Capítulo 6: Gênio ou Louco?
Por André Barcinski e Ivan Finotti
Desprezam-se os filmes ruins e
elogiam-se os bons, mas só os filmes realmente especiais provocam discussão. Quando
Á Meia-Noite Levarei Sua Alma estreou em São Paulo (novembro de 1964) e Rio
(junho de 1966), a crítica rachou ao meio. Ninguém ficou em cima do muro:
amou-se e odiou-se Mojica com igual intensidade. Na Folha de S. Paulo, o
crítico B.J. Duarte, que já havia malhado A Sina do Aventureiro alguns
anos antes, voltou à carga:
Aí temos o sr. José Mojica Marins
inaugurando o “horror” no cinema brasileiro, dirigindo a si próprio,
interpretando o papel principal desta história abracadabrante, a personagem do
Zé do Caixão, uma atuação realmente inesquecível por seu ridículo e o grotesco
de sua pretensão (...) Em verdade, eu deveria ter seguido o conselho de uma
feiticeira (a exemplo do prólogo de Macbeth) dá ao espectador, ao início
do filme de Marins: “Se não acreditar em almas penadas, saia deste cinema, não
assista a este filme!”, diz mais ou menos assim a bruxa de Zé do Caixão,
apontando o dedo à cara do espectador. Não acredito em almas penadas, mas que
“las hay, las hay”. O filme do Art-Palácio é a prova mais aterradora de sua
existência.
No Jornal do Brasil, Maurício Gomes
Leite cuspiu fogo contra o filme, dizendo que o “fenômeno Mojica” se beneficiou
de uma certa tolerância, pelo fato de Á Meia-Noite Levarei Sua Alma ter
sido o primeiro filme de horror feito no Brasil:
(...) o público medianamente
esclarecido se julga obrigado a valorizar o exótico e o que é ligeiramente
incomum, o que explica o sucesso que faz o delirante cinema de horror do
japonês Akira Kurosawa (...) o desfile grotesco, grosseiro, grosso de Á
Meia-Noite Levarei Sua Alma, que absolutamente não é cinema, acaba por
encantar os que sentem a falta de uma espécie de pornografia capaz de ser
encontrada em qualquer das revistinhas clandestinas que, livremente, circulam o
Posto 6 ao Grajaú.
Meia-Noite não é um filme primitivo, é
primário; não choca, imbeciliza. Para o cinema do Brasil não é uma linha
pioneira, é um atraso. A lembrança de Luis Buñuel, levianamente chamado como testemunha da importância de Mojica, só pode ser
considerada um desaforo (...)
Mojica faz o cinema do instinto, o
cinema animal há muito tempo sonhado e nunca executado, dirão seus
divulgadores. Frases como esta, capazes de englobar tudo – desde o mau gosto
suburbano de Miguel Borges e Canalha
em Crise, até o expressionismo caipira de Khouri e Noite Vazia, para
ficar no cinema brasileiro -, é que podem, de uma forma muito simples, descer o
cinema (brasileiro) ao seu nível mais baixo, o da mendicância de ideias. Á
Meia-Noite Levarei Sua Alma não é só um filme pobre, é um filme
ostensivamente nojento.
Tati de Morais, crítica do jornal
carioca Última Hora, discordou totalmente de Gomes Leite e deu quatro
estrelas para o filme:
Confessamos alguns pulos na cadeira
enquanto assistimos a esse delicioso horror nacional, À Meia-Noite Levarei
Sua Alma, o primeiro do gênero a ser feito aqui no Brasil e que é para ser
visto metade a sério, metade rindo (o público reage na hora exata), fórmula
ideal para o humor negro. Á Meia-Noite Levarei Sua Alma deve muito ao grand
gruignol, algumas coisas às velhas comédias americanas e até a Doutor
Caligari, mas isso não lhe tira uma fascinante originalidade de concepção.
Seu expressionismo é ajudado por uma cenografia imaginativa na escolha, ora
horrenda, ora humorística dos elementos habituais do horror e mais alguns
outros inventados por conta própria. Os ingleses, até agora donos supremos do
gênero, teriam coisas a aprender com Á Meia-Noite Levarei Sua Alma.
(...) Não vamos dizer que o filme
não tenha defeitos (decai um pouco mais para o fim), mas no conjunto é de uma
inventividade estupenda e com um sentido de “cinema” que não se encontra com
facilidade nem aqui nem em qualquer outro lugar.
Em resposta aos elogios de Tati de
Morais, o Diário de Notícias, do Rio, publicou um artigo pessoal contra
a jornalista, que termina pedindo a proibição do filme de Mojica:
Uma certa assombração raquítica e
grotesca, produzida por paulistas dos mais ineptos provincianos, continua
fazendo carreira nos cinemas do Rio, graças sobretudo ao sensacionalismo de uma
desaviada, que coroou de louros a cabeça (possivelmente doentia) de um tal José
Mojica Marins (...) só o triste subdesenvolvimento pode justificar o interesse
despertado por tal estupidez em lata e que é, ela própria, um reflexo dessa
incultura. Não existe o subfilme: trata-se apenas de um aglomerado disforme de
cenas amadorísticas e antiestéticas, sem o nível mínimo de acabamento técnico
capaz de autorizar uma exibição pública com caráter de “espetáculo”. No
entanto, o certificado de “boa qualidade” está lá...
