segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Mojica early years, parte V: 1958-1963: A Sina de um Aventureiro

 

Capítulo 4: 1958-1963: A Sina de Um Aventureiro

 

         Por André Barcinski e Ivan Finotti

 

         O fracasso de Sentença de Deus e No Auge do Desespero abalou a confiança de Mojica. Ele já não estava tão certo de que conseguiria fazer um longa-metragem. Foi quando Augusto veio com a ideia de filmar um bangue-bangue, gênero muito popular na época. Mojica gostou da sugestão e bolou a história de Passos da Vingança, um faroeste sobre um pistoleiro que, depois de encontrar o amor e se regenerar, tem a mulher assassinada por bandidos e parte para acertar as contas com os matadores. O orçamento do filme ficou em 4 milhões de cruzeiros (equivalente, na época, 25 mil dólares). Mojica, esperto, escreveu dezenas de papéis para pode incluir o maior número possível de alunos no elenco e, assim, conseguiu vender 1,5 milhão de cruzeiros em cotas para a turma. Ainda faltavam 2,5 milhões.

         A salvação foi a namorada de Augusto, Nilza de Lima, uma quarentona enxuta e cheia da grana. Nilza havia chegado à escola um ano antes, disposta a tudo para tornar-se atriz. Apesar da diferença de idade (ela tinha 40 e ele, 22), os dois se apaixonaram e logo estava morando juntos num bom apartamento no centro da cidade. Além de bonita, Nilza tinha um caráter forte e obstinado, moldado por uma vida de sacrifícios. Ela nascera numa pequena cidade de Goiás, Catalão, um verdadeiro faroeste onde brigas eram resolvidas à bala. Aos 12 anos, fora obrigada pela família a casar-se com um caubói da região, que morreu de pneumonia três semanas depois. Antes de completar 19 anos, já era viúva três vezes e havia acumulado heranças dos três maridos mortos.

         Nilza topou financiar Passos da Vingança, com duas condições: primeiro, que o título fosse mudado para algo mais romântico e, segundo que seu irmão, Acácio de Lima, ficasse com o papel principal. Ela sempre tentara ajustar o irmão, um bom vivant que vivia pulando de emprego em emprego. Quem sabe no cinema não acabaria se revelando um talento? Acácio era um sujeito grande, pintoso e, segundo Nilza, perfeito para estrelar um faroeste, já que aprendera a montar a cavalo nas fazendas da família, em Goiás. Mojica sequer conhecia Acácio. Não sabia se era loiro ou moreno, alto ou baixo, caolho ou perneta. Não importava. Se Nilza colocasse a grana, Acácio seria o ator principal.

         O dinheiro saiu e Acácio ficou com o papel de Jaime, o bandido regenerado. A aluna Shirley Alves foi escalada para interpretar sua mulher, Dorinha. A atriz Ruth Ferreira, da Apolo, interpretaria Rosária, amiga de Dorinha, e Augusto Pereira faria seu marido, o capitão Osvaldo. O filme foi rebatizado com um título escolhido por Nilza: A Sina do Aventureiro.

         O próximo passo de Mojica seria contratar uma equipe. Se até então ele havia usado basicamente o pessoal da Apolo, agora, quando finalmente iniciava seu tão sonhado longa-metragem, precisaria de profissionais para lidar com a parte técnica. Os primeiros técnicos convidados foram o diretor de fotografia Honório Marin e o assistente de câmera Corintho Giaccheri, dois veteranos do cinema paulista. Eles gostaram da história e pediram para ler o roteiro. Assim que leram as primeiras linhas, no entanto, desistiram:

         - Isso aqui não é um roteiro, Mojica! – disse Honório. – São só uns rabiscos! Cadê a divisão de planos? Cadê os diálogos?

         Ele tinha razão. Aquilo realmente não era um roteiro.

         Mojica havia, sim, pensado numa história, nos diálogos e até nos movimentos de câmera, mas o problema é que guardara tudo em sua cabeça. O que estava ali nas mãos de Honório não era um roteiro normal, mas o que Mojica acreditava ser um roteiro. E só ele mesmo poderia achar algum sentido naqueles rabiscos incompreensíveis. Mojica não sabia o que era um plano americano ou um contré-plongée; plano sequência para ele era grego. Seus roteiros não tinham diálogos, apenas instruções curtas obre cada cena:

         Cena 1: Jaime rouba o banco

         Cena 2: Polícia persegue Jaime.

