terça-feira, 6 de setembro de 2022

Mojica early years, parte VII: Gênio ou Louco?

Capítulo 6: Gênio ou Louco?

 


         Por André Barcinski e Ivan Finotti

        

         Desprezam-se os filmes ruins e elogiam-se os bons, mas só os filmes realmente especiais provocam discussão. Quando Á Meia-Noite Levarei Sua Alma estreou em São Paulo (novembro de 1964) e Rio (junho de 1966), a crítica rachou ao meio. Ninguém ficou em cima do muro: amou-se e odiou-se Mojica com igual intensidade. Na Folha de S. Paulo, o crítico B.J. Duarte, que já havia malhado A Sina do Aventureiro alguns anos antes, voltou à carga:

 

         Aí temos o sr. José Mojica Marins inaugurando o “horror” no cinema brasileiro, dirigindo a si próprio, interpretando o papel principal desta história abracadabrante, a personagem do Zé do Caixão, uma atuação realmente inesquecível por seu ridículo e o grotesco de sua pretensão (...) Em verdade, eu deveria ter seguido o conselho de uma feiticeira (a exemplo do prólogo de Macbeth) dá ao espectador, ao início do filme de Marins: “Se não acreditar em almas penadas, saia deste cinema, não assista a este filme!”, diz mais ou menos assim a bruxa de Zé do Caixão, apontando o dedo à cara do espectador. Não acredito em almas penadas, mas que “las hay, las hay”. O filme do Art-Palácio é a prova mais aterradora de sua existência.

 

         No Jornal do Brasil, Maurício Gomes Leite cuspiu fogo contra o filme, dizendo que o “fenômeno Mojica” se beneficiou de uma certa tolerância, pelo fato de Á Meia-Noite Levarei Sua Alma ter sido o primeiro filme de horror feito no Brasil:

 

         (...) o público medianamente esclarecido se julga obrigado a valorizar o exótico e o que é ligeiramente incomum, o que explica o sucesso que faz o delirante cinema de horror do japonês Akira Kurosawa (...) o desfile grotesco, grosseiro, grosso de Á Meia-Noite Levarei Sua Alma, que absolutamente não é cinema, acaba por encantar os que sentem a falta de uma espécie de pornografia capaz de ser encontrada em qualquer das revistinhas clandestinas que, livremente, circulam o Posto 6 ao Grajaú.

         Meia-Noite não é um filme primitivo, é primário; não choca, imbeciliza. Para o cinema do Brasil não é uma linha pioneira, é um atraso. A lembrança de Luis Buñuel, levianamente chamado como testemunha da importância de Mojica, só pode ser considerada um desaforo (...)

         Mojica faz o cinema do instinto, o cinema animal há muito tempo sonhado e nunca executado, dirão seus divulgadores. Frases como esta, capazes de englobar tudo – desde o mau gosto suburbano de Miguel Borges e Canalha em Crise, até o expressionismo caipira de Khouri e Noite Vazia, para ficar no cinema brasileiro -, é que podem, de uma forma muito simples, descer o cinema (brasileiro) ao seu nível mais baixo, o da mendicância de ideias. Á Meia-Noite Levarei Sua Alma não é só um filme pobre, é um filme ostensivamente nojento.

 

         Tati de Morais, crítica do jornal carioca Última Hora, discordou totalmente de Gomes Leite e deu quatro estrelas para o filme:

        

         Confessamos alguns pulos na cadeira enquanto assistimos a esse delicioso horror nacional, À Meia-Noite Levarei Sua Alma, o primeiro do gênero a ser feito aqui no Brasil e que é para ser visto metade a sério, metade rindo (o público reage na hora exata), fórmula ideal para o humor negro. Á Meia-Noite Levarei Sua Alma deve muito ao grand gruignol, algumas coisas às velhas comédias americanas e até a Doutor Caligari, mas isso não lhe tira uma fascinante originalidade de concepção. Seu expressionismo é ajudado por uma cenografia imaginativa na escolha, ora horrenda, ora humorística dos elementos habituais do horror e mais alguns outros inventados por conta própria. Os ingleses, até agora donos supremos do gênero, teriam coisas a aprender com Á Meia-Noite Levarei Sua Alma.

         (...) Não vamos dizer que o filme não tenha defeitos (decai um pouco mais para o fim), mas no conjunto é de uma inventividade estupenda e com um sentido de “cinema” que não se encontra com facilidade nem aqui nem em qualquer outro lugar.

        

         Em resposta aos elogios de Tati de Morais, o Diário de Notícias, do Rio, publicou um artigo pessoal contra a jornalista, que termina pedindo a proibição do filme de Mojica:

        

         Uma certa assombração raquítica e grotesca, produzida por paulistas dos mais ineptos provincianos, continua fazendo carreira nos cinemas do Rio, graças sobretudo ao sensacionalismo de uma desaviada, que coroou de louros a cabeça (possivelmente doentia) de um tal José Mojica Marins (...) só o triste subdesenvolvimento pode justificar o interesse despertado por tal estupidez em lata e que é, ela própria, um reflexo dessa incultura. Não existe o subfilme: trata-se apenas de um aglomerado disforme de cenas amadorísticas e antiestéticas, sem o nível mínimo de acabamento técnico capaz de autorizar uma exibição pública com caráter de “espetáculo”. No entanto, o certificado de “boa qualidade” está lá...

