Capítulo 8: 1966-1967: Boca do Lixo, Sucesso e Censura
Por André Barcinski e Ivan
Finotti
Enquanto Mojica terminava
de filmar Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver na sinagoga do Brás, Á
Meia-Noite Levarei Sua Alma estreava em cinco cinemas do Rio de Janeiro. Se
até então a fama de Mojica havia ficado restrita a São Paulo, o lançamento do
filme no Rio, principal centro da imprensa brasileira da época e berço da turma
do Cinema Novo, tornaria-o famoso em todo o país.
O distribuidor do filme no
Rio foi Nelson Teixeira Mendes. Na primeira semana de junho, Mendes mandou
vários fiscais de sua empresa ao Rio para vistoriar os borderôs de bilheteria.
Entre esses fiscais estava Virgílio Roveda, o Gaúcho, assistente de cenografia
de Esta Noite. Gaúcho foi designado
para fiscalizar o cinema Roxy, em Copacabana. Certo dia, estava batendo um papo
tranquilo com o gerente do cinema, quando ouviu uma gritaria danada dentro da
sala. O lanterninha saiu desesperado:
- Tem um maluco gritando
lá dentro!
Gaúcho e o gerente
entraram no cinema e viram um sujeito de pé, na primeira fila, de cabelos
desgrenhados e camisa aberta no peito, aos berros:
- Gênio! Puta que pariu,
esse cara é um gênio!
Era Glauber Rocha.
Não era a primeira vez que
Glauber assistia ao filme. Meses antes, Rogério Sganzerla – então crítico de
cinema do Jornal da Tarde – já o havia convidado para uma exibição de Á
Meia-Noite Levarei Sua Alma, em São Paulo. Glauber foi sem esperar nada, e
saiu deslumbrado. Viu em Zé do Caixão semelhanças com Antônio das Mortes,
personagem que criara em Deus e o Diabo na Terra do Sol. Sganzerla
depois o levou para visitar a sinagoga do Brás. Glauber pediu para ser
apresentado a Mojica apenas como “um amigo”, sem ter seu nome revelado. Não
queria ser tratado como alguém especial. Sua preocupação, no entanto, era
infundada: não só Mojica era cordial com todos que o visitavam, como não tinha
a menor ideia de quem era Glauber Rocha.
Mojica recebeu-os com a
simpatia costumeira e foi logo mostrando os cenários do inferno e da floresta.
Quando disse que o buraco cavado no quintal seria um “lago”, o baiano não
acreditou:
- Mas você vai se afogar
aí? Com os cadáveres? E vai remar um bote? Mas o bote é quase do tamanho do
lago!
Glauber e Sganzerla
ficaram fascinados com a sinagoga. O lugar era uma mistura de clube social com
estúdio de cinema, onde o pessoal não só trabalhava, mas também se reunia para
jogar cartas ou bater papo. Mojica havia organizado uma verdadeira comuna de
técnicos e artistas: num canto, alunos ensaiavam alguma cena, enquanto, em
outra sala, um grupo construía um cenário. A sinagoga era a sua Vera Cruz –
pobre e suburbana, porém cheia de entusiasmo. No fim da visita, Glauber pediu
licença para usar o banheiro. Já ia entrando numa porta, quando Mojica gritou:
“Não usa esse banheiro não, tem uma jiboia aí dentro!”.
De volta ao Rio, Glauber
organizou sessões especiais de Á Meia-Noite para seus amigos no Cinema
Ópera, na praia de Botafogo. Sua lista de amigos na época era um tanto extensa,
incluindo todos os cineastas e atores do Cinema Novo, gente como Nelson Pereira
dos Santos, Luiz Carlos Lacerda, Gustavo Dahl, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de
Andrade, Paulo César Saraceni, Mário Carneiro, David Neves, Norma Bengell e
muitos outros. Vários deles foram ao Ópera assistir aos filmes daquele paulista
esquisito de quem Glauber tanto falava. Divertiram-se muito com os filmes, mas
riram ainda mais do baiano que, sentado sempre na primeira fila, repetia a
performance que dera no Roxy: “Gênio! Porra, esse cara é um gênio!”.
Enquanto Glauber liderava
a turma de admiradores de Mojica no Rio de Janeiro, em São Paulo seu maior
incentivador era o amigo Luiz Sérgio Person. Apesar de conhecer Mojica desde o
fim dos anos 1950, ele só começou a se interessar realmente por seu trabalho
depois que assistiu a À Meia-Noite Levarei Sua Alma. “Se Buñuel tivesse
visto as barbaridades de Zé do Caixão, arrancaria os cabelos de inveja”,
costumava dizer a seus amigos. Person passou a frequentar a sinagoga e
presenciou as filmagens de Esta Noite. Ficou fascinado com a cena do
inferno, que lhe lembrou muito a Divina comédia de Dante. Quando
comentou isso na sinagoga, Mojica respondeu:
- Então me apresenta logo
esse Dante, que estou louco para conhecê-lo!
Person era professor da
Escola Superior de Cinema São Luiz, comandada pelo padre Lopes, e recomendou
a seus alunos que assistissem a Á Meia-Noite:
- Vão e aprendam a fazer
cinema!
Eles foram. E odiaram. Na
aula seguinte, malharam o décor, zombaram do amadorismo dos atores e
ridicularizaram a canastrice de Mojica. Para tristeza de Person, foram poucos
os que captaram a “beleza primitiva” que tanto o havia fascinado no filme.
Analisada hoje, a reação dos alunos da São Luiz evidencia uma das maiores
contradições da elite intelectual da época, uma elite que, por um lado,
defendia um cinema ligado a temas populares e, por outro lado, rechaçava
qualquer não-intelectual que ousasse fazer um cinema realmente popular. Os
únicos cineastas famosos que vieram a público elogiar Mojica foram Glauber,
Person e Roberto Santos (diretor de A Hora e a Vez de Augusto Matraga).
Santos costumava lhe dizer: “Mojica, se alguém disser que você não tem cultura,
não se chateie, porque é inveja pura. Falta de cultura não é problema. Você é
um autodidata e dá um banho de cinema em todos nós!”.
A maioria do pessoal de
cinema preferiu tratar Mojica com a condescendência muda de quem finge
admiração para não demonstrar preconceito, o que é pior e mais mesquinho do que
a rejeição franca e explícita (não é de espantar que muitos desses “revoltados”
logo esqueceriam suas ideias revolucionárias e passariam a viver das benesses
do Estado/Embrafilme).