         E só. Todo o resto – diálogos, posicionamento de câmera, movimentação dos atores – era improvisado na hora. Mojica trabalhava assim por absoluto desconhecimento de outro método. Era assim que ele fazia desde adolescente. Nunca havia tido uma aula ou alguém que lhe explicasse as técnicas de produção de filmes. Aprendera tudo por conta própria, e só sabia fazer as coisas a seu modo.

         Honório e Corintho agradeceram o convite, mas disseram que, sem um roteiro definido, não poderiam se despencar até o interior para filmar. Mojica tratou de procurar algum roteirista que pudesse ajudá-lo. Acabou conhecendo Luís Sérgio Person, um jovem que despontava como uma das boas promessas do cinema paulista. Person já tinha certa experiência em cinema, tendo escrito o roteiro do longa-metragem Casei-me com Um Xavante, de Alfredo Palácio e dirigido teleteatros para as TVs Tupi e Record.

         Mojica contou seu problema e Person concordou em ajudá-lo. Este chamou então seu colaborador Glauco Mirko Laurelli e juntos escreveram o roteiro de A Sina do Aventureiro, dando forma aos confusos manuscritos de Mojica. Person só exigiu que se nome não aparecesse nos créditos. Disse que estava envolvido em outro projeto e que não queria irritar seu produtor. Na verdade, achava que o filme seria um desastre e temia ver seu nome associado à Sina.

 

         Com roteiro em mãos, Mojica convenceu Honório e Corintho a aceitar o trabalho. Honório, dono de uma loja de aluguel de equipamento cinematográfico, propôs usar na filmagem uma nova câmera que havia adquirido, uma Cinemascope. A câmera produzia imagens mais “compridas” que as câmeras normais, ou seja, com uma diferença maior entre o comprimento e a largura. Enquanto as imagens produzidas por câmeras convencionais tinham uma relação de 1,66 x 1 (ou seja, uma base 66% maior que a altura), o Cinemascope – no Brasil batizado de “Gigantela” – gravara imagens na proporção de 2,35 x 1 (com uma base 2,35 vezes maior que a altura). A Sina do Aventureiro foi o primeiro filme brasileiro rodado em Cinemascope.

         Tudo que Mojica precisava agora era de um local para as filmagens. Augusto Pereira lembrou-se de um amigo, Ismar Jacintho, dono de uma fazenda perto de São José da Bela Vista, uma pequena cidade a 400 quilômetros ao norte de São Paulo. Ismar gostava de cinema e permitiu que eles rodassem o filme em sua fazenda. Era o lugar ideal para um bangue-bangue, com paisagens lindas, vegetação abundante e nenhum indício de modernidade. A região realmente parecia ter parado no tempo, São José da Bela Vista não passava um quarteirão de casas, com as indefectíveis praça e igreja para completar. Bois passeavam pelo meio da cidade; os moradores usavam chapéu de vaqueiro e andavam a cavalo pelas ruas de terra. Alguns ainda carregavam armas na cintura.

         A cidadezinha tinha um prefeito, mas quem mandava mesmo era o padre. Augusto e Mojica sabiam que a primeira regra para uma convivência pacífica em cidades como aquela era fazer amizade com o padre. Assim que chegaram, foram à igreja bajular o sacerdote e pedir sua bênção para o filme. O sujeito, mal-humorado, já foi avisando que não gostava “desse tal de cinema”, e perguntou se o filme era “próprio para famílias cristãs”. Mojica tentou tranquilizá-lo, dizendo que a fita contava “a história de um homem que encontra o caminho da verdade quando aceita Deus”. Só esqueceu de mencionar as cenas de bebedeira no bar e as atrizes que tomariam banho de cachoeira peladas...

