sexta-feira, 22 de julho de 2022

Mojica early years, parte III: 1938-1950: Vila Anastácio

Capítulo 2: 1938-1950: Vila Anastácio

 


Por André Barcinski e Ivan Finotti

 

José mal havia completado 2 anos quando os Caruso venderam a propriedade e a família Marins teve de sair da Vila Mariana. Vicente, Carlos paz e as duas filhas mudaram-se para uma casa no Tatuapé, levando junto dona Conceição e sua filha, Conceição, que estava noiva de um alfaiate chamado Atílio. Já Antônio e Carmen ficaram com uma mão na frente e outra atrás: sem casa, sem emprego e com um filho pequeno para criar. Antônio resolveu apelas para seu amigo João Caruso, que prometeu fazer de tudo para ajudá-lo. Poucos dias depois, João voltou à chácara com uma boa notícia:

- Antônio, tenho boas novas! Você se lembra da minha sogra, a Clementina? Ela construiu um cinema em Vila Anastácio, na Lapa, e está precisando de um gerente. Você não quer o emprego?

- Um cinema? Mas eu nunca entrei num cinema!

João tranquilizou o primo. Era moleza, disse. Tudo o que ele tinha a fazer era tomar conta da bilheteria e deixar o cinema limpo.

- Falei para a minha sogra que você tomou conta sozinho da nossa chácara e ela disse que o emprego é seu. O salário não é grande coisa, mas vocês podem morar de graça num puxado de dois quartos que ela tem nos fundos do cinema.

Antônio e Carmen não tinham outra opção. Em maio de 1938, fizeram as malas e carregaram o pequeno José para o Cine Santo Estevão, na rua Martinho de Campos, 386, Vila Anastácio, distrito da Lapa.

 

Após quatro anos de uma vida de sonhos no casarão de Vila Mariana, a mudança para a Vila Anastácio foi uma volta à realidade para os Marins. Não haveria mais as noitadas musicais na varanda dos Caruso, nem os banquetes de jaboticabas e mangas no pomar da chácara. Seus vizinhos não seriam mais os políticos e empresários que habitavam as casas chiques de Vila mariana, mas operários, empregadas domésticas e motoristas de ônibus.

A Vila Anastácio era um típico bairro proletário, com casas de um único pavimento intercaladas por armazéns e depósitos. Os mais pobres moravam em cortiços. As ruas eram de terra. Não havia calçamento, nem iluminação pública, e o esgoto corria a céu aberto. Imensas fábricas cinzentas circundavam toda a área.

A imigração havia transformado o bairro num cadinho de raças: a rua dos Marins, a Martinho de Campos, era dominada por húngaros, assim como as ruas Conselheiro Cândido de Oliveira e Conselheiro Olegário. Lituanos eram maioria nas ruas Caiapós, Camacam e Benedito Campos Moraes, quanto italianos e portugueses dividiam as ruas Bartolomeu Paes, Alvarenga Peixoto e Conselheiro Ribas. Apesar dessa mistura toda, os moradores se entendiam. Os times de futebol de bairro dividiam-se por nacionalidade e disputavam pelas acirradas, porém amigáveis. As crianças de Vila Anastácio divertiam-se aprendendo palavrões em vários idiomas. José nem bem começou a falar e logo aprendeu a xingar a mãe dos outros em seis línguas diferentes.

O Cine Santo Estevão era um cinema simples, de um único andar, chão de taco e pouco mais de seiscentas cadeiras de madeira. Como o cinema atendia basicamente aos moradores do bairro, quase todos operários, não havia sessões durante o dia, exceto em finais de semana. Durante a semana só eram exibidos filmes às terça e quintas, sempre ás 19h30. Um ingresso dava direito a uma sessão dupla, geralmente uma chanchada brasileira e um filme de aventura americano. Nos fins de semana havia também uma matinê, às 14h30, na qual eram exibidos desenhos animados, filmes de Tarzan e seriados de Flash Gordon.

