Capítulo
2: 1938-1950: Vila Anastácio
Por
André Barcinski e Ivan Finotti
José
mal havia completado 2 anos quando os Caruso venderam a propriedade e a família
Marins teve de sair da Vila Mariana. Vicente, Carlos paz e as duas filhas
mudaram-se para uma casa no Tatuapé, levando junto dona Conceição e sua filha,
Conceição, que estava noiva de um alfaiate chamado Atílio. Já Antônio e Carmen
ficaram com uma mão na frente e outra atrás: sem casa, sem emprego e com um filho pequeno para criar. Antônio
resolveu apelas para seu amigo João Caruso, que prometeu fazer de tudo para
ajudá-lo. Poucos dias depois, João voltou à chácara com uma boa notícia:
- Antônio, tenho boas novas! Você se lembra
da minha sogra, a Clementina? Ela construiu um
cinema em Vila Anastácio, na Lapa, e está precisando de um gerente. Você não
quer o emprego?
- Um cinema? Mas eu nunca
entrei num cinema!
João tranquilizou o primo.
Era moleza, disse. Tudo o que ele tinha a fazer era tomar conta da bilheteria e
deixar o cinema limpo.
- Falei para a minha sogra
que você tomou conta sozinho da nossa chácara e ela disse que o emprego é seu. O
salário não é grande coisa, mas vocês podem morar de graça num puxado de dois
quartos que ela tem nos fundos do cinema.
Antônio e Carmen não tinham
outra opção. Em maio de 1938, fizeram as malas e carregaram o pequeno José para
o Cine Santo Estevão, na rua Martinho de Campos, 386, Vila Anastácio, distrito
da Lapa.
Após quatro anos de uma vida
de sonhos no casarão de Vila Mariana, a mudança para a Vila Anastácio foi uma
volta à realidade para os Marins. Não haveria mais as noitadas musicais na
varanda dos Caruso, nem os banquetes de jaboticabas e mangas no pomar da
chácara. Seus vizinhos não seriam mais os políticos e empresários que habitavam
as casas chiques de Vila mariana, mas operários, empregadas domésticas e
motoristas de ônibus.
A Vila Anastácio era um
típico bairro proletário, com casas de um único pavimento intercaladas por
armazéns e depósitos. Os mais pobres moravam em cortiços. As ruas eram de
terra. Não havia calçamento, nem iluminação pública, e o esgoto corria a céu aberto.
Imensas fábricas cinzentas circundavam toda a área.
A imigração havia
transformado o bairro num cadinho de raças: a rua dos Marins, a Martinho de
Campos, era dominada por húngaros, assim como as ruas Conselheiro Cândido de
Oliveira e Conselheiro Olegário. Lituanos eram maioria nas ruas Caiapós,
Camacam e Benedito Campos Moraes, quanto italianos e portugueses dividiam as
ruas Bartolomeu Paes, Alvarenga Peixoto e Conselheiro Ribas. Apesar dessa
mistura toda, os moradores se entendiam. Os times de futebol de bairro
dividiam-se por nacionalidade e disputavam pelas acirradas, porém amigáveis. As
crianças de Vila Anastácio divertiam-se aprendendo palavrões em vários idiomas.
José nem bem começou a falar e logo aprendeu a xingar a mãe dos outros em seis
línguas diferentes.
O Cine Santo Estevão era um
cinema simples, de um único andar, chão de taco e pouco mais de seiscentas
cadeiras de madeira. Como o cinema atendia basicamente aos moradores do bairro,
quase todos operários, não havia sessões durante o dia, exceto em finais de
semana. Durante a semana só eram exibidos filmes às terça e quintas, sempre ás
19h30. Um ingresso dava direito a uma sessão dupla, geralmente uma chanchada
brasileira e um filme de aventura americano. Nos fins de semana havia também
uma matinê, às 14h30, na qual eram exibidos desenhos animados, filmes de Tarzan
e seriados de Flash Gordon.
