quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Mojica early years, parte VIII: 1965-1966: Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver

Capítulo 7: Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver

 



         Por André Barcinski e Ivan Finotti

        

A vida amorosa de Mojica, que já era atrapalhada o suficiente com suas atenções divididas entre Maria e Rosita, complicou-se ainda mais em janeiro de 1965, quando ele viu entrar em seu estúdio uma italianinha de 18 anos, linda, de olhos grandes e longos cabelos lisos, chamada Diomira Feo.

Mojica ficou imediatamente interessado na garota, e mais ainda depois que ela disse que trabalhava como videomoça do programa Sílvio Santos. Apesar da pouca idade, Diomira – que usava o nome artístico de Denise Maria – tinha um currículo respeitável: ainda criança, cantara nos programas Clube do Papai Noel, na TV Tupi, e Grande Gincana Kibon, na Rádio Bandeirantes, e depois acabou contratada por Sílvio Santos para distribuir prêmios e puxar palmas do auditório.

Diomira já tinha ouvido falar de Mojica e do sucesso de Á Meia-Noite Levarei Sua Alma. Quando um dos “caça-talentos” da Apolo lhe contou que o diretor estava fazendo testes para seu próximo filme, ela correu até o escritório da rua Frederico Abranches, na esperança de conseguir trabalho em cinema. Foi imediatamente cativada pelo carisma de Mojica: ele exercia um domínio total sobre seus pupilos e seu visual – terno preto, sapatos de verniz e anéis imensos nos dedos – chamava a atenção. Mojica, por sua vez, não conseguia tirar os olhos da nova discípula. Gostou tanto da mola, que lhe ofereceu uma bolsa de estudos e o emprego da secretária.

Diomira usou o nome de Denise Maria por alguns anos e depois trocou-o por um pseudônimo mais charmoso: Nilcemar Leyart. Mojica e Nilcemar, ou Nilce, como é conhecida até hoje, viveriam um romance que durou quase trinta anos, colaborariam em dezenas de filmes e teriam duas filhas.

Mojica contou a Nilce sobre o fracassado casamento com Rosita, mas escondeu dela o romance com Maria. Disse que estava se divorciando de Rosita e que morava com uma prima e com os dois filhos dela. A prima era, obviamente, Maria, e os filhos eram seus próprios rebentos, Crounel e Mariliz (Merisol só nasceria um ano e meio depois).

Apaixonado por Nilce e sem coragem de romper com Rosita e Maria, mãe de seus filhos, ele passou a viver um complicadíssimo quadrângulo amoroso: continuou morando com Maria, mas ia constantemente à casa do sogro visitar Rosita e o filho Derian e, de quebra, ainda arranjava tempo para encontros românticos com Nilce. Era um corre-corre dos diabos. Para dificultar ainda mais as coisas, Maria morava a apenas três quarteirões de Nilce, no Brás. Quando saía com Nilce, Mojica sempre sugeria um lugar bem afastado do bairro, para não correr o risco de dar de cara com Maria passeando na rua com as crianças. Ele vivia tenso e tinha pesadelos terríveis, nos quais as três mulheres se encontravam na fila do supermercado e descobriam que estavam dormindo com o mesmo sujeito.

Enquanto sua vida pessoal seguia aos trancos e barrancos, no campo profissional Mojica não tinha do que se queixar: estava ficando cada vez mais famoso. A cada novo artigo publicado na imprensa, mas candidatos chegavam à escola. Ele percebeu que poderia ganhar muito dinheiro com suas aulas de interpretação, mas que precisaria de um local mais espaçoso para a escola.

Em fevereiro de 1965, um amigo levou-o para visitar uma sinagoga abandonada na rua Casimiro de Abreu, 396, no Brás. O aspecto do local era desolador: o prédio era velho e malconservado; no térreo havia uma porta de madeira que dava para uma longa escadaria de perda. Subindo as escadas, chegava-se ao antigo local de cultos, um salão enorme e alto, onde ainda se via uma estrela de Davi pintada no teto. Os vizinhos contavam histórias horrorosas sobre o lugar: depois de fechada a sinagoga, o prédio teria funcionado como centro espírita e depois como asilo, onde alguns velhos teriam morrido em circunstâncias misteriosas. Alguns diziam até que a sinagoga era mal-assombrada. Melhor, impossível, pensou Mojica. Ele alugou o prédio e transferiu a escola para lá.

Seu próximo projeto era Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, a continuação de Á Meia-Noite Levarei Sua Alma. Entusiasmado com o sucesso de seu primeiro filme de terror, Mojica bolou uma história muito mais sofisticada, incluindo uma câmara de torturas, ataques de cobras e aranhas e uma sequência de luta passada num pântano. Ele queria também uma cena que não incluiu em Á Meia-Noite Levarei Sua Alma por absoluta falta de dinheiro: a descida de Zé do Caixão para o inferno.

O produtor Augusto Pereira, consciente da burrada que fizera ao não financiar o primeiro filme de Zé do Caixão, entrou com dinheiro para o novo projeto e garantiu um mínimo de condições técnicas. Prometeu a Mojica três meses para filmar, negativo a vontade e um orçamento três vezes maior que o do filme anterior. Ainda não era o ideal, mas pelo menos não seria a pobreza de Á Meia-Noite. Temeroso de que algum outro produtor seduzisse Mojica com uma oferta irresistível, Augusto propôs um contrato de exclusividade para nada menos de cinco filmes com o personagem Zé do Caixão. Em 2 de janeiro de 1966, Mojica e Augusto assinaram o contrato, que previa a produção de um filme por ano, começando com Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver e seguido por A Encarnação do Demônio, O Lamento dos Espíritos Errantes, O Sepulcro do Diabo e O Discípulo de Satanás. Augusto estava tão confiante no potencial de bilheteria de Zé do Caixão, que aceitou produzir os filmes sem saber sequer a trama das histórias. Só exigia que Zé do Caixão fosse o personagem principal.

