de Ronald Chevalier, figura fundamental de Ipanema. Roniquito, então,
lá de baixo jogava pedra e gritava: - Faulkner do Méier! Faulkner do Méier!
Mas Otávio de Faria era
outra espécie de escritor. Cada artista tem seu estilo. Atração só
sairia depois de sua morte.
Mas eu, que vivia o clima
da “Tragédia Burguesa”, fiz um roteiro de vinte minutos imaginando o que seria
a relação de Roberto e Silvinha, personagens que eu conhecia dos outros volumes
da “Tragédia”. O roteiro se chamava Caminhos.
Mas achei que o pessoal da Filosofia ia char, não ia gostar. Para mim aquele
filme seria apenas um exercício. Sabia que Saulo vinha com uma adaptação de um
grosso romance francês, quatrocentas páginas, mais ou menos Les Thibault, de
Roger Martin du Gard. Então escrevi mais três roteiros. Um tirado de um poema
de Goethe, outro de um conto terrível de Kafka e um terceiro, uma comédia, que
tinha acontecido comigo durante meus dias na Faculdade de Direito do Catete.
Um dia, conversei com um
colega de lá, conte-lhe que meus pais iriam para Petrópolis e eu ia ficar
sozinho; ele vivia botando banca, dizendo que conhecia umas meninas do
Instituto de Educação que faziam de tudo. (...) Duvidei, gozei, isso é coisa de
Nélson Rodrigues, desde garoto ouço falar nestas tais normalistas, é bafo! Ele
disse que ia me provocar e marcamos um encontro no sábado à tarde. Mesmo sem
acreditar, fiquei excitado, esperando. Passados 45 minutos da hora marcada,
nada. Eu já estava xingando o colega de tudo, quando a campainha tocou. Fiquei
boquiaberto, então existiam mesmo as normalistas do Nélson Rodrigues! Abri a
porta e surgiu uma senhora distinta e de óculos, vestida de Exército da
Salvação, me oferecendo números das revistas Alerta e Na Paz do Senhor.
Desculpei-me com a senhora e me preparei para sair. Quando já estava na porta
do elevador, ela se abre e sai o colega com duas meninas normalistas, vestidas
e uniformizadas, como nas marchas do Braguinha. Lindas, raparigas em flor,
molecas e adoráveis. Foi um sábado enlouquecedor!
Voltando ao roteiro do
conto do Kafka: um sujeito vai ao cemitério sem saber por que e se encontra
diante de uma sepultura com seu nome na lápide e a data da sua morte, a mesma
daquele dia. Ele é empurrado para dentro da cova e vê a tampa ir se fechando
com ele dentro. Um pesadelo. O roteiro do Goethe era romântico e poético. E eu
aproveitava para falar de Gilda Lojes, a modela Pamela, da Casa Canadá, que era
linda de morrer e que eu tinha conhecido numa festa de formatura. Era muito
inteligente, filha de intelectual e adorava os filmes de Ingmar Bergman.
Para surpresa minha, o roteiro escolhido para segundo lugar foi Caminhos.
A vencedora foi Les Thibault, do Saulo. Preparamos as filmagens na casa
do Joaquim, eu seria o assistente de direção e o Marcos Farias o de produção,
junto com Mário Jacques. Haroldo Martins na fotografia. Arranjamos uma Parrilard
com Paralex. O ator seria Joaquim Pedro e providenciou-se um bigode falso para
ele; para atriz, chamei aquela que eu queria para o meu filme: Pamela. Depois,
pensei, fazia Caminhos. O terceiro colocado, que realizaria depois da minha
fita, seria Marcos Faria, O Maquinista.
Pamela aceitou o convite de Saulo e meu, e marcamos o dia de filmagem. Era
sequencia simples no roteiro. Joaquim teria que olhar para Pamela, coçar o
bigode, dar uma fumada, jogar cinzas do cigarro no cinzeiro, dar uma outra fumada
e olhar novamente para Pamela, que devia estar séria e depois sorrir. Tudo bem
simples, e eu imaginava que filmaríamos em uma hora no máximo.
Mas levamos toda uma noite e madrugada. Pois havia trinta planos nesta
sequência. Saulo tinha decupado na sua cabeça uma metralhadora de cortes e
montagens. Fiquei besta, mas chegamos ao fim dos trinta planos. Era assim
Joaquim levanta o braço.
