Capítulo 11: O Ritual dos Sádicos
Por André Barcinski e Ivan Finotti
Enquanto
amargava o fim do programa da Tupi, Mojica começou a se dedicar a diversas
atividades que nada tinham a ver com cinema. Empresários dos mais variados
ramos começaram a procurá-lo com propostas para lançamento de produtos
associados à sua imagem: um queria fabricar máscaras de carnaval de Zé do
Caixão; outro sugeria uma linha de chaveiros e penduricalhos com cara do
personagem. Houve até quem quisesse fabricar bonecos do Zé. A ideia mais
esquisita, no entanto, foi a de Alberto Pimentel, dono de uma funerária em
Santo André. Tratava-se do “Consórcio da Morte”, uma verdadeira arapuca na qual
o consorciado pagava taxas mensais pelo direito de receber um enterro de luxo.
O
esquema era suspeitíssimo: primeiro pagava-se uma “taxa de inscrição” para
tornar-se membro do consórcio. Depois, era preciso esperar que seu grupo de
consorciados chegasse a quinhentos e, então, pagava-se nova taxa, como
“antecipação das despesas com os futuros enterros de dez membros do consórcio
ou de seus familiares próximos”. As primeiras dez pessoas que morressem eram
enterradas em caixões de pinho com estofamento de veludo; os sobreviventes
precisavam pagar de novo, até que morressem os dez seguintes, e assim por
diante. A solução era morrer logo, para pagar menos.
Pimentel
dizia que seu consórcio cumpria uma função humanitária, dando a pessoas de
poucos recursos a chance de ter um enterro decente. “Morrer hoje está muito
caro. É preciso ter muito dinheiro ou ser do consórcio, senão vai em caixão sem
forro. Não é pelo desconforto, mas pela humilhação”. O papa-defuntos também
dava dicas de beleza para os falecidos: “O morto deve ter boa aparência, boas
cores, estar bem-vestido e descontraído, para deixar boa memória...”. Ninguém
caiu no trambique e Mojica logo esqueceu a ideia.
Depois
do “Consórcio da Morte”, Mojica envolveu-se em outro projeto bizarro, gravando
um compacto com duas marchinhas de carnaval para a gravadora Sadembra. As
faixas eram “Castelo dos horrores” e “Em cima da hora”, compostas por B. Lobo e
Roney Wanderley, este, repórter do jornal paulista Notícias Populares.
“Castelo dos horrores” começava com sons de tempestade e gargalhadas macabras.
Era a deixa para Mojica, que entrava rogando uma praga e conclamando a massa a
“pular a noite inteira, até cair de cansaço”. Daí vinha o coro:
Eu
moro no castelo dos horrores
Não
tenho medo de assombração
Ô
Ô Ô Ô Ô Ô Ô
Eu
sou o Zé do Caixão
Não
adianta ter medo
De
caveira nem de Frankestein
Porque
mais tarde ou mais cedo você
Vai
abotoar o paletó
Vai
ser caveira também
A
pobreza da letra só era comparável à desafinação de Mojica. No fim da música,
ele rogava uma praga aos foliões: “Quero que você escorregue no chão e caia de
cabeça!”.
Apesar
dessa letra pouco festiva, o compacto fez um sucesso danado no carnaval de
1969, e Mojica ganhou um bom troco participando de bailes no subúrbio.
O
único projeto de real valor artístico do qual Mojica participou nessa época foi
a revista em quadrinhos O Estranho Mundo de Zé do Caixão, criada por
Lucchetti e pelo desenhista Nico Rosso. A ideia partiu de Lucchetti, que
trabalhava com Rosso na revista de terror Cripta. Rosso, um italiano
radicado no Brasil desde 1947, era considerado um dos maiores ilustradores e
quadrinistas da época. Lucchetti sempre admirara seu trabalho, especialmente os
desenhos de Drácula que ele fizera para a revista Seleções de Terror.
Antes
da dupla Lucchetti-Rosso, a história dos quadrinhos de terror no Brasil
praticamente se limitara a republicações, em português, de gibis
norte-americanos dos anos 1950, como Vault of Horror, Haunt of Fear
e Tales From the Crypt. A produção nacional, além de pequena, apenas
copiava e os temas dos gibis importados. O próprio trabalho de Lucchetti e
Rosso na revista Cripta baseava-se num horror nitidamente europeu, com
personagens como vampiros e lobisomens.
