sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Mojica early years, parte VI: 1963-1964: Nasce Zé do Caixão

         Capítulo 5: 1963-1964: Nasce Zé do Caixão

        


              Por André Barcinski e Ivan Finotti

 

         O fracasso de Meu Destino em Tuas Mãos foi uma lição amarga. Mojica decidiu que nunca mais faria um filme apenas para agradar aos outros.

         - De que adianta agradar aos padres e fazer um filme que ninguém quer ver? – disse a seus alunos. – Temos que fazer os filmes que o povão quer ver! E o povão quer é ação e sexo! Ninguém quer pagar para ver coisas chata!

         Mojica sugeriu filmarem Geração Maldita, um roteiro policial que ele tinha guardado há quase dez anos. Augusto Pereira, ainda abalado financeiramente pelo prejuízo e Meu Destino em Tuas Mãos, não quis nem saber de produzir o novo filme. A única solução para Mojica seria convencer seus alunos a comprar cotas da fita.

         Ele reuniu a turma e contou a trama em detalhes, caprichando na dramaticidade. Prometeu um filme cheio de ação e aventura, com muitas reviravoltas na história e um final apoteótico, em que bandidos e polícia se enfrentariam num tiroteio até a morte. Seu poder de persuasão era realmente extraordinário, e os alunos ficaram extasiados. Eles já se viam filmando arriscadas cenas de perseguição, tiroteios sangrentos e pancadarias mil. Ficou combinado que o filme seria rodado em 35 milímetros e financiado novamente pelo nebuloso sistema de cotas. Mojica não perdeu tempo e ordenou a turma que começasse imediatamente a arrecadação da verba:

         - Vale qualquer coisa: façam pedágio nos bairros, arrumem patrocínios com lojas, vendam cotas...Se for preciso, implorem para seus pais! Dinheiro é dinheiro, não me importa de onde venha!

         Enquanto seus devotos tratavam de conseguir a verba para o filme, Mojica passou os dias seguintes pensando no roteiro. Ele gostava da história, mas sentia que estava faltando um ingrediente crucial: sexo.

         - Temos bastante ação e violência, mas precisamos de algumas cenas mais quentes ! – disse Mário Lima. – Não tem nenhuma sacanagem nesse filme!

         Mojica foi para casa, prometendo pensar em sequencias da pesada. No dia seguinte, já entrou no estúdio aos gritos:

         - Venham todos! Tive uma ideia!

         A turma reuniu-se em volta de Mojica. Ele fechou os olhos e levantou os braços para o céu, como se estivesse tendo uma visão. Depois começou a narrar:

         - A câmera passeia por uma igreja lotada. Está acontecendo um casamento. Não é um casamento qualquer...O noivo é um dos bandidos mais perigosos da cidade. É o chefe de uma quadrilha de assassinos...Todos os comparsas estão na igreja...O padre diz: “Se alguém tiver alguma coisa contra esse casamento, que fale agora ou cale-se para sempre...” Daí um membro de uma gangue rival entra na igreja e diz: “Pera lá, seu padre, que eu tenho uma coisa aqui que pertence à noiva”, e tira do bolso uma calcinha. Ele diz: “Essa vagabunda esqueceu isso ontem lá no hotel!”. O noivo fica revoltado, puxa um 38 e começa um tiroteio do cacete dentro da igreja!

         Os alunos ficaram perplexos:

         - É boa a cena, mestre, mas não tem muito a ver com a trama, né? – perguntou um deles.

         - Não se preocupe, depois a gente inventa alguma cena de ligação.

         - Mas não vai ficar meio pesado? Esse troço de calcinha no hotel já não é direito, e ainda mais dentro da igreja!

         - Que nada, o público quer é isso mesmo! Não viu o que aconteceu quando a gente foi confiar na opinião dos outros? Agora temos que botar para quebrar! Nesse filme vai ter sexo e tiro de sobra!

         O próximo passo seria selecionar os atores. Para isso, Mojica usou uma tática tão esdrúxula quanto oportunista: em vez de dividir o elenco baseado no talento de casa aluno, distribuiu os papéis de acordo com a quantia que cada um havia desembolsado para ajudar a produção.

         - Se alguém se sacrificou pelo filme, merece um bom papel. Quanto mais grana, mais destaque!

         Mas a época era de vacas magras. Por mais que os alunos se esforçassem, não estavam conseguindo arrecadar o suficiente. Era, afinal, uma produção cara, com diversas locações, perseguições de automóvel, tiroteios, e um elenco numeroso. Os alunos eram uns pobretões, e os trocados que haviam juntado de parentes e amigos não seriam suficientes para rodar nem um terço da fita. Mojica pressentiu que não conseguiria a verba para o filme. Mais um fracasso, mais um projeto inacabado. Ou, pior, sequer iniciado! Seu nervosismo e insegurança voltaram com força redobrada. Voltou para casa deprimido. Naquela noite, demorou horas para pegar no sono...

 

         Era uma noite fria e Mojica estava deitado de costas no chão, ao relento. Por mais que tentasse, não conseguiria mover seu corpo. Estava paralisado. De olhos abertos para o céu, via as estrelas e, no canto dos olhos, alguns galhos de árvores. Julgou estar num jardim. Sentiu a aproximação de alguém. Viu o vulto de um homem. A imagem estava turva. Na escuridão, distinguia apenas uma silhueta.