Dentro da própria São Luiz,
no entanto, havia um grupo de alunos que parecia sintonizar com o espírito do
cinema de Mojica. Deste grupo faziam parte Carlos Reichenbach, João Callegaro,
Carlos Alberto Ebert e dois outros que, embora não cursassem a Escola, tinham
gosto semelhante: Jairo Ferreira e Rogério Sganzerla. Eram todos jovens de
vinte anos, cultos e cinéfilos ardorosos. Curtiam a revista francesa Cahiers
du Cinéma, o cinema B americano e a Nouvelle Vague de Godard, Truffaut,
Chabrol e Rivette. Cultuavam Orson Welles, Samuel Fuller, Nicholas Ray e Howard Hawks. Reichenbach assistiu Á Meia-Noite Levarei Sua
Alma três vezes. Jairo Ferreira, Callegaro e Ebert adoraram. Sganzerla não
falava em outra coisa. Quando a turma da São Luiz começou a esculhambar o
Mojica, Reichenbach e seus amigos receberam as críticas como ofensas pessoais
(antes, já haviam quase saído no braço com os outros alunos, quando estes
chamaram Naked Kiss de “filme de direita” e seu diretor, Samuel Fuller,
de “reacionário”).
- Esse pessoal não aceitou
Samuel Fuller e vai aceitar o Mojica? – disse Reichenbach. – Deixa eles
assistirem Vidas Secas pela milésima vez!
Person ainda tinha
esperanças de converter a turma e decidiu convidar Mojica para um debate na São
Luiz. Antes fez uma preleção a seus alunos, alertando-os para a simplicidade e
a falta de cultura de Mojica: “Vocês façam o favor de respeitar esse homem. Não
quero ver ninguém zombando dele!”.
É lógico que os alunos,
acostumados a ouvir cineastas intelectualóides vomitando teses sobre a
possibilidade de transformar o Brasil através do cinema e outras baboseiras,
odiaram Mojica. Quando perguntaram sobre seus objetivos enquanto cineasta, ele
respondeu que não tinha, fazia filmes porque gostava. A conversa descambou para
a política e Mojica, que só diferencia direita de esquerda para pegar no garfo,
ficou completamente perdido. No fim do debate, os alunos estavam rindo do seu
português e fazendo comentários grosseiros sobre seus filmes. Reichenbach foi
embora, possesso. Person, furibundo, soltou sua ira na turma: “Seus
bunda-moles! Vocês não têm uma unha do talento deste homem!”.
Não é coincidência o fato
de que o pequeno grupo, de estudantes que idolatrava Mojica logo meteu as caras
e foi fazer filmes, enquanto muitos de seus colegas de São Luiz tornaram-se
burocratas do cinema ou abandonaram a profissão. Afinal, o que Reichenbach,
Sganzerla e seus amigos mais admiravam em Mojica era sua rebeldia e
independência. Inspirados por seu exemplo, eles foram para o único lugar em São
Paulo onde era possível conseguir financiamento para filmes independentes: a
Boca do Lixo.
A Boca fica no bairro de
Santa Ifigênia, centro de São Paulo. É uma área de quinze quarteirões,
delimitada pelas avenidas Rio Branco e Duque de Caxias, bem próxima à Estação
da Luz. Antes de ser a meca do cinema marginal brasileiro, a Boca já era “do
lixo”, assim batizada pela crônica policial por causa das prostitutas e
trombadinhas que frequentavam a região. O bairro atraiu também, desde os anos
20, as distribuidoras estrangeiras de cinema, pela proximidade da rodoviária
(desativada em 1982) e da estação ferroviária da Luz, que facilitavam o
transporte de filmes para o interior e outras capitais. Era o local perfeito
para uma distribuidora de filmes: aluguel barato, localização central e facilidade
de transporte das cópias. Nos anos 30 e 40, quase todos os estúdios americanos
– RKO, Fox, Universal, Columbia, Paramount – tiveram filiais na região.
O primeiro produtor a se
estabelecer na Boca foi Osvaldo Massaini. Ele frequentava a região desde 1937,
quando trabalhou como auxiliar de contabilidade numa distribuidora de filmes.
Massaini fundou sua produtora, a Cinedistri, em 1949. Dois anos depois,
transferiu seu escritório para a rua do Triunfo e começou a produzir comédias
com astros do teatro como Ankito e Dercy Gonçalves. Mais tarde, obteria grande
sucesso com filmes de Anselmo Duarte, como Absolutamente Certo (1957) e O
Pagador de Promessas (1962), ganhador da Palma de Ouro em Cannes.
Vários outros produtores
seguiram o exemplo de Massaini e montaram suas firmas na Boca, como Antônio
Polo Galante, Alfredo Palácios e Anselmo Duarte. Augusto Pereira e Nilza de
Lima também fundaram uma produtora, a Ibéria, na rua do Triunfo, 134. No fim
dos anos 50, já havia na região todo um comércio direcionado ao cinema, com
lojas de equipamento de filmagem, oficinas de manutenção e empresas de aluguel
de câmeras e refletores. Os profissionais de cinema, que até então costumavam
se reunir no bar Costa do Sol, passaram a frequentar o bar Soberano, na rua do
Triunfo, 155.
Em 1967, um
ex-caminhoneiro chamado Ozualdo Candeias fez na Boca um filme que deixou todos
os críticos de cinema do país de quatro:
A Margem, uma parábola surrealista sobre a miséria às margens do rio Tietê.
O filme não fez sucesso de bilheteria, mas deu a Candeias o prêmio de melhor
diretor do ano pelo Instituto Nacional de Cinema (INC) e, mais importante, foi
o ponto de partida do movimento de cinema experimental brasileiro, também
conhecido como cinema “udigrudi” ou marginal.
Reichenbach, Sganzerla,
Antônio Lima, João Callegaro, Jairo Ferreira e alguns outros viram em A Margem e nos filmes de Mojica uma
saída para a estagnação estética e criativa do cinema brasileiro. Se antes de
1967 esses jovens louvavam o Cinema Novo de Glauber e suas pretensões revolucionárias,
com a explosão da contracultura eles assumiriam posições mais anarquistas e
passariam a rechaçar o populismo cinemanovista, pregando um cinema mais
radical, pessoal e experimental. O mundo vivia a época da contracultura, do
LSD, de Jimi Hendrix, e os “marginais” queriam fazer um cinema representativo
do período, um cinema anarquista, drogado e de transgressão, em oposição ao
cinema político-populista do Cinema Novo.
Reichenbach escreveu um
roteiro e foi procurar Antônio Polo Galante. Quando Galante viu aquele hippie
de cabelos compridos e sandálias de couro entram em seu escritório, expulsou-o
aos berros: “Aqui não tem esmola não, seu maconheiro!”. Depois ficaram amigos e
Galante acabou produzindo quatro de seus filmes.
Logo esses jovens
cineastas estavam dirigindo suas primeiras fitas: Reichenbach, Callegaro e
Antônio Lima fundaram a Xanadu Filmes e fizeram As Libertinas; Carlos
Alberto Ebert dirigiu República da Traição, e Sganzerla estreou no
longa-metragem com O Bandido da Luz Vermelha, repleto de citações a
filmes de Mojica (a cena em que o bandido tenta fugir da polícia escalando um
muro é cópia de uma sequência de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver).
Nascia o “udigrudi”, filho de Ozualdo Candeias e José Mojica Marins.
