sexta-feira, 29 de julho de 2022

Mojica early years, parte IV: 1951-1957: Primeiros Passos de Um Cineasta

           Capítulo 3: 1938-1950: Primeiros passos de um cineasta

 

Por André Barcinski e Ivan Finotti

 

Outubro de 1953: a primeira reportagem publicada sobre a Apolo, no jornal Última Hora

Em maio de 1951, dona Clementina, proprietária do Cine Santo Estevão, alugou o prédio para uma fábrica de ferragens e deixou os Marins sem teto. Por sorte a família conseguiu alugar um quarto na casa de uns amigos, os Perez, a poucos quarteirões do cinema. Antônio logo arrumou um emprego de motorista na refinadora de óleo Anderson Clayton e Carmen começou a comprar roupas em fábricas para vende-las de porta em porta. Mojica, por sua vez, continuava desocupado.

Quando precisava de dinheiro, Mojica pedia emprestado a Maria, filha de Jesus Perez, o amigo que estava hospedando sua família. Jesus ficava furioso com a filha, mas ela não conseguia resistir aos encantos do rapaz. Aliás, eram poucas meninas que resistiam a Mojica. Embora estivesse longe de ser um galã – tinha uma testa larga, queixo pontudo, orelhas de abano e uma boca enorme com dentes separados – Mojica vivia cercado de garotas, todas encantadas com seu carisma e seu papo envolvente. Enquanto os meninos de sua idade passavam as tardes disputando “rachas” nos campinhos de pelada do bairro, Mojica organizava peças e filmagens, e sempre convidava as meninas para participar. Era carinhoso e educado. Sua habilidade com as mulheres parecia ter sido herdada do pai, outro grande galanteador e mulherengo. Várias donas de casa de Vila Anastácio saracoteavam para o lado de Antônio, o que provocava brigas terríveis com Carmen.

Mojica viveu de brisa por um bom tempo, até que seu pai, cansado de tanta vagabundagem, arranjou-lhe um emprego de mensageiro na Anderson Clayton. Mas o jovem logo descobriu que o mundo de relógios de ponto não condizia com seu espírito livre e empreendedor. Pelos próximos nove meses, passaria por outros quatro empregos: foi auxiliar de mecânico, encanador, aprendiz de ourives e soldador de fábricas de projetores de cinema Centauro.

Em janeiro de 1953, prestes a completar 17 anos, Mojica foi admitido como aprendiz de maquinista na fábrica de fósforos Fiat Lux, bem perto de Vila Anastácio. Lá fez amizade com vários jovens do seu bairro. As meninas de sua seção divertiam-se com seus delírios cinematográficos e sonhos de grandeza. Já os rapazes consideravam-no um metido. O que não deixava de ser verdade: Mojica era folgado mesmo, se achava melhor que todo mundo, o bambambã do pedaço. Quando perguntavam sua profissão, respondia: “Diretor de cinema!”. Era mirrado, 46 quilos de puro osso, mas gostava de fazer o gênero galã. Depois do trabalho, vestia um esquisitíssimo terno de linho branco e andava pelo bairro com pinta de astro de Hollywood.

Tanta arrogância lhe causou vários contratempos: certo dia decidiu ir até o bairro vizinho, a Vila Jaguara, atrás de uma menina que estava paquerando. Vestiu um terninho puído, ajeitou o bigodinho ralo que começava a nascer e saiu andando por aquelas ruas do bairro com a fleuma de um milionário passeando pelos Champs Elysées. A moçada da Vila Jaguara, quando viu aquele folgado botando banca de que iria conquistar a princesinha do bairro, não perdeu tempo: deu-lhe uma tremenda surra e o jogo numa poça de lama fedida. Um rapaz, entretanto, não gostou da brincadeira e impediu da turma deixar Mojica pelado. Seu nome era Hélio Bolim.