         A figura começou a se delinear com mais claridade. Era um sujeito baixo, magro, vestido de negro da cabeça aos pés. Havia, no entanto, algo de muito peculiar naquela figura: o rosto. Sim, o rosto era familiar. O queixo pontudo, as sobrancelhas espessas, a barba rala...Ele lhe lembrava alguém...A imagem fez-se mais clara, e Mojica pôde ver o rosto da figura...Não, não era possível! Não podia ser! Olhou fixamente para o homem e confirmou o que temia...Era ele próprio! Mas como podia ser? Existiram dois Mojica?

         Sem dizer nada, o clone o pegou pelos braços e começou a arrastá-lo pelo terreno acidentado. Não era um jardim, mas um cemitério! Mojica foi arrastado por entre sepulturas, gritando em desespero. O clone parou em frente a uma cova aberta. Mojica levantou os olhos e leu a inscrição na lápide: JOSÉ MOJICA MARINS – 1936 -...

         Num reflexo, fechou os olhos, para não ler a data da morte. O clone começou a empurrá-lo para a cova aberta...

         - Não! Socorro! Pelo amor de Deus, me ajuda!

 

         Acordou empapado de suor. Rosita o abraçava.

         - O que foi, José? Meu Deus, como você gritou!

         - Foi um pesadelo horrível, Rosita! Nossa Senhora, se eu contar você nem acredita!

         Eram quatro da manhã quando acordou. Estava suando frio e seu coração batia a mil por hora. Que medo sentiu! Que pânico! Teria sido um sinal? O que significava aquele pesadelo? Estaria ele se matando pouco a pouco? Sim, deve ser isso, pensou, “Eu estou me matando, estou me arruinando!”. Sua vida estava em frangalhos, sua carreira também, e ele próprio era o culpado. Mojica não conseguiu mais pregar o olho. Decidiu levantar. Rosita havia voltado a dormir. Ele se vestiu e foi para a cozinha. Preparou um café, sentou-se à mesa, e começou a recordar o pesadelo...

         Já estava mais calmo. Os primeiros raios de sol entravam pela janela da cozinha. O bairro continuava em silêncio. Sozinho com seus pensamentos, pôde analisar o sonho com mais frieza...Que cena! Que dramaticidade! Se conseguisse passar para um filme um décimo da força daquela cena, faria um filme genial!

         Até que não era má ideia...

         O sonho foi como uma fagulha que incendiou sua imaginação: começou a lembrar dos filmes de Boris Karloff e Bela Lugosi que assistira no Santo Estevão. Como gostava de Drácula! E Frankenstein! Ninguém conseguia tirar os olhos da tela! Lembrou-se de Torre de Londres, com Karloff, e do Drácula de Lugosi...

         É isso! Um filme de terror! Por que não havia pensado nisso antes?

         Mojica correu para o quarto, despediu-se da sonolenta Rosita com um beijo displicente e saiu de casa. Andou apressado pelas ruas de terra. A Casa Verde estava acordando. Operários começavam a deixar suas casas rumo ao trabalho; padarias abriam as portas para receber os primeiros fregueses. Absorto em seus pensamentos, ele andava como um sonâmbulo, sem olhar para os lados, sem falar com ninguém. Parecia estar vagando por outra dimensão. Andou por quase uma hora e chegou ao estúdio na Frederico Abranches. Mas não subiu. Antes, tocou a campainha num apartamento no mesmo prédio.

         - Quem é? – gritou uma voz sonolenta.

         - Sou eu, o Mojica! Previso falar com você!

         - Mas tão cedo assim?

         - É uma emergência!

         Mojica ouviu o barulho do movimento dentro da casa. Depois de alguns minutos, uma moça abriu a porta. Era exatamente a pessoa que ele estava procurando: sua aluna e secretaria da Apolo, uma moça simpática e muito prestativa cujo nome em nada refletia sua eficiência e boa vontade. Chamava-se Neutra.

         - Desculpe acordar você numa hora dessas, Neutra, mas preciso da sua ajuda. Você tem que ir comigo pra escola, já!

         Quando os alunos começaram a chegar para a aula, lá pelas quatro da tarde, viram Mojica andando de um lado para outro do escritório, ditando cenas em voz alta para Neutra, que batia tudo à máquina. A moça, exausta, se esforçava para acompanhar o ritmo frenético da imaginação de Mojica:

         - Mais devagar, mestre, que eu não sou datilógrafa profissional!

         Algum tempo depois, Mojica finalmente disse “Fim”, para felicidade da moça, que estava prestes a desmaiar de fome e cansaço. Ele mandou reunir os alunos e, erguendo numa das mãos um calhamaço de papel datilografado, como um pastor exibindo a Bíblia, disse:

         - Vocês sabem o que é isso aqui? É a nossa salvação!

         Tratava-se de um filme de terro, explicou Mojica. Chamava-se Á Meia-Noite Levarei a Sua Alma e era a história de um coveiro chamado Zé do Caixão, que aterrorizava uma cidade, matava um monte de gente e no final era morto pelos espíritos de todas as pessoas que ele havia assassinado. Os alunos acharam aquilo uma tremenda palhaçada.

         - Mas mestre, e o filme de bandido?

         - É, nós gostamos tanto daquele filme!- reclamou outro.