 

Esta Noite começa exatamente onde termina Á Meia-Noite Levarei Sua Alma: Zé do Caixão é encontrado pelos moradores da cidade junto ao túmulo de suas vítimas, desfalecido. Ele sobrevivei ao ataque dos espíritos e agora, com o auxílio de um ajudante corcunda, Bruno (Nivaldo Lima), continua sua busca pela mulher ideal que lhe dará o “filho perfeito”. Zé e Bruno sequestram várias moças da cidade e submetem-nas a um ataque de aranhas caranguejeiras. Apenas uma das moças, Márcia (Tina Wohlers) não parece assustada, o que leva Zé a desconfiar que finalmente encontrara a mulher corajosa e subserviente que tanto procurou. Ele leva Mária para a cama e a obriga a assistir à morte das amigas, que são jogadas num poço, com dezenas de cobras. Uma delas, Jandira (Tânia Mendonça), roga uma praga para o coveiro e diz que voltará do Além para encarnar em seu cadáver. Márcia não aguenta tanta barbaridade e chora, pedindo clemência para as mulheres. Zé se decepciona com a mola, mas resolve poupá-la da morte.

A verdadeira mulher de seus sonhos surge no meio do filme: é Laura (Nádia Freitas), filha do coronel Almendes (Roque Rodrigues). Ele seduz e engravida a moça. Depois, mata seu irmão, Cláudio (Antônio Fracari), esmagando a cabeça do coitado numa câmara de torturas. Para desespero de Zé, Laura passa mal e morre, levando junto o filho ainda no ventre. O coronel manda um bando de capangas atrás do coveiro para vingar as mortes de Laura e Cláudio, mas ele mata dois capangas e joga os outros num pântano de areia movediça. Márcia, com remorsos, conta à polícia sobre o assassinato das mulheres. A população da cidade sai em bando para matar Zé. Ele foge pela floresta, leva vários tiros e acaba caindo num lago – o mesmo que Bruno jogara os corpos das mulheres. Encurralado, o coveiro jura que não é responsável pelo sumiço das mulheres e desafia a população a encontrar os corpos. Nesse instante, os esqueletos das mulheres emergem das águas e Zé do Caixão afunda no lago.

        

Mojica conseguiu reunir para o novo filme o mesmo núcleo de técnicos que havia trabalhado em Á Meia-Noite Levarei Sua Alma, incluindo Giorgio Attili, Luiz Elias, o eletricista Miro Reis e o extraordinário cenógrafo José Vedovato, desta vez auxiliado pelo não menos competente Fernando Rosa. O assistente de câmera Osvaldo de Oliveira não estava disponível e foi substituído pelo veteraníssimo Eugênio Franchenko, um lituano mais conhecido como “Nuvem Branca”.

Outra novidade era a presença do maquiador Antônio Fracari, um dos grandes nomes do “soçaite” paulistano. Aos 27 anos, bonitão, rico e bem-relacionado, Fracari era o playboy do momento em São Paulo, amigo de Hebe Camargo e Roberto Carlos e dono de três fábricas de perucas que lhe rendiam fortunas. Mojica e Augusto foram até uma de suas lojas, na parte mais chique da rua Augusta, e o convidaram para fazer a maquiagem do filme. Ofereceram tanto dinheiro que ele não pôde recusar.

Na primeira semana de filmagem, Fracari não recebeu um centavo. Na semana seguinte, novo calote. Começou a desconfiar que havia sido trapaceado e ameaçou abandonar o projeto. Mas, àquela altura, já estava apaixonado pelo cinema. Gostou tanto da experiência, que esqueceu o calote e decidiu tornar-se produtor do filme. Combinou com Augusto que pagaria metade do orçamento em troca de metade do lucro na bilheteria. Jovem e impetuoso, Fracari logo tomou conta da produção. Ao contrário de Augusto, assumido preguiçoso que preferia ficar sentado dando ordens a pegar no pesado, Fracari gostava de assumir responsabilidades: ele fazia sugestões durante a filmagem, ajudava na cenografia e ganhou até o papel de Cláudio, o personagem que tem a cabeça esmagada por Zé do Caixão na câmara dos horrores.

Mojica havia gostado da experiência de rodas as cenas internas de Á Meia-Noite em estúdio e, por isso, pediu ao cenógrafo José Vedovato que construísse os cenários do novo filme dentro da sinagoga. Havia um quintal nos fundos do prédio, onde foi erguida a floresta. Mojica mandou seus alunos serrar árvores e arbustos para criar a mata, com um alerta especial para que dessa vez não desmatassem o largo do Arouche. No quintal também foi cavado um buraco redondo de 3 metros de diâmetro e 2 de profundidade, que Vedovato e Fernando Rosa encheram de água para criar o pântano.

A história de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver pedia cobras e aranhas. As aranhas Mojica conseguiram com Antônio Pereira, o Pereirinha, um excêntrico zoófilo, cientista e filantropo. Em sua casa em Cosmópolis, noroeste de São Paulo, Pereirinha criava caranguejeiras com o objetivo de extrair veneno e produzir um remédio que, sonhava, curaria o câncer e salvaria milhões de pessoas. As caranguejeiras eram as aranhas ideais para um filme de terror: apesar de sua aparência assustadora, eram muito mansas e seu veneno não fazia mal algum.