Os dois tornaram-se grandes amigos. Hélio também gostava de cinema e ficou empolgado quando Mojica lhe contou sobre seu estúdio no galinheiro. Sua “equipe”, aliás, aumentava a cada dia: depois de muita insistência, algumas meninas da Fiat Lux resolveram arriscar uma visita ao estúdio. Com a pompa de um Cecil B. De Mille, Mojica mostrou as instalações e seu equipamento de filmagem – uma câmera à manivela e um tripé caindo aos pedaços. Elas ficaram tão impressionadas que concordaram até em ensaiar uma ceninha ou outra diante da câmera.

As moças começaram a tomar gosto pela coisa e logo passaram a frequentar o estúdio. Sua presença atraiu alguns rapazes da vizinhança. Somados aos frequentadores habituais, como João Português, Jurandir, Dinho e Abdul, já havia gente suficiente para montar uma equipe de cinema. Mojica teve então de formar uma cooperativa com a turma. Seu plano era simples: todos colaborariam com pequenas quantias e o dinheiro arrecadado seria usado para bancar a produção de filmes. E troca de colaborações, cada um poderia escolher sua função na equipe, fosse no elenco ou na parte técnica.

Em 1 de junho de 1953, ele reuniu a turma e propôs a criação de uma empresa, que batizou pomposamente de Companhia Cinematográfica Atlas. No primeiro dia foi assinada a ata de inauguração da produtora e recolhidas as primeiras cotas, no valor de 50 cruzeiros, equivalente ao salário de dois dias na Fiat Lux. Aos 17 anos, Mojica tornava-se chefe de um “estúdio cinematográfico”.

O primeiro filme da Atlas foi o curta-metragem A Mágica do Mágico, uma comédia sobre um mendigo – interpretado pelo próprio Mojica – que acha no lixo um pequeno livro que lhe dá poderes mágicos. O filme foi exibido em igrejas, circos e parques de diversão, com Mojica e sua trupe dublando ao vivo, com o uso de microfones, as falas dos personagens. Eles cobravam ingresso e investiam o dinheiro na compra de mais negativos. Foi assim que conseguiram rodar Sonho de Vagabundo, uma comédia chapliniana sobre a amizade entre um mendigo e um cachorro, e Almas Condenadas, uma história sobre bandidos que fogem para uma ilha deserta e acabam soterrados por uma erupção vulcânica (a turma chegou a construir uma maquete para fazer o vulcão, mas o resultado não foi bom e acabaram abandonando o filme pela metade).

As reuniões da Atlas começaram a tomar a feição de um verdadeiro culto. Com o objetivo de tornar o grupo cada vez mais unido, Mojica criou estranhos rituais, que deveriam ser seguidos à risca. Antes de cada ensaio, todos davam as mãos e entoavam o “grito de guerra” da Atlas: “Não tenhas receio do futuro, que o pessoal é de confiança!”.

Nessa época começaram a surgir as primeiras reportagens sobre o candidato a diretor. O jornal Última Hora de São Paulo, atraído pela história de um grupo de jovens obstinados fazendo filmes dentro de um galinheiro, publicou uma reportagem de página inteira, sob o título “Das fábricas para as câmeras – estrelas de mãos calejadas realizam cinema”, com fotos de toda a turma. Ao ser entrevistado, Mojica mentiu quanto à sua idade. Achou por bem dizer que tinha “vinte e poucos anos”, quando na verdade não passava dos 17. Afinal, raciocinou, quem o levaria a sério caso confessasse ser menor de idade? A partir daí, passou esconder sua data de nascimento verdadeira, 13 de março de 1936. A quem perguntasse, respondia ter nascido em 1929 ou 1931. Essa seria a primeira de uma série de pequenas mentiras que, ao longo dos anos, Mojica iria adicionando à sua biografia.

O resultado foi que, nos anos 60, quando ficou famoso e os jornais começaram a publicar sua história, ele havia criado um passado totalmente ficcional, que incluía sete casamentos, 24 filhos e filmes rodados ainda nos anos 40.