 

         A primeira cena a ser rodada era justamente a do bar. Nesta sequência, a aluna Tônia Eletra cantava uma canção sensual, enquanto dançava, toda fogosa e com os ombros de fora, em volta das mesas. Mojica e Augusto recrutaram vários moradores para atuar como figurantes. Só não contavam com a ira das esposas que, ao verem Tônia rebolando nas barbas de seus maridos, ameaçaram interromper a filmagem as pauladas:

         - Prostituta! Vai dançar assim pros seus negos lá na capital!

         O padre ficou horrorizado. Então era esse o tal “filme cristão” que Mojica havia prometido? Se fosse para continuar com aquela pouca vergonha, ele não permitiria a filmagem. Augusto desculpou-se e disse que a cena era pesada assim porque mostrava “o baixo nível dos homens que ainda não haviam encontrado Deus”.

         Depois desse incidente. Augusto e Mojica redobraram os cuidados para não ofender ninguém. A cena do banho de cachoeira de Shirley Alves (Dorinha) e Ruth Ferreira (Rosária) foi filmada a vários quilômetros da cidade, longe da vista dos curiosos. Mas a notícia da cena erótica acabou se espalhando. Quando o povo soube que as duas haviam rodado cenas nuas em pelo, houve uma comoção: as mulheres queriam matá-las, enquanto os homens da cidade tomaram um súbito interesse pela sétima arte.

         Apesar de alguns problemas com as esposas ciumentas, Mojica e o resto da equipe foram muito bem tratados pela população. Os moradores de São José estavam felicíssimos e orgulhosos com a presença de “artistas da capital” e não tinham ideia de que na verdade aquela produção era uma pobreza só. A equipe de Sina era tão pequena, que cada um teve de assumir diversas funções: Mojica não só dirigiu e atuou no filme, como também trabalhou como maquiador, carregador de equipamento, cenógrafo, figurinista, cabelereiro e eletricista. Falou gente até para completar o elenco, o que o obrigou a interpretar dois papéis: no início do filme ele aparece como um coveiro e depois faz um dos bandoleiros que matam Dorinha.

         O improviso foi uma constante durante a filmagem. Certa tarde, estavam rodando uma cena romântica na qual Acácio e Shirley se beijavam embaixo de uma árvore, quando caiu uma tremenda tempestade. Mojica decidiu cancelar a filmagem e fazer os closes dos atores no dia seguinte. Só que, no meio da noite, um raio destruiu a tal árvore. Quando a equipe voltou ao local, havia apenas um pedaço de tronco chamuscado. Mojica teve de finalizar a cena semanas depois, numa praça na Casa Verde, em São Paulo. O beijo, que começaram em São José da Bela Vista, só foi terminar a 400 quilômetros dali, numa praça movimentada.

 

         Em São José, a equipe hospedada numa pensão furreca, cinco pessoas espremidas em quartos onde só cabiam duas. O lugar tinha teto de zinco e, com o sol causticante que castigava a região, o interior da casa se transformava numa verdadeira estufa, obrigando todos a dormir de janela aberta. O problema é que, bem atrás da pensão, havia um matagal de onde saia todo tipo de animal e inseto. Logo na primeira noite, Mojica foi acordado por um ataque de morcegos. Dias depois, uma nuvem de gafanhotos entrou pelas janelas e a equipe ficou a noite toda de toalha na mão, espantando os bichos.

         Estes não foram os únicos acidentes zoológicos enfrentados pela turma: para filmar uma cena em que bois atravessavam uma pequena ponte sobre um rio, Mojica pediu emprestado ao fazendeiro Ismar trinta cabeças de gado. O sujeito deve ter entendido trezentas porque, no dia marcado, os peões da fazenda trouxeram uma verdadeira manada. A equipe de filmagem ficou sentada no parapeito da ponte, com a câmera protegida por um jirau, só esperando os bois. Ninguém percebeu o excesso de bovinos, já que os animais estavam atrás de uma curva na estrada, a 100 metros de distância. Assim que Mojica deu um sinal para que os peões soltassem o gado, ouviu-se um estrondo. Era a manada enlouquecida. Quando viram aquela boiada toda correndo em direção à ponte, todos se jogaram no rio, inclusive o cinegrafista.