Antônio logo descobriu que administrar um cinema não era tão simples quanto João Caruso fez parecer. Suas tarefas incluíam pintar os letreiros, limpar a sala, tomar conta da bombonière e buscar as cópias dos filmes nas distribuidoras no centro da cidade. Quando faltava gente, ele dobrava como bilheteiro e, às vezes, até projetava os filmes. Era trabalho duro, sem direito a folga. Ás segundas-feiras, Antônio se ocupava de decorar a fachada do cinema com temas relativos ao filme que estrearia no dia seguinte. Se era um filme de Tarzan, ele colava arbustos e desenhava cobras e outros bichos, imitando uma floresta. Quando era um filme romântico, Antônio pintava grandes corações vermelhos e anjos segurando arcos.

Não demorou para a família Marins se enturmar no bairro. Eles frequentavam as festas espanholas nos clubes Camacan e Santo Estevão – onde Carmen dançava flamenco – e não perdiam a missa de domingo na igreja de Santo Estevão. Aos sábados de manhã, antes da matinê, Antônio levava José para assistir ao futebol de várzea, jogado às margens do rio Tietê. Como a maior parte da comunidade espanhola de São Paulo, os dois torciam para o Madrid, um time formado por carvoeiros espanhóis que dominou os torneios de várzea na cidade nos anos 30 e 40. O pequeno José adorava também o Corinthians, time preferido dos hispânicos.

O Cine Santo Estevão rapidamente passou a fazer parte da rotina dos moradores de Vila Anastácio. Naquela época pré-televisão, o cinema era um dos grandes pontos de encontro da comunidade, e a Lapa era bem-servida de salas. O primeiro cinema do bairro, o Cine-Teatro Recreio, havia sido inaugurado em 1911. Até a inauguração do Santo Estevão, os moradores de Vila Anastácio frequentavam outros cinemas da região, como o Cine Santa Maria, o Lapa Cinema e o famoso Cine-Teatro Carlos Gomes. Muitos desses cinemas funcionavam também como local para shows e até bailes. Durante o carnaval, Antônio desaparafusava as cadeiras do cinema, lustrava o piso de taco e organizava animados bailes, com banda e tudo. Os foliões de Vila Anastácio passavam os quatro dias dando voltas no pequeno salão, cantando “Ala-la-ô” e jogando confete. Uma farra. Só havia um porém: como o piso era em declive, de vez em quando um folião mais empolgado escorregava no chão liso e arrastava vinte para o fundo do salão.

O Santo Estevão vivia lotado. Por volta de 1942, o cinema ia tão bem que Antônio já não estava dando conta de tanto trabalho. Decidiu contratar alguém para ajudá-lo na bilheteria. Sempre pensando no bem-estar da família, ofereceu o emprego a Atilio, marido da cunhada, Conceição. Atilio e Conceição haviam acabado de ter uma filha, Lurdes, e estavam em sérias dificuldades financeiras. Antônio propôs que Atilio trabalhasse à noite na bilheteria do cinema em troca de moradia. Havia um pequeno apartamento de quatro e cozinha, colado à sala de projeção, onde Atilio, Conceição e a pequena Lurdes poderiam morar.

A combinação foi boa para todos: Atilio, que durante o dia trabalhava como alfaiate, ficaria à noite na bilheteria, em troca do aluguel. Carmen e Conceição, as duas irmãs, se revezariam tomando conta de José e Lurdes, o que daria mais tempo a Camen para cuidar da bombonière. Conceição mal podia conter a felicidade por estar novamente ao lado de sua adorada irmã. Também ficou extasiada quando percebeu que, de sua cozinha, podia ver a tela do cinema (durante os anos seguintes, ela iria adquirir uma respeitável formação cinematográfica assistindo aos filmes enquanto lavava louça).

