Foi numa atividade do mestrado. Eu tinha que
mostrar um trecho do meu objeto pra uma classe cheia. Tinha gente na mesma
classe estudando coisa chique: John Ford, cinema polonês, pioneiros da TV. O
meu era o cinema do Francisco Cavalcanti, que fazia filmes policiais de baixo
orçamento na Boca. Bem, como vocês devem imaginar a chance de darem risada era
muito grande. Como eu conhecia bem a filmografia do Chico separei um dos
melhores trechos de “O Cafetão” (1982). O gozado é que tanto a professora como
os colegas ficaram impressionados com o trecho. “Que fotografia incrível? Quem
é o fotógrafo?”. Bem, o fotógrafo era Salvador do Amaral (1938-2022), que
morreu neste sábado (dia 2 de abril). Salvador era avesso a dar entrevistas.
Conversei umas duas vezes por telefone com ele mas sem grandes prolongamentos.
Queria ficar sossegado com a família, com sua esposa, a atriz Marli Machado.
Salvador trabalhou em mais de 50 longas-metragens brasileiros em diferentes
ocupações: dirigiu, fotografou, produziu, atuou, foi assistente de câmera, fez
elétrica, still, foi maquinista. Foi outro coringa da Boca. Começou na TV
Excelsior e depois esteve com José Mojica Marins, o Zé do Caixão. Fazia um dos
secretários de Mojica no programa “Além, Muito Além do Além” (1967), na TV Bandeirantes.
Aproximou-se de Cavalcanti quando ele iniciava sua carreira e precisava de um
fotógrafo. Dizia o próprio Chico: “Eu sempre trabalhava com o Salvador do
Amaral que era um diretor de fotografia pequeno, mas que respeitava o diretor”.
Salvador era um operário do cinema. No entanto, quando foi entrevistar o Rubens
Eleutério, este era só elogios a Salvador: “O Salvador sabia sempre o que
estava fazendo (...) Porque o Salvador tem o seguinte: quando ele não sabia as
coisas ele tinha humildade de chegar e falar: ‘Olha, eu não sei. Isso eu nunca
fiz’”. Salvador trabalhou com o ator e produtor Amacio Mazzaropi em três
longas-metragens. Foi gerente de produção em “Uma Pistola Para Djeca” (1969),
eletricista em “Betão Ronca Ferro” (1970), o filme do circo do Mazza e foi
assistente de câmera e auxiliar de eletricista em “O Grande Xerife” (1971),
espécie de sátira aos faroestes italianos que estavam em moda na época.
Salvador também esteve em “Panca de Valente” (1968) de Luiz Sérgio Person.
Senão estou enganado e a memória não me trai ele faz um dos capangas do filme.
Esse filme foi um gigantesco fracasso e limou a carreira de Person no Brasil.
Sei que tanto Salvador como o eletricista Francisco Ravagnoli, o Padre foram
bastante próximos ao Person nessa época, tendo trabalhado em comerciais e
filmes institucionais que Person fazia na sua produtora: a Lauper Filmes. Era
uma das grandes empresas de filmes comerciais de São Paulo na década de 1970.
Mas Salvador fez muitas coisas no cinema paulista. Teve escritório na Boca e uma agência de modelos. Com Chico ele fez 21 longas-metragens. Esteve sob as ordens de Cavalcanti e com este estabeleceu uma parceria duradoura. Na produtora de Chico, a Plateia Filmes, Salvador do Amaral tornou-se um nome associado. Estiveram juntos em trabalhos representativos do diretor como “O Porão das Condenadas” (1979), um grande sucesso de bilheteria; na reconstituição de época “Ivone, a Rainha do Pecado” (1983); no belo e criativo policial “Almas Marginais” (1984) e até no infantil “Padre Pedro e a Revolta das Crianças” (1984), em que Pedro de Lara rivaliza com José Mojica Marins. E até o então jovem apresentador Gugu Liberato faz uma pequena ponta. Chico era muito criativo para filmes policiais de baixo orçamento. Vamos ver ele novamente trabalhando com Salvador Amaral no clássico um tanto trash “Horas Fatais-Cabeças Trocadas” (1986), co-dirigido por Clery Cunha. Quando o sexo explícito chega, Cavalcanti tenta voltar aos sucessos anteriores do policial popular mas sem o mesmo êxito anterior.
Bastante versátil, Salvador do Amaral também
teve uma pequena parceria com o cineasta ítalo-brasileiro Rafaelle Rossi,
primeiro sendo assistente de câmera e por fim dirigindo a fotografia de filmes
como “Boneca Cobiçada” (1980) e o mega-sucesso “Coisas Eróticas” (1982),
primeiro filme brasileiro de sexo explícito.
Na última vez que estive com o amigo Rodrigo
Montana em seu escritório na rua dos Andradas ele dizia que teve poucos amigos
verdadeiros em cinema. Salvador era um deles. Já faz dez anos que Montana me
disse isso e que ele morreu. Desde então, aquele quadrilátero de ruas não é o
mesmo pra mim. Evito andar por aquelas esquinas. Parece que algo me persegue.
Serão fantasmas? Não. Acabo me lembrando dos meus amigos de cinema que já
morreram. Praticamente todos sem nenhum reconhecimento. O Brasil é prodígio
nessas coisas. Descanse em paz Salvador.
Outro amigo da Boca que vai antes do tempo combinado.




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