A Censura é a mesma que vem de
proibir a exibição, em Belo Horizonte, de O Padre e a Moça (N. dos A.:
dirigido por Joaquim Pedro de Andrade)...isto é, o máximo em incoerência e
arbitrariedade. A mesma Censura que baixou portaria com doze itens considerados
“essenciais” para a segurança nacional – ou seja, proibindo beijos e assuntos
polêmicos, tudo o que for indecente ou subversivo na opinião autoritária do sr.
Romero Lago, novo censor-chefe. Continua de pé a pergunta: para que presta a
censura, federal ou estatal?
Se a existência de um organismo
desse tipo constitui um contrassenso, já que não é possível extingui-lo, que
pelo menos funcione com critério, noção de limites e competência de juízo moral
e artístico. A tal censura (...) liberou para exibição a Meia-Noite
do sr. Mojica Marins, assim como libera as pornografias aleijadas de Cineac e
na mesma hora (talvez no mesmo ato) enfia a tesoura em Bergman (O Silêncio)
e engaveta Noite Vazia (N. dos A.: dirigido por Walter Hugo Khouri) e
O Padre e a Moça, mudando de opinião como quem muda de camisa (ou de moral?).
Precisam ver, sim, a tolice do sr. Marins, os que ainda não creem na
inutilidade do SCDP – a prova de sua incapacidade está na tela,
inequivocadamente.
Os defensores de Mojica reagiram. No Correio
da Manhã, o crítico Salvyano Cavalcanti de Paiva, escreveu um artigo
estupendo sobre Á Meia-Noite Levarei Sua Alma, enxergando no filme
alusões diretas à ditadura militar que governava o país:
É difícil escrever sobre Á Meia-Noite Levarei Sua Alma, tantos e tão
contraditórios os seus valores. Cinema ou paranoia? Loucura ou realidade?
Reflexo nacional de uma realidade – a triste realidade brasileira -, ou simples
brincadeira dispendiosa de retardados, de instintivos, de alimárias?
O fato é que Á Meia-Noite
Levarei Sua Alma é de uma oportunidade histórica. Reflete, certamente, a
vida. O que narra está acontecendo aqui fora, às nossas vistas, testemunhados
por nossos ouvidos. Não há presos políticos. Eleição direta é golpe. Nara Leão
é subversiva. Leitura de peça de teatro leva polícia a espancar estudantes.
Inquérito policial militar contra jardim de infância (...) Iê-iê-iê é
corrupção. Juiz proíbe – em Minas – Luluzinha e Bolinha; são imorais. Repórter
é preso sem explicação. Mantenha-se o preço e diminua-se o tamanho do pão.
Exporte-se e racione-se a carne. Planejaumente-se o leite.
Ora, no ato de assistir Á
Meia-Noite Levarei Sua Alma, obra-prima da velhacaria com surpreendente dose
de inventividade cinematográfica, o cidadão comum, predisposto ao temos do
sobrenatural, aceita todas as suas premissas aguardando as conclusões que a
lógica metafísica, atávica, impõe. Ao hospício exterior à sala de projeção
foge, e se refugia no hospício da concepção de José Mojica Marins. Integra-se
no enredo, acompanha, passo a passo, o protagonista – figura medonha,
indigesta, grotesca – e participa do drama com interesse natural. No fundo,
escapismo. Mas também rebelião íntima, indisfarçável, contra o estado a que
chegamos (...)
Quem é Mojica, moderno êmulo de
Orson Welles? (...) Nos seus componentes básicos, Á Meia-Noite Levarei Sua Alma
é puro surrealismo...Pois o moço do Brás é entendido em Mallarmé e Rimbaud,
Byron e De Musset, Álvares de Azevedo e Edgar Allan Poe, Bram Stoker e seriados
da Universal. Independentemente de sua acuidade cinematográfica, narrando
sempre com fluência, utilizando recursos óticos eficazes, Zé Mojica – que, na
história, se chama Zé do Caixão, título bem-apanhado onde se nota a abordagem
de humor negro desse gênio incompreendido ou irresponsável total – traz a
plateia em constante suspense. A comunicabilidade com o espectador mediano
brasileiro, tipo 1966, é absoluta.
Que importa o absurdo das situações?
Que importa o texto espúrio, e mesmo a fraseologia violenta que sequazes de dom
Agnelo, se escutassem, incriminariam de “solapar as bases cristãs da
nacionalidade?”. Zé do Caixão é uma delícia. Come carne – e de carneiro!
– na Sexta-Feira da Paixão, enquanto os sinos badalam, ribombam, ensurdecem os
tímpanos, e o padre, as moças, a velharia entoam cânticos sacros à divindade na
estátua. Zé do Caixão é diabólico; ri da religião, ri do cortejo processional
(...)