         Augusto incumbiu-se de buscar as aranhas. Ele tirou seu velho Aero-Willys da garagem e foi com Fracari até Cosmópolis. Foram recebidos pelo simpático Pereirinha que, imediatamente, levou-os até o quintal para conhecer suas “filhas”. Seu amor pelas caranguejeiras era comovente. Ele chamava cada uma pelo nome: “Filomena, vem cá! Não, Lucinéia, você não!”. As aranhas ficavam confortavelmente instaladas em buracos cavados na terra e cobertos de telhas. Eram mais de cem. Mojica havia pedido vinte, mas a oferta era tão grande, que acabaram levando sessenta.

         Fracari e Pereirinha puseram as aranhas numa caixa de papelão e colocaram a caixa no banco traseiro do Aero-Willys. Augusto estava tão nervoso, que nem conseguia dirigir. Sentou-se no banco do passageiro, suando frio, enquanto Fracari assumiu o volante na volta a São Paulo. Pereirinha foi atrás, sentado ao lado da caixa.

         A viagem foi um pandemônio: as aranhas, irritadas por estar empilhadas numa caixa, começaram a sair por buracos no papelão. Pereirinha tentava controlar suas bichinhas, mas era inútil: a cada curva, outra caranguejeira ficava à solta no carro. Logo havia aranhas peludas andando pelo teto. Augusto, apavorado, ajoelhou-se no banco do passageiro, virado para trás e batia nelas com um jornal. Pereirinha chorava: “Augusto, pelo amor de Deus! Não bata em Tatiana!”. Fracari nada podia fazer: estava tão ocupado com as caranguejeiras que caíam em sua cabeça, que acabou se descuidando da direção. Logo o Aero-Willys estava andando em zigue-zague pela estrada. Na altura de Cajamar, a 40 quilômetros de São Paulo, foram parados por um guarda rodoviário. O policial aproximou-se e fez sinal para que Fracari abrisse a janela.

         - Não dá! Elas vão escapar! – gritou Fracari de dentro do carro.

         O guarda chegou o rosto mais perto da janela para ouvir o que ele estava dizendo. Nesse instante, uma enorme aranha subiu pelo vidro. O policial deu um grito e correu para o meio da pista; por pouco não foi atropelado por um caminhão. Augusto aproveitou e pulou do carro, aos gritos. Fracari explicou ao guarda que as aranhas seriam usadas numa filmagem e depois levou meia hora convencendo Augusto a entrar de novo no carro. Quando finalmente chegaram à sinagoga, havia caranguejeiras andando pelo para-brisa do Aero-Willys.

 

         Naquela mesma noite, foi rodada a primeira cena com as aranhas: a sequência em que Zé do Caixão, depois de sequestrar seis moças, vai ao quarto delas de madrugada e solta um bando de caranguejeiras em cima das coitadas. As atrizes já haviam sido avisadas de que teriam que contracenar com os bichos peludos, mas só se conscientizaram da dificuldade da tarefa ao ver Pereirinha abrindo a caixa de papelão lotada de aracnídeos. A atriz Esmeralda Ruschel teve uma crise de nervos e quis desistir; Lya Laguete tentou fugir e teve que ser imobilizada por dois alunos. Mojica se irritou: “Deixem de frescura! Vocês já sabiam das aranhas! Agora que nós já filmamos um monte de cenas vocês querem desistir? Como vai ficar a continuidade da fita?”.

         Fracari pediu calma às moças e lembrou que Pereirinha havia trazido um anestésico para aliviar a dor no caso de alguma picada. Depois mandou vir água com açúcar para acalmá-las. A maioria preferiu pinga, mesmo.

         Mojica sabia que se esta cena saísse conforme o planejado, seria uma obra-prima: as seis moças dormindo, de camisolas curtas e transparentes, enquanto Zé do Caixão soltava as aranhas por baixo da porta. Para aumentar o suspense da cena, ele queria que as caranguejeiras passeassem por vários minutos sobre os corpos das moças, antes que as personagens acordassem.

         - Quero ver vocês cobertas de aranhas! – disse, entusiasmado, enquanto as atrizes se acalmavam com goles de cachaça.

         Chegou a hora de filmar. Attili preparou a câmera, Vedovato deu os últimos retoques no cenário e Mojica certificou-se de que os baby-dolls estavam deixando muita coxa e seios à mostra. Pereirinha segurava a caixa, só esperando o sinal de Mojica para soltar as caranguejeiras no chão, fora do ângulo de visão da câmera. Elas deveriam andar na direção das moças e subir pelas camas. As atrizes fingiriam dormir por alguns minutos, dando tempo para que as aranhas se espalhassem pelo quarto. Estava tudo certo. Só esqueceram de avisar as aranhas. Quando Mojica gritou “ação!”, Pereirinha soltou as caranguejeiras, mas elas ficaram paradas como estátuas.

         - Como é, essas merdas não andam? – perguntou Mojica, irritado.

         - Precisa de vento – respondeu Pereirinha.

         - Vento?

         - É, aranha só anda com vento no rabo!

         - Por que você não disse antes?

         Mojica mandou um assistente trazer dois ventiladores. As aranhas foram recolhidas à caixa e a equipe assumiu novamente suas posições. Pereirinha ficou a postos, esperando o sinal do diretor.

         - Luz...

         - Câmera...

         - Ação!