         Mojica explicou que Geração Maldita seria muito caro e que já havia outros filmes policiais sendo feitos. Terror, não, ninguém fazia filmes de terror no Brasil. Eles seriam os primeiros. Seus discípulos não gostaram nada da ideia de desistir do filme policial, mas Mojica estava obcecado, e eles sabiam que, quando o mestre punha alguma coisa na cabeça, era impossível fazê-lo mudar de ideia. Ele contou seu pesadelo, disse que aquilo era um aviso do Além, e que eles se arrependeriam se contrariassem uma mensagem dos céus. A maioria se convenceu. Alguns, no entanto, desistiram de colaborar com dinheiro para o novo filme.

         Cerca de quarenta alunos toparam arriscar seu dinheiro na empreitada. Mojica estipulou um preço por cota – 100 mil cruzeiros, o equivalente na época a 100 dólares – e começou a vende-las. Mário Lima comprou três cotas; Arildo de Lima comprou logo quinze de uma vez. Até os pais de Mojica colaboraram, com três cotas. Em duas semanas, Mojica havia vendido oitenta cotas e arrecadado 8 milhões de cruzeiros (cerca de 8 mil dólares).

         Sem Augusto para organizar as coisas, o esquema das cotas virou uma bagunça: ninguém sabia a porcentagem que cada um representava sobre o orçamento total do filme, e a única prova que tinham de seu investimento eram pequenos pedaços de papel que Mojica recortou, escrevendo em cada um “vale uma cota”. Nem ele próprio tinha ideia do que estava fazendo. A única coisa que lhe interessava era que agora tinha algum dinheiro para começar o filme. Fez alguns cálculos rápidos e concluiu que ainda precisaria de pelo menos 6 milhões de cruzeiros.

         - Vou conseguir esse dinheiro nem que tenha de vender minha casa!

 

         Mojica organizou uma coleta entre parentes e tomou dinheiro emprestado de amigos. Seus pais, sempre dispostos a sacrifícios para ajudá-lo, venderam o velho Mercury Sedan 1947 e investiram tudo na fita. Mas ainda não era suficiente. Mojica começou a pressentir outro fracasso e entrou em depressão. Rosita estava preocupada. Nunca vira seu marido tão nervoso e irritado. Os dias passavam e o desespero de Mojica só aumentava. Ele chegava a chorar na mesa de tanta tristeza. A mulher tentava acalmá-lo:

         - Calma, José que as coisas vão se ajeitar!

         - Mas como, Rosa? Eu não tenho mais a quem pedir dinheiro! Minha carreira está acabada! Se eu não conseguir fazer esse filme, vou fazer uma maluquice!

         - Ah, é? Que maluquice?

         - Vou me matar!

         - Deixa de drama, homem!

         - Não é drama não! Juro que me mato!

         Mojica aproveitou a cena altamente dramática para dizer o que vinha ensaiando há dias:

         - Rosita, só tem uma solução: vamos sair de casa! Assim dá pra economizar o dinheiro do aluguel!

         - E morar onde, José? Debaixo da ponte?

         - Não, Rosa, você pode ficar um tempo com seus pais enquanto eu filmo, e logo depois que eu terminar a gente aluga outra casinha. É o único jeito!

         - Ainda não entendi como é que sair de casa vai economizar tanto dinheiro assim!

         - Não é só sair de casa, não, Rosa, tem mais...Nós precisamos vender os móveis também...

         - Você está maluco, José?! Vender a mobília? Você deve estar com um parafuso a menos!

         Mas José implorou. Agarrou os joelhos de Rosita e chorou como uma criança. Era a única solução, disse. Prometeu que era só por um tempo, que logo ele conseguiria recuperar o dinheiro e comprar uma mobília nova.

         - Eu juro por Deus, Rosa! Eu preciso fazer esse filme! Rosita, me ajuda! Esse filme vai ser um sucesso e quando eu recuperar o dinheiro, prometo que compro tudo novinho!

         Rosita sabia que era inútil brigar com o marido. Quando o assunto era cinema, ele não enxergava mais nada. Mojica acabaria vendendo toda a mobília, mesmo que ela se amarrasse à comida. Furiosa, Rosita fez as malas e foi para a casa dos pais, na via Anchieta, em São João Clímaco. Seu pai, que já não ia com a cara do genro, passou a abominá-lo: “Bem que falei pra você não se casar com aquele débil mental!”.

         Mojica disse para Rosita que passaria os meses seguintes morando num hotelzinho no centro, mas na verdade foi correndo para o apartamento de Maria, no Brás. A separação “provisória” entre ele e Rosita duraria para sempre. Os dois nunca mais morariam sob o mesmo teto.

         Depois de despachar a esposa, Mojica chamou o dono de uma loja de móveis de segunda mão para avaliar a mobília. O sujeito ofereceu uma mixaria e levou tudo: cama, estantes, armários, mesa de jantar, poltronas, sofá, até a geladeira. Mojica aproveitou o embalo e vendeu também suas roupas. Ficou só com duas camisas, uma calça e um par de sapatos, mas havia conseguido juntar quase 6 milhões.

        

         A história de Á Meia-Noite Levarei a Sua Alma se passa numa cidade interiorana não-identificada. O personagem principal é Josefel Zanatas, o coveiro e agente funerário local, apelidado de Zé do Caixão. Ele é um sujeito enigmático, que zomba das crendices dos caipiras locais e se diz superior a eles. Zé blasfema e falam mal dos carolas da cidade. Em plena Sexta-Feira Santa, ele come carne de carneiro e ri da procissão que passa embaixo da sua janela. Zombeteiro, Zé mostra o osso de carneiro para os padres, que se benzem quando o veem.