Na ânsia de negar a ser supremo, Zé
apela para seu oposto – e assim está admitindo como a plateia comum, a sua existência
(...) Irado, Zé do Caixão será muito mais engraçado para intelectuais
sofisticados, mas sua imagem atinge, pura e com seriedade desejada, o
espectador comum.
Ademais, a sucessão de cenas é
perfeita. O uso de som é inteligente, caprichado na sequência da perseguição
final (...) Em matéria de construção é digna de um grande cineasta, de
um grande especialista em filmes de terror (...) Também a aparição dos
espíritos, em negativo, é prova sobeja de que Mojica Marins não é um débil
mental irrecuperável como se diz, porém um artista autêntico. Sua concepção de
Mefistóteles é wagneriana, estupenda! E que dizer do cenário da choupana da
feiticeira, repleta de bugigangas, a respeitar, talvez, descrições de Sax
Rohmer?
Um filme inédito, sem dúvida.
Original. Um impacto nas concepções convencionais. Marco na história do cinema
de terror. A mais surpreendente arrumação de cretinices desde Lumière. Uma
orgia de crítica social só comparável ao clássico L´Age d´Or, de Luis
Buñuel.
A polêmica em torno do filme motivou
Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, a escrever uma crônica sobre o filme em
sua coluna na Última Hora:
(...) Algumas pessoas tinham dito
que era um filmaço, outras tantas tinham dito que era a maior droga de todos os
tempos. As que deram opinião a favor eram todas pessoas esclarecidas, ao passo
que entre a turma que espinafrou estava a minha cozinheira, figurinha de
impressionante obtusidade artística. Li também alguns desses cocorocas da
imprensa sadia que acharam Hatari melhor que Vidas Secas e todos
diziam que o filme de Maris era muito ruim. Vai daí que fui pro cinema muito
esperançoso de ver um filmaço.
Pois, meus camaradinhas, não vi outra
coisa! Á Meia-Noite Levarei Sua
Alma é o maior filme de terror que o sobrinho de Zulmira já assistiu, desde Frankenstein.
É verdade que Frankenstein, quando eu vi, ainda não tinha dez anos, e
agora já sou maiorizinho, o que já vem reforçar a minha suspeita de que José
Mojica Marins é um gênio do cine-terror.
Os críticos que consideraram Á
Meia-Noite Levarei Sua Alma um filme primário parecem ter analisado a
embalagem, sem checar o conteúdo. O filme é, sem dúvida, pobre de verba, pobre
de recursos e pobre de cultura, mas não é, de maneira alguma, primário. Muito
pelo contrário: quem enxergar por trás da rusticidade do décor perceberá que
existe em cada fotograma um padrão estético claramente delineado, um capricho
com pequenos detalhes; em suma: o talento de um diretor de estilo próprio. Por
trás do “primarismo” do filme existe um autor.
A questão que há anos intriga fãs de
Mojica é: de onde surgiu este autor? Qual a origem de seu destino?
Sabe-se que Mojica é um autodidata do
cinema. Apesar de ter crescido praticamente dentro de uma sala de projeção, não
conhece o trabalho de outros cineastas a ponto de ser influenciado por eles.
Pelo menos não conscientemente. O cineasta Rogério Sganzerla conta uma história
curiosa sobre Mojica, que poder ser uma pista para decifrar as influências que
moldaram seu estilo: em 1986, os dois se encontraram num festival de cinema, no
qual Sganzerla estava lançando seu filme Nem Tudo é Verdade, sobre a
visita de Orson Welles ao Brasil nos anos 1940. Mojica assistiu ao filme e
depois disse: “Rogério, eu vi muitos filmes com esse sujeito...Tinha até um em
que ele aparecia à noite, num túnel escuro. Era espetacular!”. Mojica estava se
referindo a The Third Man (O Terceiro Homem, 1949) dirigido por
Carol Reed e estrelado por Welles. Pode-se concluir, portanto, que a cultura
cinematográfica de Mojica não é tão limitada quanto se supõe. Na realidade ele
assistiu a milhares de filmes, porém nunca se preocupou em adquirir
conhecimento teórico sobre eles. As imagens ficaram guardadas em sua cabeça,
embora nenhum tipo de organização ou referência.
Vários cineastas – incluindo Luís
Sérgio Person e o próprio Sganzerla – viam nos filmes de Mojica semelhanças
estilísticas com o trabalho de Luis Buñuel e principalmente Orson Welles, em
especial no uso de planos-sequencia (longas cenas sem corte) e nas cenas com
imensa profundidade de campo, ou seja, de planos amplos, com imagens bem
“abertas”, em que a ação ocorre em diversos lugares ao mesmo tempo (como na
cena de Zé do Caixão comendo a perna de carneiro na janela, enquanto a
procissão passa na rua, 3 metros abaixo).