         Os ventiladores foram ligados e as aranhas entraram no quarto a galope, como o estouro de uma boiada. Subiram nas camas a cem por hora. Uma se alojou no ouvido de uma atriz; outra bichana quase entrou com tudo na boca de uma moça. Algumas caranguejeiras ficaram tão desorientadas pelo vento forte, que correram na direção oposta, para fora do cenário. Em poucos segundos, havia dezenas de caranguejeiras à solta na sinagoga. Foi um deus-nos-acuda: as atrizes choravam e se contorciam em espasmos, derrubando aranhas para todos os lados. Mojica de um pulo digno de ginasta olímpico e caiu de pé em cima de uma musa; Augusto subiu numa cadeira, com uma agilidade de espantar.

         Enquanto o pessoal se recuperava do susto, Pereirinha catava as aranhas. Depois de contar e recontar as caranguejeiras, ele garantiu que havia recuperado todas. Nos dias seguintes, no entanto, a equipe encontraria aranhas dentro de gavetas, no banheiro e até nos sacos de dormir.

         A cena teve de ser refeita várias vezes. Os ventiladores foram substituídos por longos tubos de papelão, nos quais os técnicos assopravam, tal como zarabatanas, para controlar o movimento das bichinhas. Também foram usados fios de náilon amarrados nas patas das aranhas. Levaram quatro dias para filmar todas as sequencias com as caranguejeiras, mas o esforço valeu a pena. Mojica sabe que havia filmado uma cena espetacular.

         As atrizes ainda estavam abaladas pela experiência com as caranguejeiras, quando Mojica mandou que elas se preparassem para a temida cena das cobras. Nesta sequência, quatro moças – novamente vestidas em minúsculos baby-dolls – são jogadas num poço e atacadas por vinte cobras, enquanto Zé do Caixão obriga uma coitada a assistir à agonia das colegas. As cobras – muçuranas, jiboias, boipevas, caninanas, jaracuçus do brejo e uma falsa coral, todas não venenosas – haviam sido emprestadas por um biólogo do Instituto Butantan.

         Naquela época não era difícil conseguir cobras e aranhas emprestadas no Butantan: bastava ter um bom papo. Qualquer um podia chegar lá e sair com uma jiboia debaixo do braço (a artista Luz Del Fuego vez por outra pedia uma cobra emprestada para suas apresentações). Mojica já conhecia o pessoal do Butantan há algum tempo: dois anos antes, conseguira com um dos chefes do Instituto, o alemão Wolfgang Bücherl – que ele chamava de “dr. Volks” – uma caranguejeira emprestada para filmar Á Meia-Noite Levarei Sua Alma, e agora convencera outro amigo a ceder as cobras. O sujeito fez questão de ir às filmagens e, para garantir a segurança das atrizes, amarrou a boca das cobras com fita durex.

         Contracenar com cobras seria uma tarefa difícil para qualquer atriz, mas a missão de Tânia Mendonça – uma moça voluptuosa, que pouco antes havia sido coroada miss São Caetano do Sul – era ainda mais espinhosa. Enquanto suas colegas tinham apenas que gritar e demonstrar pânico, sua personagem, Jandira, precisava rogar uma praga para Zé do Caixão ao mesmo tempo em que era estrangulada por uma jiboia. As primeiras tomadas da cena não deram certo: uma muçurana tentou engolir a canina, obrigando o dono das cobras a intervir. Tirada da cena a muçurana encrenqueira, a filmagem prosseguiu, depois de uma parada para que as atrizes tomassem outra talagada de pinga.

         Um assistente abriu as portinholas e as cobras começaram a entrar no poço, cercando as moças. Estas não precisaram fingir pânico, já que estavam realmente apavoradas. Mojica vibrava, satisfeito com o realismo da cena. De vez em quando, ele interrompia a tomada e pedia ao criador que pusesse as cobras em cima das atrizes, a essa altura em estado agonizante (no filme e na vida real!). A única que permanecia de pé era Tânia, pois estava na hora de rogar sua praga. O criador pegou uma jiboia e enrolou-a no pescoço da moça. Mojica queria que a personagem fosse morrendo aos poucos, sem parar de amaldiçoar Zé do Caixão.

         - Eu vou encarnar no seu cadáver, Zé! – gritava a atriz, enquanto a jiboia apertava seu pescoço.

         A cena era estupenda: Tânia em primeiro plano, sendo estrangulada por uma serpente, enquanto, ao fundo, as cobras cobriam os corpos das outras três mulheres, já mortas. Atrás da câmera, Attili gritava entusiasmado: “Que imagem!”. Mojica mandou Tânia ir caindo devagar no chão, agonizando, sem parar de rogar sua praga: “Eu vou encarnar no teu cadáver, Zé! Maldito seja!”.

         Sua voz ia perdendo a intensidade, como se a vida estivesse sendo sugada de seu corpo. Tânia ajoelhou-se, rogou a praga pela última vez e deitou de costas no chão. Mojica gritou “corta!” e soltou um urro de felicidade: “Puta que pariu, que cena!”.

         A equipe inteira explodiu em comemoração: houve gritos, abraços e beijos. Estavam tão eufóricos que demoraram a ouvir os berros desesperados de Tânia, que a essa altura estava com o rosto azulado, sendo estrangulada de verdade pela jiboia. O criador das cobras pulou no poco e só com muito esforço conseguiu desenrolar a serpente do pescoço da atriz.