         A Censura é a mesma que vem de proibir a exibição, em Belo Horizonte, de O Padre e a Moça (N. dos A.: dirigido por Joaquim Pedro de Andrade)...isto é, o máximo em incoerência e arbitrariedade. A mesma Censura que baixou portaria com doze itens considerados “essenciais” para a segurança nacional – ou seja, proibindo beijos e assuntos polêmicos, tudo o que for indecente ou subversivo na opinião autoritária do sr. Romero Lago, novo censor-chefe. Continua de pé a pergunta: para que presta a censura, federal ou estatal?

         Se a existência de um organismo desse tipo constitui um contrassenso, já que não é possível extingui-lo, que pelo menos funcione com critério, noção de limites e competência de juízo moral e artístico. A tal censura (...) liberou para exibição a Meia-Noite do sr. Mojica Marins, assim como libera as pornografias aleijadas de Cineac e na mesma hora (talvez no mesmo ato) enfia a tesoura em Bergman (O Silêncio) e engaveta Noite Vazia (N. dos A.: dirigido por Walter Hugo Khouri) e O Padre e a Moça, mudando de opinião como quem muda de camisa (ou de moral?). Precisam ver, sim, a tolice do sr. Marins, os que ainda não creem na inutilidade do SCDP – a prova de sua incapacidade está na tela, inequivocadamente.

        

         Os defensores de Mojica reagiram. No Correio da Manhã, o crítico Salvyano Cavalcanti de Paiva, escreveu um artigo estupendo sobre Á Meia-Noite Levarei Sua Alma, enxergando no filme alusões diretas à ditadura militar que governava o país:

        

         É difícil escrever sobre Á Meia-Noite Levarei Sua Alma, tantos e tão contraditórios os seus valores. Cinema ou paranoia? Loucura ou realidade? Reflexo nacional de uma realidade – a triste realidade brasileira -, ou simples brincadeira dispendiosa de retardados, de instintivos, de alimárias?

         O fato é que Á Meia-Noite Levarei Sua Alma é de uma oportunidade histórica. Reflete, certamente, a vida. O que narra está acontecendo aqui fora, às nossas vistas, testemunhados por nossos ouvidos. Não há presos políticos. Eleição direta é golpe. Nara Leão é subversiva. Leitura de peça de teatro leva polícia a espancar estudantes. Inquérito policial militar contra jardim de infância (...) Iê-iê-iê é corrupção. Juiz proíbe – em Minas – Luluzinha e Bolinha; são imorais. Repórter é preso sem explicação. Mantenha-se o preço e diminua-se o tamanho do pão. Exporte-se e racione-se a carne. Planejaumente-se o leite.

         Ora, no ato de assistir Á Meia-Noite Levarei Sua Alma, obra-prima da velhacaria com surpreendente dose de inventividade cinematográfica, o cidadão comum, predisposto ao temos do sobrenatural, aceita todas as suas premissas aguardando as conclusões que a lógica metafísica, atávica, impõe. Ao hospício exterior à sala de projeção foge, e se refugia no hospício da concepção de José Mojica Marins. Integra-se no enredo, acompanha, passo a passo, o protagonista – figura medonha, indigesta, grotesca – e participa do drama com interesse natural. No fundo, escapismo. Mas também rebelião íntima, indisfarçável, contra o estado a que chegamos (...)

         Quem é Mojica, moderno êmulo de Orson Welles? (...) Nos seus componentes básicos, Á Meia-Noite Levarei Sua Alma é puro surrealismo...Pois o moço do Brás é entendido em Mallarmé e Rimbaud, Byron e De Musset, Álvares de Azevedo e Edgar Allan Poe, Bram Stoker e seriados da Universal. Independentemente de sua acuidade cinematográfica, narrando sempre com fluência, utilizando recursos óticos eficazes, Zé Mojica – que, na história, se chama Zé do Caixão, título bem-apanhado onde se nota a abordagem de humor negro desse gênio incompreendido ou irresponsável total – traz a plateia em constante suspense. A comunicabilidade com o espectador mediano brasileiro, tipo 1966, é absoluta.

         Que importa o absurdo das situações? Que importa o texto espúrio, e mesmo a fraseologia violenta que sequazes de dom Agnelo, se escutassem, incriminariam de “solapar as bases cristãs da nacionalidade?”. Zé do Caixão é uma delícia. Come carne – e de carneiro! – na Sexta-Feira da Paixão, enquanto os sinos badalam, ribombam, ensurdecem os tímpanos, e o padre, as moças, a velharia entoam cânticos sacros à divindade na estátua. Zé do Caixão é diabólico; ri da religião, ri do cortejo processional (...)