No caso de Á Meia-Noite Levarei Sua
Alma, a inspiração parece ter vindo não apenas de outros filmes, mas também
das revistas em quadrinhos que Mojica tanto amava. As primeiras imagens do
filme já provam a influência dos quadrinhos de horror em sua formação: a câmera
passeia por uma casa sinistra, repleta de amuletos pendurados no teto e animais
empalhados na parede. Uma cigana fúnebre, de olheiras fundas e lenço na cabeça
(Eucaris de Morais) surge na tela, segurando uma caveira. Ela diz, olhando em
direção à câmera:
Péssima noite para vocês, meus
amiguinhos corajosos...Guardem bem estas palavras...A todos vocês que já viram
um velório, o rosto pálido de um cadáver, a todos que não acreditam em almas
penadas...Se, ao saírem desse cinema, tiverem que passar por ruas escuras,
sozinhos, ainda há tempo...Não assistam a esse filme! Vão embora!
Atrás da bruxa-cigana um relógio marca meia-noite.
Ouvem-se as badaladas:
Tarde demais! Vocês não acreditaram! Querem mostrar
uma coragem que não possuem...Pois, então, fiquem...E sofram! Assistam...Á
Meia-Noite...Levarei...Sua...Alma- a a a a a a !
Nesta abertura Mojica usa um recurso amplamente
utilizado pelos quadrinistas de horror: a presença de um apresentador para a
história, que se dirige ao leitor-espectador e cuja única função é captar
imediatamente a atenção do público. A presença da bruxa dá ao filme um impacto
imediato e torna supérflua qualquer cena de apresentação dos personagens.
O visual de Á Meia-Noite parece ter saído
direto das páginas dos quadrinhos para a tela. As cenas são escuras, altamente
contrastadas, com uma iluminação reminiscente dos filmes expressionistas
alemães e que lembra muito os quadrinhos de horror, geralmente desenhados em
preto-e-branca e sem meios-tons.
Mojica usa e abusa de outro clichê dos quadrinhos,
os closes. Nas revistinhas de terror, a narrativa é muitas vezes
fragmentada, passando de um plano geral do cenário para um close
qualquer (a vítima com uma expressão apavorada no rosto; a boca salivante de um
lobisomem; a estaca penetrada no coração de um vampiro etc.). Esse efeito
realça o suspense e adiciona dinamismo às sequencias. Mojica faz o mesmo: seu
filme é repleto de closes de olhos, mãos e bocas. Toda vez que Zé do Caixão
está prestes a atacar suas vítimas, há um plano fechado dos olhos penetrantes e
saltados do coveiro. O close – sempre acompanhado de um aumento no
volume da música ou dos efeitos sonoros – antecipa alguma ação violenta e
alerta o espectador.
O que dizer então da narração em off,
que Mojica adora? Existe algum recurso mais insistentemente utilizado pelos
quadrinhos de horror? Em Á Meia-Noite Levarei Sua Alma há uma cena em
que Zé do Caixão toma a decisão de matar sua esposa, Lenita, enquanto caminha
pelas ruas escuras da cidade. O espectador ouve Zé pensando: “Lenita deve
morrer! Lenita deve morrer!”. Na cena seguinte, Zé amarra Lenita e solta uma
aranha caranguejeira em cima dela. Esta sequência é primorosa no uso de
narração em off: vê-se a caranguejeira passeando sobre o corpo da
mulher, enquanto Zé, fora do quadro, zomba dela e conta como seduzirá sua amiga
Terezinha: “Terezinha será minha, e de suas entranhas prosseguirá minha
geração”. Mojica sabe que a imagem de maior impacto é, obviamente, a da
caranguejeira andando sobre a moça, e que qualquer coisa a mais no fotograma
apenas desviaria a atenção doe espectador. A sequência, visualmente um colosso,
só ganha em intensidade com a narração, verdadeira pérola do sadismo.
Enganam-se, portanto, os que veem os
filmes de terror de Mojica como produtos ordinários, feitos sem capricho nem
talento. Essa gente parece confundir simplicidade com incompetência. Mojica é
um homem consciente de sua própria ignorância e inteligente demais para se
meter a fazer o que não sabe. Seu estilo é direto, sem firulas, e por isso sua
comunicação com o espectador é imediata. Ele conhece o segredo da comunicação
com a massa. Afinal, é um dos poucos diretores de cinema do Brasil que não veio
da classe média burguesa. Ele faz parte da massa e cresceu consumindo meios de
comunicação populares, como histórias em quadrinhos, seriados de cinema e
radionovelas.
As primeiras sequenciais de Á
Meia-Noite Levarei Sua Alma são uma aula de economia e de enredamento da
trama. Os cineastas que reclamam que seus filmes “não apelam para o espectador
comum” deveriam aprender com Mojica a fazer um cinema acessível, sem precisar
apelar para soluções mediocrizantes.
O filme abre com um plano geral de um
cemitério. Pessoas choram em volta de uma cova aberta (a senhora em prantos,
por sinal, é dona Carmen, mãe de Mojica). A câmera dá uma panorâmica na
multidão e corta para Zé do Caixão, que assiste ao enterro de cima de uma laje,
sem demonstrar qualquer emoção. Ele está sozinho no fotograma, enquanto a
multidão se espreme perto da cova. O espectador ainda nem sabe o nome do
personagem, mas a simples contraposição das duas imagens – o homem impassível e
a multidão em prantos – já deixa claro quem é o vilão da história. O fato de Zé
aparecer sozinho na imagem também o destaca da massa e reflete seu
individualismo.