 

Mojica tinha tanta convicção que conseguiria vencer no cinema que pediu demissão da Fiat Lux em outubro de 1953, para dedicar-se somente ao estúdio. Naquele mesmo mês, anunciou seu próximo projeto, o longa Geração Maldita, sobre uma gangue de fugitivos da Justiça que se perde numa floresta. Ele tentou angariar a verba necessária, mas logo percebeu que não conseguiria. Fazer cinema de brincadeira num galinheiro era uma coisa, mas produzir um longa-metragem profissional fazendo uma “vaquinha” com os amigos era impossível. Só o aluguel do equipamento de 35mm custaria 12 mil cruzeiros, equivalente ao salário mensal de 25 operários. O fracasso da empreitada, no entanto, alertou Mojica para a necessidade de bolar outras formas de arrecadação.

Foi aí que ele teve a ideia de montar uma escola de cinema. Com dezenas de alunos pagando mensalidades, pensou, certamente teria dinheiro suficiente para fazer seus filmes e, de quebra, poderia usar os próprios alunos como atores, evitando assim ter de pagar um elenco. Empolgou-se com a ideia, mas sabia que precisaria de outro local para sua escola. Ninguém levaria a sério um professor que desse aulas dentro de um galinheiro.

Algumas semanas depois, Mojica recebeu uma carta de Francisco Neto, filho de um rico comerciante de ferro-velho. Francisco havia lido a reportagem na Última Hora e disse que gostaria de juntar-se a turma. Contou que sua família era dona de um galpão vazio na Freguesia do Ó, zona norte de São Paulo, que poderia servir de estúdio. Quando viu o lugar, Mojica quase caiu para trás: era um salão enorme, 20 metros de cumprimento por 10 de largura, com um pé direito de pelo menos 4 metros. Com a ajuda de Hélio Bolim – que a essa altura substituíra João Português como vice-líder da turma -, o estúdio foi transferido do galinheiro para o salão. Em seguida, decidiram rebatizar a empresa com o igualmente pomposo nome de Indústria Cinematográfica Apolo Ltda., e publicaram anúncios em jornais paulistas convidando jovens a se matricular na nova escolinha de atores.

Mojica criou um método para aulas de interpretação que, se não fazia Lee Strasberg e seu Actors Studio tremerem nas bases, pelo menos parecia agradar aos operários, motoristas de ônibus, vigias e outros humildes que passaram a frequentar seus cursos, e que pagavam mensalidades de 150 cruzeiros – uma semana de salário na fábrica – para ter aulas com “professores” que, poucos meses antes, ganhavam a vida embalando caixas de fósforo.

O método de Mojica procurava incentivar a improvisação: um dos seus testes prediletos era mandar um aluno até a rodoviária, fingindo-se de retirante perdido. Outro consistia em fazer seus pupilos imitarem expressões de expressões – medo, ansiedade, pavor, fúria etc. – e colou estas fotos nas paredes de estúdio. Os alunos tinham de observar as fotos e imitá-lo.

Isso era fichinha, perto dos chamados “testes de extravasamento” (um nome equivocado, já que seu objetivo principal era avaliar o autocontrole e a frieza dos alunos): Mojica pedia a um candidato que vestisse seu melhor terno; assim que o coitado aparecia, levava um balde de tinta na cabeça. Se reagisse, estaria reprovado. A prova das meninas era igualmente esdrúxula: alguns “professores” passavam a mão nas coxas das donzelas, que deveriam permanecer impassíveis. Arrepiou? Reprovou!

Para dar um toque mais sério ao curso, Mojica criou também os “testes de aptidão artística”, a que todos os candidatos a uma vaga na escola deveriam se submeter. Nesses testes ele dava notas a quesitos como “expressão artística”, “interpretação cênica” e “leitura de texto”, além de julgar a “presença de espírito” e até mesmo o “sistema nervoso” dos candidatos. O teste era seguido por um bizarro questionário, onde se perguntava, entre outras coisas, se o candidato sabia nadar, jogar futebol e lutar caratê.