         Na ânsia de negar a ser supremo, Zé apela para seu oposto – e assim está admitindo como a plateia comum, a sua existência (...) Irado, Zé do Caixão será muito mais engraçado para intelectuais sofisticados, mas sua imagem atinge, pura e com seriedade desejada, o espectador comum.

         Ademais, a sucessão de cenas é perfeita. O uso de som é inteligente, caprichado na sequência da perseguição final (...) Em matéria de construção é digna de um grande cineasta, de um grande especialista em filmes de terror (...) Também a aparição dos espíritos, em negativo, é prova sobeja de que Mojica Marins não é um débil mental irrecuperável como se diz, porém um artista autêntico. Sua concepção de Mefistóteles é wagneriana, estupenda! E que dizer do cenário da choupana da feiticeira, repleta de bugigangas, a respeitar, talvez, descrições de Sax Rohmer?

         Um filme inédito, sem dúvida. Original. Um impacto nas concepções convencionais. Marco na história do cinema de terror. A mais surpreendente arrumação de cretinices desde Lumière. Uma orgia de crítica social só comparável ao clássico L´Age d´Or, de Luis Buñuel.

        

         A polêmica em torno do filme motivou Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, a escrever uma crônica sobre o filme em sua coluna na Última Hora:

        

         (...) Algumas pessoas tinham dito que era um filmaço, outras tantas tinham dito que era a maior droga de todos os tempos. As que deram opinião a favor eram todas pessoas esclarecidas, ao passo que entre a turma que espinafrou estava a minha cozinheira, figurinha de impressionante obtusidade artística. Li também alguns desses cocorocas da imprensa sadia que acharam Hatari melhor que Vidas Secas e todos diziam que o filme de Maris era muito ruim. Vai daí que fui pro cinema muito esperançoso de ver um filmaço.

         Pois, meus camaradinhas, não vi outra coisa! Á Meia-Noite Levarei Sua Alma é o maior filme de terror que o sobrinho de Zulmira já assistiu, desde Frankenstein. É verdade que Frankenstein, quando eu vi, ainda não tinha dez anos, e agora já sou maiorizinho, o que já vem reforçar a minha suspeita de que José Mojica Marins é um gênio do cine-terror.

        

         Os críticos que consideraram Á Meia-Noite Levarei Sua Alma um filme primário parecem ter analisado a embalagem, sem checar o conteúdo. O filme é, sem dúvida, pobre de verba, pobre de recursos e pobre de cultura, mas não é, de maneira alguma, primário. Muito pelo contrário: quem enxergar por trás da rusticidade do décor perceberá que existe em cada fotograma um padrão estético claramente delineado, um capricho com pequenos detalhes; em suma: o talento de um diretor de estilo próprio. Por trás do “primarismo” do filme existe um autor.

         A questão que há anos intriga fãs de Mojica é: de onde surgiu este autor? Qual a origem de seu destino?

         Sabe-se que Mojica é um autodidata do cinema. Apesar de ter crescido praticamente dentro de uma sala de projeção, não conhece o trabalho de outros cineastas a ponto de ser influenciado por eles. Pelo menos não conscientemente. O cineasta Rogério Sganzerla conta uma história curiosa sobre Mojica, que poder ser uma pista para decifrar as influências que moldaram seu estilo: em 1986, os dois se encontraram num festival de cinema, no qual Sganzerla estava lançando seu filme Nem Tudo é Verdade, sobre a visita de Orson Welles ao Brasil nos anos 1940. Mojica assistiu ao filme e depois disse: “Rogério, eu vi muitos filmes com esse sujeito...Tinha até um em que ele aparecia à noite, num túnel escuro. Era espetacular!”. Mojica estava se referindo a The Third Man (O Terceiro Homem, 1949) dirigido por Carol Reed e estrelado por Welles. Pode-se concluir, portanto, que a cultura cinematográfica de Mojica não é tão limitada quanto se supõe. Na realidade ele assistiu a milhares de filmes, porém nunca se preocupou em adquirir conhecimento teórico sobre eles. As imagens ficaram guardadas em sua cabeça, embora nenhum tipo de organização ou referência.

         Vários cineastas – incluindo Luís Sérgio Person e o próprio Sganzerla – viam nos filmes de Mojica semelhanças estilísticas com o trabalho de Luis Buñuel e principalmente Orson Welles, em especial no uso de planos-sequencia (longas cenas sem corte) e nas cenas com imensa profundidade de campo, ou seja, de planos amplos, com imagens bem “abertas”, em que a ação ocorre em diversos lugares ao mesmo tempo (como na cena de Zé do Caixão comendo a perna de carneiro na janela, enquanto a procissão passa na rua, 3 metros abaixo).