Lucchetti,
no entanto, sempre sonhara em fazer uma história em quadrinhos autenticamente
nacional, utilizando o folclore e os mistérios brasileiros. E quem melhor para
participar destas histórias que Zé do Caixão, o monstro verde e amarelo?
Lucchetti contou sua história para Mojica e sugeriu usar Zé do Caixão apenas
como o narrador das histórias, como já havia sido feito nos programas de TV.
A
inovação de Lucchetti não se restringiu à brasilidade dos gibis: ele também
teve a ideia – então inédita no mundo – de mesclar fotografias e desenhos. Zé
do Caixão apareceria sempre em fotografias (tiradas por Luiz Fidélis Barreira,
fotógrafo de cena em vários filmes de Mojica), enquanto as histórias seriam
desenhadas por Rosso. Como complemento, cada revista traria uma fotonovela
tirada dos filmes de Zé do Caixão. Lucchetti e Rosso transpuseram para as
páginas do gibi o mesmo clima dos filmes de Mojica, com histórias simples,
acessíveis a todo o público, e cenários que lembravam qualquer cidadezinha do
interior do país. Nada de castelos europeus e do fog londrino; o horror de
Lucchetti e Rosso era coisa nossa.
Lucchetti
acertou a publicação com a editora paulista Prelúdio. O primeiro número saiu em
janeiro de 1969, trazendo a história em quadrinhos “Noite negra” e uma
fotonovela com o episódio “O fabricante de bonecas”, do filme O Estranho
Mundo de Zé do Caixão. “Noite negra” era uma história fantástica sobre
Vicente, um homem que faz um pacto com o diabo para salvar sua filha, vítima de
uma doença incurável. Em troca da ajuda demoníaca, Vicente se compromete a
sacrificar, durante um ritual de magia negra, a mais bela donzela da cidade. O
que ele não sabe é que a tal donzela desejada pelo tinhoso não é outra senão
sua própria filha. “Noite negra” havia sido escrita originalmente como um
episódio do programa Além, Muito Além do Além, na Bandeirantes, e fora
também adaptada por Ozualdo Candeias – com o nome de O Acordo – no
longa-metragem Trilogia do Terror.
A
história era repleta de comentários sociais: quando Vicente procura seu patrão
pedindo dinheiro emprestado para o tratamento de sua filha, é escorraçado pelo
canalha. Depois é atormentado por credores e agiotas, que não se comovem com a
iminente morte da menina. Usando personagens assim, facilmente reconhecíveis
pelo público, Lucchetti e Rosso conseguiram misturar o terror fictício ao
terror do dia-a-dia, repetindo fórmula que Mojica usara com tanto sucesso em
seus filmes.
Em
contraste com o esculacho dos gibis de terror da época, editados sem o menor
capricho, O Estranho Mundo de Zé do Caixão era um álbum de luxo,
impresso em papel da melhor qualidade, com capa colorida e desenhos em
meio-tom. Seu preço era salgado: 2 cruzeiros novos, enquanto a maioria dos
gibis não custava mais que 60 centavos. A editora Prelúdio, ainda incerta
quanto ao potencial da revista, imprimiu 15 mil exemplares. Apesar do preço
alto e da implicância da Censura, que exigiu que o gibi fosse embalado em saco
plástico e proibido para menores de 21 anos, as 15 mil revistas sumiram da
banca em dez dias.
Algumas
semanas depois, Mojica foi entrevistado no programa Quem Tem Medo da
Verdade?, da TV Record, apresentado por Carlos Manga. O programa tinha um
“júri” formado por gente como Adoniran Barbosa, Aracy de Almeida e Sílvio Luiz,
cuja função era simplesmente a de irritar o convidado com as perguntas mais
grosseiras e cretinas. Sílvio Luiz começou perguntando a Mojica como ele fazia
para passar papel higiênico. Depois de várias outras barbaridades semelhantes,
Sílvio simulou um acesso de fúria e rasgou vários exemplares do gibi, enquanto
gritava: “Nunca vi uma revista tão vagabunda! Isto é um lixo! Uma porcaria!”.
As vendas dobraram.