Com a inauguração da Apolo, Mojica, que já tinha o nariz empinado, ficou mais convencido ainda. Passou a exigir que seus alunos o chamassem de “mestre” e mandou confeccionar cartões de visita com os dizeres: “José Mojica Marins – Diretor Cinematográfico”. Sua soberba continuou causando problemas: no início de 1954, foi à Aeronáutica apresentar-se ao serviço militar. Seu pai já havia conseguido um “pistolão” para que ele escapasse do quartel, mas sua falta de senso de ridículo quase pôs tudo a perder. Quando perguntaram a sua profissão, ele estufou o peito e disse: “diretor de cinema!”. Um major achou tantra graça que mandou Mojica andar de quatro na frente do pelotão, enquanto os oficiais se revezavam chutando sua bunda. Depois de levar duas dúzias de pontapés, ele implorou para ir ao banheiro e fugiu por uma janela. Só foi tirar o certificado de dispensa militar quinze anos depois, quando o governo anistiou todos que estavam em falta.

Mojica não se deixou abater pelo episódio humilhante e continuou determinado a fazer cinema. Pediu a seu amigo Francisco Neto, filho do comerciante de ferro-velho, que lhe apresentasse a alguns espanhóis abastados, para tentar convencê-los a investir na Apolo. A família de Francisco era muito influente na comunidade espanhola de São Paulo e costumava organizar festas que reuniam todo o “soçaite” hispânico.

Foi numa dessas festas, em junho de 1954, que Mojica bateu os olhos numa morenaça de parar o coração: olhos castanhos, uma boca vermelha como um morango e cabelos negros que caíam sobre um pescocinho fino. Seu nome era Patrocinia Mataran Alcaraz, mais conhecida como Rosita Soler, uma artista que fazia bastante sucesso cantando num programa de músicas espanholas da Rádio América e dançando flamenco no Teatro Odeon, no largo da Concórdia. Mojica ficou vidrado. Chegou perto da belezoca e apresentou-se como um famoso diretor de cinema. Rosita riu, soltou um gracejo e foi para o salão ser adulada. A falta de atenção dela mexeu com os brios de Mojica. Afinal, não era qualquer uma que podia esnobar o diretor de cinema mais famoso de Vila Anastácio!

 

Todos os esforços para arrancar dinheiro dos espanhóis ricos foram inúteis. Cansado de esperar, Mojica começou a preparar o primeiro longa-metragem da Apolo, Sentença de Deus, um dramalhão sobre uma família rica que se vê na miséria depois do suicídio de seu patriarca. Seu plano era rodar alguns minutos da fita e usar as cenas para atrair investidores. Nessa mesma época, matriculou-se na escola um jovem espanhol chamado Manoel Augusto Sobrado Pereira. Augusto havia chegado ao Brasil sete anos antes, vindo de Chantada, um vilarejo no noroeste da Espanha. Mojica simpatizou com ele: tinham praticamente a mesma idade, amavam a Espanha e eram mulherengos incorrigíveis. Passavam horas conversando sobre as “calientes” espanholas e gabando-se de suas conquistas amorosas. Foi durante um desses papos que Augusto disse conhecer a grande artista Rosita Soler.

- Me traz ela aqui que você não paga nem mensalidade – entusiasmou-se Mojica.

Não se sabe como, mas Augusto de fato conseguiu aproximar-se do pai de Rosita, João, e convenceu-o que sua filha deveria fazer um filme com Mojica. “Trata-se de um diretor de cinema extraordinário”, dizia Augusto, ousando a lábia que, anos depois, faria dele um dos maiores produtores de cinema de São Paulo. “José Mojica Marins é filho de um dos maiores toureiros espanhóis, e está prestes a rodar um grande filme, Sentença de Deus.  O papel principal parece que foi feito para Rosita!” O pai da donzela caiu na lorota e combinou de visitar o tal “gênio do cinema” no dia seguinte.

Mojica mandou seus alunos limparem o estúdio para receber as visitas e caprichou no visual: vestiu seu terno de linha branco e enfeitou-se com anéis e um lenço vermelho no bolso do paletó. Estava um verdadeiro dândi. Rosita chegou acompanhada da família inteira, inclusive irmãos e avós. Mojica, cheio de pompa, beijou a mão dela e de quem mais estivesse ali. Depois falou de seu filme, “uma história majestosa de paixão, ódio e vingança”, e foi empurrando o roteiro em suas mãos. “Decore a sua parte e volte daqui a uma semana para o teste. Dezenas de atrizes estão disputando o papel, mas sinto que você tem grandes chances”.