Em abril de 1966, uma
carta de Sérgio Lima, diretor da Cinemateca Brasileira, chegou à casa de seu
amigo Rubens Francisco Lucchetti, em Ribeirão Preto. Lima havia sido apresentado a Mojica e,
sabendo do interesse de Lucchetti pelo cinema de horror, sugeria marcar um
encontro entre os dois: “Já falamos do senhor para Mojica e tenho certeza que
seria delirante o vosso encontro”, dizia a carta. Mal sabia Lima que acabaria
promovendo, com aquele convite casual, o encontro entre os artistas que, pouco
depois, seriam reconhecidos como o rei do cinema de terror no Brasil e o maior
escritor pulp do país. Seria o início de uma grande amizade e de uma
parceria extraordinária.
Quando conheceu Mojica,
Lucchetti já era famoso entre os fãs de histórias policiais e de horror. Ele
havia escrito livros nesses gêneros e, em 1961, apresentara na TV Tupi a série
policial Quem Foi?, um programa ao vivo no qual o espectador tentava
solucionar um mistério proposto.
Lucchetti assistiu Á
Meia-Noite Levarei Sua Alma no Cine São Jorge, em Ribeirão Preto (depois
transformado, como tantos outros, em igreja evangélica). Voltou para casa
zonzo. Nunca vira nada tão blasfemo, tão subversivo. Viu em Mojica um misto de
ator shakespeareano com o canastrão mexicano, capaz de subir numa mesa e fazer um
longo discurso com a voz empostada, tal qual os personagens do bardo inglês e,
na cena seguinte, descambar para um melodrama indigno do mais mambembe
teatrinho suburbano.
Grande entusiasta do
experimentalismo no cinema (Lucchetti foi um dos criadores do Centro
Experimental de Cinema de Ribeirão Preto), ele admirou o estilo único do filme
e a quebra do formalismo careta que tanto o irritava no cinema brasileiro. O
que mais o impressionou, no entanto, foi a brasilidade do personagem. Mesmo
quando usava clichês do gênero horror, como a bruxa, a floresta, o cemitério e
as badaladas do sino, Mojica adaptava-os à realidade brasileira. O cemitério de
Zé do Caixão não era arrumadinho como os dos filmes ingleses ou americanos, mas
imundo; a bruxa de Mojica era maltrapilha, corcunda, e se parecia com qualquer
mulher velha e feia que existisse pelos quatro cantos do Brasil.
Lucchetti, que semanas
antes havia vaticinado, em artigo no jornal ribeiropretando Diário da Manhã
a impossibilidade de se criar um personagem de terror autenticamente
brasileiro, pelo fato de o país não ter tradição alguma no gênero, teve de
rever sua opinião. O horror já não era mais um “gênero exclusiva e genuinamente
anglo-saxão”, como ele havia escrito. Agora havia Zé do Caixão, o primeiro personagem
de horror criado na América Latina.
Lucchetti estava,
portanto, ansiosíssimo para conhecer Mojica. Há anos vinha tentando trabalhar
em cinema, sem resultado. Ele havia mandado dezenas de roteiros para produtoras
como Atlântida e Maristela, mas seu estilo e preferência por temas como horror
e crime não pareciam bater com o gosto dos chefões do cinema nacional. Quem
sabe com Mojica não teria uma chance?
Sérgio Lima telefonou para
Lucchetti e marcou o encontro numa elegante casa de chá na rua Barão de
Itapetininga, no centro de São Paulo. As distintas senhoras que frequentavam o
local quase engasgaram no chá com torradas quando viram Mojica, todo de preto e
com aquelas unhas enormes, entrando no recinto. O bate-papo foi frio: Lucchetti
falou de sua experiência em TV e dos livros que havia escrito. Mojica quase não
abriu a boca. Deu o endereço de seu estúdio e disse: “Passa lá no sábado que
vem!”.
Lucchetti achou que
daquele mato não saía coelho. Mojica já era um conhecido diretor de cinema, e
ele não passava de um joão-ninguém do interior. Não teria chance de vencer em
uma indústria dominada por panelinhas e favorecimentos. Mesmo assim, resolveu
arriscar. No sábado marcado, foi até o endereço que Mojica havia lhe dado.
Parou na frente do prédio, conferiu mais uma vez o número e achou que havia
algo de errado. Era uma sinagoga! Mas uma plaquinha na porta – Cia.
Cinematográfica Ibéria – indicava que o tal “estúdio” de Mojica era ali mesmo.
Nunca vira lugar tão furreca: a porta não tinha fechadura, as janelas estavam
todas quebradas e a pintura já tinha visto melhores dias. Ele subiu as escadas,
tomando cuidado para não tropeçar nos degraus lascados. Chegou a uma pequena
sala, onde uma secretária trabalhava numa escrivaninha que parecia ter sido
achada no lixo. Era Nilce.
Poucos minutos depois
chegou Mojica, acompanhado por Augusto Pereira. Ele cumprimentou Lucchetti e o
levou para ver os cenários de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver.
Lucchetti viu a floresta montada no quintal e o inferno de gelo. Ficou
decepcionado com os cenários chinfrins (quando assistiu o filme, meses depois,
não acreditou que aquelas cenas impactantes haviam sido rodadas em cenários tão
vagabundos). Mojica apresentou-o a vários alunos como “nosso novo colaborador”.
- Você veio em boa hora.
Estou com financiamento para fazer um filme e quero que você escreva o roteiro!
Lucchetti quase caiu de
costas. Mojica continuou:
- Vai ser um filme de três
episódios, de meia hora cada, chamado O Estranho Mundo de Zé do Caixão.
- O senhor tem o argumento
escrito?
- Não tenho não, mas vamos
sentar ali um instantinho que eu te conto como são as histórias...
Mojica levou-o para um
canto e, em poucos minutos, fez um resumo do que queria:
- O primeiro episódio é
sobre um velho que constrói bonecas com olhos humanos. Nesta história põe uns
playboys, uns motoqueiros, que esse pessoal tá na moda, né? O segundo é sobre
um cara pobre que se apaixona por uma moça da alta sociedade. Só que ela morre
e ele acaba transando com o cadáver dela no caixão. A terceira história é sobre
um casal que ridiculariza Zé do Caixão num programa de TV. Daí ele leva o casal
para sua mansão e tortura os dois, para provar que o instinto sempre supera a
razão.
- Só isso?
- Só. Use essas ideias e
me escreve um roteiro bem caprichado!
Lucchetti não acreditou em
sua sorte. Saía de casa certo de que o cinema era um sonho impossível e voltara
empregado! Assim que chegou em casa, pôs papel na máquina de escrever e
trabalhou furiosamente nas histórias. Nove dias depois, havia terminado o
roteiro de O Estranho Mundo de Zé do Caixão.
Enquanto isso, Mojica trabalhava na montagem de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver. O
filme ficou pronto em setembro de 1966. Augusto e Fracari queriam lança-lo
imediatamente, para aproveitar a polêmica carioca em torno de Á Meia-Noite
Levarei Sua Alma, mas os censores não deixaram.