        

         O principal papel feminino de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver é o de Laura, filha do coronel Almendes e amante de Zé do Caixão. Mojica deu o papel para uma morenaça chamada Nádia Freitas. A moça parecia perfeita para o papel: tinha carisma, um rosto bonito e, mais importante, um corpo bem torneado, que lhe valera o título de miss Boliche do Ipiranga 1965. O que Mojica não sabia é que ela tinha um gênio imprevisível. Nádia era capaz de se comportar como um anjo num dia e no outro cometer as maiores sandices. Era também muito namoradeira, suscetível a paixões múltiplas, rápidas e fulminantes. Certo dia ela pediu licença para tomar um cafezinho e desapareceu por uma semana com um dos figurantes. Mojica só faltou subir pelas paredes: “Eu mato essa vagabunda! Azeiteira!”.

         Ele pensou em substitui-la, mas já havia filmado tantas cenas com ela que não haveria tempo, nem dinheiro, para rodar tudo de novo com outra atriz. O jeito era aturar as extravagâncias da donzela. Nádia, percebendo que a equipe inteira dependia dela, começou a comportar-se como uma estrela hollywoodiana, reclamando dos técnicos e atores. Chegou a ameaçar abandonar a filmagem, porque não gostava das roupas de sua personagem.

         Mojica apelou: sabendo que ela tinha uma queda pelo produtor Fracari (aliás, todas as mulheres do elenco davam uma bola danada para ele), pediu ao bonitão que galanteasse a moça, para que ela não desaparecesse mais do set. Fracari ficou possesso, mas acabou aceitando o pedido. Afinal, havia investido seu próprio dinheiro no projeto. Ele combinou com Mojica que daria um fora em Nádia assim que acabassem de filmar. Depois, levou-a para um canto e disse que estava apaixonado por ela e que se casariam assim que terminassem o filme. Nádia, ingênua, acreditou na lorota e começou a espalhar que estava noiva do produtor. A equipe, já avisada do truque, lhe deu os parabéns e prometeu inclusive uma festa de noivado para o casal...

         Que Nádia tinha um parafuso a menos, todos estavam convencidos. Mas a moça tinha outro probleminha grave: um mau hálito tremendo. Quando Mojica foi ensaiar uma cena de beijo entre Zé do Caixão e Laura, sentiu o problema de perto: “Meu Deus, mas sua boca fede demais!”.

         A equipe caiu na gargalhada. Nádia, constrangida, culpou as longas horas de jejum. Mojica mandou um aluno ao armazém comprar cravo para ela mascar. Não teve jeito; o hálito continuava sinistro. Tentou-se de tudo: pastilhas, gargarejos, folhas de hortelã, até um chá caseiro à base de camomila. Mojica já estava a ponto de desistir da cena, quando teve uma ideia salvadora: chamou o assistente de produção, Eduardo Lafon, sujeito de barba preta e espessa como a dele, e perguntou se ele não queria aparecer no filme.

         - É lógico!

         - Então tá, você vai ser meu dublê pra cena de beijo!

         Mojica mandou Attili fazer um enquadramento bem fechado com a câmera no rosto dos dois, focalizando só as bocas. Assim, ninguém perceberia que não era ele que estava beijando a mola. Lafon – hoje diretor da Rede Record – precisou enfrentar o hálito feroz da atriz, mas pode se orgulhar de ter inaugurado a profissão de dublê de barba.

         Nádia pagou todos os pecados naquela filmagem. Durante uma cena crucial do filme, em que sua personagem, Laura, está doente e prestes a morrer, ela teve de submeter-se a um método de encenação doloroso: irritado com a canastrice da moça, que não conseguia se fingir de doente, Mojica pegou um alicate e foi apertando o dedão do pé da atriz, enquanto a câmera focalizava seu rosto agonizante. A cena ficou perfeita.

         Mojica decepcionou-se também quando Nádia tirou a roupa para fazer a cena em que sua personagem é seduzida por Zé do Caixão. Achou-a muito magra. Queria uma personagem voluptuosa, de coxas grandes e seios fartos, e Nádia não preenchia os requisitos. Ele não se desesperou: escolheu duas alunas, uma de seios grandes e a outra com coxas grossas, e rodou cenas de Zé do Caixão afagando os seios da primeira e as nádegas da segunda. Uma montagem esperta resolveu o problema: ninguém dizia que aquele mulheraço que aparecia na tela era na verdade uma colagem de três mulheres, com o rosto de Nádia, os seios de uma figurante e o traseiro de outra.

         As filmagens com Nádia foram uma verdadeira via crucis e exigiram de Mojica criatividade, capacidade de improvisação e muita paciência. Por isso, ele estava radiante quando chegou o último dia de filmagem com a atriz. Só faltava uma ceninha, na qual Nádia dialogava com Fracari, que interpretava seu irmão no filme. Assim que terminou de rodar a cena, Fracari perguntou para Mojica:

         - A Nádia tem mais alguma cena?

         - Não, acabou, não tem mais nada.

         - Tem certeza? Nada mesmo, Mojica?

         - Tenho, Fracari, o trabalho dela acabou.

         (....)

        

As filmagens entravam em seu terceiro mês. Tirando as extravagâncias de Nádia e os sustos com as cobras e aranhas, tudo corria bem. O assistente de cenografia Fernando Rosa, o desenhista Luigi Calvano e o maquinista Virgílio Roveda, mais conhecido por “Gaúcho”, começaram a construir os cenários do inferno, onde seriam rodadas as cenas da descida de Zé do Caixão ao reino das trevas (Rosa e Gaúcho, aliás, fazem pontas no file; Rosa é o juiz que absolve Zé do Caixão no início da fita e Gaúcho interpreta o guarda que está de pé, ao seu lado).

         Mojica queria reproduzir o pesadelo que tivera três anos antes e que o inspirara a criar Zé do Caixão. Ele bolou uma cena na qual Zé é arrastado por uma criatura sinistra até um cemitério, onde os mortos saem as sepulturas e o puxam para dentro da terra. Depois haveria uma longa sequência mostrando Zé no inferno. Como atração extra, Mojica decidiu filmar as cenas do inferno em cores, enquanto o resto do filme seria em preto-e-branco.