         Outro exemplo da precariedade da produção foi o acidente que feriu o assistente de câmera Corintho, marido da atriz Shirley Alves. Durante o combate final entre Jaime (Acácio Lima) e o bandido Xavier (Amides Martines), Mojica quis filmar uma cena na qual Jaime disparava seu revólver em direção à câmera. Sua ideia era mostrar um close da arma disparando o tiro fatal contra o bandoleiro. Era uma cena muito perigosa, já que Corintho, encarregado de manejar a câmera, ficaria na linha de fogo.

         A equipe não dispunha de nenhum técnico em efeitos especiais e tampouco de pistolas de mentirinha que pudessem ser usadas. Teriam de usar arma de verdade, com balas de festim. Mojica sabia que tiros de festim podiam machucar, por causa dos pedaços de chumbo que ficam no cano e que são projetados junto com a cápsula. Ele mandou Corintho vestir uma proteção de couro que o cobria dois pés ao pescoço, e orientou Acácio a disparar na direção do peito do cinegrafista.

         Acácio, no entanto, estava muito nervoso por causa da cena. Sua mão tremia feito gelatina. Resolveu tomar uma pinga para se acalmar, mas exagerou na dose e ficou pior ainda. Quando Mojica gritou “ação”, Acácio balançou a mão e o tiro atingiu em cheio o rosto de Corintho, que caiu no chão com as bochechas todas furadas. O pessoal botou-o numa perua e correu para o dentista. É que o dentista era também vendedor de armarinho, secos e molhados, farmacêutico, barbeiro, alfaiate e médico. Ninguém sabia se ele tinha o consultório dentro do armazém ou o armazém dentro do consultório. O sujeito olhou para o ferido e disse que era melhor esperar pelo ônibus e levá-lo para Franca. Corintho esbravejou:

         - Não dá tempo! Se a pólvora esfriar, vai grudar no meu rosto e não sai mais! Pega a navalha e o iodo vai tirando minha pele!

         O médico-dentista-barbeiro obedeceu: com a navalha, ia arrancando a pele, enquanto queimava os ferimentos com iodo. As bochechas de Corintho ficaram em carne viva. Shirley olhou para o rosto do marido e desmaiou na hora. Nem Mojica aguentou assistir àquela cena torturante. Corintho ficou com tantas marcas no rosto que, daquele dia em diante, nunca mais fez a barba.

        

         Mesmo com todos os sustos e contratempos, conseguiram terminar o filme. Mojica estava radiante. Fazia quatro anos que ele iniciara seu primeiro longa-metragem, Sentença de Deus e agora, depois de dois projetos fracassados, finalmente teria um filme lançado em circuito. Seria o seu verdadeiro batismo como diretor. Agora ninguém mais poderia tomá-lo por um sonhador ingênuo. Era um cineasta.

         Em 19 de dezembro de 1958, A Sina do Aventureiro estreou no Cine Tangará, em Santo André. Pelos meses seguinte, Mojica e Augusto excursionaram com a fita pelo interior paulista – Franca, Ribeirão Preto, Piracicaba – e, em seguida, foram até Goiânia, onde Nilza de Lima fez uma sessão especial para seus parentes. O filme só viria a estrear em São Paulo em 19 de agosto de 1959, no Cine Coral, no centro.

         A reação da crítica foi morna. Se por um lado a inexperiência de Mojica realmente transparecia na tela, por outro ficava evidente que ele tinha cacife para voos mais altos. As cenas de ação, especialmente do assassinato de estilo cru e direto que Mojica aperfeiçoaria anos depois nos filmes de Zé do Caixão. A violência do filme desagradou o Serviço de Censura de Diversões Públicas, órgão responsável pela classificação etária para filmes. O SCDP proibiu A Sina para menores de 18 anos, prejudicando enormemente suas chances na bilheteria. Foi a primeira de muitas decepções que Mojica teria com a Censura.

         No jornal Diário da Manhã de Ribeirão Preto, o crítico Osvaldo Brito ficou impressionado com a brutalidade do filme e reclamou de alguns detalhes técnicos, mas encerrou sua avaliação com elogios à equipe:

 

         Há cenas de explosiva e impressionante violência, entremeadas de bucólicas paisagens aproveitando a cinegrafista as silhuetas bem-situadas, nos horizontes, reminiscências, talvez, do trabalho famoso de O Cangaceiro, até hoje o filme-padrão no gênero, dentro das possibilidades brasileira (...)