Naquela época, para
conseguir um emprego de censor federal no Serviço de Censura de Diversões
Públicas (SCDP), não era preciso mais que um diploma superior. Qualquer um
podia se candidatar. Os candidatos passavam por um teste, que consistia em
assistir a um filme ou ler um livro e depois emitir um parecer sobre os trechos
que julgavam dignos de proibição. Os autores dos pareceres mais satisfatórios
tornavam-se censores oficiais – também chamados de “técnicos de censura” – e
passavam a ser responsáveis pela escolha dos filmes, peças e livros que 90
milhões de brasileiros teriam o direito de desfrutar.
A “Bíblia” dos censores
era um manual de 26 páginas que continha as diretrizes para emissão de
certificados de censura. O documento dizia que o objetivo da Censura era
“proteger a saúde mental e física do jovem” e listava várias “situações
proibidas” que deveriam ser cortadas de qualquer obra, como “vantagens
auferidas pelo herói/heroína na prática de ações negativas”, “ausência de
punição para o herói ou heroína que comete deslize”, e “elogios à atuação
negativa de personagens centrais”. Depois de decorar o manual, os censores
iniciavam seu trabalho: todo dia, trinta deles se revezavam para avaliar onze
filmes, seis peças, quatro músicas, oito capítulos de telenovela e trinta
capítulos de radionovela.
A censura de cinema era
realizada por grupos de três ou quatro censores. Eles assistiam aos filmes em
uma pequena sala. Quando viam alguma cena que julgava inapropriada, apertavam a
campainha e o projecionista colava um pedaço de papel no rolo do filme,
indicando a posição da cena. Depois da sessão, os técnicos reviam as cenas
selecionadas e decidiam se a fita poderia ser exibida ou não. Na maioria das
vezes os filmes eram liberados com cortes, mas, em alguns casos, o número de
cortes exigidos era tão grande que não se justificava, na opinião dos censores,
a liberação da fita.
A verdade é que os
critérios usados pela Censura na avaliação das obras eram realmente subjetivos
e sujeitos a interpretações das mais diversas. O manual dos censores pedia a
proibição de qualquer cena que “ferisse o decoro público”, mas como ninguém
nunca havia definido exatamente o que vinha a ser o tal “decoro público”, a
decisão acabava sendo tomada com base na opinião pessoal de cada censor. Isso
gerou alguns casos curiosos: o filme erótico Kate no Mundo do Nudismo
foi liberado com alguns cortes, mas seu trailer, avaliado por outro grupo de
censores, foi proibido. Já Viva Maria (1964), de Louis Malle,
interditado por “incitamento à subversão”, acabou liberado por ordem do general
Riograndino Kruel, diretor do Departamento de Polícia Federal, que disse ter
dado boas gargalhadas com as “guerrilheiras” Brigitte Bardot e Jeanne Moreau.
A Censura ainda tentou
botar alguma ordem nas diretrizes de avaliação: o chefe do SCDP, Pedro José
Chediak, baixou uma portaria proibindo o strip-tease nas telas do Brasil. Seu
sucessor, Romero Lago, modificou a portaria: o strip-tease seria permitido,
contanto que a câmera estivesse a pelo menos 5 metros do objetivo.
Os argumentos para
justificar certos cortes eram os mais estapafúrdios. O mesmo Chediak que proibira
o strip-tease mandou cortar quatro cenas de O Silêncio (1963), de Ingmar
Bergman, e explicou: “Como é que aquela gente do interior da Bahia vai entender
ou suportar um filme como esse, se não for cortado?”. Curiosamente, Chediak
podou as únicas cenas que poderiam interessar a alguém do interior da Bahia:
duas sequencias de sexo, uma de masturbação e outra em que aparecia o seio de
uma mulher. Não contente em retalhar o filme, o censor ainda espinafrou
Bergman: “O Silêncio não tem mensagem nenhuma, é vazio. O Ingmar Bergman
fez fama e deitou na cama”.
Quando Augusto Pereira
submeteu Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver à Censura, os censores nem
pestanejaram: votaram pela proibição. Os pareceres dão uma boa ideia da revolta
que o filme causou. O censor Manoel Felipe de Souza Leão escreveu:
O filme ora examinado focalizado as facetas de um
autêntico débil mental que não acreditava na reencarnação (...) O filme é de um mau gosto terrível. Os
produtores tentam levar ao público um trabalho do gênero terror, usando e
abusando de pancadaria, torturas, sexo e violência extremada. As sequencias são
desordenadas, indicando a instabilidade de toda a equipe técnica (...) O
desempenho do cast deixa muito a desejar, pois se assemelha a um
verdadeiro teatro filmado, sem aquela naturalidade existente nos elencos de
primeira categoria que encontramos no próprio cinema nacional.
O hino sacro “Aleluia”,
de Handel, e cenas tiradas (ao que sentimos) da Divina comédia de Dante são
“misturas” aplicadas ao filme com o fim de agradar. Não observamos qualquer
mensagem na obra apresentada. O homem sádico não sofre a mínima SANÇÃO
(sic) pelas torturas e assassinatos que praticou contra vítimas indefesas.
Ao ser perseguido (no
fim do filme), o produtor limita-se a apresenta-lo caído, gritando aos quatro
ventos que a vida eterna não existe simplesmente (...)
Trata-se, enfim, de uma
obra primária em matéria de arte cinematográfica que vem prejudicar a própria
evolução do moderno cinema nacional. Somos, pois, de opinião que o filme
examinado não tem condições de ser liberado, salvo melhor juízo da douta chefia
do SCDP (...)
O censor Constâncio
Montebello, aparentemente sofrendo um flashback para a época da Inquisição,
ficou escandalizado com a blasfêmia de Zé do Caixão:
História de um agente
funerário (...) que demonstra ser portador de doença mental complexas: é
contra Deus e as religiões, embora acredite no Diabo e no inferno; é um
assassino sádico com todos os requintes de perversidade; sua conduta é
completamente amoral, visto desconhecer os limites da imoral e da moral. O
filme deseja, e consegue, impressionar por suas cenas de terror, de sadismo
sexual, de asco etc. inclusive finalizando com a morte do agente funerário
negando a existência de Deus e da religião que procurava, por intermédio de um
padre católico, salvar sua alma (...) Pelo exposto acima, não vejo condições
para a liberação do filme.
A reação mais extremada,
no entanto, foi da censora Jacira Oliveira:
Se não fugisse à minha
alçada, seria o caso de sugerir a prisão do produtor.
Com o filme interditado,
Augusto teve de iniciar um longo e tedioso processo de negociação com a
Censura. O procedimento normal num caso desses era fazer alguns cortes nas
cenas mais pesadas e submeter novamente o filme aos censores, até que se
chegasse a uma versão satisfatória. Mojica e Augusto cortaram trechos de uma
cena violentíssima, na qual Zé do Caixão queimava uma mulher viva (interpretada
por Paula Ramos). Mas não foi o suficiente para aplacar a ira dos carolas, que
novamente votaram pela interdição.