         As filmagens cairiam em plena Semana Santa. Essa estranha coincidência deixou muita gente da equipe cabreira. Os mais devotos chegaram a pedir a Mojica que adiasse a filmagem, mas ele respondeu que não acreditava em superstição e que filmaria mesmo no dia combinado. Na quarta-feira, véspera do feriado santo, a equipe começou a rodar a cena em que os mortos saíam das tumbas e puxavam Zé do Caixão para o inferno.

         Os cenógrafos haviam montado o cemitério no quintal da sinagoga, com cruzes, lápides e cercas. O grande desafio, no entanto, seria pensar numa forma de mostrar os mortos saindo das sepulturas. O cenógrafo Fernando Rosa teve uma ideia tão eficiente quanto simples: mandou cavar vários buracos, que foram cobertos com tábuas finas e escondidos sob palha e serragem. Nestas tábuas foram abertos buracos para os braços dos atores. Estes ficariam deitados dentro dos buracos e esticariam os braços para fora ao comando de Mojica, dando a impressão de que estavam saindo da terra.

         Havia no roteiro uma cena em que Zé do Caixão caía em cima de uma tumba e era puxado por um cadáver para dentro da sepultura. Em vez dos dois buracos para os braços, os cenógrafos precisaram abrir um buraco maior na tábua, por onde pudesse passar o corpo de Mojica. Tudo que precisavam agora era de alguém bem forte para puxá-lo para dentro da terra. Fracari foi o escolhido. A previsão de mau agouro feita pelos técnicos começou a se tornar realidade: o buraco aberto na tábua era muito estreito. Quando Fracari, com a força e disposição de seus 27 anos, puxou Mojica para dentro da cova, este ficou entalado na tábua e por pouco não quebrou as costelas. “Porra, Fracari, você tá me matando!”, gritou, de cabeça para baixo, com o tronco afundado nas profundezas do inferno e as pernas empinadas como uma palmeira-real. Assim que abriu a boca para reclamar de dor, Mojica engoliu um punhado de serragem e começou a sufocar.

         A bruxa estava solta: na tarde seguinte, um ucraniano chamado Konstantin Tkaczenko, de quem Augusto havia alugado câmera e refletores, foi à sinagoga reclamar que não havia recebido pelo aluguel do equipamento e que levaria toda sua tralha embora. Mojica, Augusto e Fracari protestaram, mas o sujeito não quis conversa: não vira a cor do dinheiro prometido por Augusto e tinha e tinha outro cliente disposto a pagar mais pela câmera (o “outro cliente” era ninguém menos que o cineasta Luiz Sérgio Person, diretor de São Paulo S.A. e amigo de Mojica, que estava prestes a filmar O Caso dos Irmãos Naves). Fracari disse que não entregaria o equipamento de jeito nenhum. Tkaczenko se enfureceu. Os insultos continuaram, cada vez mais pesados, até que Fracari perdeu a paciência e deu uma tesoura voadora em Tkaczenko. O ucraniano, bom de briga, esquivou-se e retribuiu com um “telefone” nas orelhas de Augusto. Daí o tempo fechou de vez: a equipe inteira caiu em cima do coitado e até Mojica, magrinho, arriscou uns tapas.

         Não poderiam ter escolhido uma hora pior para brigar: justamente naquele dia, Fernando Rosa e Gaúcho estavam terminando de retocar a cobertura de gesso do cenário do inferno. Havia pó de gesso por toda parte. Tkaczenko, Mojica, Fracari e Augusto rolaram pelo chão e ficaram todos brancos. Gaúcho tentou apartar a briga, agarrando Tkaczenko por trás e empurrando-o em direção à escadaria. Só que o empurrão foi forte demais e o ucraniano acabou rolando dois lances de escada. Foi parar na porta da sinagoga, completamente grogue de tanta pancada. Gaúcho correu, empurrou-o para fora e trancou rapidamente o cadeado. Todos respiraram aliviados, achando que estavam livres de Tkaczenko. Algumas horas depois, no entanto, ele voltou, todo enfaixado e carregando dois revólveres. Furibundo, descarregou uma dúzia de balaços na porta, enquanto os vizinhos estavam estarrecidos. Foi embora, prometendo voltar e matar todo mundo.

        

         Na madrugada seguinte, alguns membros da equipe técnica resolveram dormir no próprio estúdio. A filmagem havia terminado às três da manhã e estavam todos exaustos. Como de hábito, o pessoal se aqueceu com várias garrafas de cachaça e conhaque antes de encarar o desconforto dos sacos de dormir. Não havia um técnico naquela equipe que não curtia uma birita. A turma chegava ao requinte de deixar uma garrafa de Cinzano pendurada no tripé da câmera, para quem quisesse molhar o bico durante as filmagens. Mojica só trabalhava com um copo de vinho na mão. Naquela madrugada, ninguém bebeu mais que o assistente de câmera Eugênio Franchenko, o Nuvem Branca. Nuvem era um sujeito muito querido, bom de papo e de copo. Costumava filmar com dois cantis na cintura, um com pinga e outro com Coca-Cola. Dizia: “Para aí um instantinho que agora vou tomar meu lanche”, e dava um gole em cada cantil.