Antônio logo descobriu que
administrar um cinema não era tão simples quanto João Caruso fez parecer. Suas
tarefas incluíam pintar os letreiros, limpar a sala, tomar conta da bombonière
e buscar as cópias dos filmes nas distribuidoras no centro da cidade. Quando
faltava gente, ele dobrava como bilheteiro e, às vezes, até projetava os
filmes. Era trabalho duro, sem direito a folga. Ás segundas-feiras, Antônio se
ocupava de decorar a fachada do cinema com temas relativos ao filme que
estrearia no dia seguinte. Se era um filme de Tarzan, ele colava arbustos e
desenhava cobras e outros bichos, imitando uma floresta. Quando era um filme
romântico, Antônio pintava grandes corações vermelhos e anjos segurando arcos.
Não demorou para a família
Marins se enturmar no bairro. Eles frequentavam as festas espanholas nos clubes
Camacan e Santo Estevão – onde Carmen dançava flamenco – e não perdiam a missa
de domingo na igreja de Santo Estevão. Aos sábados de manhã, antes da matinê,
Antônio levava José para assistir ao futebol de várzea, jogado às margens do
rio Tietê. Como a maior parte da comunidade espanhola de São Paulo, os dois
torciam para o Madrid, um time formado por carvoeiros espanhóis que dominou os
torneios de várzea na cidade nos anos 30 e 40. O pequeno José adorava também o
Corinthians, time preferido dos hispânicos.
O Cine Santo Estevão
rapidamente passou a fazer parte da rotina dos moradores de Vila Anastácio.
Naquela época pré-televisão, o cinema era um dos grandes pontos de encontro da
comunidade, e a Lapa era bem-servida de salas. O primeiro cinema do bairro, o
Cine-Teatro Recreio, havia sido inaugurado em 1911. Até a inauguração do Santo
Estevão, os moradores de Vila Anastácio frequentavam outros cinemas da região,
como o Cine Santa Maria, o Lapa Cinema e o famoso Cine-Teatro Carlos Gomes.
Muitos desses cinemas funcionavam também como local para shows e até bailes.
Durante o carnaval, Antônio desaparafusava as cadeiras do cinema, lustrava o
piso de taco e organizava animados bailes, com banda e tudo. Os foliões de Vila
Anastácio passavam os quatro dias dando voltas no pequeno salão, cantando
“Ala-la-ô” e jogando confete. Uma farra. Só havia um porém: como o piso era em
declive, de vez em quando um folião mais empolgado escorregava no chão liso e
arrastava vinte para o fundo do salão.
O Santo Estevão vivia
lotado. Por volta de 1942, o cinema ia tão bem que Antônio já não estava dando
conta de tanto trabalho. Decidiu contratar alguém para ajudá-lo na bilheteria.
Sempre pensando no bem-estar da família, ofereceu o emprego a Atilio, marido da
cunhada, Conceição. Atilio e Conceição haviam acabado de ter uma filha, Lurdes,
e estavam em sérias dificuldades financeiras. Antônio propôs que Atilio
trabalhasse à noite na bilheteria do cinema em troca de moradia. Havia um
pequeno apartamento de quatro e cozinha, colado à sala de projeção, onde
Atilio, Conceição e a pequena Lurdes poderiam morar.
A combinação foi boa para
todos: Atilio, que durante o dia trabalhava como alfaiate, ficaria à noite na
bilheteria, em troca do aluguel. Carmen e Conceição, as duas irmãs, se
revezariam tomando conta de José e Lurdes, o que daria mais tempo a Camen para
cuidar da bombonière. Conceição mal podia conter a felicidade por estar
novamente ao lado de sua adorada irmã. Também ficou extasiada quando percebeu
que, de sua cozinha, podia ver a tela do cinema (durante os anos seguintes, ela
iria adquirir uma respeitável formação cinematográfica assistindo aos filmes
enquanto lavava louça).