Era tudo armação, é claro. Ele daria o papel para Rosita de qualquer maneira, mas era sempre bom se fazer de difícil. A moça voltou para casa maravilhada com o profissionalismo do famoso diretor. Na semana seguinte, quando retornou ao estúdio, deu de cara com Francisco, e imediatamente lembrou que já conhecia Mojica da festa. Este safou-se com uma pérola, que adora repetir até hoje: “Nada acontece por acaso, tudo tem uma razão de ser”.

Rosita fez o teste e saiu-se maravilhosamente bem. Mas Mojica, ainda bancando o profissional, pediu que ela esperasse mais alguns dias pela resposta definitiva. Quando a moça já estava ficando louca de expectativa, ele a procurou e disse: “Parabéns o papel é seu!”. Depois convidou-a para sair e comemorar. Não demorou para que os dois começassem um namoro firme.

Alguns dias depois, Mojica estava passeando com Hélio Bolim pela avenida Duque de Caxias, no centro, quando viu uma mulher espetacular saindo de um carro e entrando num prédio chique. Perguntou ao porteiro quem era o avião. Tratava-se de Nancy Montez, o “broto louro de Cuba”, uma dançarina de rumba que estava se apresentando numa boate chique na rua Augusta. Mojica nunca tinha ouvido falar dela, mas resolveu ir até a boate checar os dotes da moça. Quando Nancy apareceu, com um shortinho minúsculo que deixava à mostra sua cinturinha fina e umas pernas de derreter iglu, Mojica não acreditou em tanta gostosura. Precisava ter aquela mulher em seu filme de qualquer maneira!

Ele passou alguns dias pensando numa maneira de impressionar a rumbeira, até que teve uma ideia maluca: levou Hélio Bolim e dez alunos para a porta do prédio da moça e ficou à espreita. Quando ela desceu, acompanhada de dois marmanjos, os alunos simularam uma pancadaria dos diabos na calçada. A briga assustou os cubanos, mas Hélio e Mojica surgiram do nada, gritando: “Parem com isso, seus vagabundos! Cuidado com a senhorita!”. A turma fingiu que se assustou com os gritos e saiu correndo.

Um dos homens agradeceu a ajuda. Era o pai de Nancy. Mojica apresentou-se e deu seu cartãozinho. Quando o sujeito leu “diretor de cinema”, comentou: “Que coincidência! Minha filha já trabalhou em alguns filmes!” Ao que Mojica retrucou: “Nada acontece por acaso, tudo tem uma razão de ser. O seu destino é trabalhar comigo!”. Nancy achou graça. Três dias depois, aceitaria um papel em Sentença de Deus.

 

As coisas estavam começando a dar certo. Mojica, impressionado com a lábia de Augusto, decidiu recompensá-lo e promoveu-o a gerente da Apolo. Com Augusto no comando, a escola cresceu: ele publicou anúncios em vários jornais, ampliou a divulgação e começou a organizar o caixa da empresa. Cada dia chegavam mais candidatos. Mojica e Augusto passaram a viver das mensalidades de seus pupilos e iniciaram uma venda de cotas para a produção de Sentença de Deus.

O sistema de cotas não era exclusivo de Mojica. A Apolo tinha diversas concorrentes, entre elas a Hércules, uma escola liderada pelo ator Renato Ferreira, que também costumava recolher colaborações de estudantes para financiar suas fitas. A escola de Ferreira durou vários anos, mas fechou as portas depois que ele torrou a grana dos alunos no faroeste Éramos Irmãos, tão ruim que logo foi apelidado de “Erramos, Irmãos!”.