         Zé tem uma obsessão: encontrar uma mulher que lhe dará o “filho perfeito”. Ele é casado com Lenita, mas decide matá-la porque ela não consegue engravidar (“A mulher que não consegue ter filhos não precisa de cuidados”, diz o personagem, num rompante machista curiosamente parecido com o que o próprio Mojica usara para criticar sua esposa Rosita durante os seis anos em que ela tentara, sem sucesso, engravidar). Zé amarra Lenita e solta uma aranha caranguejeira em cima de seu corpo.

         Livre da esposa, o coveiro volta suas atenções para Terezinha, noiva de seu amigo Antônio. Zé acompanha o casal até a casa de uma vidente cigana, e esta prevê desgraças para os noivos. A previsão não demora a se concretizar: o coveiro afoga Antônio numa banheira e depois estupra Terezinha (“você me dará o filho que eu tanto quero!”). Humilhada, Terezinha se enforca. Zé encontra novamente a cigana e ela prevê que, no Dia dos Mortos, à meia-noite, os espíritos das pessoas que ele matou voltarão para vingar-se. Mas Zé ignora a previsão da bruxa e continua a matança. Ela fura os olhos e depois queima vivo o dr. Rodolfo, um médico que suspeita que ele seja o causador das mortes que vêm acontecendo na cidade. No Dia dos Mortos, a previsão da cigana se faz realidade e os espíritos voltam do Além para assombrar Zé do Caixão, colimando numa perseguição dentro do cemitério.

        

         A princípio Mojica pensava apenas em dirigir o filme. Chegou a oferecer o papel de Zé do Caixão para Dráusio de Oliveira, um ator e dublador profissional. A secretária Neutra, que usava o nome artístico de Magda Mei, foi escolhida para interpretar Terezinha. Nivaldo Lima seria Antônio e Valéria Vasques faria Lenita. Mojica resolveu dar o papel do dr. Rodolfo para Ilídio Simões Martins, um corretor imobiliário sem nenhuma experiência artística, mas que havia comprado dez cotas do filme.

         Faltava agora encontrar um local para a filmagem. Um aluno descobriu um estúdio vazio na rua Sebastião Pereira, onde costumava ficar a Rádio Nacional. Era um prédio grande, com pé direito de 5 metros de altura e muito espaço livre, desocupado desde a mudança da sede da rádio. Mojica gostou do lugar e alugou-o por uma mixaria. Em seguida, o diretor de produção da Apolo, Nelson Gaspari, foi ao bar Costa do Sul, na rua Sete de Abril, à procura de uma equipe técnica para o filme. O Costa do Sol era o mais tradicional ponto de encontro do pessoal de cinema da época, onde os contratos eram fechados com um aperto de mão e celebrados com um chope gelado. Lá, Gaspari encontrou o eletricista Miro Reis, veterano dos filmes de Mazzaropi.

         - Miro, estamos precisando de um eletricista.

         - Que filme?

         - Á Meia-Noite Levarei a Sua Alma.

         - Onde?

         - Na rua Sebastião Pereira, no estúdio da Rádio Nacional.

         - Quem é o diretor?

         - José Mojica Marins.

         - Que restaurante vai dar a boia?

         - Não, a comida vai pro estúdio. Tem um restaurante em frente, que via trazer a comida.

         -  O quê?

         - Arroz, feijão, bife e salada.

         - Topo!

         Em apenas dois dias, Mojica e Gaspari escolheram toda a equipe do filme: Giorgio Attili seria o fotógrafo; Osvaldo de Oliveira seria seu assistente de câmera e Luiz Elias, conhecido montador de filmes publicitários, ficaria encarregado da montagem. Os cenários ficariam a cargo do diretor e cenógrafo José Vedovato e o maquiador seria o argentino Gilberto Marques, conhecido pelas suas cantadas pitorescas que costumava passar nas mulheres que maquiava (“Soy maquiador pero no soy bicha!”). Mojica combinou os salários, fez os cálculos e concluiu que só teria dinheiro para pagar dezoito dias de filmagem. Ninguém mais receberia um tostão. Nem ele e tampouco os atores. Teriam de confiar na bilheteria para recuperar o dinheiro investido.

         Depois de gastar com aluguel de equipamento e de separar a verba para edição e dublagem, só sobrou dinheiro para comprar quinze latas de negativo de mil pés cada, o que equivalia a 150 minutos de filme. Para se ter uma ideia de como isso é pouco, basta dizer que a maior parte dos filmes são rodados numa proporção de no mínimo seis para um, ou seja, seis minutos de negativo para cada minuto aproveitado de filme. E Mojica teria de fazer um longa-metragem de 80 minutos usando apenas 150 minutos de negativo.

         - É impossível, Mojica! – disse Mário Lima. – Ninguém vai poder errar! Não vai dar para fazer segundo take de nenhuma cena!

         Mojica disse que não havia problema. Eles ensaiariam bastante de cada tomada e, como todos os diálogos seriam dublados depois, já que ele não usava som direto, não importava se os atores errassem suas falas na hora da filmagem.

         - Na hora de dublar dá pra repetir quantas vezes quiser! Você vai ser, Mário, como dá pra filmar tudo com quinze latas!

         E deu mesmo. Aliás, com treze, já que duas latas foram surrupiadas logo nos primeiros dias de filmagem.