Foi por volta dessa época
que Antônio começou a organizar shows de música no cinema. O Santo Estevão,
assim como vários antigos cine-teatros, tinha um pequeno palco em frente à
tela. Ás sextas-feiras, dia em que não havia sessão, apresentavam-se lá alguns dos grandes nomes da época, como Dircinha Batista, Nélson
Gonçalves, Aurora Miranda e Orlando Silva. Mas o show que realmente marcou
época em Vila Anastácio foi o de Vicente Celestino, no fim de 1942. Antônio, fã
de carteirinha do cantor, passou a semana inteira preparando o cinema para
receber o astro: ele lustrou o palco, retocou a pintura da fachada e limpou as
cadeiras. Deixou tudo um brinco. Na noite do concerto, vestiu um paletó,
alinhou seus cabelos com gomalina e arriscou até mesmo uma raríssima borrifada
de perfume. Mandou Carmen botar um vestido bonito e arrumar José com capricho.
- Temos que dar uma recepção
de luxo para esse homem! – disse.
Uma hora antes do show, já
havia gente de pé nos corredores do cinema. Era uma noite de gala para os
operários de Vila Anastácio: carregadores de caixa de linguiça vestiram
fraques; fiandeiras tiraram do armário seus vestidos longos. Nunca o Santo
Estevão viveram noite tão chique. Só havia um problema: Vicente Celestino não
chegava.
- Meu Deus, o que é que eu
vou fazer se ele não vier? Esse pessoal vai me matar! – grunhiu Antônio,
enquanto esperava nervoso na porta do cinema, ouvindo o zunzunzun da multidão
do lado de dentro.
- Calma, Antônio! – disse
Conceição. – você sabe como são esses astros...
- Ele é um profissional –
completou Atilio – Não vai faltar com seus compromissos.
O martírio de Antônio durou
outros trinta minutos. O público já estava assoviando impaciente, quando os
carros que traziam Celestino e seu grupo finalmente chegaram à porta do teatro.
Eufórico, Antônio aproximou-se do cantos para saudá-lo:
- Senhor Vicente! É um
prazer recebe-lo!
Celestino saiu do carro e
andou alguns passos na direção de Antônio, cambaleando.
- Ih, Atilio, acho que ele
está bêbado – cochilou Conceição.
Celestino estava, de fato,
chumbado, tão zonzo que teve de ser praticamente carregado para dentro do
cinema. Seu motorista, no entanto, fez questão de tranquilizar Antônio:
- Fique sossegado que, assim
que ele subir no palco melhora!
E melhorou mesmo. Apesar de
seu estado etílico preocupante, Celestino deu um show irrepreensível. A cada
canção o público aplaudia com mais intensidade. Foram três “bis” e uma ovação
no fim, quando cantou seu grande sucesso “O Ébrio”. José assistiu a tudo da
cozinha da tia, aplaudindo junto com a mãe. Quando o show terminou, por volta
de onze da noite, o cantor deixou seu carro esperando e, a convite de Antônio,
foi tomar um lanche em sua casa. Conceição e Carmen serviram café e biscoitos
de nata preparados especialmente para a ocasião.
- A senhora não tem nada
mais forte? – perguntou Celestino.
- Ah, está fraco o café? –
respondeu Conceição.
- Não, o café está ótimo! Eu
só queria algo mais forte, talvez uma cerveja, se não for incômodo...
Antônio correu para a
geladeira e abriu a primeira de várias garrafas. Em pouco tempo, Celestino se
descontraiu: falou da sua vida, contou piadas e casos extraordinários sobre
suas viagens pelo Brasil, sempre esbanjando simpatia. Antônio e Atilio, que
também não dispensavam uma gelada, entraram no papo, sem se preocupar com as
horas. A conversa rolou noite adentro. Já passava das duas da manhã quando o
astro se despediu dos Marins, prometendo voltar qualquer dia. Celestino abraçou
Antônio e Atilio e beijou as mãos de Carmen e Conceição. Era um cavalheiro. Os
Marins estavam tão emocionados pela atenção dispensada, que nem perceberam o
pequeno José, ainda acordado, de olhos vidrados em Vicente Celestino...