Em seguida, o coveiro chega em casa e
diz à esposa: “Esse enterro me deu uma fome! Não aguento mais essa choradeira.
Vou acabar cobrando dobrado para acompanhar enterro! Estou saturado desse povo
do mato!”. São apenas quatro frases, mas dão a tônica de todo o filme. O
público imediatamente sabe que Zé do Caixão é maligno. Enterro que lhe dá fome!
Como pode zombar dos mortos? Não terá sentimentos?
Zé do Caixão zomba não só dos mortos,
mas também do “povo do mato”, que, na verdade, é o próprio povo de Mojica, o
público-alvo de seu filme. Mojica, afinal, fazia cinema para o lumpem-proletariado,
para seus vizinhos do Brás, da Vila Anastácio e da Casa Verde, para os
motoristas de ônibus, operários e faxineiras que frequentavam sua escola. Ele
conhecia sua gente a fundo e sabia que a melhor maneira de atiçá-los seria
cutucar sua religiosidade, desrespeitar os mortos, fazer pouco caso de suas
crenças, ou seja, contrariar os conceitos mais elementares da bondade humana e desafiar
o conservadorismo cristão da massa. Mojica consegue antagonizar personagem e
público, sem que Zé do Caixão tenha matado uma pessoa sequer. Em apenas duas
cenas, ele deixa claro para o público o tema básico do filme: este homem é
diferente de nós... É o inimigo!
Mojica elaborou uma série de soluções
visuais eficientíssimas para demonstrar a distância cultural, física,
financeira, filosófica e espiritual que separa Zé do Caixão do povo (ou seja,
do público). Além das óbvias diferenças no vestir e no falar – Zé fala um
português correto e empostado, enquanto os locais têm sotaque caipira e vozes
medrosas – a câmera de Mojica sempre descobre uma maneira de isolar o
personagem do resto dos habitantes da cidade e de destacar sua figura no meio
da multidão.
Um dos cenários mais frequentes do
filme é uma taberna (o dono da taberna, Francisco é interpretado por Antônio,
pai de Mojica). Todas as cenas na taberna começam com uma panorâmica pelo
ambiente, mostrando pessoas sentadas em mesas, jogando cartas ou bebendo. Zé
sempre aparece entrando na porta da taberna, que fica um nível acima do piso do
bar. Quando ele entra no recinto, a câmera o focaliza sob o ponto de vista dos
frequentadores, ou seja, de baixo para cima, como se ele fosse um ser superior.
Zé caminha pela taberna, todo-poderoso, olhando zombeteiro para os caipiras da
vila que, sentados (ou seja, abaixo dele), fitam-no com um misto de respeito e
medo.
Zé debocha de todos e obriga um deles a
comer carne de carneiro em plena Sexta-Feira Santa. Depois, decepa os dedos de
um pobre coitado com uma garrafa, quando este se recusa a pagar uma dívida de
pôquer. Os locais não reagem. São humildes, covardes em sua ignorância. Pode-se
fazer uma interessante analogia entre o domínio que Zé do Caixão exerce sobre
eles e o controle que a elite brasileira mantém sobre o povo. A gente simples
da cidade é a maioria absoluta, teoricamente mais forte, mas se acovarda diante
de alguém “superior”. Parecem não acreditar em sua própria força: têm
consciência de “seu lugar”. Quando um solitário se rebela contra Zé do Caixão,
é impiedosamente surrado. Esta cena, aliás, é prova do talento do montador Luiz
Elias. Depois de ser desafiado para uma briga, Zé pula no balcão do bar, acerta
um chute na barriga do valentão, pisa em sua cabeça e termina chicoteando-o no
rosto até que ele implora por clemência. A cena tem quatro ou cinco planos
curtíssimos e é editada com uma precisão de dar gosto.
E o som? Raras vezes um filme
brasileiro fez uso tão inteligente da música. A música – quase toda surrupiada
de discos do compositor francês Edgard Varèse, um dos pais da música eletrônica
(Mojica não tem a menor ideia de quem seja; simplesmente achou o disco no
estúdio de sonorização, gostou e passou a usá-lo sempre) – acentua a dramaticidade
das cenas. Os efeitos sonoros são tão vivos, tão bem colocados, que o filme
poderia perfeitamente ter sua banda sonora inteira transmitida como
radionovela, sem que a compreensão da história ficasse comprometida. Da mesma
forma, as imagens poderiam tranquilamente ser mostradas sem os diálogos. Á
Meia-Noite Levarei Sua Alma tem, portanto, a fluidez narrativa de um filme
mudo e a estrutura sonora de uma radionovela; daí sua facilidade de assimilação
por qualquer tipo de público.
Um aspecto do filme muito criticado foi
a atuação do elenco. Embora o nível das atuações seja realmente irregular (o
que era de se esperar em um elenco formado por amadores), muitos se salvam.