Foi por volta dessa época que Antônio começou a organizar shows de música no cinema. O Santo Estevão, assim como vários antigos cine-teatros, tinha um pequeno palco em frente à tela. Ás sextas-feiras, dia em que não havia sessão, apresentavam-se lá alguns dos grandes nomes da época, como Dircinha Batista, Nélson Gonçalves, Aurora Miranda e Orlando Silva. Mas o show que realmente marcou época em Vila Anastácio foi o de Vicente Celestino, no fim de 1942. Antônio, fã de carteirinha do cantor, passou a semana inteira preparando o cinema para receber o astro: ele lustrou o palco, retocou a pintura da fachada e limpou as cadeiras. Deixou tudo um brinco. Na noite do concerto, vestiu um paletó, alinhou seus cabelos com gomalina e arriscou até mesmo uma raríssima borrifada de perfume. Mandou Carmen botar um vestido bonito e arrumar José com capricho.

- Temos que dar uma recepção de luxo para esse homem! – disse.

Uma hora antes do show, já havia gente de pé nos corredores do cinema. Era uma noite de gala para os operários de Vila Anastácio: carregadores de caixa de linguiça vestiram fraques; fiandeiras tiraram do armário seus vestidos longos. Nunca o Santo Estevão viveram noite tão chique. Só havia um problema: Vicente Celestino não chegava.

- Meu Deus, o que é que eu vou fazer se ele não vier? Esse pessoal vai me matar! – grunhiu Antônio, enquanto esperava nervoso na porta do cinema, ouvindo o zunzunzun da multidão do lado de dentro.

- Calma, Antônio! – disse Conceição. – você sabe como são esses astros...

- Ele é um profissional – completou Atilio – Não vai faltar com seus compromissos.

O martírio de Antônio durou outros trinta minutos. O público já estava assoviando impaciente, quando os carros que traziam Celestino e seu grupo finalmente chegaram à porta do teatro. Eufórico, Antônio aproximou-se do cantos para saudá-lo:

- Senhor Vicente! É um prazer recebe-lo!

Celestino saiu do carro e andou alguns passos na direção de Antônio, cambaleando.

- Ih, Atilio, acho que ele está bêbado – cochilou Conceição.

Celestino estava, de fato, chumbado, tão zonzo que teve de ser praticamente carregado para dentro do cinema. Seu motorista, no entanto, fez questão de tranquilizar Antônio:

- Fique sossegado que, assim que ele subir no palco melhora!

E melhorou mesmo. Apesar de seu estado etílico preocupante, Celestino deu um show irrepreensível. A cada canção o público aplaudia com mais intensidade. Foram três “bis” e uma ovação no fim, quando cantou seu grande sucesso “O Ébrio”. José assistiu a tudo da cozinha da tia, aplaudindo junto com a mãe. Quando o show terminou, por volta de onze da noite, o cantor deixou seu carro esperando e, a convite de Antônio, foi tomar um lanche em sua casa. Conceição e Carmen serviram café e biscoitos de nata preparados especialmente para a ocasião.

- A senhora não tem nada mais forte? – perguntou Celestino.

- Ah, está fraco o café? – respondeu Conceição.

- Não, o café está ótimo! Eu só queria algo mais forte, talvez uma cerveja, se não for incômodo...

Antônio correu para a geladeira e abriu a primeira de várias garrafas. Em pouco tempo, Celestino se descontraiu: falou da sua vida, contou piadas e casos extraordinários sobre suas viagens pelo Brasil, sempre esbanjando simpatia. Antônio e Atilio, que também não dispensavam uma gelada, entraram no papo, sem se preocupar com as horas. A conversa rolou noite adentro. Já passava das duas da manhã quando o astro se despediu dos Marins, prometendo voltar qualquer dia. Celestino abraçou Antônio e Atilio e beijou as mãos de Carmen e Conceição. Era um cavalheiro. Os Marins estavam tão emocionados pela atenção dispensada, que nem perceberam o pequeno José, ainda acordado, de olhos vidrados em Vicente Celestino...