José levava uma vida
excitante. Seu pai era, afinal de contar, um homem de espetáculos. Não
importava que Antônio Marins fosse apenas o gerente de um pequeno cinema de
bairro: José havia conhecido Vicente Celestino; Aurora Miranda o havia
levantado no colo. Em sua mente de criança, ele via o pai como um homem
importante e respeitado. Antônio, ás vezes, juntava-se ao irmão Miguel e ia
tourear no famoso Circo Chic Chic, que excursionava pelo interior de São Paulo
e Paraná. Aos 8 anos, José acompanhou o pai em duas ou três dessas excursões.
Antônio lhe deu uma tarefa importantíssima: ele ficaria responsável por catar
as moedas e os chapéus que o público jogava na arena. Depois do espetáculo, o
pequeno José corria pela plaza
improvisada, recolhendo as pratinhas e agradecendo os aplausos. Pela primeira
vez sentiu-se como um verdadeiro artista.
É lógico que as touradas do
Chic Chic não eram sangrentas como as da Espanha: o touro não terminava o
espetáculo atravessado por espetos; apenas um pouco tonto com os “olés” e as
risadas da plateia. A especialidade de Antônio era um truque dificílimo que
arrepiava as senhoras presentes: ele sentava numa cadeira bem no meio da arena,
com as mãos amarradas e com um lenço vermelho na boca. O touro investia contra
ele e, com um jogo de corpo, Antônio não só se esquivava como ainda prendia o
lenço no chifre do animal. José pediu ao pai que lhe contasse o segredo do
truque.
- Os touros, meu filho,
sempre atacam de olhos fechados. Eles miram, fecham os olhos e avançam numa
reta só. Quando ele chega perto, eu dou um jogo de corpo e saio da frente.
Colocar o lenço no chifre usando a boca exige treino, mas o importante é sair
da frente na hora certa. Quanto ás vacas, essas são perigosas, porque atacam de
olhos abertos. Por isso não é possível fugir delas na última hora.
José teve suas primeiras
experiências cinematográficas nas matinês do Santo Estevão. Seus finais de
semana eram os melhores que uma criança poderia desejar por volta de meio-dia,
depois de passar a manhã inteira brincando com seus colegas num terreno baldio
próximo ao cinema, ele voltava para asa, onde sua mãe lhe dava um banho
caprichado, vestia-o e servia o almoço. Sua tia Conceição preparava bolo de
fubá, pastéis de nata e outras guloseimas. Depois do banquete, José subia para
a cabine de projeção do cinema. Era lá, sentado ao lado do projetor barulhento,
que ele gostava de assistir aos seriados. Seu favorito era Flash Gordon, o
herói espada! os colegas de rua o invejavam:
- Que sortudo você é!
Assiste os filmes de graça!
José logo percebeu o trunfo
que tinha nas mãos e começou a tirar partido de sua posição privilegiada. Ele
passou a trocar ingressos para o cinema por botões de galalite ou revistas em
quadrinhos. Quando seu pai permitia, ele convidava seus colegas para assistir
aos filmes. Certa vez, exagerou na bondade e levou os amigos para uma matinê.
Quando Antônio viu aquela molecada toda ocupando as primeiras filas do cinema,
ficou furioso:
- José! Você quer me levar à
falência?
- Mas, pai... O senhor
disse...
- Eu disse que podiam chamar
um colega, não cinquenta! Desse jeito não via sobrar criança no bairro para
assistir à sessão! – e expulsou toda a turma, incluindo seu filho.
O pequeno Marins era o
garoto mais mimado de Vila Anastácio: era o único, entre seus colegas, a andar
sempre de sapatos. Vivia limpinho, bem-vestido e penteado. Sua mãe o enchia de
presentes; seu pai, de orgulho. Ele nunca se acostumou a ser contrariado, e não
precisou dividir a atenção dos pais contra outra criança (Carmen sofreria um
aborto em 1946 e nunca mais engravidaria). Logo José começou a se achar mais
importante que seus colegas. Com o passar dos anos, sua empáfia foi crescendo,
assim como seu carisma e espírito de liderança. Estava longe de ser o valentão
do bairro, e tampouco se destacava na bola, na pipa ou no pião. Mesmo assim,
parecia exercer um domínio sobre as outras crianças de Vila Anastácio.