Mojica e Augusto sabiam que as cotas não renderiam o suficiente para produzir Sentença de Deus. Precisariam atrair investidores de qualquer maneira. Passaram a ir juntos às festas chiques da comunidade espanhola, posando de magnatas do cinema e tentando persuadir algum ricaço a investir no filme. Era uma situação cômica: dois pobretões botando banca de milionários. Augusto estava tão duro, que não tinha nem onde morar. Nos primeiros meses de 1955, o pai de Mojica foi contratado para tomar conta de outro cinema, o Casa Verde, no bairro de mesmo nome. A família Marins mudou-se para o cinema e levou Augusto, que passou a dormir num quartinho atrás da tela.

Durante meses, Mojica e Augusto procuraram algum otário disposto a investir em Sentença de Deus. Enquanto isso, os alunos da Apolo começaram a se impacientar com a demora para o início das filmagens prometidas. Em maio de 1955, o aluno Francisco Rimonato, irritado porque Mojica se negara a fornecer recebido por uma cota de participação que um filme que custava a sair (e que, de fato, nunca sairia), contou o caso ao ator Milton Ribeiro, seu conhecido. Milton, famoso pelo sucesso internacional de O Cangaceiro, acionou o repórter Guarany Edu Gallo, do jornal Equipe Artística, e foi com ele ao estúdio da Apolo.

Gallio e Ribeiro pressionaram Mojica e ele começou a mentir a torto e a direito: primeiro disse que Tony Rabatoni, grande fotógrafo da Vera Cruz, faria a fotografia de seu novo filme. Depois garantiu que Antarctica, Brahma e Mesbla já haviam liberado a verba da nova produção da Apolo. Para finalizar, jurou que era “primo em segundo grau” do famoso José Mojica, o padre cantante.

A reportagem foi massacrante: “Milton Ribeiro desmarcara chantagistas”, ou o “Charle Chaplin da Freguesia do Ó”, como escreveu Gallo, foi chamado de cabotino, vigarista e ignorante. O repórter classificou a Apolo de “arapuca para incautos” e descreveu o estúdio como “um barracão sombrio, sórdido, destituído de qualquer ventilação, e onde falta água até para beber”. Gallo zombou ainda do português incorreto de Mojica (“Mojica...nos ‘expricou’ tudo”) e Milton Ribeiro concluiu: “Trata-se de um caso de psiquiatra!”. Para ilustrar a ignorância de Mojica, o repórter transcreveu um de seus poemas, que adornava uma parede do estúdio:

Quando em apuros você cair,

Não deixes que por só se tomem,

Procure ajuda pedir,

Pois, para isso, eres homem.

 

Mojica ficou desesperado: se o pai de Rosita lesse aquele jornal, nunca deixaria sua filha participar do filme!

- Só há uma solução: vamos comprar todos os exemplares!

O Equipe Artística era um jornal semanas, com uma tiragem de 5 mil exemplares. Mojica mandou reunir seus alunos, pegou metade da grana arrecadada com as cotas de Sentença de Deus e distribuiu o dinheiro entre o pessoal.

- Quero que vocês comprem todos os exemplares do Equipe Artística, entenderam? Não pode sobrar nenhum na banca!

Em poucas horas a turma comprou mais de 3 mil exemplares. Mojica deu um giro pela cidade e respirou aliviado quando não encontrou um jornal á venda.

Na manhã seguinte, o diretor do jornal, Wilson Brasil, quase soltou um rojão de felicidade ao ser informado de sua vendagem extraordinária. Nunca, em seus cinco anos de existência, o Equipe Artística havia vendido tanto. Ficou tão satisfeito que mandou reimprimir a edição. Quando Mojica viu a nova edição, não teve forças – nem dinheiro – para comprar tudo de novo. Era um círculo vicioso. Então tomou coragem, foi à redação e ajoelhou-se na frente do repórter Guarany Edu Gallo, implorando para que ele parasse com aqueles artigos. Mojica abriu seu coração: disse que não era picareta, que estava com medo de ser assassinado pelos pais dos alunos, e jurou que iria procurar um estúdio adequado. Mas Gallo só se comoveu mesmo quando ele contou sobre a compra dos exemplares. No fim, toda aquela choradeira não deu em nada: o jornal foi publicado e ninguém percebeu.