 

         Para economizar no transporte da equipe, Mojica decidiu não rodar muitas externa e mandou construir todos os cenários do filme – um cemitério, uma floresta, um bar, a casa de Zé do Caixão e a casa da cigana – dentro do estúdio. O cenógrafo José Vedovato fez verdadeiros milagres com o pouco dinheiro de que dispunha para a cenografia: construiu túmulos de papelão e cartolina, usou serragem para fazer a terra do cemitério e pintou paredes de madeira para que parecessem de pedra. Todos colaboraram: um aluno pediu um esqueleto emprestado a uma faculdade de medicina para ornamentar a casa da bruxa. Mojica tirou quadros e móveis da casa dos pais e comprou um caixão para completar o cenário. Este esquife, o modelo mais ordinário à venda, está com ele até hoje.

         O maior desafio de Vedovato seria montar a floresta no estúdio. Ele precisaria construir suportes de madeira para sustentar as árvores e teria de usar blocos de isopor pintados de cinza para fazer as pedras. Vedovato sugeriu filmarem numa floresta de verdade, mas Mojica disse que não haveria dinheiro para custear as externas. A mata seria erguida ali mesmo, dentro de um estúdio, no centro de São Paulo. Mojica mandou alguns alunos sair com uma caminhonete para conseguir árvores e galhos:

         - Vão lá pros lados do Butantã, que tem matão bom!

         - Mas, mestre, como é que a gente vai cortar as árvores?

         - Sei lá, leva um machado!

         - Mas eu nunca derrubei uma árvore!

         Mojica perdeu a calma:

         - Porra, então leva um serrote, qualquer coisa! Será que eu preciso ensinar a serrar uma árvore também? Puta que pariu, vocês não sabem fazer merda nenhuma!

         Os alunos eram meio preguiçosos e decidiram que, árvore por árvore, era tudo igual. Não precisariam se despencar até o Butantã: arrumariam algumas ali pelo centro mesmo. Eles esperaram até de madrugada, foram ao largo do Arouche, um dos locais mais movimentados da cidade, e começaram a serrar as árvores, sob os olhares estarrecidos das prostitutas e travestis que frequentavam as redondezas. Derrubaram seis árvores e uma dúzia de arbustos. De manhã, quando Mojica chegou ao estúdio, o lugar parecia a floresta amazônica.

         - Que beleza! Bom trabalho! Isso sim é uma floresta!

         Aproximando-se das árvores, percebeu que uma delas tinha um anúncio de auto-escola colado no tronco.

         - Onde é que vocês arrumaram essas árvores?

         - Pegamos ali no Arouche – respondeu um dos alunos, orgulhoso.

         - O quê? No Arouche!? Vocês são malucos? A polícia não pegou vocês?

         - Não, mestre, não tinha polícia nenhuma por lá, só umas putas...

 

         A filmagem se aproximara e tudo corria bem. Mojica havia convencido a veterana atriz de teatro Eucaris de Morais a interpretar a cigana. A princípio ela havia recusado o papel, alegando outros compromissos, mas Mojica prometeu filmar todas as suas cenas numa tarde só. Eucaris seria a única atriz profissional do elenco. Todos os outros eram alunos ou professores da escola de arte dramática de Mojica. O resto do elenco foi definido: Mário Lima faria um policial, Genésio Carvalho interpretaria um homem que briga com Zé do Caixão no bar e Arildo de Lima faria Aurélio, outro coitado que ousa desafiar Zé e acaba se estrepando. Mojica escalou seus pais para pequenos papéis: Antônio interpretaria o dono do bar e Carmen a mãe de uma das vítimas de Zé do Caixão.

         Quando faltavam apenas dois dias para o início das filmagens, Dráusio de Oliveira desistiu de interpretar Zé do Caixão. A decisão foi tomada assim que ele descobriu que teria de pegar numa caranguejeira de verdade. A notícia pegou Mojica de surpresa: ele teria apenas 48 horas para encontrar um substituto. Furioso, mandou convocar uma reunião de urgência com os alunos e disse que precisava de um novo Zé do Caixão. Os testes começariam imediatamente.

         Foram mais de seis horas de testes. Um por um, os alunos desfilaram em frente de Mojica. Eles gritavam, rogavam pragas, faziam caretas pavorosas e invocavam as forças do mal, mas nenhum foi capaz de interpretar um vilão convincente. Pareciam constrangidos. Suas falas saíam sôfregas; suas pragas vacilantes. Zé do Caixão parecia mais frouxo do que um enviado de Belzebu. “Esse Zé do Caixão de vocês não assusta nem barata!”, reclamou Mojica. A cada teste fracassado, aumentava seu nervosismo. Chegou a dar chutes na parede de raiva. Depois de um teste particularmente ruim, perdeu a paciência:

         - Chega de testes! Querem saber de uma coisa? Eu mesmo vou fazer o papel!

         Era a melhor solução. Já que ninguém conseguia interpretar o personagem de forma convincente, ele mesmo faria. Era melhor não depender de ninguém. Resolveu também fazer de Zé do Caixão o bandido mais diabólico que já se viu. “Vai ser pior que o Diabo!” Antes pecar pelo excesso que pela covardia, pensou. Lembrou-se de como havia freado seus instintos em Meu Destino em Tuas Mãos, e do resultado constrangedor. Não, não cometeria o mesmo erro. Nem que Á Meia-Noite Levarei Sua Alma fosse um fracasso, pelo menos faria tudo à sua maneira.