José tinha também um
fascínio pela fantasia. Nem bem aprendera a ler e começou a colecionar gibis.
Comprava diariamente revistas como Globo
Juvenil, O Guri e O Mirim. Também não perdia um número das
incríveis Coleções King, álbuns de luxo com histórias de Walt Disney, Mandrake,
Príncipe Valente e Flash Gordon e que traziam na borda de cada página um
“cineminha” com desenhos que pareciam movimentar-se quando as páginas eram
folheadas rapidamente. José resolveu criar uma “gibiteca” em casa, cobrando uma
bolinha de gude ou figurinha de cada criança que quisesse passar algumas horas
folheando suas revistas.
Não demorou para ele
demonstrar sua aptidão artística: aos 9 anos, começou a organizar pequenos
shows de marionetes. Ele se trancava com os colegas no porão do cinema, que era
usado como depósito, e criava suas próprias peças com bonecos de papelão e
tecido. José vivia num mundo de faz-de-conta: costumava andar pela Vila
Anastácio fantasiado de índio, caubói ou astronauta. Inspirado por Buck Rogers,
construía armas de raio paralisante e roupas espaciais. Não havia limites para
sua imaginação: num dia, o terreno baldio em frente ao cinema era a superfície
da Lua; no outro, era uma selva, tal qual as que ele via nos seriados de
Tarzan. José e seus colegas encenavam peças ao ar livre e não tiravam as
fantasias nem para comer.
Em 1945, o garoto entrou
para a primeira série do Grupo Escolar Dr. Reinaldo Ribeiro da Silva, na rua
Alvarenga Peixoto. Era um aluno bom e aplicado que, em pouco tempo, começou a
se destacar por seu carisma, espírito de liderança e, principalmente, por sua
excentricidade. Quando a professora Eulália precisou de um voluntário para
liderar a encenação de Chapeuzinho Vermelho, ele foi o único a se oferecer.
- Eu quero trabalhar na
peça, professora!
- E o que você quer fazer na
peça, José?
- Tudo!
Ele não estava brincando. A
professora percebeu – tarde demais – que o garoto levava a coisa muito a sério.
José marcou ensaios para depois das aulas, fez testes para escolha do elenco e
ajudou a fazer as roupas para todos os personagens. O que era uma simples peça de
escola foi encarada como uma estreia no Municipal. José só se irritou quando,
vencido por votação da classe, teve de escalar para o papel de Chapeuzinho
Vermelho uma menina que havia se mostrado uma tremenda canastrona nos ensaios.
O que ele não sabia é que a princesinha era filha do dono da mercearia e havia
subornado a turma com paçocas e cocadas.
- Vocês não querem nem saber
se a peça vai ser boa ou não – disse José, vivendo seu primeiro conflito entre
tarde e comercialismo.
Os ensaios foram uma tragédia:
por mais que o resto do elenco se esforçasse, a canastrona estragava tudo. Numa
cena em que o lobo assustava Chapeuzinho Vermelho, a atriz, em vez de gritar
feito uma celerada conforme ele exigia, soltava um gemido fracote. José
prometeu a si mesmo que faria a incompetente gritar de qualquer maneira. No
ensaio seguinte, levou uma lagartixa escondida no bolso e, na hora da cena do
grito, arremessou o bicho nos cabelos encaracolados da menina. O truque deu
certo: a canastrona gritou como nunca. Por meia hora. Também chorou e
esperneou, arruinando o ensaio. José foi suspenso por uma semana e nunca mais
dirigiu uma peça na escola.
Não demorou para a fama de
excêntrico se espalhar pelo bairro. Para diferenciar o José “esquisito” dos
vários outros Josés de Vila Anastácio, seus colegas passaram a chamá-lo pelo
nome com que viria a ser conhecido pelo resto da vida: Mojica. José adorava seu
nome, especialmente porque era parecido com o nome de um dos artistas mais
famosos da época, o frei José de Guadalupe Mojica, um mexicano que fazia grande
sucesso cantando em filmes americanos. Ele começou a se espalhar que era
parente do “frade cantante”, o que só fez aumentar sua fama no bairro.