         De manhã, a equipe acordou com um barulhão. Nuvem Branca estava caído no chão, tremendo e gritando. Estava sofrendo de delirium tremens, uma perturbação mental causada por excesso de álcool e que provoca tremores e alucinações aterrorizantes. O contra-regra Roberto Leme botou-o num táxi e correu para o hospital, mas Nuvem Branca sofreu uma parada respiratória e morreu poucos minutos depois de chegar à emergência. O enterro aconteceu naquela mesma tarde, com a presença de toda a equipe do filme e da turma de cinema que se reunia no bar Costa do Sol. Mojica estava arrasado e arrependido. Filmar o inferno na Semana Santa realmente havia sido uma má ideia.

         Horas depois, estavam todos de volta ao set. Por mais deprimidos que estivessem, não podiam se dar ao luxo de interromper a filmagem. Só que agora era Mojica quem corria o risco de parar no hospital: para não esquecer da morte do amigo, ele enxugou quatro garrafas de Tatuzinho e ficou parecendo um morto-vivo. No meio da cena do inferno, caiu de costas no chão, desmaiado. Fracari, Nilce e o maquiador Alfonso Barros levaram-no para o Hospital Sírio Libanês, onde ele ficou um dia inteiro fazendo desintoxicação. O pileque era dos brabos: de vez em quando Mojica acordava, levantava-se da cama e gritava: “Vamos filmar! Attili, pega a câmera!”. Em seguida, caía de novo, desacordado.

 

         Alguns dias depois, a equipe começou a filmar nos cenários da floresta, construídos no quintal da sinagoga. Assistindo ao filme, fica difícil acreditar que aquele matagal todo que aparece na tela na verdade não passava de meia dúzia de árvores e alguns arbustos. No filme há um lago, que Zé do Caixão cruza de bote e um pântano, onde ele joga os corpos de suas vítimas. Tanto o lago como o pântano foram filmados no buraco de 3 metros de diâmetro que a equipe cavou no quintal e depois encheu de água.

         Foi preciso muito talento de Mojica, do fotógrafo Giorgio Attili e do montador Luiz Elias para criar essas sequencias. Attili iluminou o cenário de forma a deixar visível o primeiro plano de cada cena e escurecer o fundo. Também trocava sempre o ângulo de visão da câmera, para dar a impressão de que a floresta era muito maior do que na realidade. Juntando esses truques simples à montagem inteligente der Luiz Elias, Mojica conseguiu fazer sequencias que pareciam ter sido filmadas numa floresta de verdade. Há até uma perseguição que dura vários minutos, composta de dezenas de cenas curtas, montadas com maestria por Elias.

         A notícia da filmagem no quintal da sinagoga rapidamente se espalhou entre a turma de cinema de São Paulo. Cineastas como Rogério Sganzerla, Carlos Reichenbach, Andrea Tonacci e Jairo Ferreira começaram a frequentar o estúdio do Brás, e ficavam embasbacados com a criatividade de Mojica. Ninguém acreditou quando viram um de seus assistentes em cima do telhado da sinagoga, usando luvas de borracha e encostando dois cabos de alta tensão para criar relâmpagos.

         No dia em que Mojica foi rodas a sequência da luta entre Zé do Caixão e os capangas do coronel, havia pelo menos vinte curiosos na plateia. Nesta cena, Zé chama os capangas para a briga e estes, incautos, correm em sua direção, sem perceber que entre eles e o coveiro está um pântano de areia movediça. Quando os atores se jogaram no poço imundo cavado no quintal, um deles esqueceu de fechar a boca e perdeu a dentadura.

         - Minha dentadura! Seu Mojica, para a filmagem!

         Mojica ficou furioso:

         - Que para o quê, rapaz, tá maluco? Tá gastando negativo! Afunda, porra!

         - Mas seu Mojica...

         - Se afoga, porra! Depois a ente acha sua dentadura! Ela não vai a lugar nenhum!

         Depois de terminada a cena, sob aplausos entusiasmados da plateia, a equipe de cenografia esvaziou o buraco e do lamaçal saíram, intactos, os dentes do ator.

        

         Sganzerla, Reichenbach e outros jovens cineastas iam à sinagoga para aprender com Mojica. Era uma lição gratuita de como aproveitar ao máximo os recursos disponíveis e de como superar a pobreza técnica usando a criatividade.

         Nenhuma cena de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver revela mais claramente o alento visionário de Mojica do que a descida de Zé do Caixão ao inferno, sem dúvida uma das sequencias mais inventivas da história do cinema brasileiro e digna de figurar em qualquer antologia das melhores cenas do cinema de horror. Trata-se de uma alucinação psicodélica e surreal, com cabeças, braços e pernas saindo de paredes, sangue jorrando do teto, mulheres crucificadas de cabeça para baixo e diabos de tridente na mão espetando penitentes que se arrastam pelo chão pedregoso.

         Mojica não deixou que a pouca verba de que dispunha transparecesse na tela; muito pelo contrário: quem assiste à sequência do inferno jura de pés juntos que ele gastou uma fábula em efeitos especiais e cenários, quando na verdade todos os truques foram criados por ele e sua equipe. O gelo que cobra o chão (o inferno de Mojica é gelado) foi feito de pipoca; o sangue pastoso que corre nos corpos dos condenados é uma mistura de tinta vermelha e sal de frutas.

         O cenário do inferno foi construído com madeira e gesso, e lembrava o interior de uma caverna. No chão, foram cavados vários buracos, por onde passavam fios elétricos. Esses buracos eram cobertos com pólvora e terra vermelha, e explodiam quando se ligava a corrente elétrica, dando a impressão de pequenas explosões de fogo saindo do chão do inferno.