         Mojica decidiu incrementar o visual de Zé do Caixão: achou que o personagem ficaria bem usando uma capa preta, como Drácula. Não adiantaram os argumentos dos alunos de que coveiro não usava capa. “Não importa, Zé não é um coveiro normal”, disse, antes de pedir à sua sogra que costurasse uma capa preta. Depois, inspirado pelo logotipo do cigarro que fumava, o Clássico, que tinha duas bengalas cruzadas sobre uma cartolina, mandou comprar uma cartola preta. Para finalizar, pediu ao maquiador Gilberto Marques que conseguisse longas unhas postiças para suas mãos.

         Marques levou-o ao famoso salão Antoine, no centro, onde a manicure fez as unhas especialmente para ele. O dono do salão gostou tanto do trabalho que pediu a Mojica para exibir as unhas no programa Clube do Lar, apresentado por Walter Forster e patrocinado pelo próprio Antoine, que ia ao ar toda tarde no Canal 5, das Organizações Vitor Costa. Mojica, louco por uma publicidadezinha grátis, vestiu-se de Zé do Caixão e correu para a emissora. Seria a primeira aparição pública de Zé do Caixão.

         Walter Forster apresentou Mojica como “um jovem diretor, que está fazendo um filme de terror brasileiro”. Assim que ele apareceu, de capa preta, cartola e com aquelas unhas enormes, algumas senhoras do auditório soltaram gritos de espanto. Forster acalmou as donas de casa e começou a entrevista. Primeiro perguntou se ele se considerava discípulo de Drácula.

         - Não, meu personagem não é o Drácula – respondeu Mojica – Meu personagem é brasileiro mesmo, um coveiro chamado Zé do Caixão.

         - Mas um agente funerário com capa?

         Mojica respondeu com uma frase que se tornaria sua marca registrada:

         - Você sabe como é, Walter, quem não aparece, desaparece!

         O público se descontraiu e dali em diante a entrevista foi um sucesso: Mojica mostrou suas longas unhas, fez propaganda do salão Antoine e falou do filme que estava prestes a rodar. No encerramento, Forster perguntou como Zé do Caixão reagiria se alguém lhe rogasse uma praga. Mojica respondeu:

         - É simples, eu rogaria outra praga de volta! Que tal essa: Que a maldição se volte contra você e que você vague pela eternidade sentindo as dores de um leitão assado!

         O auditório quase desabou de aplausos e gargalhadas. Zé do Caixão era um sucesso, antes mesmo de seu primeiro filme.

         No dia seguinte, ainda embalado pelo triunfo na TV, Mojica foi ao estúdio da Odil Fono Brasil contratar dubladores para o filme. Naquela época eram poucos os diretores que usavam som direto. No caso de Á Meia-Noite, todos os atores teriam de ser dublados, inclusive ele. Seu maior problema não era exatamente a voz, mas sua pronúncia sofrível e seu português horroroso. Mojica travava duras batalhas com o plural e desde pequeno sofria para pronunciar o “L”. “Problema” virava “pobrema”; “alvará” era “arvarau”...Na Odil lhe mostraram vários filmes, para que escolhesse um dublador. Mojica ficou particularmente impressionado com a voz usada para dublar o ator Mario Carotenuto:

         - Essa é a voz que eu queria ter!

         O dono da tal voz era Laercio Laurelli, diretor de dublagem da Odil. Laercio acabou se tornando a “voz oficial” de Zé do Caixão.

        

         As filmagens começaram no dia 17 de outubro de 1963. O ritmo de trabalho era insano, e ninguém trabalhou mais que Mojica: ele filmava das duas da tarde às três da manhã, e às oito já estava de volta ao estúdio, ajudando a preparar os cenários. Passou várias noites sem dormir, emendando dos ensaios para as filmagens. Longe de ser um atleta – fumava três maços de cigarro por dia e alimentava-se basicamente de torresmo, mocotó e codorna -, Mojica emagreceu e ficou abatido. Felizmente não bebia. Ainda.

         Ignorando o fato de que o estúdio não tinha quartos nem chuveiro, Mojica sugeriu a seus alunos dormirem por ali mesmo, evitando assim o desgaste de longas viagens até suas casas. Muitos acataram a sugestão, trazendo colchonetes e sacos de dormir, improvisando um acampamento. Banho, só de vez em quando, num hotel furreca que havia próximo ao estúdio. Mário Lima quase morreu do coração ao entrar no set de filmagens certa manhã e ver um corpo saindo de um caixão. Era um figurante que, sem ter onde dormir, achou por bem tirar um ronco dentro do esquife. Mário esbravejou e achou aquilo tudo coisa de maluco. Dez dias depois, estava ele próprio disputando um lugar no caixão.

         Apesar dos problemas logísticos e da falta de dinheiro, o filme começou a tomar forma. Mojica e Giorgio Attili se entendiam bem e dividiram o gosto pela experimentação. O fotógrafo, que sempre reclamara do estilo conservador e pouco ousado dos filmes da Vera Cruz, via no trabalho com Mojica a chance de fazer algo diferente. Eles não tinham verba, é verdade, mas dinheiro nunca substituiu talento. E Attili estava em sua fase mais criativa: ele bolou intrincados travellings, experimentou filmar de ângulos inusitados e coreografou complicadas cenas com câmera em movimento, que Osvaldo de Oliveira executava com perfeição.