 

José levava uma vida excitante. Seu pai era, afinal de contar, um homem de espetáculos. Não importava que Antônio Marins fosse apenas o gerente de um pequeno cinema de bairro: José havia conhecido Vicente Celestino; Aurora Miranda o havia levantado no colo. Em sua mente de criança, ele via o pai como um homem importante e respeitado. Antônio, ás vezes, juntava-se ao irmão Miguel e ia tourear no famoso Circo Chic Chic, que excursionava pelo interior de São Paulo e Paraná. Aos 8 anos, José acompanhou o pai em duas ou três dessas excursões. Antônio lhe deu uma tarefa importantíssima: ele ficaria responsável por catar as moedas e os chapéus que o público jogava na arena. Depois do espetáculo, o pequeno José corria pela plaza improvisada, recolhendo as pratinhas e agradecendo os aplausos. Pela primeira vez sentiu-se como um verdadeiro artista.

É lógico que as touradas do Chic Chic não eram sangrentas como as da Espanha: o touro não terminava o espetáculo atravessado por espetos; apenas um pouco tonto com os “olés” e as risadas da plateia. A especialidade de Antônio era um truque dificílimo que arrepiava as senhoras presentes: ele sentava numa cadeira bem no meio da arena, com as mãos amarradas e com um lenço vermelho na boca. O touro investia contra ele e, com um jogo de corpo, Antônio não só se esquivava como ainda prendia o lenço no chifre do animal. José pediu ao pai que lhe contasse o segredo do truque.

- Os touros, meu filho, sempre atacam de olhos fechados. Eles miram, fecham os olhos e avançam numa reta só. Quando ele chega perto, eu dou um jogo de corpo e saio da frente. Colocar o lenço no chifre usando a boca exige treino, mas o importante é sair da frente na hora certa. Quanto ás vacas, essas são perigosas, porque atacam de olhos abertos. Por isso não é possível fugir delas na última hora.

 

José teve suas primeiras experiências cinematográficas nas matinês do Santo Estevão. Seus finais de semana eram os melhores que uma criança poderia desejar por volta de meio-dia, depois de passar a manhã inteira brincando com seus colegas num terreno baldio próximo ao cinema, ele voltava para asa, onde sua mãe lhe dava um banho caprichado, vestia-o e servia o almoço. Sua tia Conceição preparava bolo de fubá, pastéis de nata e outras guloseimas. Depois do banquete, José subia para a cabine de projeção do cinema. Era lá, sentado ao lado do projetor barulhento, que ele gostava de assistir aos seriados. Seu favorito era Flash Gordon, o herói espada! os colegas de rua o invejavam:

- Que sortudo você é! Assiste os filmes de graça!

José logo percebeu o trunfo que tinha nas mãos e começou a tirar partido de sua posição privilegiada. Ele passou a trocar ingressos para o cinema por botões de galalite ou revistas em quadrinhos. Quando seu pai permitia, ele convidava seus colegas para assistir aos filmes. Certa vez, exagerou na bondade e levou os amigos para uma matinê. Quando Antônio viu aquela molecada toda ocupando as primeiras filas do cinema, ficou furioso:

- José! Você quer me levar à falência?

- Mas, pai... O senhor disse...

- Eu disse que podiam chamar um colega, não cinquenta! Desse jeito não via sobrar criança no bairro para assistir à sessão! – e expulsou toda a turma, incluindo seu filho.

O pequeno Marins era o garoto mais mimado de Vila Anastácio: era o único, entre seus colegas, a andar sempre de sapatos. Vivia limpinho, bem-vestido e penteado. Sua mãe o enchia de presentes; seu pai, de orgulho. Ele nunca se acostumou a ser contrariado, e não precisou dividir a atenção dos pais contra outra criança (Carmen sofreria um aborto em 1946 e nunca mais engravidaria). Logo José começou a se achar mais importante que seus colegas. Com o passar dos anos, sua empáfia foi crescendo, assim como seu carisma e espírito de liderança. Estava longe de ser o valentão do bairro, e tampouco se destacava na bola, na pipa ou no pião. Mesmo assim, parecia exercer um domínio sobre as outras crianças de Vila Anastácio.