Como não se emocionar com a cena em que Terezinha (Magda Mei) é espancada por
Zé do Caixão? O desespero nos olhos da moça é real, palpável. E que tal a bruxa
caricata interpretada por Eucaris de Morais, com seus gestos exagerados,
típicos de monstros do expressionismo alemão?
A grande atuação do filme, no entanto,
é a do próprio Mojica. Zé do Caixão é perfeitamente crível em seu desprezo
pelos vizinhos, na suam empáfia e onipotência. Ele se movimenta com elegância,
com passos confiantes, como conviria a um homem mais bem-educado que os
barnabés locais. Seu tour de force é um magnífico plano de cinco minutos, sem
cortes, no qual a câmera passeia pela funerária de Zé quando este ouve uma
escada, cai no chão, rola pelos degraus, trepa num caixão, agarra um lustre do
teto, deita-se sobre os caixões, tudo isso enquanto blasfema e desafia os poderes
do Céu:
Céu! Inferno! Reencarnação! O poder da fé! Símbolo
da ignorância! Onde está, ó Diabo?...Parta-se a terra, rasgue-se o céu! Eu
quero o fim do mundo! Eu não creio em nada, e quero a prova do teu castigo!
Em seu livro Cinema de invenção (1986), o
jornalista e cineasta paulista Jairo Ferreira afirma que o ciclo experimental
do cinema brasileiro nasceu na Boca do Lixo em 1967, com A Margem, de
Ozualdo Candeias. Se por um lado o filme de Candeias realmente influenciou toda
uma geração de cineastas a buscar uma nova estética, liberta do formalismo e
aberta à experimentação, achamos que o verdadeiro expoente do experimental no
cinema brasileiro dos anos 60 foi Á Meia-Noite Levarei Sua Alma.
É verdade que o filme de Mojica não tem a narrativa
hermética de A Margem ou das fitas que, no fim dos anos 60, seriam rodadas na
Boca por cineastas como Rogério Sganzerla e Carlos Reichenbach. Em termos de
narrativa, aliás, Á Meia-Noite pode até ser considerado um filme careta,
formal, já que tem uma estrutura-padrão, com começo, meio e fim. É preciso
levar em consideração, no entanto, que o conceito de experimental muda de
acordo com a época. Para julgar o radicalismo de um filme é necessário
compará-lo aos filmes que vinham sendo feitos no mesmo período. Aceitando o
experimental como uma característica mutável e comparando Á Meia-Noite
Levarei Sua Alma ao cinema que se fazia no Brasil em 1964, conclui-se que
Mojica é experimental até a medula.
O filme é experimental no tema e na forma. No tema,
porque inaugurou no Brasil o cinema de horror, gênero que ainda não havia sido
explorado pelo nosso cinema, apesar da riqueza do folclore brasileiro de lendas
e superstições. É importante salientar que a ousadia de Mojica não se limitou a
experimentar com um gênero intocado no país; seu maior feito foi conseguir
adaptar os clichês do cinema fantástico para a realidade brasileira. A taberna
de Á Meia-Noite é autenticamente brasileira; da mesma forma, o
cemitério, a floresta e a casa da bruxa não tentam imitar modelos anglo-saxões,
como fazia na época o cinema de horror italiano, cujos filmes pareciam ter
saído de algum estúdio inglês ou americano.
Quanto à forma, o experimentalismo de Mojica se
manifesta de diversas maneiras: em primeiro lugar é preciso destacar a montagem
do filme, que vai contra os padrões convencionais. Costumeiramente, uma
montagem é considerada bem-feita na medida em que seus cortes são
imperceptíveis. Montadores tentam passar de uma sequência para outra sem
utilizar cortes bruscos, mantendo a cadência da história. Mojica, por sua vez,
não se preocupa com isso. Seus cortes são abruptos; uma sequência sucede a
outra aos pulos, sem elos de ligação, exatamente como nos quadrinhos. Ele
utiliza estranhos truques de câmera para passar de uma cena para outra, como um
efeito chamado “chicote”, no qual uma imagem corre da esquerda para a direita
na tela até sobrepor totalmente a imagem anterior. Novamente se faz sentido a
influência de meios de comunicação ágeis, especialmente quadrinhos e rádio.
Visualmente, Á Meia-Noite Levarei Sua Alma é
um experimento só. Sem verba para grandes extravagâncias, o responsável pelos
efeitos especiais, Indrikis Kruskops, criou diversos truques baratos e
eficientes, usando principalmente trucagens entre fotografias e cenas em
movimento. Quando Zé do Caixão está prestes a atacar alguém, há sempre um close
de seus olhos, com os globos manchados por bizarras listras escuras. Kruskops
simplesmente juntava uma cena dos olhos de Mojica com uma foto dos olhos,
tirada da mesma posição e pintada com as listras.
Quando precisou mostrar o corpo em decomposição de
Terezinha, dentro do caixão, Mojica usou um truque que havia inventado nos
tempos do cineminha de brinquedo em Vila Anastácio: numa bacia, misturou miolo
de pão, leite e um monte de bichos de goiaba vivos, e esfregou a gororoba no
rosto da atriz. A massa, depois de seca, ficou branca e quebradiça. Quando os
bichinhos começarem a se mexer, precisam estar “furando” a pele do cadáver. A
impressão que se tinha é a de um cadáver putrefato sendo comigo por vermes.