         Mojica também estava possuído. Ideias brotavam de sua cabeça sem parar. Ele corria de um lado para o outro do estúdio, a adrenalina a mil, imaginando novas cenas e delirando com cada take. Seu entusiasmo era contagiante. Alguns técnicos, no entanto, continuaram fazendo pouco caso dele. Attili foi um dos poucos a perceber que, por trás de todo o esculacho de Mojica, havia um diretor que sabia muito bem o que estava fazendo.

         A verdade é que o estilo de Mojica pegou os técnicos de surpresa. Eles estavam acostumados com o padrão Vera Cruz, com sets de filmagem limpinhos e bem-equipados, com cenários bem-iluminados e regras pré-estabelecidas, e de repente surgia um louco que jogava pela janela todas as fórmulas. Mojica fazia coisas que, naquela época, eram consideradas heresia: atuava olhando para a câmera, rodava cenas propositalmente escuras e filmava com a câmera na mão, em contraposição à imagem estática das produções nacionais. Em suma, ele reinventava o cinema à sua maneira. E os técnicos não estavam preparados para isso. A ousadia de Mojica passou a ser considerada maluquice. Boatos maldosos começaram a circular pelos meios cinematográficos de São Paulo: diziam que havia um maluco à solta, fazendo um filme louco e ajudado por um bando de birutas. No bar Costa do Sol, Mojica era o alvo predileto das gozações: “Ainda bem que o pai dele tem um cinema...Pelo menos lá esse filme passa!”.

         Enquanto isso, Mojica continuava a burlar cenas diferentes de tudo que já se havia feito no Brasil. Ele elaborou uma cena impactante e blasfema, na qual Zé do Caixão comia uma perna de carneiro enquanto assistia, da janela de casa, à procissão de Sexta-Feira Santa. Mojica queria fazer a cena sem cortes, numa única tomada. Para isso, precisava pensar numa maneira de filmar, ao mesmo tempo, o interior de sua casa e a rua, onde passava a procissão.

         Ele mandou um carpinteiro construir uma plataforma de 3 metros de altura, onde fincou o tripé da câmera. Na borda da plataforma, erguei um compensado de madeira com uma moldura de janela. Depois, postou-se numa cadeira, entre a câmera e a janela, debruçado no parapeito. Attili apontou a câmera diagonalmente para baixo, num ângulo em que enquadrava Mojica olhando pela janela e, lá embaixo, emouldurada pela janela, a procissão. A janela passou a funcionar como uma moldura, criando uma “cena dentro da cena”. O fotógrafo fez uma iluminação fantasmagórica que realçou o impacto da imagem, sem dúvida uma das mais lindas e inventivas de toda a carreira de Mojica.

 

         Seis de novembro, último dia de filmagem.

         Mojica acordou às cinco da manhã, preocupado. Só havia uma sequência a ser rodada naquele dia, justamente a cena que abria o filme, um funeral. Mas o dia amanhecera cinzento, ameaçando chuva. Os técnicos acharam melhor cancelar a filmagem. Mojica recusou, dizendo que não tinha dinheiro para pagar nenhum dia extra.      

         - Se a gente não filmar hoje, vocês aceitam não receber seus salários por um dia?

         Os técnicos não toparam. A cena teria mesmo de ser rodada naquele dia, com chuva ou sol. Havia outro problema: ninguém sabia onde iriam filmar. Em qualquer filme “normal”, as locações teriam sido definidas antes de iniciadas as filmagens. Mojica, no entanto, não conhecia o conceito de pré-produção e não havia sequer procurado uma locação para a cena. Sua ideia era simples: se precisavam de um cemitério, rodariam por toda a cidade até encontrar um onde pudessem filmar. Ele reuniu a equipe, dividiu a turma em três peruas e saíram por São Paulo à procura de um cemitério.

         Acabaram no cemitério da Goiabeira, na Lapa. Um rapaz do elenco conhecia o coveiro local e garantiu que era só pagar uma cervejinha que o papa-defunto liberaria a filmagem. Mojica conversou com o coveiro e pagou a cerveja. O sujeito não só permitiu a filmagem, como ainda levou a equipe para uma sepultura aberta, pronta para receber um morto que estava sendo velado naquele mesmo instante.

         - É melhor que vocês se apressarem – disse o coveiro. – O corpo vai sair da capela daqui a quinze minutos!

         Mojica mandou todos tomarem suas decisões. Enquanto ele vestia a indumentária de Zé do Caixão, os técnicos montaram o equipamento e os atores – incluindo sua mãe, Carmen, que interpretava a mãe do falecido – tomaram suas posições em volta da cova. Attili reclamou do tempo nublado, mas Mojica disse que era exatamente o clima que queria para a cena:

         - É isso mesmo que eu quero, Attili, uma luz bem pesada, quero uma cena bem escura, marcada...

         Foi uma tomada só. Quando Mojica gritou “corta”, eles já viam, a 50 metros, o cortejo do enterro verdadeiro de aproximando.

        

         Naquela mesma noite, a equipe comprou um barril de vinha e fez uma festa no estúdio para celebrar o fim das filmagens. Mojica estava tão feliz que decidiu experimentar um vinhozinho. Acabou tomando dez canecas e caiu duro em cima de uma mesa. O pessoal, de pirraça, colocou-o dentro de um caixão, onde dormiu por 24 horar seguidas. Se até então ele nunca havia tocado numa gota de álcool, depois desse primeiro porre tornaria-se um pinguço imbatível.