Corta.
Mão do Joaquim chegando
no bigode. Corta.
Olhos de Pamela. Corta.
Mão de Joaquim coçando o
bigode. Corta.
Os dois no quadro,
Joaquim apanha o cigarro do cinzeiro. Corta.
Mão de Joaquim pegando o
cigarro. Corta.
E ia assim até os trinta planos. Acho que isto seria um genial comercial de
tevê. Mas como era o “kantiano” Saulo Pereira de Melo, intelectual invulgar, eisensteiniano
da pesada, que adorava King Vidor e Sam Wood, aluno predileto de Plínio
Sussekind, escolhido pelo mestre para salvar os negativos de Limite, amigo
cordial de Mário Peixoto, fiquei quieto. Afinal, era adaptação de um requintado
romance francês, sei lá, dei o melhor de mim. Dias depois, ao vermos o copião
com muita expectativa, constatamos que os enquadramentos rigorosamente
compostos haviam saído desenquadrados. Haroldo Martins tinha se esquecido de
corrigir o Paralax, e fodeu tudo. A tristeza foi geral. Grande frustração e
desânimo.
Saulo sofreu muito. Ele
que, além de ter salvado Limite, escreveu um belo livro sobre os
fotogramas do filme, um trabalho de Primeiro Mundo. Além disso, com uma
coerência extraordinária tornou-se um grande diretor de comerciais para tevê.
Fiel a Mário Peixoto, só ele havia visto o filme inteiro, na nossa geração. Não
era pouco! Fiz tudo para ele continuar seu filme, mas não deu.
Então aceitei sem muito entusiasmo uma proposta de Paulo Francis, crítico de
teatro, que ia dirigir uma peça de Bernard Shaw, Dilema do médico, para o
Teatro Nacional de Comédia do Rio. Eu seria ator e seu assistente, além de
encarregado de fazer a iluminação do espetáculo. Executaria o que tinha
aprendido com Ziembinski. Francis, que conheci no Bar Gôndola, do Copa, era
literalmente um sujeito que tinha o rei na barriga. Inteligente, articulado,
fluente, mas muito dono da verdade. Tinha radicalizado a crítica de teatro do
Rio, e politizado também. Suas críticas eram maldosas e verdadeiros tratados
políticos. Limpou bastante a área teatral que, na maioria, apresentava peças
supermedíocres. Mas era muito injusto também, como foi com Tônia Carrero, e
acabou levando porrada de Paulo Autran e Adolfo Celi. O trabalho com o Francis
foi duro, mas ele no fundo dava muitas dicas de fragilidade também e chegava a
ficar simpático. Ex-seminarista, tinha ódio ao catolicismo. Detestava Otávio de
Faria e Dom Hélder Câmara. Discutíamos muito. Nós dois queríamos a revolução.
Seriam revoluções diferentes, mas o cainho no início era parecido e
contraditório. O Francis tratava mal os atores, principalmente as atrizes. Não
tinha paciência nenhuma com o elenco ou a equipe. Sabia tudo de teatro, mas não
era diretor. Podia ser ator, escritor dos bons, mas diretor, não dava. Mas
acabou fazendo um bom espetáculo e ganhou o direito de dirigir um outro.
Fiquei muito amigo de
dois atores da peça, Napoleão Muniz Freire, ótimo ator e ótimo sujeito, e
Beatriz Veiga, que morava também em Laranjeiras numa casa cheia de esculturas.
Tinha As quatro estações, escada de mármore. Eu, Miele e o Zé Belo fizemos um
grande show em sua casa, mais tarde.
Quando chegou o momento
de fazer a luz do espetáculo. Francis me sacaneou e trouxe de São Paulo um
iluminador, fotógrafo de cinema, húngaro, que veio na onda da Vera Cruz e ficou
fazendo comerciais de tevê. Me mandou ir embora, para casa, de onde deveria
voltar cedo no dia seguinte e aprovar as luzes. O cenógrafo e figurinista Athos
Bulcão, que era um grande amigo da casa de Liliane e da roda de Marcos Konder e
Alair, era um grande artista, de grande senso estético. (Athos é engraçadíssimo
, uma vez quase me mantou de rir, conversando um tempão com um manequim que ele
pensava que era um judeu, dono de uma loja de tecidos no Saara, zona comercial
de judeus e árabes no Rio.) Cada objeto de cena era inteiramente escolhido
segundo um propósito cênico e servia para dar a atmosfera da peça naquela cena.