Há duas cenas no filme que são um
primor de inventividade e improvisação: uma é a procissão dos mortos, mostrada
em negativo. Para obter este efeito, Mojica filmou uma procissão e mandou
copiar o filme em negativo. Assim, os pretos ficaram brancos e vice-versa. Essa
simples inversão criou um impacto visual tremendo. A outra cena, mais
espetacular ainda, é a do hilariante encontro entre Zé do Caixão e o espírito
de Antônio, o amigo que ele havia afogado na banheira. Zé está andando pela
floresta, quando pára para acender um cachimbo. O espírito vem por trás de Zé
e, segurando uma vela, lhe oferece fogo. Há um halo em volta do espírito, uma
linha brilhante que circunda todo o corpo de Antônio.
A cena deu uma trabalheira danada:
usando um pincel finíssimo, Kruskops espalhou cola em volta da imagem de
Antônio, no próprio negativo e colou purpurina (vale lembrar que cada fotograma
mede apenas 3,5 x 1,6 cm). Depois, Mojica mandou o laboratório copiar novamente
a cena, a partir deste negativo adulterado. A purpurina formou um halo em torno
de Antônio. Para obter o efeito de movimento, Kruskops precisou executar o
mesmo trabalho milimétrico em cada um dos fotogramas. Como a cena dura 16
segundos e cada segundo de filme tem 24 fotogramas, conclui-se que ele teve de
repetir o processo nada menos que 384 vezes!
É uma cena que subverte as regras
fundamentais do cinema. Ora, a imagem fotográfica é, por definição, uma imagem
impressa em filme, depois de filtrada por uma lente. E Mojica criou uma imagem
cinematográfica sem sequer usar uma lente! Para ele, o negativo poderia servir
não apenas para gravar imagens filmadas, mas também como a tela de um quadro,
ou a base sobre a qual é feita uma colagem. Metalinguagem pura, coisa de gênio.
Mais experimental, impossível!
A essa altura não pode haver dúvida de
que Á Meia-Noite Levarei Sua Alma é um filme radical, tanto na forma
como no conteúdo. E nada é mais radical no filme do que sua blasfêmia. Á
Meia-Noite é carregado de uma virulência anticristã até para padrões
atuais. Zé do Caixão zomba de padres, ri da procissão santa e chama cristãos de
“idiotas”. Quando vê um crucifixo na parede, diz que aquilo não passa de
“símbolo de ignorância”. Não é difícil imaginar o choque que deve ter sido para
o público suburbano paulista ouvir um personagem vomitando injúrias como essas.
Há cenas no filme que fazem os
sacrilégios cinematográficos de Luís Buñuel parecer pirraça de jardim de
infância. A sequência em que Zé do Caixão tenta seduzir uma garçonete na
taberna é uma delas: quando o tio da moça (Arildo de Lima) rechaça a investida,
Zé pega uma coroa de espinhos de cabeça de um Cristo de madeira e crava a coroa
no rosto do homem, mutilando toda sua face. O simbolismo da imagem é forte e
óbvio: para Zé do Caixão, a coroa que representa o sofrimento de Cristo serve
apenas para infligir mais dor nos crentes.
Igualmente chocante é uma cena em que
Zé do Caixão visita seu amigo Antônio, com o objetivo de matá-lo e possuir sua
noiva, Terezinha. Antônio e Zé começam a falar de religião e fé. Quando Antônio
pergunta a Zé sobre a origem de sua descrença, este responde: “Crer em quer?
Num símbolo? (olhando para uma cruz na parede) Numa força inexistente,
criada pela ignorância?”.
Antônio, sentado numa poltrona, começa
um discurso que é apologia o conformismo: “Eu me sinto bem em crer em
Deus...Sou feliz, amo Terezinha, não tenho nenhuma luta íntima...” A câmera
afasta-se dele e mostra Zé do Caixão, de pé, atrás da poltrona, erguendo uma
barra de ferro com a qual atacará Antônio. Enquanto Zé prepara o golpe, ouve-se
Antônio dizendo: “Não me revolto contra ninguém. Quero reformar esta casa e
viver aqui com Terezinha por toda nossa vida...”.
Novamente Mojica contrapõe
brilhantemente imagem e som: o espectador vendo Zé do Caixão, mas ouvindo
Antônio. Enquanto este demonstra seu conformismo, sua incapacidade de se
revoltar, suas ambições pequeno-burguesas de casamento e vida pacata, Zé do
Caixão, o ataca. Com um golpe da barra de ferro, Zé destrói não só a vida de
Antônio, mas também suas convicções, sua pequenez, sua simplicidade cristã.