         Uma das cenas mais impressionantes é a que mostra Zé do Caixão encontrando o imperador romano Nero, interpretado pelo próprio Mojica. Os dois ficam lado a lado, na mesma imagem. Hoje, com as modernas técnicas de computação gráfica, esta cena poderia ser feita com perfeição, embora a um custo elevado. Mojica, no entanto, obteve um resultado perfeito usando um recurso baratíssimo e que experimentava desde criança: o de dupla exposição no mesmo negativo.

         Ele explicou ao fotógrafo Giorgio Attili como pretendia rodar a cena: primeiro filmariam uma sequência, tapando a lente para expor apenas metade do negativo. Depois retrocederiam o filme na máquina e rodariam a segunda cena, tapando a outra metade da lente. Attili achou que não ia dar certo. Ele já havia experimentado a dupla exposição sem sucesso. Sua justificativa era de que, ao tapar metade da lente para rodar a primeira cena, inevitavelmente alguma luz vazada para dentro da câmera e gravava imagens na metade que deveria ficar virgem. Mojica tranquilizou-o:

         - Eu faço isso desde criança, Attili, deixa comigo!

         O que Mojica não havia revelado ao fotógrafo era que conhecia um “segredo especial” para fazer dupla exposição: em vez de tapar a entrada de luz na boca da lente, ele desmontou a câmera (uma Mitchell, grande e pesada) e colou um pedacinho de cartolina preta dentro da máquina, tapando metade da janela por onde passa a luz que vem da lente para o negativo. Daí rodou a cena com Zé do Caixão, tendo o cuidado de marcar bem a posição dos atores e do cenário. Em seguida, retrocedeu o negativo, trocou a posição da cartolina preta – tapando a outra metade da janela – e filmou a cena em que Nero, sentado num trono e cercado de escravas nuas, ria de Zé. A sincronia entre os dois personagens é absolutamente perfeita e não há indício algum que as duas imagens tenham sido gravadas em separado. Um trabalho irretocável, executado com precisão milimétrica e timing perfeito. Espantoso!

         As técnicas de Mojica para economizar dinheiro surpreendiam até mesmo profissionais experientes. Quando precisou rodar uma cena mostrando o exterior de uma casa, ele pediu ao veterano diretor Ozualdo Candeias que tirasse uma foto da tal casa e depois filmou a própria fotografia. Novamente o resultado foi perfeito. Um técnico quis saber por que não haviam filmado logo a casa de uma vez. Mojica explicou que não compensaria transportar uma equipe inteira numa kombi, carregando equipamento pesado, quando ele poderia obter o mesmo resultado dentro do estúdio, sem precisar sequer iluminar a cena.

         A verdade é que Mojica não gostava de rodar externas. Ele preferia trabalhar dentro do estúdio, onde se sentia mais criativo e seguro. Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver foi praticamente todo rodado dentro da sinagoga ou no quintal do prédio. Dois 107 minutos do filme, menos de 5 foram filmados fora da sinagoga, em Bonsucesso, um bairro da Grande São Paulo.

         Outra técnica de Mojica para poupar dinheiro era a utilização de atores em múltiplos papéis. A sequência do inferno, por exemplo, parece ter um elenco numeroso, quando na realidade são os mesmos dez atores interpretando diferentes papéis. A atriz Paula Ramos aparece três vezes nesta cena, e outras duas vezes durante o resto do filme.

         Quando o assunto é economizar dinheiro, Mojica não tem pudor nem em reaproveitar cenas filmadas para outros filmes. Em Esta Noite ele usou diversas vezes a imagem dos olhos injetados de Zé do Caixão, criada pelo técnico em efeitos visuais Indrikis Kruskops para Á Meia-Noite Levarei Sua Alma. Também reaproveitou no início do filme, a longa sequência do ataque dos espíritos, que encerrava Á Meia-Noite Levarei Sua Alma, tendo o cuidado apenas de fazer algumas modificações nos diálogos para que a história fizesse sentido. Exemplo: em Á Meia-Noite, os moradores da cidadezinha, atraídos pelo barulho no cemitério, encontram o corpo de Zé do Caixão. A impressão que se tinha era de que Zé estava morto. Quando foi fazer Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, Mojica precisava “ressuscitar” o personagem. Tudo que fez foi copiar esta sequência e dublar um dos figurantes dizendo “Ele vive!”, quando vê Zé caído no chão.

         É evidente que Mojica tentou fazer de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver um filme mais ambicioso e tecnicamente mais complexo que Á Meia-Noite Levarei Sua Alma, com cenários maiores, efeitos especiais elaborados e um elenco mais numeroso. Para “sofisticar” ainda mais seu novo filme, ele pediu à escritora Aldenoura de Sá Porto que escrevesse os diálogos. Aldenoura errou o tom e escreveu falas pomposas, que soam falsas na boca dos personagens de Mojica (a não ser que alguém acredite que um capataz do coronel possa dizer coisas do tipo: “Não descansarei enquanto não ver de seus poros escorrer suor de sangue!”.

         Mesmo com todas essas “melhorias”, que na verdade representavam apenas uma tentativa malsucedida de aproximar-se de um cinema de “bom gosto”, Esta Noite mantém as qualidades que fizeram de Á Meia-Noite um filme especial, como a fotografia expressionista, a comunicação direta com o público e cenas chocantes por sua audácia e originalidade. Mojica havia finalmente encontrado o meio-termo ideal entre o primitivismo de seu estilo e a sofisticação de produção. E foi esta mistura que fez de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver seu filme mais popular.

 

Publicado originalmente em BARCINSKI, André & FINOTTI, Ivan. Maldito: a vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. São Paulo: Editora 34, 1998.

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