         Uma certa descontinuidade e alguns cortes súbitos, além de outros mal orientados, não prejudicam o valor intrínseco da película. A Sina do Aventureiro é legítimo filme do gênero “western”, relativo á gente dessas plagas. Não é super-filme, nem devo alinhá-lo entre os melhores nacionais. Agrada, no entanto, porque tem algo a mostrar e revela o ingente e desmedido esforço de um grupo bem-intencionado, do qual se espera muito mais, em breve.

 

         Já o crítico da Folha da Tarde, B.J. Duarte não foi tão leniente com o amadorismo de Mojica:

 

         O resultado é precário, a surdir inexperiência e improvisação a cada metro da película projetada, a denunciar em todos os setores da criação cinematográfica aquela falta de preparo técnico e intelectual que vem caracterizando o cinema brasileiro (...)

         Não duvido um só instante das boas intenções de José Mojica Marins, das de seus companheiros de equipe, das de quantas participaram de sua realização (...) mas, apenas com sinceridade, fé e confiança em si próprio, não se faz cinema, não se faz literatura, nenhuma arte se realiza plenamente. É um mister um aprendizado geral, é necessária a cultura do espírito, impõe-se o conhecimento da técnica, sem o que nunca se fará nada, a não ser obras medíocres e vacilantes.

 

         A Sina do Aventureiro não foi um estouro de bilheteria, mas também não decepcionou. Ficou três semanas no Coral e depois correu o circuito suburbano com relativo sucesso durante o primeiro semestre de 1960. Mojica bolou alguns espertíssimos truques de divulgação, que usaria pelo resto da vida: seu preferido era mandar alunos para as filas de outros filmes, com a ordem de elogiar Sina: “Você já viu aquela fita que tá no Coral? Um bangue-bangue de arrebentar!”. Ele também fez amizade com alguns donos de cinema e passou a organizar sessões especiais do filme, que batizou de “A Sina do Aventureiro com atores ao vivo”. O espectador pagava um ingresso, assistia ao filme, e ainda podia ver a atriz Tônia Eletra dançando rumba de biquinho. Tônia, uma gordinha sensual e desinibida, subia ao palco de saia, blusa e sapatos. Daí Mojica chamava os marmanjos da plateia para ir tirando sua roupa enquanto ela sacolejava as cadeiras. Foi um sucesso.

        

         Com o lançamento de Sina, a Apolo prosperou. O cursinho de atores já tinha quase duzentos alunos. Mas a concorrência também havia se fortalecido: várias escolas de interpretação haviam sido inauguradas nos últimos meses, iniciando uma verdadeira batalha por alunos. Mas a concorrência também havia se fortalecido: várias escolas de interpretação haviam sido inauguradas nos últimos meses, iniciando uma verdadeira batalha por alunos. Um dos rivais de Mojica, Hélio Menezes, começou a oferecer dinheiro para tirar os melhores atores da Apolo. Seu primeiro convite foi para a Tônia Eletra, a gordinha sexy, mas ela preferiu ficar com Mojica (infelizmente, a promissa carreira de Tônia chegaria ao fim um ano depois, quando ela morreu afogada durante um banho de mar em Santos). Para contra-atacar, Mojica promoveu alguns de seus melhores alunos a “caça-talentos”, espécie de olheiros que deveriam andar pela cidade atrás de novos alunos para a escola. O trabalho dos “caça-talentos” não se limitava a descobrir jovens de inclinação artística: eles também precisavam checar se os pretendentes a uma vaga na escola tinham condições de pagar as mensalidades.

         Foi um desses olheiros que trouxe Mário Lima, um nordestino conhecido nos salões de baile do subúrbio por sua habilidade na dança do “brasileirinho”. Em seu teste de admissão para a escola, Mário surpreendeu Mojica com uma atuação convincente: quando foi instruído a simular uma briga com outro aluno, partiu para cima do sujeito com tanta convicção que teve de ser contido para não o surrar. Mojica gostou de Mário e logo se tornaram bons amigos.