         No caso de Á Meia-Noite Levarei Sua Alma, a inspiração parece ter vindo não apenas de outros filmes, mas também das revistas em quadrinhos que Mojica tanto amava. As primeiras imagens do filme já provam a influência dos quadrinhos de horror em sua formação: a câmera passeia por uma casa sinistra, repleta de amuletos pendurados no teto e animais empalhados na parede. Uma cigana fúnebre, de olheiras fundas e lenço na cabeça (Eucaris de Morais) surge na tela, segurando uma caveira. Ela diz, olhando em direção à câmera:

 

         Péssima noite para vocês, meus amiguinhos corajosos...Guardem bem estas palavras...A todos vocês que já viram um velório, o rosto pálido de um cadáver, a todos que não acreditam em almas penadas...Se, ao saírem desse cinema, tiverem que passar por ruas escuras, sozinhos, ainda há tempo...Não assistam a esse filme! Vão embora!

 

Atrás da bruxa-cigana um relógio marca meia-noite. Ouvem-se as badaladas:

 

Tarde demais! Vocês não acreditaram! Querem mostrar uma coragem que não possuem...Pois, então, fiquem...E sofram! Assistam...Á Meia-Noite...Levarei...Sua...Alma- a a a a a a !

 

Nesta abertura Mojica usa um recurso amplamente utilizado pelos quadrinistas de horror: a presença de um apresentador para a história, que se dirige ao leitor-espectador e cuja única função é captar imediatamente a atenção do público. A presença da bruxa dá ao filme um impacto imediato e torna supérflua qualquer cena de apresentação dos personagens.

O visual de Á Meia-Noite parece ter saído direto das páginas dos quadrinhos para a tela. As cenas são escuras, altamente contrastadas, com uma iluminação reminiscente dos filmes expressionistas alemães e que lembra muito os quadrinhos de horror, geralmente desenhados em preto-e-branca e sem meios-tons.

Mojica usa e abusa de outro clichê dos quadrinhos, os closes. Nas revistinhas de terror, a narrativa é muitas vezes fragmentada, passando de um plano geral do cenário para um close qualquer (a vítima com uma expressão apavorada no rosto; a boca salivante de um lobisomem; a estaca penetrada no coração de um vampiro etc.). Esse efeito realça o suspense e adiciona dinamismo às sequencias. Mojica faz o mesmo: seu filme é repleto de closes de olhos, mãos e bocas. Toda vez que Zé do Caixão está prestes a atacar suas vítimas, há um plano fechado dos olhos penetrantes e saltados do coveiro. O close – sempre acompanhado de um aumento no volume da música ou dos efeitos sonoros – antecipa alguma ação violenta e alerta o espectador.

         O que dizer então da narração em off, que Mojica adora? Existe algum recurso mais insistentemente utilizado pelos quadrinhos de horror? Em Á Meia-Noite Levarei Sua Alma há uma cena em que Zé do Caixão toma a decisão de matar sua esposa, Lenita, enquanto caminha pelas ruas escuras da cidade. O espectador ouve Zé pensando: “Lenita deve morrer! Lenita deve morrer!”. Na cena seguinte, Zé amarra Lenita e solta uma aranha caranguejeira em cima dela. Esta sequência é primorosa no uso de narração em off: vê-se a caranguejeira passeando sobre o corpo da mulher, enquanto Zé, fora do quadro, zomba dela e conta como seduzirá sua amiga Terezinha: “Terezinha será minha, e de suas entranhas prosseguirá minha geração”. Mojica sabe que a imagem de maior impacto é, obviamente, a da caranguejeira andando sobre a moça, e que qualquer coisa a mais no fotograma apenas desviaria a atenção doe espectador. A sequência, visualmente um colosso, só ganha em intensidade com a narração, verdadeira pérola do sadismo.

 

         Enganam-se, portanto, os que veem os filmes de terror de Mojica como produtos ordinários, feitos sem capricho nem talento. Essa gente parece confundir simplicidade com incompetência. Mojica é um homem consciente de sua própria ignorância e inteligente demais para se meter a fazer o que não sabe. Seu estilo é direto, sem firulas, e por isso sua comunicação com o espectador é imediata. Ele conhece o segredo da comunicação com a massa. Afinal, é um dos poucos diretores de cinema do Brasil que não veio da classe média burguesa. Ele faz parte da massa e cresceu consumindo meios de comunicação populares, como histórias em quadrinhos, seriados de cinema e radionovelas.

         As primeiras sequenciais de Á Meia-Noite Levarei Sua Alma são uma aula de economia e de enredamento da trama. Os cineastas que reclamam que seus filmes “não apelam para o espectador comum” deveriam aprender com Mojica a fazer um cinema acessível, sem precisar apelar para soluções mediocrizantes.

         O filme abre com um plano geral de um cemitério. Pessoas choram em volta de uma cova aberta (a senhora em prantos, por sinal, é dona Carmen, mãe de Mojica). A câmera dá uma panorâmica na multidão e corta para Zé do Caixão, que assiste ao enterro de cima de uma laje, sem demonstrar qualquer emoção. Ele está sozinho no fotograma, enquanto a multidão se espreme perto da cova. O espectador ainda nem sabe o nome do personagem, mas a simples contraposição das duas imagens – o homem impassível e a multidão em prantos – já deixa claro quem é o vilão da história. O fato de Zé aparecer sozinho na imagem também o destaca da massa e reflete seu individualismo.