         A alegria pela conclusão do filme logo deu lugar à preocupação: Mojica tinha agora a difícil tarefa de convencer alguém a distribuir seu filme. Assim que Luiz Elias terminou de montar a fita, ele começou a correr as distribuidoras cidade, mas invariavelmente recebido com sarcasmo e comentários irônicos. Ninguém parecia interessado num filme de terror. As semanas passavam e a situação tornava-se cada vez mais desesperadora: Mojica estava sem um tostão e cheio de dívidas com a revelação e copiagem do filme.

         Para abalar ainda mais suas finanças, seu filho com Rosita, Derian, nasceu em 15 de janeiro de 1964. Carmen e Antônio comemoraram o nascimento do “primeiro” neto, sem saber da existência de Crounel. Rosita ainda achava que o marido estava morando num hotelzinho qualquer e implorou para que voltassem a ficar juntos, mas Mojica – que continuava dormindo na casa da amante, Maria – disse que precisava esperar pelo lançamento do filme, quando ganharia um bom dinheiro e teria condições de alugar uma casa. O que ele não sabia é que Maria já estava grávida novamente. Oito meses depois, ela teria uma filha, Mariliz (alguns dos nomes na lista de Mojica: Marilua, Marilua, Mariluz, Marisol e Marimar) e após dois anos, outra menina, Merisol (nomes propostos: Merilua, Meriluz, Merimar e Sorôngela).

         No meio dessa confusão toda, Mojica continuava em busca de um distribuidor. Numa de suas andanças pelo centro, encontrou o baiano Milton Silva, dono de uma distribuidora que controlava boa parte dos cinemas do Nordeste, e pediu que ele assistisse a seu filme. Milton respondeu que não poderia, já que tinha um voo para Salvador dali a algumas horas, mas Mojica insistiu tanto que ele concordou em ir até a cabine do laboratório Polygram e ver os primeiros dez minutos do filme.

         - Só tenho tempo para dez minutos, tá bom, Mojica? Senão perco meu avião!

         No caminho para a cabine, o sujeito notou que Mojica estava abatido e com uma aparência doentia. Perguntou por sua saúde e ficou chocando quando ele respondeu que não comia nada há dois dias. “Então vamos tomar um lanche”, sugeriu o baiano, comovido. “Pode pedir o que quiser, é por minha conta”. Mojica devorou dois sanduíches de peito de peru e tomou uma Caracu com ovo.

         O projecionista da Polygram estava de saída e ficou furioso quando soube que teria de exibir o filme. Milton prometeu pagar uma boa gorjeta e disse que só iria assistir ao primeiro rolo. A sessão começou. O baiano olhava compenetrado para a tela, sem fazer qualquer comentário. Dez minutos depois, as luzes se acenderam:

         - Ué, acabou o primeiro rolo – respondeu o projecionista. – O senhor não pediu pra ver só os primeiros dez minutos?

         - Volta lá e passa o filme inteiro! E do começo! Não se preocupe com sua hora-extra, que eu pago!

         Viram o filme todo. Quando terminou, Milton disse para Mojica:

         - Meu amigo, você merece um Oscar! Esse filme vai explodir na Bahia!

         Apesar do otimismo baiano, Mojica continuava tendo dificuldades para encontrar alguém disposto a exibir seu filme em São Paulo, e já pensava até mesmo em vender sua parte. Nesse meio-tempo, a notícia da sessão da cabine da Polygram se espalhou. Ilídio Simões Martins, o corretor imobiliário que havia comprado dez cotas da fita, percebeu que Á Meia-Noite era uma mina de ouro e, sem muito alarde, começou a comprar as cotas dos outros alunos. Em seguida, adquiriu também a parte de Mojica, naquela estranha transação em frente à estação da Luz.

         Ilídio passou a ter mais de 70% do filme. Algumas semanas depois, ele repassou sua parte para o produtor Nelson Teixeira Mendes, pelo triplo do preço que havia pago a Mojica. Mendes havia produzido o sucesso O Cabelereira e agora decidira comprar os direitos de exibição de Á Meia-Noite Levarei Sua Alma. Só havia um problema: o sistema de cotas inventado por Mojica era uma bagunça tão grande que ninguém sabia quem era dono do que. Mendes fez os cálculos e concluiu que Mojica havia vendido 300% do filme. Ele pagou todos os cotistas e ficou sendo o único dono da fita.

        

         Mojica foi ao Paraná atuar em O Diabo de Vila Velha e voltou a tempo de assistir à estreia de Á Meia-Noite Levarei Sua Alma, no Art Palácio. Assim que viu as filas dando voltas no quarteirão, percebeu a burrada que havia feito ao vender sua parte para Ilídio. Durante a sessão, fez um esforço tremendo para não chorar. Ali estava sua obra – totalmente concebida, produzida e dirigida por ele próprio – e sobre a qual já não tinha direito a um centavo. O filme foi um estouro de bilheteria. O então colunista Jô Soares chegou a comentar o sucesso de Zé do Caixão em sua coluna “Show & Gente”, no jornal Última Hora: “José Mojica Marins diz: ‘À meia-noite buscarei sua alma, e às 2, 4, 6, 8 e 10, buscarei seu dinheiro”. Mojica passou os seguintes dias enchendo a cara num botequim em frente ao Art-Palácio. De vez em quando saía do bar, cambaleando de bêbado e andava pela fila do cinema contando os espectadores, um por um. Dizia para os amigos: “Estou contando meu prejuízo!”.

        

Publicado originalmente em BARCINSKI, André & FINOTTI, Ivan. Maldito: a vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. São Paulo: Editora 34, 1998.