Aprendi muito com Athos.
Cheguei cedo ao teatro
para ver aquela famosa luz cinematográfica que Francis tinha feito com o
húngaro. Paulo Francis me esperava com seu sorriso irônico e diabólico. O rei
estava fervendo em sua barriga. Senta aqui, me disse, e ordenou ao húngaro: “As
luzes!” Estava uma merda, muito amarelão, eu lhe disse. Ele ficou puto.
Telefonei para o Athos e disse-lhe que as luzes do húngaro e do Francis tinham
fodido seu cenário, genialmente pesquisado e realizado nos menores detalhes.
Era ao mesmo tempo realista com o rigor de Stroheim, e tinha a fantasia
deliciosa do sarcasmo de Bernard Shaw. Athos chegou puto ao teatro e fez um
escândalo. Duas horas antes do ensaio geral, eu e Athos fizemos a luz com o
Francis, com os fluídos do mestre Zimba. Ele via as nossas invenções e
brincadeiras. Ríamos e arriscávamos muito. A crítica elogiou muito a luz. E
Francis fez sozinho a luz das outras duas peças que realizou. Pedro Mico,
de Antonio Callado, com Bena Genauer e Milton Moraes, e Telescópio, de
Jorge de Andrade.
Eu estava vivendo,
afetivamente, à lá personagem de Otávio. Me apaixonara por Gilda, a Pamela. Ia
aos desfiles da Casa Canadá, conhecia suas amigas, Paula, Shirley, Geórgia Quental.
Achava lindos aqueles desfiles e me imaginava filmando todas nos camarins onde
trocavam de roupa com uma rapidez incrível. Era um pouco Cronaca de um Amore,
de Antonioni. Lúcia Bosé, maravilhosa, que Pamela podia fazer, linda. Mas ela
era namorada do meu amigo Roberto Lara, grande companheiro do pólo aquático do
Fluminense e de Laranjeiras. Era quase meu vizinho. Era só assobiar da janela
do meu quarto no Zacatecas, ele ouvia no quintal de sua casa e íamos treinar,
ou assistir um filme no São Luís. Lara era atlético e lindo. Mas tinha duas
namoradas: Pamela e Annete. E queria ficar com as duas. Não sou bom de
conselho, eu também estava complicado, havia Liliane, e conhecera há pouco
tempo na casa de Lila a gravadora Ana Letícia, que tinha me perturbado, e ainda
tinha a Gilda Pamela que, ele sabia, eu também estava a fim. Eu dizia não, ela
é minha amiga e queremos fazer um filme juntos. Mas amei aquela teimosia
bergmaniana, racionalista, inesperada, analítica e amorosa da afetividade e do
amor – ele me deixava fora de mim. Como é que eu vou dar conselhos, dar uma de
Branco, personagem principal da “Tragédia Burguesa”? Se eu me enredei nesta, e
logo na semana em que os cinemas davam Morangos silvestres e um outro
filme sucesso que era meio o Círculo de giz caucasiano, de Bertold
Brecht, em que se discute se a criança dentro do círculo deve ficar com a mãe
de sangue ou com a mãe que a criou! Salomão escolhe a mãe de criação, porque
poupou o braço da criança por amor e para não machuca-la. A mãe de sangue
ganhou o jogo mas perdeu a filha. Quem tinha mais amor ganhava no círculo de
giz caucasiano.
Lara assobia, chego à
janela, vou ao seu encontro:
- Gilda Pamela me deu um
ultimato: “Ou Annete ou eu”.
- Tudo bem- digo-, vais
ter que escolher.
- Mas Annete está grávida.
Eu estava inteiramente envolvido com os três. Ouvia os ódios e as invejas e os
amores de cada um. Vivia como alguém que se sentia despreparado para o papel de
juiz. Achava que os três ou quatro deviam viver juntos em harmonia numa mesma
casa. Mas havia a moral. Havia também o moralismo, e tanto uma como outra não
queriam que a outra estivesse perto. A solução é o aborto. E Annete não queria
fazer, queria o filho mesmo que ficasse solteira. Como obrigar alguém a fazer o
aborto? Nem por amor! Mas amor, mesmo, resolve de outra maneira. Fiquei do lado
de Annete e perdi Gilda Pamela. Até para filmar Caminhos. Annete teve o filho,
ela e Lara casaram-se e vivem felizes. Gilda casou com um americano e foi morar
nos States.