O filme foi enviado a
Brasília três vezes e, cada vez, voltava mais retalhado. Os censores primeiro
exigiram cortes nas cenas das cobras e aranhas; depois ordenaram que fosse
excluída toda a sequência da mulher sendo queimada (curiosamente, um pequeno
trecho desta cena pode ser visto nos créditos de abertura do filme). A cena que
mais enfureceu os censores, no entanto, foi mesmo a da morte de Zé do Caixão.
Nesta sequência, o personagem leva vários tiros, cai num lago e, antes de
morrer, confirma sua descrença em Deus. Um padre implora a Zé do Caixão para
que ele peça perdão a Deus por seus pecados, mas Zé grita: “Eu não creio! Não
creio!”, enquanto afunda nas águas pestilentas do lago. Augusto Pereira foi
avisado de que a cena precisaria ser modificada.
Ele procurou um dos chefes
da Secretaria da Censura, Augusto da Costa – ex-zagueiro do Vasco e capitão da
Seleção Brasileira na Copa de 50 -, para tentar um acordo. Costa disse que não
liberaria o filme enquanto o final não fosse mudado para algo “mais positivo”.
Ele sugeriu dublar a cena final, trocando o “Eu não creio!” de Zé do Caixão por
alguma declaração de arrependimento e fé no Senhor. Augusto Pereira concordou.
Era isso ou nada. Além de exigir a redublagem da cena, o censor vascaíno teve o
descaramento de escrever o texto que deveria ser dito por Zé do Caixão. Ele
chamou outro censor, Coriolano de Loyola Fagundes (que, anos depois, se
tornaria chefe da Censura) e juntos bolaram a seguinte pérola:
Deus, Deus...Sim, Deus é a verdade! Eu creio em tua
força! Salvai-me! A cruz, a cruz, padre! A cruz, o símbolo do filho...
Mojica teve de voltar ao
estúdio de sonorização, reconvocar o dublador Laercio Laurelli e gravar
novamente a fala, transformando Zé do Caixão num sujeito crédulo e arrependido.
Como se não bastasse tamanha humilhação, foi obrigado também a adicionar um
ridículo texto sobreposto à imagem final:
O homem só encontrará a
verdade quando ele realmente quiser a verdade.
No Correio da Manhã,
Salvyano Cavalcanti de Paiva esbravejou:
E o diretor da Censura,
que pelo visto é um catolicão aspirina, embora ciente de que no Brasil o Estado
está separado da Igreja, deseja impor seu ponto de vista à maioria. Tanto que
declara que a Censura, para liberar o filme de José Mojica Marins, Esta Noite
Encarnarei no Teu Cadáver, obrigou o realizador a mudar o caráter do personagem
central. Este, na versão original, negava Deus (ou Zeus, ou Maomé, ou Buda, ou
Confúcio, ou Brama, ou Jeová, ou Cristo, ou Oxóssi) até a hora da morte. A
Censura impôs que o personagem, na hora final, reconhecesse que estava errado e
que Deus existe. Isto é o que a Censura chama de “mensagem positiva”. É um
acinte ao direto do artista, ao direito do pensador. É um abuso. É, sobretudo,
mistura de burrice e subversão, além de corrupção notória, a corrupção do medo,
a troca de favores. A chantagem mais deslavada... Quem será mais cretino? O
diretor, que cedeu? O censor que o obrigou a “modificar” a mensagem, sob pena
de ser comercialmente prejudicado?
Mojica, que até então não
havia aberto a boca para reclamar da Censura, logo percebeu a publicidade que
isso poderia gerar para seu filme. Em 13 de março de 1967, quando Esta Noite
Encarnarei no Teu Cadáver finalmente estreou, em catorze cinemas de São
Paulo, ele começou a cutucar a Censura em suas entrevistas. Daí em diante,
nunca mais perderia uma oportunidade de se dizer perseguido e injustiçado.
Adjetivos como “revoltado”, “maldito” e “incompreendido” começaram a pipocar em
todos os artigos escritos sobre ele:
Quando Mojica mostrou
seu filme para a Censura, todos ficaram horrorizados. “Inicialmente queriam
queimar o filme e me prenderam”, disse.
Notícias Populares, 10 de
março de 1967.
Sempre fui perseguido, e até hoje não sei o motivo.
Jornal da Tarde, 13 de
março de 1967.
Pena que a Censura –
sempre tão obtusa – tenha prendido o filme por tanto tempo, privando o público
de um espetáculo que ele esperou com paciência para aplaudir, sabendo que não
teria decepções com este ótimo filme.
Jornal da Tarde, 14 de
março de 1967.
Um strip-tease feito
pela artista (Paula Ramos) foi cortado pela Censura, deixando Paula triste.
Folha de S. Paulo, 21 de março de 1967.
Mojica diz: “Acho bom o pessoal assistir logo à
fita, antes que a Igreja ou a Censura comece a fazer onda”.
Correio Braziliense, 26 de março de 1967.
Foi nessa época que Mojica começou a demonstrar seu
incrível talento para a autopromoção. Antes de ser “descoberto” por Sganzerla,
os artigos sobre seus filmes limitavam-se a jornais sensacionalistas de São
Paulo e a pequenos folhetins de bairro. Agora, com o sucesso de Á Meia-Noite
e Esta Noite e com os elogios de alguns cineastas e críticos famosos, os
jornais mais importantes do país também começaram a se interessar por ele.
As oportunidades de divulgação se ampliaram: Mojica
descobriu que jornais eram, no fim de contar, apenas espaço em branco esperando
para ser preenchido. Ele passou a visitar regularmente as redações, fez amizade
com vários colunistas e começou a bolar diversas formas de manter seu nome
sempre na mídia. A primeira de suas engenhosas estratégias de marketing foi
marcar a sessão de pré-estreia da Esta
Noite Encarnarei no Teu Cadáver para uma sexta-feira à meia-noite, e enviar
um engraçado convite em forma de caixão. Só isso valeu notas nos jornais Folha
de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, Notícias Populares, Última
Hora, Jornal da Tarde, Diário Popular, Gazeta Esportiva
e Diário da Noite. No dia seguinte à estreia de Esta Noite,
Mojica passou a distribuir notas diárias à imprensa, com informações sobre a
“extraordinária performance de bilheteria de seu filme”. Vários colunistas
morderam a isca:
O filme de Mojica Marins, Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, bateu todos
os recordes de bilheteria do Art-Palácio em seu lançamento. Uma hora antes da
primeira sessão já havia fila dando volta no quarteirão da Conselheiro
Crispiniano. Deve ter rendido, num único dia, quase 20 milhões, quantia que a
maioria dos filmes brasileiros não consegue faturar em uma semana. Mojica, que não
sai da porta do Art-Palácio, garante que chegará em São Paulo aos 500 milhões.