         Outra bela “aquisição” da Apolo foi Maria José do Prado, uma mineira de corpo escultural. Mojica – casado há menos de dois anos com a igualmente bela Rosita – não resistiu à morenice brejeira da moça e passou a galanteá-la dia após dia, até que ela também caiu de amores. Não era a primeira vez que Mojica traía Rosita: com tanta mulher dando sopa na Apolo, ele trocava de namorada quase toda semana. Maria, no entanto, foi seu primeiro caso mais sério e duradouro.

         No fim de 1960, alguns alunos vieram com a ideia de fazer uma revista sobre cinema. Mojica viu no projeto uma boa oportunidade não só de faturar um trocado, mas também de divulgar a Apolo. Em abril do ano seguinte, saía o primeiro número de A Voz do Cinema, trazendo uma fotonovela com cenas de A Sina do Aventureiro e diversos artigos sobre a escola. Como todos os outros projetos da Apolo, a revista pecava pelo amadorismo, mas transmitia uma empolgação fora do comum. Mojica havia conseguido contagiar seus alunos com a ideia de que todos poderiam ser estrelas, mesmo que tivessem de fabricar a própria celebridade. Sua teoria era simples: para que esperar a fama bater à sua porta, quando você pode ficar famoso por conta própria? Com isso em mente, eles fizeram de A Voz do Cinema um deslavado veículo de autopromoção, onde todos eram tratados como astros.

         É claro que ninguém se promoveu mais que Mojica. Ele assumiu o cargo de editor e passou a escrever todos os artigos da revista, além de poemas, contos e ensaios, cada um pior que o outro (numa comovente prova de modéstia, assinou uma coluna intitulada “O Mundo Fabuloso de Minha Imaginação”). Sua falta de intimidade com o mundo das letras resultou em diversas barbaridades gramaticais. Logo na capa do primeiro número, já cometia o primeiro pecado:

         A única revista de fotonovela, que apresenta,

filmes dramáticos, selecionados inteiramente nacionais.

 

         Na edição seguinte, quando um leitor reclamou do alto preço da revista (60 cruzeiros, ou dois ingressos de cinema), Mojica respondeu com uma surreal lição de economia: “Em relação à nossa tiragem, consumimos 30% de papel sobre o preço do exemplar desta revista, 50% de clicheria, 20% em trabalhos gráficos, 30% no trabalho fotográfico, 30% na execução de seu conteúdo e 40% na sua colocação”.

         Mas nada se comparava a seus poemas. O melhor deles, adequadamente intitulado “O eterno sono”, dizia:

        

         Sinto-me o homem mais poderoso

         De uma força diferente sem igual

         Torno-me nesse instante glorioso

         Da imensa terra, o mais feliz mortal

 

         Teria também força para barrar

         O próprio tempo que certo caminha

         E em voz alta para o mundo gritar

         Que eres minha, somente minha

 

         Estou no feitiço da fascinação

         Seus lábios para mim é um tormento

         Que me leva a vida e obsessão

         Mas deixe-me viver este momento

        

         De repente acordo, era um sonho

         De perdê-la não haverá perigo

         Voltarei a um mundo belo e risonho

         No descanso do eterno sono contigo

 

A Voz do Cinema tinha uma tiragem de 10 mil exemplares, distribuídos em bancas pelos próprios alunos da Apolo. O grupo chegou a vender assinaturas anuais de doze números, mas a revista foi um fracasso de vendas e só durou quatro edições. Outro motivo que colaborou para seu cancelamento foi o súbito desinteresse de Mojica, cuja vida pessoal sofrera uma tremenda reviravolta causada pela notícia da gravidez de sua amante, Maria.

Ela passou a viver um grande dilema: estava cada vez mais apaixonado por Maria, e ao mesmo tempo via seu casamento com Rosita indo para o brejo. A principal causa de sua crise conjugal era a dificuldade que Rosita estava tendo para engravidar. Mojica, que crescera num ambiente machista, em que as mulheres eram relegadas simplesmente à função de procriar, via a ausência de um filho como uma falha pessoal da mulher. Daí a maior atenção que passou a dedicar à amante, inclusive alugando para ela um pequeno apartamento na rua Coronel Albino Bairão, no Brás.