Eu tinha conseguido um
dinheiro com o Carlos Taylor, um dos gêmeos Carlos e Amaro Taylor, filhos do
embaixador Taylor, que possuía a rua hoje chamada Embaixador Carlos Taylor, na
Gávea, e mais um grande pedaço da Marquês de São Vicente, até o Shopping
Center. E ainda mais o morro atrás da Gávea, além de grande parte de
Teresópolis. Os Taylor tinham escritório ao lado do escritório do meu irmão
Sérgio, que também era amigo e advogado deles. Carlos e Amaro não pagavam nem
um cafezinho, mas Carlos, principalmente, era muito simpático e me trazia
sempre notícias frescas do cinema europeu. Fazíamos muita farra juntos e ele
fugia, me deixando a conta.
Surpreendentemente,
Carlos me deu meia hora de negativo para filmar Caminhos. O filme teria
vinte minutos, eu teria um plano por 1,5 de negativo. Menos que dois por um.
Escolhi o elenco. Napoleão Muniz Freire, que estava doente, não fez o filme. Já
não ia ter a Gilda também. Escolhi uma companheira de cineclube, que via bem os
filmes. Não era bonita, nem sensual, mas tinha temperamento e uma bela e
sensual nuca. Eu mesmo resolvi fazer o papel de Roberto, primo e namorado de
Silvinha, a única legenda do filme – Roberto e sua prima e namorada Silvinha.
O filme seria sem som,
cinema silencioso, mudo. Parti do início do cinema. Afinal, Stroheim, Murnau,
Chaplin, Eisenstein, Buñuel, Cavalcanti, Humberto Mauro e Mário Peixoto
filmaram seus primeiros filmes com a linguagem do silencioso. Eu queria usar a
linguagem do silencioso, mas criando dentro de uma visão minha de agora. Ponho
de vez para fora o cinema mudo que há dentro de mim.
Caminhos
Um filme de Paulo César
Saraceni
Com Lisete Fernandez,
Paulo César Pereio, Adele Araújo, Virgínia Beltrão, Sueli Machado.
Assistentes de direção –
Joaquim Pedro e Cláudio Melo e Sousa
Fotografia- Haroldo
Martins e Luís Lima
Assistente- Dilma
Drummond
Produção- Marcos Faria e
Mário Jacques
Dedicado a Otávio Faria
Comecei a filmar em
setembro de 1958 e acabei em janeiro de 59. Revelava os rolinhos de negativo na
Líder Laboratórios, que ficava na rua Álvaro Ramos, em Botafogo. Maria Ribeiro,
a mesma que faria o principal papel de Vidas secas, era funcionária da
Líder. Ela e a colega Paula colocavam meus rolos sem que fossem contabilizados.
O mesmo elas fizeram com o Pátio, de Gláuber Rocha. Devemos muito a elas no
nosso início. Eu mesmo montei meu quarto com moviola portátil de 16mm, foi
demorado. A moviola 16mm me enlouquecia. O mesmo me aconteceu mais tarde com a
moviola de 35mm.
Joaquim Pedro finalmente
abandonou sua teimosia e viu que não podia pular o eixo para dar o contracampo.
A linguagem cinematográfica é a coisa mais simples e fácil, não existe mistério
em sua técnica. O negócio é a revelação. Esta revela o seu preparo e a sua
paixão pelo que faz. A câmara era ágil, os dramas profundos. Era preciso estar
atento até para o erro, para poder criar em cima dele. Logo verifiquei que
tinha encontrado o ser destinado e amado. O cinema, que não tinha nada com
poder, era como um time, com funções definidas, mas só que o diretor não
precisava marcar ninguém, sua função era criar. O diretor era a mão oculta que
não aparece na tela em nenhum lugar, mas é a presença que se liga com a magia
do cinema. Finalmente, achei que tinha acertado em não ter assinado contrato com
Zezé Moreira no Fluminense. Eu era cineasta.
Publicado originalmente
em SARACENI, Paulo César. Por dentro do Cinema Novo: minha viagem. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

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