         Em seguida, o coveiro chega em casa e diz à esposa: “Esse enterro me deu uma fome! Não aguento mais essa choradeira. Vou acabar cobrando dobrado para acompanhar enterro! Estou saturado desse povo do mato!”. São apenas quatro frases, mas dão a tônica de todo o filme. O público imediatamente sabe que Zé do Caixão é maligno. Enterro que lhe dá fome! Como pode zombar dos mortos? Não terá sentimentos?

         Zé do Caixão zomba não só dos mortos, mas também do “povo do mato”, que, na verdade, é o próprio povo de Mojica, o público-alvo de seu filme. Mojica, afinal, fazia cinema para o lumpem-proletariado, para seus vizinhos do Brás, da Vila Anastácio e da Casa Verde, para os motoristas de ônibus, operários e faxineiras que frequentavam sua escola. Ele conhecia sua gente a fundo e sabia que a melhor maneira de atiçá-los seria cutucar sua religiosidade, desrespeitar os mortos, fazer pouco caso de suas crenças, ou seja, contrariar os conceitos mais elementares da bondade humana e desafiar o conservadorismo cristão da massa. Mojica consegue antagonizar personagem e público, sem que Zé do Caixão tenha matado uma pessoa sequer. Em apenas duas cenas, ele deixa claro para o público o tema básico do filme: este homem é diferente de nós... É o inimigo!

         Mojica elaborou uma série de soluções visuais eficientíssimas para demonstrar a distância cultural, física, financeira, filosófica e espiritual que separa Zé do Caixão do povo (ou seja, do público). Além das óbvias diferenças no vestir e no falar – Zé fala um português correto e empostado, enquanto os locais têm sotaque caipira e vozes medrosas – a câmera de Mojica sempre descobre uma maneira de isolar o personagem do resto dos habitantes da cidade e de destacar sua figura no meio da multidão.

         Um dos cenários mais frequentes do filme é uma taberna (o dono da taberna, Francisco é interpretado por Antônio, pai de Mojica). Todas as cenas na taberna começam com uma panorâmica pelo ambiente, mostrando pessoas sentadas em mesas, jogando cartas ou bebendo. Zé sempre aparece entrando na porta da taberna, que fica um nível acima do piso do bar. Quando ele entra no recinto, a câmera o focaliza sob o ponto de vista dos frequentadores, ou seja, de baixo para cima, como se ele fosse um ser superior. Zé caminha pela taberna, todo-poderoso, olhando zombeteiro para os caipiras da vila que, sentados (ou seja, abaixo dele), fitam-no com um misto de respeito e medo.

         Zé debocha de todos e obriga um deles a comer carne de carneiro em plena Sexta-Feira Santa. Depois, decepa os dedos de um pobre coitado com uma garrafa, quando este se recusa a pagar uma dívida de pôquer. Os locais não reagem. São humildes, covardes em sua ignorância. Pode-se fazer uma interessante analogia entre o domínio que Zé do Caixão exerce sobre eles e o controle que a elite brasileira mantém sobre o povo. A gente simples da cidade é a maioria absoluta, teoricamente mais forte, mas se acovarda diante de alguém “superior”. Parecem não acreditar em sua própria força: têm consciência de “seu lugar”. Quando um solitário se rebela contra Zé do Caixão, é impiedosamente surrado. Esta cena, aliás, é prova do talento do montador Luiz Elias. Depois de ser desafiado para uma briga, Zé pula no balcão do bar, acerta um chute na barriga do valentão, pisa em sua cabeça e termina chicoteando-o no rosto até que ele implora por clemência. A cena tem quatro ou cinco planos curtíssimos e é editada com uma precisão de dar gosto.

         E o som? Raras vezes um filme brasileiro fez uso tão inteligente da música. A música – quase toda surrupiada de discos do compositor francês Edgard Varèse, um dos pais da música eletrônica (Mojica não tem a menor ideia de quem seja; simplesmente achou o disco no estúdio de sonorização, gostou e passou a usá-lo sempre) – acentua a dramaticidade das cenas. Os efeitos sonoros são tão vivos, tão bem colocados, que o filme poderia perfeitamente ter sua banda sonora inteira transmitida como radionovela, sem que a compreensão da história ficasse comprometida. Da mesma forma, as imagens poderiam tranquilamente ser mostradas sem os diálogos. Á Meia-Noite Levarei Sua Alma tem, portanto, a fluidez narrativa de um filme mudo e a estrutura sonora de uma radionovela; daí sua facilidade de assimilação por qualquer tipo de público.