 

 

Mojica e Augusto continuaram arrancando cada centavo que podiam dos alunos. Em junho de 1955, haviam arrecadado um bom dinheiro. Ainda não era o suficiente para pagar o filme todo, mas pelo menos daria para os primeiros dias. Mojica decidiu começar logo a filmar Sentença de Deus e reservou para si mesmo o papel principal, o de um rapaz íntegro que, ao ver sua família perder toda a sua fortuna, acaba se envolvendo com marginais. Rosita faria o papel de uma dançarina de cabaré.

A filmagem seguia aos solavancos: eles rodavam por um ou dois dias e depois paravam por um mês, até conseguirem dinheiro para as cenas seguintes. Enquanto isso, as aulas na Apolo continuavam a todo vapor. A escola crescia e o galpão na Freguesia do Ó logo ficou pequeno para abrigar tantos alunos. Mojica transferiu a escola para um salão maior na rua Haddock Lobo, no Jardim Paulista, e depois para uma sobreloja na rua Frederico Abranches, 104, no centro.

No fim de 1955, ele teve a ideia de organizar um espetáculo de danças espanholas, aproveitando a fama de Rosita. Falou de se projeto para o chefe de um grupo de bailado espanhol do Teatro Odeon, que sugeriu contratar também o cast de cantores da Rádio América. A coisa começava a se complicar: o que deveria ser um pequeno show de flamenco estava se transformando numa superprodução. Mojica, impulsivo e inexperiente, convenceu seus alunos a organizar uma “vaquinha” para financiar o espetáculo:

         - Se quisermos ganhar dinheiro, temos que arriscar! Com o dinheiro desse show podemos terminar Sentença de Deus!

         O pessoal se empolgou. Três alunos chegaram a hipotecar suas casas para ajudar na empreitada. A essa altura o espetáculo mais parecia um musical da Broadway: havia mais de cem artistas envolvidos, entre dançarinos, músicos e coreógrafos. Mojica, num ataque de megalomania, resolveu alugar um estádio de futebol em Sorocaba com capacidade para 7 mil pessoas, e agendou o espetáculo – batizado de “Um Fim de Semana na Espanha” – para os dias 24 e 25 de dezembro, em pleno Natal.

         A trupe chegou em Sorocaba quatro dias antes do show, para ter tempo de ensaiar e dar os ajustes finais. Os dançarinos e cantores ficaram hospedados em hotéis, tudo por conta da Apolo. Mojica, que nunca havia dançado na vida, conseguiu uma ridícula fantasia de cigano e coreografou um pas de deux com sua namorada Rosita. Estava realmente convencido de que o show seria um sucesso.

         Os sorocabanos, no entanto, não se animaram a sair na noite de Natal para ver Mojica rodopiando pelo palco. No dia 24, estreia de “Um Fim de Semana na Espanha”, apenas setenta pessoas pagaram ingresso. Mojica tratou de tranquilizar a turma:

         - Calma, gente! O que deve ter acontecido é que o pessoal preferiu passar o Natal com suas famílias. Mas amanhã isso aqui vai ficar lotado!
         No dia seguinte, havia mais dançarinos no palco do que espectadores nas arquibancadas. Menos de trinta bilhetes foram vendidos. Mojica e seus alunos voltaram para São Paulo numa pindaíba de dar pena. Alguns tiveram de fugir do hotel pela janela para não pagar a diária.

 

         Com esse rombo nas finanças da Apolo, estava ficando cada vez mais difícil filmar Sentença de Deus. Numa manobra desesperada, Mojica inventou de vender ingressos antecipados para o filme. A pessoa comprava o bilhete e ficaria esperando até que a fita estreasse. Apesar do absurdo da ideia, os alunos conseguiram vender 2 mil bilhetes para parentes e amigos. Mas o empreendimento acabou causando uma tremenda confusão, quando estreou em São Paulo um filme americano chamado A Última Sentença. O pessoal achou que era o mesmo filme e fez fila na porta do cinema. Depois de barrados pelo gerente, chamaram a polícia e denunciaram Mojica, que teve que devolver o dinheiro.