Notícias Populares, coluna de Moracy do Val, 15
de março de 1967
No dia seguinte, o mesmo
Moracy do Val daria mais uma forcinha para Mojica:
O diretor José Mojica
Marins, em visita ao NP, afirma que 60% do público de Esta Noite Encarnarei no
Teu Cadáver é feminino. Comprovação da tese de Nelson Rodrigues (...).
Prova da eficiência do
marketing de Mojica é que os jornais Folha de S. Paulo, Diário da
Noite e Diário Popular publicaram reportagem simultâneas e
praticamente idênticas sobre o sucesso de Esta Noite. Os três jornais
informavam que mais de 40 mil pessoas já haviam assistido ao filme nos três
primeiros dias de exibição e que, até o fim de semana seguinte, calculava-se
que o público total chegara aos 100 mil. Quem “calculava” era, naturalmente,
Mojica.
Ele continuava com suas
magistrais jogadas de marketing pessoal: no meio de abril, conseguiu agendar a
exibição de outros três de seus filmes e convenceu os jornais que estava
batendo um recorde brasileiro de exibição simultânea, com quatro filmes em
cartaz ao mesmo: Meu Destino em Tuas Mãos no Cine Joia, A Sina do
Aventureiro no Apolo, Á Meia-Noite Levarei Sua Alma nos cines Coral
e Éden e Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver com catorze cinemas da
capital.
Mojica não fazia distinção
entre jornais pequenos e grandes. Para ele, qualquer publicidade era lucro.
Tanto quer promoveu uma noite de autógrafos com as atrizes Nádia Tell e Paula
Ramos num cinema do Ipiranga e depois levou suas “estrelas” para uma boca-livre
numa pizzaria local. O jornal Folha do Ipiranga, co-patrocinador da
festança, descreveu assim o evento: “Em seguida, a comitiva foi à Grelha Don
Zanella, onde o proprietário recebeu-os fidalgamente e proporcionou
variadíssimas pizzas. Durante o ágape, que decorreu em ambiente bastante
animado e perante numerosos autógrafos, terminando, assim, uma noitada em que o
cinema nacional conquistou completamente as simpatias dum dos bairros mais
tradicionais da nossa grande capital”.
Nem todas as reportagens,
no entanto, foram positivas. O jornal Amanhã viu na filosofia da “busca
do filho perfeito” de Zé do Caixão semelhanças com o nazismo e estampou um
virulento título em letras garrafais: “nazismo vai encarnar no teu cadáver”. O
cineasta Roberto Santos já havia alertado Mojica para a possibilidade de
acusações como essas e o instruiu sobre como deveria responder às reclamações.
Quando o repórter do Amanhã procurou Mojica para esclarecer a história,
ele respondeu na bucha: “Falaram por aí que minhas ideias eram parecidas com as
de Hitler. Então fui ler o Mein Kampf, não sei se você conhece. Lá o
Hitler explica o que é a raça superior. É diferente do que eu penso. Para ele a
raça é problema físico, para mim é mental”.
Os críticos continuavam a
se engalfinhar em discussões sobre Mojica: enquanto alguns viam em Esta
Noite Encarnarei no Teu Cadáver a mão de um gênio do primitivismo, outros
nem levavam o filme a sério. No Estadão, Alfredo Sternheim, respeitado
crítico e assistente de direção de Walter Hugo Khouri em Noite Vazia
(1964), escreveu:
Se, por um lado, sempre
há filmes que enobrecem a sétima arte no Brasil, sugerindo melhores
perspectivas para a indústria cinematográfica (Amor, Desamor, para nos
atermos a um caso recente) (N. dos A.: dirigido por Gerson Tavares), por
outro lado há películas totalmente desabonadoras e que só servem para
desprestigiar o nosso cinema perante o público. É o que se verifica agora em Esta
Noite Encarnarei no Teu Cadáver (...) Sequencia
de Á Meia-Noite Levarei Sua Alma, o atual cartaz do Cine Art-Palácio
não consegue ser nem uma boa continuação mais aprimorada, nem uma realização
autônoma assistível. A canhestrice, a vulgaridade, o grotesco se fazem
presentes, tanto na história como na direção, cenografia e nos inúmeros efeitos
sanguinolentos, conforme se verifica naquela sequencia que é a melhor atesta o
mau gosto, bem como nos momentos eróticos, que resultam pornográficos diante
das marcações impostas (...)
O lamentável não é
tanto a película (...) mas sim o fato de a mesma estar sendo levada a
sério em camadas de nossa intelectualidade, numa atitude talvez irônica, e que
parece inspirada na mordacidade inoperante e desenxabida com que muitas vezes
se manifestam os críticos franceses adeptos da Godard. Há nisso um infantilismo
que serve apenas para desprestigiar a crítica na sua formação analítica,
desvalorizando-a aos olhos do público e comprometendo o diálogo entre ambos.
O crítico do jornal Shopping
News, Rubens Francisco Stopa, também esculhambou Mojica:
Ninguém poderá tomar em
consideração a filosofia de almanaque do sr. Marins, ou deixar de achar risível
sua cenografia de fundo de quintal, desde que possua inteligência pelo menos em
grau médio. Além disso, o mau gosto e o primarismo imperam na fita toda.
Veja-se, por exemplo, a cena do inferno, que invariavelmente provoca
gargalhadas na plateia (...) Em suma: uma fita com a qual ninguém deve
perder seu tempo, a não ser que seja crítico e, como nós, precise assisti-la
por obrigação. Cotação: Péssimo.
Um dos poucos críticos a
ver qualidades no filme foi Paulo Ramos, da Folha de S. Paulo, que
destacou o “espírito nietzscheano” de Zé do Caixão (“misto de Belzebu e
Zaratustra”) e encantou-se com a sequência do inferno:
Esta Noite Encarnarei no
Teu Cadáver poderia ser acusado de totalitário e fascista se tivesse um
pingo de conteúdo político. Mas nem filme de suspense é, pois Mojica não
recorre ao golpe baixo do susto atrás da cortina, ou à falta de imaginação de
vampirinhos coloridos. Trata-se, isto sim, de um filme fantástico, satânico,
onde visões potentes se juntam à falta do convencional “bom gosto”, onde a vida
é abandonada pelos motivos mais primitivos e aos impulsos mais irreais, onde os
conflitos interiores de um homem nos revelam um mundo nada realista, um mundo
de “imagens imaginadas”, um mundo no qual a noite dissolve todas as formas...
(...) O inferno de Zé
do Caixão, o melhor episódio do filme, é um verdadeiro pesadelo de olhos
abertos – digno dos pincéis de um Bosch, de um Brueghel, da pena de um Edgar
Allan Poe. Mas é no apelo a uma simbologia nitidamente primitiva que ele se
revela. São as correntes de ferro, os sonhos exprimindo as tendências mais
secretas, a hipervirilidade do inimigo, os crânios nus, as aranhas negras, as
serpentes como imagem de agressão sexual contra as mulheres. A história é
velha: Eva e a cobra; a morte de Cleópatra etc...Esperemos que Mojica continue
filmando na sua velha sinagoga do Brás, truculento e primitivo como sempre.