Filmada de qualquer outra forma, esta
poderia ser apenas mais uma banal cena de crime. No entanto, a contraposição da
imagem de um personagem (Zé cm a barra de ferro, prestes a desferir o golpe
fatal) com o som de outro (o monólogo beato de Antônio), dá à cena uma carga
emocional e psicológica que só o cinema, única arte em que é possível mesclar
som e imagem com tanta independência, é capaz. A cena simplesmente não
funcionaria em livro ou teatro. É cinema puro.
Quando assistiu ao filme, o cineasta
Carlos Reichenbach ficou impressionado com a semelhança entre a filosofia da
“busca do filho perfeito” de Zé do Caixão e o “Super-Homem” descrito por
Nietzsche em um de seus livros mais famosos, Assim falou Zaratrusta. Ao
longo dos anos, vários outros críticos fariam analogias entre Mojica e Nietzsche.
Será loucura comparar as ideias de um dos mais influentes filósofos da história
com as de um semi-analfabeto suburbano? Uma análise cuidadosa dos monólogos de
Zé do Caixão mostra que o personagem tem vários pontos em comum com o espírito
nietzscheano, especialmente o niilismo, o ceticismo, o individualismo, a
realização pessoal e o ódio ao cristianismo. Em seu discurso a Antônio,
momentos antes de matá-lo, Zé do Caixão diz:
Sou um revoltado...Contra os tolos como
você, que temem o que não veem e se tornam escravos do que realmente existe, a
vida! Por que temer a vida? É ela que faz vibrar a sua carne, que alimenta seus
sentimentos, e se você não for mais forte, não combatê-la, será dominado e
sofrerá.
A passagem acima lembra muito um dos
discursos de Zaratustra:
Rebelião – esta é a nobreza do
escravo (...) Que o amor à vida seja á vossa mais excelsa esperança seja o mais
excelso pensamento da vida!
Ainda dirigindo-se a Antônio, Zé do
Caixão critica a ignorância da população local:
Veja esse povo seu: qual a razão
para me temerem? Por que uso roupa preta? Por que creio em mim? Por que rio da
crença deles? Não porque eu sou mais forte e tenho inteligência suficiente para
dominar quem quer que seja. Eles são fracos porque são escravizados pelo que
desconhecem. Eu sou livre, por isso tenho mais força.
As palavras de Zé do Caixão têm uma
incrível semelhança com três passagens dos discursos de Zaratustra a seus
discípulos:
Passo no meio desta gente e guardo
os olhos abertos: eles não me perdoam que eu não inveje suas virtudes. Procuram
morder-me, porque eu digo: “para pessoas pequenas, são necessárias virtudes
pequenas” – e porque custo a compreender que gente pequena seja necessária!
(...) Passo no meio dessa gente e guardo os olhos abertos: tornam-se
mais pequenos, cada vez mais pequenos: mas isto se deve à sua doutrina de
felicidade e virtude.
(...) manda-se naquele que não consegue
obedecer a si mesmo. É este o medo de ser do vivente.
Causam-me pena esses sacerdotes. Sem
dúvida, repugnam ao meu gosto (...) Eu, porém, sofro e sofri por eles:
são, a meu ver, prisioneiros e marcados com ferrete. Aquele é quem chamam
Redentor impôs-lhes grilhões...Grilhões de falsos valores e palavras ilusórias!
Ah, se alguém os redimisse de seu Redentor!”
A analogia que Zé do Caixão fez entre a
ignorância do povo e sua religiosidade (“Crer em quê? Num símbolo? Numa força
inexistente, criada pela ignorância?”) e também sua afirmação de que o povo
cristão o teme porque na verdade teme tudo que lhe é superior (“Qual a razão
para me temerem?... Porque sou mais forte!”) é similar ás ideias que Nietzsche
divulgou em seu livro mais blasfermo, O anticristo:
O cristianismo (...) apelava a variedade de homens
deserdados pela vida, tinha seus aliados em toda a parte. O cristianismo tem o
rancor dos enfermos em seu âmago – o instinto contra o saudável, contra a
saúde. Tudo que bem constituído, orgulhoso, majestoso e, acima de tudo, belo,
ofende os seus ouvidos e os seus olhos.
A fúria anticlerical de Zé do Caixão,
diferentemente da de Nietzsche, entende-se a todas as religiões. Enquanto o
alemão concentra seus ataques ao cristianismo, Zé destrói o conceito de
religião em geral, ultrajado igualmente o espiritismo e a macumba (há uma cena
em que ele rouba um despacho de macumba e bebe da garrafa ofertada às
divindades). É interessante também notar a contraposição entre as ideias
profanas do personagem Zé do Caixão e a credulidade de seu criador, José Mojica
Marins. Tanto que o filme termina com a morte do personagem, atacado pelos
espíritos de suas vítimas. A tática de Mojica é eficiente: primeiro ele choca o
público pelo ultraje à religião, depois o conforta com a vitória do “bem”.
Apesar do desfecho “positivo” da história, o dano já estava feito: muitos
espectadores saíram do cinema convencidos de que Mojica tinha parte com o
tinhoso.
Publicado
originalmente em BARCINSKI, André & FINOTTI, Ivan. Maldito: a vida e o
cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. São Paulo: Editora 34, 1998.
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