 

         Um aspecto do filme muito criticado foi a atuação do elenco. Embora o nível das atuações seja realmente irregular (o que era de se esperar em um elenco formado por amadores), muitos se salvam. Como não se emocionar com a cena em que Terezinha (Magda Mei) é espancada por Zé do Caixão? O desespero nos olhos da moça é real, palpável. E que tal a bruxa caricata interpretada por Eucaris de Morais, com seus gestos exagerados, típicos de monstros do expressionismo alemão?

         A grande atuação do filme, no entanto, é a do próprio Mojica. Zé do Caixão é perfeitamente crível em seu desprezo pelos vizinhos, na suam empáfia e onipotência. Ele se movimenta com elegância, com passos confiantes, como conviria a um homem mais bem-educado que os barnabés locais. Seu tour de force é um magnífico plano de cinco minutos, sem cortes, no qual a câmera passeia pela funerária de Zé quando este ouve uma escada, cai no chão, rola pelos degraus, trepa num caixão, agarra um lustre do teto, deita-se sobre os caixões, tudo isso enquanto blasfema e desafia os poderes do Céu:

        

Céu! Inferno! Reencarnação! O poder da fé! Símbolo da ignorância! Onde está, ó Diabo?...Parta-se a terra, rasgue-se o céu! Eu quero o fim do mundo! Eu não creio em nada, e quero a prova do teu castigo!

 

Em seu livro Cinema de invenção (1986), o jornalista e cineasta paulista Jairo Ferreira afirma que o ciclo experimental do cinema brasileiro nasceu na Boca do Lixo em 1967, com A Margem, de Ozualdo Candeias. Se por um lado o filme de Candeias realmente influenciou toda uma geração de cineastas a buscar uma nova estética, liberta do formalismo e aberta à experimentação, achamos que o verdadeiro expoente do experimental no cinema brasileiro dos anos 60 foi Á Meia-Noite Levarei Sua Alma.

É verdade que o filme de Mojica não tem a narrativa hermética de A Margem ou das fitas que, no fim dos anos 60, seriam rodadas na Boca por cineastas como Rogério Sganzerla e Carlos Reichenbach. Em termos de narrativa, aliás, Á Meia-Noite pode até ser considerado um filme careta, formal, já que tem uma estrutura-padrão, com começo, meio e fim. É preciso levar em consideração, no entanto, que o conceito de experimental muda de acordo com a época. Para julgar o radicalismo de um filme é necessário compará-lo aos filmes que vinham sendo feitos no mesmo período. Aceitando o experimental como uma característica mutável e comparando Á Meia-Noite Levarei Sua Alma ao cinema que se fazia no Brasil em 1964, conclui-se que Mojica é experimental até a medula.

O filme é experimental no tema e na forma. No tema, porque inaugurou no Brasil o cinema de horror, gênero que ainda não havia sido explorado pelo nosso cinema, apesar da riqueza do folclore brasileiro de lendas e superstições. É importante salientar que a ousadia de Mojica não se limitou a experimentar com um gênero intocado no país; seu maior feito foi conseguir adaptar os clichês do cinema fantástico para a realidade brasileira. A taberna de Á Meia-Noite é autenticamente brasileira; da mesma forma, o cemitério, a floresta e a casa da bruxa não tentam imitar modelos anglo-saxões, como fazia na época o cinema de horror italiano, cujos filmes pareciam ter saído de algum estúdio inglês ou americano.

Quanto à forma, o experimentalismo de Mojica se manifesta de diversas maneiras: em primeiro lugar é preciso destacar a montagem do filme, que vai contra os padrões convencionais. Costumeiramente, uma montagem é considerada bem-feita na medida em que seus cortes são imperceptíveis. Montadores tentam passar de uma sequência para outra sem utilizar cortes bruscos, mantendo a cadência da história. Mojica, por sua vez, não se preocupa com isso. Seus cortes são abruptos; uma sequência sucede a outra aos pulos, sem elos de ligação, exatamente como nos quadrinhos. Ele utiliza estranhos truques de câmera para passar de uma cena para outra, como um efeito chamado “chicote”, no qual uma imagem corre da esquerda para a direita na tela até sobrepor totalmente a imagem anterior. Novamente se faz sentido a influência de meios de comunicação ágeis, especialmente quadrinhos e rádio.

Visualmente, Á Meia-Noite Levarei Sua Alma é um experimento só. Sem verba para grandes extravagâncias, o responsável pelos efeitos especiais, Indrikis Kruskops, criou diversos truques baratos e eficientes, usando principalmente trucagens entre fotografias e cenas em movimento. Quando Zé do Caixão está prestes a atacar alguém, há sempre um close de seus olhos, com os globos manchados por bizarras listras escuras. Kruskops simplesmente juntava uma cena dos olhos de Mojica com uma foto dos olhos, tirada da mesma posição e pintada com as listras.

Quando precisou mostrar o corpo em decomposição de Terezinha, dentro do caixão, Mojica usou um truque que havia inventado nos tempos do cineminha de brinquedo em Vila Anastácio: numa bacia, misturou miolo de pão, leite e um monte de bichos de goiaba vivos, e esfregou a gororoba no rosto da atriz. A massa, depois de seca, ficou branca e quebradiça. Quando os bichinhos começarem a se mexer, precisam estar “furando” a pele do cadáver. A impressão que se tinha é a de um cadáver putrefato sendo comigo por vermes.