José tinha também um fascínio pela fantasia. Nem bem aprendera a ler e começou a colecionar gibis. Comprava diariamente revistas como Globo Juvenil, O Guri e O Mirim. Também não perdia um número das incríveis Coleções King, álbuns de luxo com histórias de Walt Disney, Mandrake, Príncipe Valente e Flash Gordon e que traziam na borda de cada página um “cineminha” com desenhos que pareciam movimentar-se quando as páginas eram folheadas rapidamente. José resolveu criar uma “gibiteca” em casa, cobrando uma bolinha de gude ou figurinha de cada criança que quisesse passar algumas horas folheando suas revistas.

Não demorou para ele demonstrar sua aptidão artística: aos 9 anos, começou a organizar pequenos shows de marionetes. Ele se trancava com os colegas no porão do cinema, que era usado como depósito, e criava suas próprias peças com bonecos de papelão e tecido. José vivia num mundo de faz-de-conta: costumava andar pela Vila Anastácio fantasiado de índio, caubói ou astronauta. Inspirado por Buck Rogers, construía armas de raio paralisante e roupas espaciais. Não havia limites para sua imaginação: num dia, o terreno baldio em frente ao cinema era a superfície da Lua; no outro, era uma selva, tal qual as que ele via nos seriados de Tarzan. José e seus colegas encenavam peças ao ar livre e não tiravam as fantasias nem para comer.

Em 1945, o garoto entrou para a primeira série do Grupo Escolar Dr. Reinaldo Ribeiro da Silva, na rua Alvarenga Peixoto. Era um aluno bom e aplicado que, em pouco tempo, começou a se destacar por seu carisma, espírito de liderança e, principalmente, por sua excentricidade. Quando a professora Eulália precisou de um voluntário para liderar a encenação de Chapeuzinho Vermelho, ele foi o único a se oferecer.

- Eu quero trabalhar na peça, professora!

- E o que você quer fazer na peça, José?

- Tudo!

Ele não estava brincando. A professora percebeu – tarde demais – que o garoto levava a coisa muito a sério. José marcou ensaios para depois das aulas, fez testes para escolha do elenco e ajudou a fazer as roupas para todos os personagens. O que era uma simples peça de escola foi encarada como uma estreia no Municipal. José só se irritou quando, vencido por votação da classe, teve de escalar para o papel de Chapeuzinho Vermelho uma menina que havia se mostrado uma tremenda canastrona nos ensaios. O que ele não sabia é que a princesinha era filha do dono da mercearia e havia subornado a turma com paçocas e cocadas.

- Vocês não querem nem saber se a peça vai ser boa ou não – disse José, vivendo seu primeiro conflito entre tarde e comercialismo.

Os ensaios foram uma tragédia: por mais que o resto do elenco se esforçasse, a canastrona estragava tudo. Numa cena em que o lobo assustava Chapeuzinho Vermelho, a atriz, em vez de gritar feito uma celerada conforme ele exigia, soltava um gemido fracote. José prometeu a si mesmo que faria a incompetente gritar de qualquer maneira. No ensaio seguinte, levou uma lagartixa escondida no bolso e, na hora da cena do grito, arremessou o bicho nos cabelos encaracolados da menina. O truque deu certo: a canastrona gritou como nunca. Por meia hora. Também chorou e esperneou, arruinando o ensaio. José foi suspenso por uma semana e nunca mais dirigiu uma peça na escola.

 

Não demorou para a fama de excêntrico se espalhar pelo bairro. Para diferenciar o José “esquisito” dos vários outros Josés de Vila Anastácio, seus colegas passaram a chamá-lo pelo nome com que viria a ser conhecido pelo resto da vida: Mojica. José adorava seu nome, especialmente porque era parecido com o nome de um dos artistas mais famosos da época, o frei José de Guadalupe Mojica, um mexicano que fazia grande sucesso cantando em filmes americanos. Ele começou a se espalhar que era parente do “frade cantante”, o que só fez aumentar sua fama no bairro.