Em julho de 1962, Maria deu à luz um menino. Mojica, extasiado, fez uma lista de dez nomes e pediu que ela escolhesse um. Maria optou pelo menos bizarro, Crounel, uma homenagem – com grafia incorreta, mas assim uma homenagem – ao lorde protetor da Inglaterra, Olivier Cromwell. Anos depois, quando Crounel reclamou da estranheza de seu nome, sua mãe respondeu:

- Dê graças a Deus; teu pai queria te chamar de Estrunguinaldo!

Mojica escondeu de Rosita o nascimento do filho. A chegada do menino, no entanto, provocou algumas brigas com Maria, que passou a exigir que ele largasse a esposa. “Você pode ser casado com a Rosita, mas eu sou a mãe do seu filho”, dizia. Pouco depois de Crounel completar um ano, Mojica jurou a Maria que iria contar tudo à esposa e acabar de vez com aquela farsa. Ela tomou coragem e foi falar com Rosita. Seria um baque para ela, mas era preciso endireitar a situação. Mojica nunca poderia imaginar a surpresa que o aguardava. Rosita, chorando de alegria, lhe deu a notícia que esperaram por seis anos: estava grávida! Mojica ficou de boca aberta, sem saber se ria ou chorava. Agora não teria coragem de separar-se de Rosita, e também não poderia romper o compromisso com Maria. Entre quebrar o coração de uma mulher ou de outra, ele optou por uma terceira solução, mais comodista: simplesmente deixou tudo como estava e continuou dividindo seu tempo entre a esposa e a amante.

Foram meses difíceis aqueles: Mojica vivia correndo da casa da esposa para os braços da amante, visitando o filho Crounel e ao mesmo tempo cuidando de Rosita, grávida. Ele não sabia como aquela história iria terminar. Tinha consciência de que, um dia, teria que decidir entre as duas mulheres, mas preferiu adiar a escolha indefinidamente. Estava ocupado demais com o cinema para pensar nesses “probleminhas”.

Mojica ainda não tinha ideia de qual seria seu próximo filme. Queria fazer uma fita policial, mas temia novamente a implicância da Censura. Também tinha medo da reação dos padres, que haviam reclamado muito da brutalidade de A Sina do Aventureiro. Hoje pode parecer estranho que um padre tenha o poder de influenciar na bilheteria de um filme, mas naquela época uma palavra de desagrado durante a missa dominical para que o público fugisse do cinema. Mojica sentiu isso na própria pele quando exibiu Sina em cidades do interior e foi criticado pelos beatos. Chegou a discutir com um deles: “O senhor pode entender de missa, mas de cinema entendo eu!”.

Preocupado, resolveu pedir ajuda a um homem que entendia de missa e de cinema: o padre Lopes, fundador da Escola Superior de Cinema São Luiz, uma das primeiras escolas de cinema do Brasil. Lopes o aconselhou a fazer uma fita para toda a família, de preferência com crianças, tipo Marcelino, Pão e Vinho, um estouro na época. Mojica não se empolgou muito, mas prometeu pensar na ideia. Alguns dias depois, leu no jornal uma reportagem sobre Franquito, “o garoto da voz de ouro”, um cantor mirim que fazia bastante sucesso nas rádios com a balada “O jornaleiro”. Seria o ator perfeito para um filme infantil! Sem perder tempo, Mojica procurou o pai de Franquito – que era também seu empresário – e ofereceu ao menino o papel principal de sua próxima fita. Depois se enfurnou por três dias no escritório da Apolo e escreveu o roteiro de Meu Destino em Tuas Mãos, um dramalhão sobre cinco garotos maltratados pelos pais que resolvem fugir de casa e morar nas ruas. O script intercalava a história dos meninos com vários números musicais, que seriam interpretados por Franquito.