Pois o dia em que adquirir lucidez crítica, ou se deixar envolver por meia
dúzia de “snobs” que já começam a elogiá-lo, será um cineasta liquidado.
No Correio da Manhã,
Salvyano Cavalcanti de Paiva – sempre ele – saiu em defesa de Mojica,
comparando-o inclusive a Humberto Mauro, outro cineasta que, em sua opinião,
teria sido vítima do mesmo tipo de preconceito por parte da crítica brasileira:
Muito bem, estamos
todos de acordo: os que deram bola preta e que deram constelação de estrelas a
Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver. Esteticamente, é primário, inferior a
Á Meia-Noite Levarei Sua Alma. Mas seus valores psicológicos merecem estudo:
definem a personalidade do diretor através de seu personagem central, mítico e
fascinante em suas contradições. Um neurótico, José Mojica Marins? Menos,
talvez, do que os que o perseguem ou dele debocham, porque não o entendem.
Por que aceitamos seus
filmes, ainda que os consideremos esteticamente primários? O cinema de José
Mojica, no ciclo inaugurado com o aparecimento de Zé do Caixão, é “primitivo” –
e só como tal pode e deve ser examinado. Nesse primitivismo, entretanto, serão
importantes os seus filmes pela autenticidade, que muitos fingem não ver.
Arriscamo-nos a proclamar o que, no futuro, estamos certos, analistas
desapaixonados irão constatar, reconhecer: a eclosão do cinema de Marins
representa fato novo, da dimensão do que hoje se tem como pacífico a respeito
de Humberto Mauro, cineasta também puro, intuitivo, genuíno em sua brasilidade
e na abordagem formal – e durante tantos anos subestimado pela crítica, esta
sim a “velha crítica”, então preocupada em discutir as teorias alienígenas
ainda não sistematizadas, enquanto descriam e esnobavam, seus expoentes, dos
homens e das coisas brasileiras.
Em outubro de 1967,
Rogério Sganzerla publicaria no jornal Artes uma das mais belas crônicas já
escritas sobre o cinema de Mojica, um texto que capta com perfeição a essência
de sua arte primitiva e que vê em seus filmes, inclusive, uma solução para a
busca de ume estética própria ao cinema latino-americano:
O
NATURAL É TÃO FALSO. SOMENTE O ARQUIFALSO É REALMENTE REAL. Estou falando de
José Mojica Marins, cineasta do excesso e do crime (...) Dificilmente alguém no
Brasil conseguirá o que ele está conseguindo, longe de todos, sem cultura nem
dinheiro.
Antigamente
eu respeitava os cineastas brasileiros porque conseguiam fazer seus filmes.
Hoje eu reconheço os que fazem o seu cinema. Á Meia-Noite Levarei Sua Alma pertence
à classe dos filmes especiais: não interessa se é bom ou ruim: o filme é forte.
De boa-fé, troco vinte anos de cinema paulista pelos 20 segundos em que Zé do
Caixão, fugindo na floresta de papelão, abre os braços e grita: “A quem
pertence a Terra? A Deus? Ao Demônio? Ou aos espíritos desencarnados?”.
Se
fosse imaginar um filme invertido, em negativo – ou “diferente” como eu pedia
no meu Documentário (N. dos A.:
curta-metragem que Sganzerla dirigiu em 1966), seria Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver. Ainda não sei bem o que é, só sei que Mojica arrisca-se – como bem observou
Carlos Von Schmidt – entre o tudo e o nada. “Do nada faz o tudo, ao contrário
daqueles que em cinema têm tudo e não fazem nada!”
Ele começa do nada, no Brás, e faz tudo – ao contrário da maioria,
porque sendo simples e inculto, não tem prevenções em filmar um sonho, um
plano-sequência de nove minutos ou misturar sadismo com piadinhas infames. Daí
a mistura alucinante de todos – mas todos mesmo – gêneros: em Á Meia-Noite
Levarei Sua Alma as referências vão do
capa-e-espada à science-fiction, passando pelo desenho animado e o circo.
Divertindo ou apavorando, batendo ou apanhando fazendo sexo ou comendo
pastel, Mojica promete filmes cada vez mais estranhos e fortes, cumprindo-os com
a violência dos grandes solitários. Seu cinema vai por aí e ninguém sabe o que
pode acontecer. Em Mojica, o esplendor e a glória da mise-en-scène brasileira.
Para ser sincero ela deve confessar-se espontânea e mentirosa. E tudo é uma
mesma coisa ingênua e sanguinária (...)
Se
anteriormente eu detestava Fellini, depois de conhecer Mojica e de ir ao
Festival de Marília começo a ter minhas dúvidas. Situando o cinema brasileiro
no nível do cinema brasileiro, Mojica surge como um dos nossos paradoxos desses
últimos anos. A um passo da demência e da genialidade, ele defende-se de suas
neuroses com filmes.
Além
de ser um personagem, Mojica descobriu um caminho: quanto mais realista a
atmosfera em que emerge o absurdo, mais absurdo será o resultado. Como todos
sabem, o cinema latino-americano tem de ser um cinema radicalmente voltado
nesse sentido, aceitando-se enquanto miséria e o delírio provocado pela
miséria. No final das contas, Mojica também é um desmistificador (não preciso,
nem quero, falar aqui em Murnau e Buñuel. Não tenho nada com a literatura
cinematográfica, não guardo arquivos em casa). Poderia, por outro lado, dizer
que Mojica tem um pouco daquilo que mais amo em Ray, Hawks, Weeles, Fuller e
certos Godards. Isso, a minha declaração de princípios: FINALMENTE HÁ DUAS
RAÇAS DE CINEASTAS. EM PRIMEIRO LUGAR, OS QUE CONSEGUEM ESFRIAR E AO MESMO
TEMPO SUPER-EXCITAR A NARRATIVA E, DEPOIS, OS OUTROS.
Enquanto isso, Esta
Noite Encarnarei no Teu Cadáver continuava a lotar os cinemas. Augusto
Pereira fez 25 cópias do filme, contratou uma equipe de fiscais – chefiada por
Gaúcho – e começou a distribuição do filme na Grande São Paulo.
Se fazer um filme no
Brasil já era tarefa dificílima, receber o dinheiro da bilheteria era muito
mais complicado. Numa época em que não existiam ingressos padronizados, nem
fiscalização pública nas salas, as empresas distribuidoras tinham que usar
fiscais próprios para vistoriar as bilheterias e dividir a renda com os donos
dos cinemas.
A coisa toda funcionava
num esquema muito mambembe: as distribuidoras acertavam com os exibidores as
datas de exibição do filme e mandavam um fiscal para o cinema, levando a cópia
do filme debaixo do braço. Este fiscal tinha que contar o número de ingressos
vendidos e depois dividir o dinheiro com o dono do cinema. A divisão, na
teoria, deveria ser feita da seguinte forma: 10% da bilheteria ficava com a
prefeitura, como imposto. Os outros 90% eram divididos, meio a meio, entre o
exibidor e o distribuidor. Da sua parte, o distribuidor ficava com 20% nos
municípios e com mais de 2 milhões de habitantes e 30% nos de menos de 2
milhões, e repassava o resto ao produtor do filme. Tirando o dinheiro da
prefeitura, do exibidor e do distribuidor, o produtor, no final das contas,
ficava com minguados 30% da bilheteria.