Essa popularidade, aliás, multiplicou-se depois que o pequeno Mojica recebeu elogios de ninguém menos que Mazzaropi, na época um famoso artista de circo, onde já interpretava o caipirão ingênuo que depois faria sucesso no cinema. Numa das inúmeras passagens de seu circo por Vila Anastácio, Mazzaropi promoveu um concurso de música com a garotada do bairro. Mojica cantou “Porta aberta”, de Vicente Celestino, e ganhou o primeiro prêmio, capa de toureiro.

Aos 10 anos, Mojica já não tinha interesse em jogar futebol nem em soltar pipa. Passava seus dias no cinema, brincando de teatrinho com os amigos ou lendo gibi. Não se empolgava nem com a diversão predileta da molecada do bairro, que era brincar nos lamaçais prestilentos que se formavam nos terrenos baldios depois das chuvas. Apesar de seu isolamento, fez alguns bons amigos: seu vizinho João Andusiac, mais conhecido como João Português, era o colega mais chegado. Também fez amizade com outros meninos do bairro, como José Curto Rodrigues, Jurandir da Silva, Fernando Francisco – o “Dinho” – e Abdul Ruhmann.

Mojica adorava o pai de Abdul, Roberto Ruhmann, um artista que fazia exibições de força em circos, arrebentando correntes e entortando barras de ferro. Sempre que ia à casa de Abdul, ele pedia a “seu” Roberto para contar histórias do circo. Roberto simpatizava com Mojica e presenteou-o com uma foto sua, em que aparecia sem camisa e em posição de luta, com os punhos cerrados e cara de mau. Mojica gostou tanto da fotografia que imitou a pose numa foto de sua turma da escola.

João Português morava no número 333 da Martinho de Campos, a 30 metros do cinema. Nos fundos de sua casa havia um galinheiro, onde Mojica e seus amigos costumavam fazer teatrinho com espadas de madeira e máscaras de Zorro. Eles passavam tardes inteiras inventando histórias e criando fantasias de cartolina e tecido. Mojica gostava de se fantasia de vampiro, com longas unhas e dentes de papelão.

Aos 11 anos, ele ganhou de seu pai uma máquina fotográfica e criou uma espécie de cineminha de terror, inspirado no famoso “Bat-sinal” de Batman. O truque era simples: ele tirava fotos com filmes preto-e-branco, mandava revelar o filme e colava os negativos na boca de uma lanterna de mão. Depois ia para algum lugar escuro e projetava a luz da lanterna numa parede branca, o que dava às imagens uma aparência fantasmagórica. Quando não havia sessão no Santo Estevão, Antônio deixava o filho projetar as imagens na telona do cinema.

Mojica e seus amigos eram considerados os “malucos” do bairro, e logo tornaram-se alvo de chacotas. Naquela época, o terror dos meninos de Vila Anastácio era um menino negro forte e atrevido chamado Gazuza. Ele era o líder de uma turminha braba, e ninguém passava na sua rua sem levar uns cascudos. Mojica e João eram seus sacos de pancada prediletos. Depois de apanha incontáveis vezes do gângster mirim, Mojica propôs um acordo: o valentão se abstinha de embolachá-lo e ele conseguiria com seu pai entradas de graça para o cinema. Gazuza tornou-se o maior cinéfilo da Vila Anastácio.

Mojica estava a salvo dos tabefes de Gazuza, mas não de suas gozações. Toda vez que passava pela rua fantasiado para uma de suas peças, ouvia os maiores impropérios:

- Olha lá o maricas! Fresco!

Ele corria para o galinheiro e só saía de lá quando Gazuza e seus capanguinhas haviam sumido. Certo dia, Mojica andava pela Martinho de Campos fantasiado de caubói, com chapéu de abas largas e estrela de xerife no peito, quando deu de cara com a gangue de gazuza. O celerado não poderia mesmo perder a chance de desafiar um homem da lei e, ignorando a trégua combinada, deu uma surra no xerife de Vila Anastácio.