Essa popularidade, aliás,
multiplicou-se depois que o pequeno Mojica recebeu elogios de ninguém menos que
Mazzaropi, na época um famoso artista de circo, onde já interpretava o caipirão
ingênuo que depois faria sucesso no cinema. Numa das inúmeras passagens de seu
circo por Vila Anastácio, Mazzaropi promoveu um concurso de música com a
garotada do bairro. Mojica cantou “Porta aberta”, de Vicente Celestino, e
ganhou o primeiro prêmio, capa de toureiro.
Aos 10 anos, Mojica já não
tinha interesse em jogar futebol nem em soltar pipa. Passava seus dias no
cinema, brincando de teatrinho com os amigos ou lendo gibi. Não se empolgava
nem com a diversão predileta da molecada do bairro, que era brincar nos
lamaçais prestilentos que se formavam nos terrenos baldios depois das chuvas.
Apesar de seu isolamento, fez alguns bons amigos: seu vizinho João Andusiac,
mais conhecido como João Português, era o colega mais chegado. Também fez
amizade com outros meninos do bairro, como José Curto Rodrigues, Jurandir da
Silva, Fernando Francisco – o “Dinho” – e Abdul Ruhmann.
Mojica adorava o pai de
Abdul, Roberto Ruhmann, um artista que fazia exibições de força em circos,
arrebentando correntes e entortando barras de ferro. Sempre que ia à casa de
Abdul, ele pedia a “seu” Roberto para contar histórias do circo. Roberto
simpatizava com Mojica e presenteou-o com uma foto sua, em que aparecia sem
camisa e em posição de luta, com os punhos cerrados e cara de mau. Mojica
gostou tanto da fotografia que imitou a pose numa foto de sua turma da escola.
João Português morava no
número 333 da Martinho de Campos, a 30 metros do cinema. Nos fundos de sua casa
havia um galinheiro, onde Mojica e seus amigos costumavam fazer teatrinho com
espadas de madeira e máscaras de Zorro. Eles passavam tardes inteiras
inventando histórias e criando fantasias de cartolina e tecido. Mojica gostava
de se fantasia de vampiro, com longas unhas e dentes de papelão.
Aos 11 anos, ele ganhou de
seu pai uma máquina fotográfica e criou uma espécie de cineminha de terror, inspirado
no famoso “Bat-sinal” de Batman. O truque era simples: ele tirava fotos com
filmes preto-e-branco, mandava revelar o filme e colava os negativos na boca de
uma lanterna de mão. Depois ia para algum lugar escuro e projetava a luz da
lanterna numa parede branca, o que dava às imagens uma aparência
fantasmagórica. Quando não havia sessão no Santo Estevão, Antônio deixava o
filho projetar as imagens na telona do cinema.
Mojica e seus amigos eram
considerados os “malucos” do bairro, e logo tornaram-se alvo de chacotas.
Naquela época, o terror dos meninos de Vila Anastácio era um menino negro forte
e atrevido chamado Gazuza. Ele era o líder de uma turminha braba, e ninguém
passava na sua rua sem levar uns cascudos. Mojica e João eram seus sacos de
pancada prediletos. Depois de apanha incontáveis vezes do gângster mirim,
Mojica propôs um acordo: o valentão se abstinha de embolachá-lo e ele
conseguiria com seu pai entradas de graça para o cinema. Gazuza tornou-se o
maior cinéfilo da Vila Anastácio.
Mojica estava a salvo dos
tabefes de Gazuza, mas não de suas gozações. Toda vez que passava pela rua
fantasiado para uma de suas peças, ouvia os maiores impropérios:
- Olha lá o maricas! Fresco!
Ele corria para o galinheiro
e só saía de lá quando Gazuza e seus capanguinhas haviam sumido. Certo dia,
Mojica andava pela Martinho de Campos fantasiado de caubói, com chapéu de abas
largas e estrela de xerife no peito, quando deu de cara com a gangue de gazuza.