O problema é que nem
sempre os donos dos cinemas aceitavam o combinado e invariavelmente tentavam
enganar os fiscais, vendendo mais ingressos do que afirmavam em seus borderôs.
As táticas usadas para ludibriar os fiscais eram as mais criativas possíveis:
alguns cinemas tinham duas entradas, com guichês diferentes. Ao preencher o
borderô, o dono do cinema só incluía os ingressos vendidos em um dos guichês.
Outros cinemas vendiam ingressos separados para o térreo e o balcão,
registrando apenas uma das seções no borderô. O mais comum, no entanto, era que
os exibidores partissem mesmo para a ameaça física. Não eram raros os casos de
fiscais obrigados a assinar recibos sob a mira de revólveres ou sob ameaça de
surras e linchamentos. Ser fiscal de cinema em 1967 era tarefa para cabra
macho.
A situação era tão feia
que o próprio Instituto Nacional do Cinema (INC), órgão criado no ano anterior
pelo presidente Castello Branco para coordenar a atividade cinematográfica no
país, chegou a sugerir que distribuidores e exibidores – especialmente os do
subúrbio e interior – acertassem um “preço fixo” por cada filme, para evitar
fraudes. Os exibidores, obviamente, não aceitaram a sugestão.
Em 1964, outro órgão do
governo, o Grupo Executivo da Indústria Cinematográfica (GEICINE), antecessor
do INC, calculara que, dos 350 milhões de ingressos vendidos no Brasil durante
aquele ano, apenas metade havia sido declarada. O resto desaparecera
misteriosamente nos cálculos fictícios de exibidores e fiscais.
Havia ainda o problema da
intensa movimentação das cópias dos filmes, que dificultava sobremaneira o
trabalho de contagem de bilheteria. Em 1967, a maioria dos cinemas de São Paulo
eram salas de bairro no subúrbio. Como não havia muitos aparelhos de TV na
época (o grande boom da televisão no
Brasil ocorreria durante a década de 70, quando o número de aparelhos subiu de
5 milhões para quase 20 milhões), estes cinemas eram a única fonte de filmes
para os moradores. Os cinemas, por isso, não podiam exibir o mesmo filme por
muito tempo, limitando-se a dois ou três dias, apenas o tempo necessário para
que todos os moradores do bairro pudessem assisti-lo.
Por causa dessa mobilidade
das cópias, os fiscais eram obrigados a fazer verdadeiras excursões com o filme
debaixo do braço. Um roteiro típico: dois dias num cinema, em Cidade Ademar,
zona sul da cidade; depois mais dois dias no Jardim Ângela, seguido por um dia
em São Caetano do Sul. De lá, o fiscal dava uma parada em Cangaíba, na zona
leste, seguida de outra escala no Tremembé, zona norte. Um pinga-pinga
infernal.
Organizar esses roteiros
era complicadíssimo. No escritório de Augusto, Gaúcho mantinha um mapa de São
Paulo, com alfinetes coloridos indicando a posição de casa fiscal e de cada
cópia. Tratava-se de uma verdadeira operação de guerra. Às vezes, a operação
falhava: certa vez Gaúcho mandou um fiscal para um cinema em Cosmópolis, perto
de Campinas. Na rodoviária, o sujeito se atrapalhou com o nome da cidade e foi
para em Carlópolis, no oeste do Paraná.
O trabalho de fiscalização
de borderôs era lento e cansativo, mas os resultados de bilheteria de Esta
Noite compensavam qualquer esforço. O filme ia muito bem nos cinemas do
centro da cidade e no interior. Naquela época, o público humilde dos subúrbios
e do interior era mais propenso a assistir filmes brasileiros, por causa do
alto número de analfabetos e semi-analfabetos, que tinham dificuldade para ler
legendas dos filmes em inglês. As estatísticas não mentiam: nos cinemas de
bairro e interior, os filmes nacionais atraíam o mesmo público que as fitas
importadas. Já nos cinemas do centro da cidade, os filmes estrangeiros atraíam
três vezes mais espectadores.
No caso de Esta Noite
Encarnarei no Teu Cadáver, não houve diferença: a fita explodiu no centro
como no subúrbio. Hoje é impossível saber com exatidão o público do filme, já
que as empresas distribuidoras não guardaram os borderôs e 70% dos cinemas que
o exibiram não existem mais. É possível, no entanto, fazer um cálculo
aproximado, levando-se em consideração os números de bilheteria em São Paulo.
Um dos chefes da fiscalização do filme, Virgílio Roveda, o Gaúcho, garante que Esta Noite foi exibido em 186 cinemas no
estado de São Paulo, para um público de 1,5 milhão de espectadores. Dados do
INC mostram que São Paulo representava entre 25% e 30% do total de público do
país. Sabendo que o filme de Mojica foi um sucesso em todo o Brasil, lotando
salas em Caruaru (PE), Vacaria (RS), Goiânia (GO) e Manaus (AM), pode-se
calcular – de forma aproximada, claro – que Esta Noite Encarnarei no Teu
Cadáver foi assistido por um público de 5 a 6 milhões de brasileiros.
Também é impossível fazer
um ranking confiável das bilheterias de filmes nacionais, já que não existem
dados oficiais sobre o público das primeiras fitas de Mazzaropi ou das
chanchadas de Oscarito e Grande Otelo. Em 1984, no entanto, a Embrafilme
publicaria uma lista dos filmes brasileiros de maior público lançados desde
1970. Se Esta Noite fosse incluído nesta lista, ficaria entre os cinco
primeiros, atrás de Dona Flor e Seus Dois Maridos (10,7 milhões) e A
Dama do Lotação (6,5 milhões) e empatado com O Trapalhão nas Minas do
Rei Salomão (5,7 milhões) e Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia
(5,4 milhões).
O filme rendeu uma
fortuna, mas nenhum centavo foi para o bolso de Mojica. Dias antes do
lançamento, não acreditando muito no sucesso da fita, ele abriu mão de sua
parte para saldar uma dívida com o produtor Augusto Pereira. Augusto, por sua
vez, conseguiu ficar dono do filme sem botar um níquel na produção. Depois de
terminar a filmagem com o dinheiro de Antônio Fracari, ele conseguiu um empréstimo
de um agiota e comprou também a parte de Fracari. Ficou rico, enquanto seu
amigo, Mojica, mesmo tendo dirigido dois filmes campeões de bilheteria,
continuava na pindaíba.
Publicado originalmente em BARCINSKI, André & FINOTTI, Ivan. Maldito:
a vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. São Paulo: Editora
34, 1998.
Um comentário:
Obrigado por postar, Matheus!
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