 

Mas Gazuza não era o único terror na vida de Mojica. Desde pequeno ele se interessava por tudo que dizia respeito ao sobrenatural. Era uma época em que as crianças se reuniam nos campinhos de várzea, ao cair da noite, para contar histórias sobre almas penadas e lobisomens. Na Vila Anastácio havia vários terreiros de macumba e candomblé, e não foram poucas as vezes em que o menino subiu numa árvore para observar os pais-de-santo e as pombas-gira rondando ao som dos tambores.

Os pais de Mojica eram católicos mas, como muitos de seus vizinhos, requentavam um centro espírito no bairro. Dona Carmen acreditava em reencarnação e dizia ter o poder de se comunicar com parentes mortos. Essa mistura de religião e misticismo mexia com a cabeça do menino: quando seu primo Robertinho – segundo filho da tia Conceição – morreu de pneumonia, Mojica passou dias tentando conversar com seu espírito. Diversos episódios envolvendo a morte ou o sobrenatural ficaram gravados na mente de Mojica e ressurgiriam mais tarde como tema ou inspiração para seus filmes. Um deles – sem dúvida o mais marcante na vida do futuro diretor – beirava o surreal: a visão de Manoel, um quitandeiro querido em Vila Anastácio, levantando do caixão no meio do próprio velório. Verdade ou não – e muitos em Vila Anastácio confirmam o episódio, que teria sido provocado por um ataque de catalepsia -, o fato é que a imagem do cadáver abrindo os olhos ficou guardada para sempre na memória do menino e acabou inspirando, vinte anos depois, um episódio do filme Trilogia do Terror.

 

Não demorou para Mojica cansar-se do teatrinho mambembe que fazia com os colegas. Já se julgava um adulto. Como prova de maturidade e macheza, começou a fumar cigarros de folha de chuchu, verdadeiros mataratos que ele tragava numa rodinha com os amigos. Folheando uma revista certo dia, Mojica descobriu seu novo sonho de consumo: uma câmera 8 milímetros. Ele tanto insistiu com seu pai que acabou ganhando uma câmera como presente de aniversário de 12 anos. Depois disso, mal parava em casa: eram dias inteiros brincando com a máquina, ao lado de João Português, Abdul e Dinho.

Os primeiros experimentos da turma não passavam de brincadeiras de criança: filmavam o bairro, suas famílias, os vizinhos e colegas. Mojica conseguiu um projetor emprestado e exibiu seus primeiros filmes caseiros num lençol estendido em um varal no porão do cinema. Ele lembra do exato instante em que viu pela primeira vez uma de suas cenas – a fachada do Cine Santo Estevão – projetada na tela improvisada. Foi o dia mais feliz de sua vida.

A turma passou quase três anos usando a câmera diariamente. Pouco a pouco, seus experimentos foram se tornando mais complexos. Eles ainda não tinham muita preocupação com enredo ou continuidade, mas já haviam começado a filmar cenas esparsas de brigas e perseguições. Mojica era o mais esperto do bando e foi o primeiro a descobrir os conceitos elementares de montagem. Sem dispor de um sistema de edição, ele percebeu que poderia criar sequencias de ação na própria câmera, simplesmente filmando as cenas em ordem e trocando sempre o ângulo de visão.

Assim, para filmar uma cena de briga, ele se postava atrás de um dos atores e mandava que este desse um soco em um colega. Depois trocava o ponto de vista, filmando nas costas do sujeito que havia levado o murro. Quando projetavam o filme, a sequência parecia fluida e cheia de movimento (infelizmente, todo esse material, filmado entre 1958 e 1950, se perdeu).