         Há duas cenas no filme que são um primor de inventividade e improvisação: uma é a procissão dos mortos, mostrada em negativo. Para obter este efeito, Mojica filmou uma procissão e mandou copiar o filme em negativo. Assim, os pretos ficaram brancos e vice-versa. Essa simples inversão criou um impacto visual tremendo. A outra cena, mais espetacular ainda, é a do hilariante encontro entre Zé do Caixão e o espírito de Antônio, o amigo que ele havia afogado na banheira. Zé está andando pela floresta, quando pára para acender um cachimbo. O espírito vem por trás de Zé e, segurando uma vela, lhe oferece fogo. Há um halo em volta do espírito, uma linha brilhante que circunda todo o corpo de Antônio.

         A cena deu uma trabalheira danada: usando um pincel finíssimo, Kruskops espalhou cola em volta da imagem de Antônio, no próprio negativo e colou purpurina (vale lembrar que cada fotograma mede apenas 3,5 x 1,6 cm). Depois, Mojica mandou o laboratório copiar novamente a cena, a partir deste negativo adulterado. A purpurina formou um halo em torno de Antônio. Para obter o efeito de movimento, Kruskops precisou executar o mesmo trabalho milimétrico em cada um dos fotogramas. Como a cena dura 16 segundos e cada segundo de filme tem 24 fotogramas, conclui-se que ele teve de repetir o processo nada menos que 384 vezes!

         É uma cena que subverte as regras fundamentais do cinema. Ora, a imagem fotográfica é, por definição, uma imagem impressa em filme, depois de filtrada por uma lente. E Mojica criou uma imagem cinematográfica sem sequer usar uma lente! Para ele, o negativo poderia servir não apenas para gravar imagens filmadas, mas também como a tela de um quadro, ou a base sobre a qual é feita uma colagem. Metalinguagem pura, coisa de gênio. Mais experimental, impossível!

        

         A essa altura não pode haver dúvida de que Á Meia-Noite Levarei Sua Alma é um filme radical, tanto na forma como no conteúdo. E nada é mais radical no filme do que sua blasfêmia. Á Meia-Noite é carregado de uma virulência anticristã até para padrões atuais. Zé do Caixão zomba de padres, ri da procissão santa e chama cristãos de “idiotas”. Quando vê um crucifixo na parede, diz que aquilo não passa de “símbolo de ignorância”. Não é difícil imaginar o choque que deve ter sido para o público suburbano paulista ouvir um personagem vomitando injúrias como essas.

         Há cenas no filme que fazem os sacrilégios cinematográficos de Luís Buñuel parecer pirraça de jardim de infância. A sequência em que Zé do Caixão tenta seduzir uma garçonete na taberna é uma delas: quando o tio da moça (Arildo de Lima) rechaça a investida, Zé pega uma coroa de espinhos de cabeça de um Cristo de madeira e crava a coroa no rosto do homem, mutilando toda sua face. O simbolismo da imagem é forte e óbvio: para Zé do Caixão, a coroa que representa o sofrimento de Cristo serve apenas para infligir mais dor nos crentes.

         Igualmente chocante é uma cena em que Zé do Caixão visita seu amigo Antônio, com o objetivo de matá-lo e possuir sua noiva, Terezinha. Antônio e Zé começam a falar de religião e fé. Quando Antônio pergunta a Zé sobre a origem de sua descrença, este responde: “Crer em quer? Num símbolo? (olhando para uma cruz na parede) Numa força inexistente, criada pela ignorância?”.

         Antônio, sentado numa poltrona, começa um discurso que é apologia o conformismo: “Eu me sinto bem em crer em Deus...Sou feliz, amo Terezinha, não tenho nenhuma luta íntima...” A câmera afasta-se dele e mostra Zé do Caixão, de pé, atrás da poltrona, erguendo uma barra de ferro com a qual atacará Antônio. Enquanto Zé prepara o golpe, ouve-se Antônio dizendo: “Não me revolto contra ninguém. Quero reformar esta casa e viver aqui com Terezinha por toda nossa vida...”.

         Novamente Mojica contrapõe brilhantemente imagem e som: o espectador vendo Zé do Caixão, mas ouvindo Antônio. Enquanto este demonstra seu conformismo, sua incapacidade de se revoltar, suas ambições pequeno-burguesas de casamento e vida pacata, Zé do Caixão, o ataca. Com um golpe da barra de ferro, Zé destrói não só a vida de Antônio, mas também suas convicções, sua pequenez, sua simplicidade cristã.