O celerado não poderia mesmo perder a chance de desafiar um homem da lei e,
ignorando a trégua combinada, deu uma surra no xerife de Vila Anastácio.
Mas Gazuza não era o único
terror na vida de Mojica. Desde pequeno ele se interessava por tudo que dizia
respeito ao sobrenatural. Era uma época em que as crianças se reuniam nos
campinhos de várzea, ao cair da noite, para contar histórias sobre almas
penadas e lobisomens. Na Vila Anastácio havia vários terreiros de macumba e
candomblé, e não foram poucas as vezes em que o menino subiu numa árvore para
observar os pais-de-santo e as pombas-gira rondando ao som dos tambores.
Os pais de Mojica eram
católicos mas, como muitos de seus vizinhos, requentavam um centro espírito no
bairro. Dona Carmen acreditava em reencarnação e dizia ter o poder de se
comunicar com parentes mortos. Essa mistura de religião e misticismo mexia com
a cabeça do menino: quando seu primo Robertinho – segundo filho da tia
Conceição – morreu de pneumonia, Mojica passou dias tentando conversar com seu
espírito. Diversos episódios envolvendo a morte ou o sobrenatural ficaram
gravados na mente de Mojica e ressurgiriam mais tarde como tema ou inspiração
para seus filmes. Um deles – sem dúvida o mais marcante na vida do futuro
diretor – beirava o surreal: a visão de Manoel, um quitandeiro querido em Vila
Anastácio, levantando do caixão no meio do próprio velório. Verdade ou não – e
muitos em Vila Anastácio confirmam o episódio, que teria sido provocado por um
ataque de catalepsia -, o fato é que a imagem do cadáver abrindo os olhos ficou
guardada para sempre na memória do menino e acabou inspirando, vinte anos
depois, um episódio do filme Trilogia do
Terror.
Não demorou para Mojica
cansar-se do teatrinho mambembe que fazia com os colegas. Já se julgava um
adulto. Como prova de maturidade e macheza, começou a fumar cigarros de folha
de chuchu, verdadeiros mataratos que ele tragava numa rodinha com os amigos.
Folheando uma revista certo dia, Mojica descobriu seu novo sonho de consumo:
uma câmera 8 milímetros. Ele tanto insistiu com seu pai que acabou ganhando uma
câmera como presente de aniversário de 12 anos. Depois disso, mal parava em
casa: eram dias inteiros brincando com a máquina, ao lado de João Português,
Abdul e Dinho.
Os primeiros experimentos da
turma não passavam de brincadeiras de criança: filmavam o bairro, suas
famílias, os vizinhos e colegas. Mojica conseguiu um projetor emprestado e
exibiu seus primeiros filmes caseiros num lençol estendido em um varal no porão
do cinema. Ele lembra do exato instante em que viu pela primeira vez uma de
suas cenas – a fachada do Cine Santo Estevão – projetada na tela improvisada.
Foi o dia mais feliz de sua vida.
A turma passou quase três
anos usando a câmera diariamente. Pouco a pouco, seus experimentos foram se
tornando mais complexos. Eles ainda não tinham muita preocupação com enredo ou
continuidade, mas já haviam começado a filmar cenas esparsas de brigas e perseguições.
Mojica era o mais esperto do bando e foi o primeiro a descobrir os conceitos
elementares de montagem. Sem dispor de um sistema de edição, ele percebeu que
poderia criar sequencias de ação na própria câmera, simplesmente filmando as
cenas em ordem e trocando sempre o ângulo de visão.
Assim, para filmar uma cena
de briga, ele se postava atrás de um dos atores e mandava que este desse um
soco em um colega. Depois trocava o ponto de vista, filmando nas costas do
sujeito que havia levado o murro. Quando projetavam o filme, a sequência
parecia fluida e cheia de movimento (infelizmente, todo esse material, filmado
entre 1958 e 1950, se perdeu).