         Sentença de Deus parecia mesmo destinado ao fracasso: no início de 1956, uma das atrizes do filme, Conchita Espanhol, morreu afogada numa piscina dentro dos estúdios da Vera Cruz. Semanas mais tarde, Nancy Montez, o “broto louro de Cuba”, mudou-se para o Rio de Janeiro e abandonou as filmagens. Mojica sabia que não teria condições de terminar o filme sem as duas atrizes. Para compensar um pouco sua frustração, procurou uma conhecida, a escritora Aldenoura de Sá Porto – autora feminista, elogiada até por Monteiro Lobato – e pediu que ela escrevesse uma adaptação da história de Sentença de Deus. O livro chegou às lojas no fim de 1956, com uma bela foto colorida na capa, mostrando Mojica carregando em seus braços Nancy Montez, que aquela altura deveria estar sacudindo os quadros em boates cariocas.

         A depressão tomou conta da Apolo. Para evitar debanda dos alunos, Mojica iniciou outro filme, ironicamente batizado de No Auge do Desespero. Seria uma fita bem mais simples, sobre três amigos que ficam presos numa montanha após um desabamento. No dia da filmagem, no entanto, desabou um temporal pavoroso que derrubou todo o cenário. O projeto foi engavetado.

         No meio de tanta desgraça, pelo menos uma coisa boa aconteceu para Mojica: depois de dois anos de namoro, Rosita finalmente concordou em casar-se com ele. Quem não gostou nada da notícia foi o pai dela, João, que a essa altura já sabia que ele era um pé-rapado: “Você só casa com minha filha se eu estiver morto e enterrado”.

         Para sorte de Mojica, os irmãos e a mãe de Rosita, dona Maria, simpatizavam muito com ele, e concordaram em armar um complicadíssimo cambalacho para convencer o patriarca. Certa manhã, Rosita saiu de casa dizendo que ia comprar pão e se mandou para a casa da avó. João, supondo que a filha estivesse com Mojica, foi à casa dele buscá-lo. Antônio atendeu a porta e disse: “João, meu filho fugiu com Rosita para a Argentina e disse que só volta depois que você consentir com o casamento”. Muito a contragosto, o coroa, mas, para provar seu desagrado, nem compareceu ao casamento.

         Mojica e Rosita alugaram uma casinha em frente ao Cine Casa Verde, na praça do Centenário, e marcaram a cerimônia na igreja para o dia 23 de fevereiro de 1957. Duas horas antes da festa, Mojica foi com o amigo Francisco Neto a um alfaiate no Bom Retiro biscar o belo terno preto que havia encomendado para o casório. Enquanto provava o terno, caiu uma tempestade que inundou o rio Tietê e alagou o bairro todo.

         Francisco sugeriu esperarem um pouco até a água descesse, mas Mojica, nervoso, resolveu arriscar. Os dois entraram no velho Mercury-Sedan de “seu” Antônio e partiram para a igreja. Cinco quarteirões depois, deram de frente com um lago que havia se formado numa esquina. O calhambeque parou no meio da poça e não pegou mais. Desesperado, Mojica viu a lama entrando pelas portas. Teve de sair do carro, todo coberto de barro, e voltou os cinco quarteirões a pé até o alfaiate, enquanto Francisco procurava ajudar para rebocar o Mercury Sedan. Mojica convenceu o alfaiate a emprestar-lhe outro terno e lavou-se numa pia. Meia hora depois, Francisco apareceu. Havia conseguido rebocar o carro até um mecânico, que secou o motor e ainda deu uma rápida lavada nos bancos, sem no entanto tirar o futum de lama. Os dois entraram novamente na caranga e chegaram à igreja com uma hora de atraso. Mojica tinha barro nas orelhas e cheirava a cachorro molhado. O casamento já começava mal...

 

Publicado originalmente em BARCINSKI, André & FINOTTI, Ivan. Maldito: a vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. São Paulo: Editora 34, 1998.

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