         Filmada de qualquer outra forma, esta poderia ser apenas mais uma banal cena de crime. No entanto, a contraposição da imagem de um personagem (Zé cm a barra de ferro, prestes a desferir o golpe fatal) com o som de outro (o monólogo beato de Antônio), dá à cena uma carga emocional e psicológica que só o cinema, única arte em que é possível mesclar som e imagem com tanta independência, é capaz. A cena simplesmente não funcionaria em livro ou teatro. É cinema puro.

 

         Quando assistiu ao filme, o cineasta Carlos Reichenbach ficou impressionado com a semelhança entre a filosofia da “busca do filho perfeito” de Zé do Caixão e o “Super-Homem” descrito por Nietzsche em um de seus livros mais famosos, Assim falou Zaratrusta. Ao longo dos anos, vários outros críticos fariam analogias entre Mojica e Nietzsche. Será loucura comparar as ideias de um dos mais influentes filósofos da história com as de um semi-analfabeto suburbano? Uma análise cuidadosa dos monólogos de Zé do Caixão mostra que o personagem tem vários pontos em comum com o espírito nietzscheano, especialmente o niilismo, o ceticismo, o individualismo, a realização pessoal e o ódio ao cristianismo. Em seu discurso a Antônio, momentos antes de matá-lo, Zé do Caixão diz:

 

         Sou um revoltado...Contra os tolos como você, que temem o que não veem e se tornam escravos do que realmente existe, a vida! Por que temer a vida? É ela que faz vibrar a sua carne, que alimenta seus sentimentos, e se você não for mais forte, não combatê-la, será dominado e sofrerá.

 

         A passagem acima lembra muito um dos discursos de Zaratustra:

        

         Rebelião – esta é a nobreza do escravo (...) Que o amor à vida seja á vossa mais excelsa esperança seja o mais excelso pensamento da vida!

         Ainda dirigindo-se a Antônio, Zé do Caixão critica a ignorância da população local:

        

         Veja esse povo seu: qual a razão para me temerem? Por que uso roupa preta? Por que creio em mim? Por que rio da crença deles? Não porque eu sou mais forte e tenho inteligência suficiente para dominar quem quer que seja. Eles são fracos porque são escravizados pelo que desconhecem. Eu sou livre, por isso tenho mais força.

 

         As palavras de Zé do Caixão têm uma incrível semelhança com três passagens dos discursos de Zaratustra a seus discípulos:

        

         Passo no meio desta gente e guardo os olhos abertos: eles não me perdoam que eu não inveje suas virtudes. Procuram morder-me, porque eu digo: “para pessoas pequenas, são necessárias virtudes pequenas” – e porque custo a compreender que gente pequena seja necessária! (...) Passo no meio dessa gente e guardo os olhos abertos: tornam-se mais pequenos, cada vez mais pequenos: mas isto se deve à sua doutrina de felicidade e virtude.

        

         (...) manda-se naquele que não consegue obedecer a si mesmo. É este o medo de ser do vivente.

        

         Causam-me pena esses sacerdotes. Sem dúvida, repugnam ao meu gosto (...) Eu, porém, sofro e sofri por eles: são, a meu ver, prisioneiros e marcados com ferrete. Aquele é quem chamam Redentor impôs-lhes grilhões...Grilhões de falsos valores e palavras ilusórias! Ah, se alguém os redimisse de seu Redentor!

        

         A analogia que Zé do Caixão fez entre a ignorância do povo e sua religiosidade (“Crer em quê? Num símbolo? Numa força inexistente, criada pela ignorância?”) e também sua afirmação de que o povo cristão o teme porque na verdade teme tudo que lhe é superior (“Qual a razão para me temerem?... Porque sou mais forte!”) é similar ás ideias que Nietzsche divulgou em seu livro mais blasfermo, O anticristo:

        

O cristianismo (...) apelava a variedade de homens deserdados pela vida, tinha seus aliados em toda a parte. O cristianismo tem o rancor dos enfermos em seu âmago – o instinto contra o saudável, contra a saúde. Tudo que bem constituído, orgulhoso, majestoso e, acima de tudo, belo, ofende os seus ouvidos e os seus olhos.

 

         A fúria anticlerical de Zé do Caixão, diferentemente da de Nietzsche, entende-se a todas as religiões. Enquanto o alemão concentra seus ataques ao cristianismo, Zé destrói o conceito de religião em geral, ultrajado igualmente o espiritismo e a macumba (há uma cena em que ele rouba um despacho de macumba e bebe da garrafa ofertada às divindades). É interessante também notar a contraposição entre as ideias profanas do personagem Zé do Caixão e a credulidade de seu criador, José Mojica Marins. Tanto que o filme termina com a morte do personagem, atacado pelos espíritos de suas vítimas. A tática de Mojica é eficiente: primeiro ele choca o público pelo ultraje à religião, depois o conforta com a vitória do “bem”. Apesar do desfecho “positivo” da história, o dano já estava feito: muitos espectadores saíram do cinema convencidos de que Mojica tinha parte com o tinhoso.

 

Publicado originalmente em BARCINSKI, André & FINOTTI, Ivan. Maldito: a vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. São Paulo: Editora 34, 1998.

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