O primeiro experimento da
turma a merece o nome de “filme” – ou seja, o primeiro a ter um enredo com
começo, meio e fim – foi o curta-metragem
O Juízo Final, rodado em 1949, quando Mojica tinha apenas 13 anos. O filme
contava a história de um ataque de naves espaciais à Terra. Para fazer as naves
– que tinham formato de caixão de defunto – Mojica usou novamente o recurso do
“Bat-sinal”, colando na boca de uma lanterna uma cartolina vazada com um buraco
em forma de caixão e projetando o facho de luz numa parede. Antônio, um
tremendo pai-coruja, achou o filma uma obra-prima e deixou que eles o
projetassem na tela do Santo Estevão.
Com o tempo, Mojica foi
ficando mais exigente: começou a reclamar da qualidade da imagem da câmera 8
milímetros (realmente péssima, já que o negativo era minúsculo) e tentou
convencer seus amigos a comprarem uma máquina de 16 milímetros. Acabaram
fazendo uma “vaquinha” e, em 1952, foram até uma loja no centro da cidade e
comparam uma câmera Cinclox, movida a corda e com uma única lente. Mojica ainda
não estava satisfeito. Se quisessem fazer filmes de verdade, precisariam também
de um estúdio onde pudessem construir cenários. Sugeriu usarem o galinheiro do
João Português, local espaçoso e escondido. “Não vai dar certo”, reclamou João.
“Todo filme vai ter galinha no meio!”.
Mas não seriam cinquenta
galinhas que destruiriam seus sonhos de grandeza. Como um thriller de detetive,
só havia uma solução, drástica, porém necessária: as galinhas precisavam ser
eliminadas! Mojica e João, decididos, foram até uma mercearia e compraram
veneno de rato. Depois misturaram o pó à comida as infelizes. No dia seguinte,
quando a mãe do João foi dar comida às penosas, cinco já estavam mortas. As
outras pareciam meio grogues.
- Meu Deus, o que está
havendo? Nunca vi galinhas tão brocoxôs!
Naquela mesma noite, outras
seis passaram desta para melhor. João convenceu seus pais de que deveria
tratar-se de alguma epidemia: “Isso pode pegar na gente, mãe!”. Assustados, os
pais se livraram das galinhas sobreviventes e limparam o galinheiro, deixando o
espaço livre para os “cineastas”.
Pelos meses seguintes não
fizeram outra coisa senão filmar de todas as formas possíveis: Mojica subia
numa escada e filmava de cima; depois deitava no chão e mandava os outros
andarem por cima dele. Experimentaram filmar em baixa velocidade, para que a
imagem, quando projetada à toda velocidade normal, parecesse acelerada. Depois
fizeram o inverso, filmando em velocidade rápida e conseguindo o efeito de
câmera lenta.
Mojica começou a tentar
truques mais complexos: usando uma cartolina, ele tapava metade da lente,
expondo apenas uma parte do filme. Depois retrocedia o filme no cartucho e
filmava tapando a outra parte, conseguindo assim duas imagens distintas no
mesmo fotograma. Usando esta técnica, eles rodaram uma sequência em que João
parecia estar dividido ao meio: do lado esquerdo ele aparecia limpinho e, do
lado direito, todo coberto de lama. O método serviu também para fazer
sobreposição de imagens. Primeiro eles filmavam a rua, depois retrocediam o
filme e filmavam uma vaca ou um cavalo, com cuidado de enquadrar o bicho numa
posição que, quando gravado por cima da imagem da rua, parecesse estar no céu.
Uma vaca nos céus de Vila Anastácio!
Eram apenas experiências,
mas Mojica, orgulhoso, fazia questão de batizar cada uma delas com um nome
pomposo, como se fossem filmes de verdade. Nesse esquema, fizeram Os Três Leões, um filme infantil em que
Dinho, Jurandir e Ricardo, fantasiados de leões, tentavam convencer os humanos
a não maltratar os animais. Rodaram também o filme policial A Encruzilhada da Perdição e Feitiçaria, um documentário sobre um
centro espírita na Vila Anastácio, que pode ser considerado o primeiro filme de
horror de Mojica.
Publicado
originalmente em BARCINSKI, André & FINOTTI, Ivan. Maldito: a vida e o
cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. São Paulo: Editora 34, 1998.
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