O primeiro experimento da turma a merece o nome de “filme” – ou seja, o primeiro a ter um enredo com começo, meio e fim – foi o curta-metragem O Juízo Final, rodado em 1949, quando Mojica tinha apenas 13 anos. O filme contava a história de um ataque de naves espaciais à Terra. Para fazer as naves – que tinham formato de caixão de defunto – Mojica usou novamente o recurso do “Bat-sinal”, colando na boca de uma lanterna uma cartolina vazada com um buraco em forma de caixão e projetando o facho de luz numa parede. Antônio, um tremendo pai-coruja, achou o filma uma obra-prima e deixou que eles o projetassem na tela do Santo Estevão.

 

Com o tempo, Mojica foi ficando mais exigente: começou a reclamar da qualidade da imagem da câmera 8 milímetros (realmente péssima, já que o negativo era minúsculo) e tentou convencer seus amigos a comprarem uma máquina de 16 milímetros. Acabaram fazendo uma “vaquinha” e, em 1952, foram até uma loja no centro da cidade e comparam uma câmera Cinclox, movida a corda e com uma única lente. Mojica ainda não estava satisfeito. Se quisessem fazer filmes de verdade, precisariam também de um estúdio onde pudessem construir cenários. Sugeriu usarem o galinheiro do João Português, local espaçoso e escondido. “Não vai dar certo”, reclamou João. “Todo filme vai ter galinha no meio!”.

Mas não seriam cinquenta galinhas que destruiriam seus sonhos de grandeza. Como um thriller de detetive, só havia uma solução, drástica, porém necessária: as galinhas precisavam ser eliminadas! Mojica e João, decididos, foram até uma mercearia e compraram veneno de rato. Depois misturaram o pó à comida as infelizes. No dia seguinte, quando a mãe do João foi dar comida às penosas, cinco já estavam mortas. As outras pareciam meio grogues.

- Meu Deus, o que está havendo? Nunca vi galinhas tão brocoxôs!

Naquela mesma noite, outras seis passaram desta para melhor. João convenceu seus pais de que deveria tratar-se de alguma epidemia: “Isso pode pegar na gente, mãe!”. Assustados, os pais se livraram das galinhas sobreviventes e limparam o galinheiro, deixando o espaço livre para os “cineastas”.

Pelos meses seguintes não fizeram outra coisa senão filmar de todas as formas possíveis: Mojica subia numa escada e filmava de cima; depois deitava no chão e mandava os outros andarem por cima dele. Experimentaram filmar em baixa velocidade, para que a imagem, quando projetada à toda velocidade normal, parecesse acelerada. Depois fizeram o inverso, filmando em velocidade rápida e conseguindo o efeito de câmera lenta.

Mojica começou a tentar truques mais complexos: usando uma cartolina, ele tapava metade da lente, expondo apenas uma parte do filme. Depois retrocedia o filme no cartucho e filmava tapando a outra parte, conseguindo assim duas imagens distintas no mesmo fotograma. Usando esta técnica, eles rodaram uma sequência em que João parecia estar dividido ao meio: do lado esquerdo ele aparecia limpinho e, do lado direito, todo coberto de lama. O método serviu também para fazer sobreposição de imagens. Primeiro eles filmavam a rua, depois retrocediam o filme e filmavam uma vaca ou um cavalo, com cuidado de enquadrar o bicho numa posição que, quando gravado por cima da imagem da rua, parecesse estar no céu. Uma vaca nos céus de Vila Anastácio!

Eram apenas experiências, mas Mojica, orgulhoso, fazia questão de batizar cada uma delas com um nome pomposo, como se fossem filmes de verdade. Nesse esquema, fizeram Os Três Leões, um filme infantil em que Dinho, Jurandir e Ricardo, fantasiados de leões, tentavam convencer os humanos a não maltratar os animais. Rodaram também o filme policial A Encruzilhada da Perdição e Feitiçaria, um documentário sobre um centro espírita na Vila Anastácio, que pode ser considerado o primeiro filme de horror de Mojica.

 

Publicado originalmente em BARCINSKI, André & FINOTTI, Ivan. Maldito: a vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. São Paulo: Editora 34, 1998.

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