Augusto Pereira e Nilza de Lima gostaram do projeto e resolveram entrar com metade da verba. Para completar a outra metade, Mojica sugeriu Franquito gravar um LP com as músicas do filme, cujo lucro seria revertido para a produção (um caso singular de trilha sonora lançada antes mesmo do filme ser rodado!). O próprio Mojica incumbiu-se de compor algumas canções, apesar de não saber a diferença entre uma clave de sol e uma chave de fenda (simplesmente assobiava a melodia para um aluno com melhores dotes musicais, que escrevia tudo bonitinho na partitura). Depois convenceu a gravadora Copacabana a prensar o disco, que saiu no fim de 1962. Por meses os alunos correram os subúrbios vendendo o LP em festas e gincanas, até que finalmente arrecadaram o necessário para completar a verba de Meu Destino em Tuas Mãos.

O produtor Augusto Pereira montou uma super-equipe, liderada por Ruy Santos, um dos melhores fotógrafos do país. A exemplo do que havia ocorrido em A Sina do Aventureiro, os técnicos reclamaram do roteiro de Mojica: não havia descrição dos planos, os diálogos estavam incompletos, enfim, uma zona. Augusto saiu à procura de um roteirista que para burilar o script. Acabou contratando um desconhecido que, anos mais tarde, se tornaria, ao lado de Mojica, um dos pais do cinema marginal brasileiro: Ozualdo Candeias.

 

Mojica rodou Meu Destino em Tuas Mãos com o único objetivo de fazer um filme de sucesso. Tinha até certa vergonha da história, um besteirol moralista e ingênuo sobre cinco crianças forçadas a abandonar suas casas por causa dos maus-tratos dos pais (ele próprio interpretava um pinguço que batia no filho). Como todo dramalhão lacrimejante, este também tinha um final feliz: os pais se arrependiam, voltavam a armar os pimpolhos e todos viviam felizes para sempre.

O filme foi terminado a toque de caixa, em junho de 1963, e exibido numa sessão especial para padres e freiras, organizado pelo padre Lopes. Os religiosos aplaudiram muito no final: “Isto sim é um filme cristão”, elogiou um deles. Augusto e Mojica até choraram de felicidade. “Vamos ficar ricos”, disse Augusto. A profecia, infelizmente, não se concretizou. Se os párocos haviam adorado o filme, a reação dos exibidores foi oposta: “Isso é uma tremenda água com açúcar!”. Ninguém queria lançar a fita. A Censura também não ajudou muito, proibindo o filme para menores de 14 anos. Desesperado, Mojica alugou por duas semanas o Cine Europa, na praça da República, para ver se o público se animava. Não deu certo: as crianças estavam proibidas de entrar e os adultos não se empolgaram a com a história piegas e a voz chorosa de Franquito.

O fracasso de Meu Destino em Tuas Mãos deixou Mojica numa pior. Completamente duro, passou a sobreviver vendendo o encalhe dos discos de Franquito. Mas um golpe de sorte o livraria da pindaíba total: algumas semanas depois, foi apresentado a Jaime “Cubano”, dono de três cinemas de filmes eróticos no centro de São Paulo, e sugeriu ao exibidor relançar A Sina do Aventureiro em suas salas. Jaime topou, contanto que Mojica incluísse algumas cenas mais picantes:

- Você põe umas mulheres peladas, um pouco de sacanagem, e eu passo nos meus cinemas!

Mojica e seus alunos construíram uma réplica do bar de A Sina do Aventureiro e rodaram, em apenas uma tarde, cerca de dez minutos de cenas adicionais, incluindo uma sequência em que Mojica, interpretando um velho assanhado (seu terceiro papel no filme, depois do coveiro e do bandido), obriga várias mulheres a fazer strip-tease sob a mira de um revólver. Quem fotografou essas cenas foi o italiano Giorgio Attili, um veterano da Vera Cruz, que a partir daquele momento se tornaria o cinegrafista predileto de Mojica. A versão erótica de A Sina do Aventureiro foi exibida nos cinemas de Jaime e rendeu um bom dinheiro. Nenhuma fortuna, mas o bastante para aliviar os prejuízos causados por Meu Destino em Tuas Mãos. Ainda sobrou um trocado, que Mojica usaria em seu próximo filme...

        

Publicado originalmente em BARCINSKI, André & FINOTTI, Ivan. Maldito: a vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. São Paulo: Editora 34, 1998.

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