No
número seguinte, a Prelúdio imprimiu 29 mil exemplares. Esgotaram em poucas
semanas. Depois, 32 mil. O quarto gibi saiu com 35 mil exemplares, marca
espetacular (o gibi mais popular da época, Batman, vendia 60 mil exemplares,
mas custava três vezes menos que o de Zé do Caixão). O sucesso iniciou a cobiça
de outras editoras: a Dorkas, também de São Paulo, ofereceu a Mojica um
percentual mais alto na venda das revistas, e ele, sem avisar a Lucchetti ou à
Prelúdio, aceitou. Pior: entregou para a nova editora uma história escrita por
Lucchetti e ilustrada por Rosso, sem avisar nenhum dos dois. Novamente o
comportamento impulsivo e inconsequente de Mojica lhe custaria caro.
Lucchetti
ficou arrasado. Resolveu esquecer o episódio e iniciou dois outros gibis, O
Homem do Sapato Branco, com histórias policiais apresentadas por Jacinto
Figueira Jr., e Histórias que o Povo Conta, baseado num programa de
rádio apresentado por Sílvio Santos. Enquanto isso, a Editora Dorkas fez uma
série de mudanças na revista de Zé do Caixão, diminuindo seu tamanho, trocando
o papel por um de pior qualidade e substituindo Nico Rosso pelo desenhista
Rodolfo Zalla. As vendas caíram. Depois de apenas dois números malsucedidos na
Dorkas, Mojica retornou à Prelúdio, implorando para que voltassem a publicar a
revista. Como os direitos sobre o título de O Estranho Mundo de Zé do Caixão
pertenciam agora à Dorkas, a Prelúdio foi obrigada a mudar o nome da revista
Zé do Caixão no Reino do Terror. Foram lançados doi números com este
título, mas as vendagens nem chegaram a casa de 20 mil exemplares. A falta de
periodicidade e a mudança no título haviam matado o gibi.
Anos
depois, Mojica e Lucchetti ainda tentariam ressuscitar a revista, mas Lucchetti
desistiu da empreitada depois que Nico Rosso começou a ter sérios problemas de
saúde. Em 1976, Rosso sofreu um espasmo cerebral ao ver seu estúdio e
biblioteca desabarem por causa de escavações do metrô feitas nos fundos de sua
casa. O choque de testemunhar a destruição de décadas de seu trabalho foi
demais para o velho italiano: ele parou de desenhar e jamais se recuperou,
vindo a morrer em 1981.
Só
mesmo um sujeito boníssimo e tranquilo como Lucchetti para não romper de vez
com Mojica depois do episódio do gibi. Ele só perdoava Mojica porque sabia que
ele cometia as burradas mais por ingenuidade que por safadeza. Os dois
continuaram trabalhando juntos, num ritmo impressionante. De fato, o volume de
roteiros escritos por Lucchetti no fim dos anos 60, provavelmente o colocaria
no livro dos recordes: entre setembro de 1967, quando estreou Além, Muito Além
do Além, e agosto de 1969, quando foi lançado o último número da revista O
Estranho Mundo de Zé do Caixão, ele escreveu para Mojica nada menos de
quinze longas-metragens, 58 episódios de programas de TV, seis gibis, três
radionovela, um minissérie e um projeto de novela.
Grande
parte desse material permanece inédito. Entre os longas-metragens nunca
filmados estão As Aventuras de Zé do Caixão, uma superprodução infantil
misturando filme e desenho animado; a comédia O Penico; o faroeste O Homem
dos Braços Cruzados e dois filmes, Sete Mulheres Para um Sádico e Possuída
por Satã, com o personagem Oaxiac Odez. Outro projeto que nunca saiu do
papel foi o de um programa cômico estrelado por Mojica e pelo famoso comediante
Ankito. Mojica interpretaria um cientista maluco e Ankito seu assistente e
cobaia de suas experiências. A piada era que as experiências sempre
fracassavam, deixando o assistente cada vez mais desfigurado, com braços
tortos, cabeça torta e antenas do lugar de orelhas.
Lucchetti
também chegou a escrever, a pedido da TV Bandeirantes, três capítulos de uma
novela chamada O Homem que Apareceu, história de um sujeito misterioso e
místico (interpretado por Mojica) que anda pela cidade encarnando os mais
diferentes tipos. A novela seria diferente das normalmente apresentadas na TV:
em vez de ter uma trama contínua, que se arrastava por meses, O Homem que
Apareceu teria histórias de duração variada, que tanto poderiam durar dois
meses, como apenas um capítulo. O projeto foi abandonado depois que Mojica
trocou a Bandeirantes pela Tupi. Lucchetti, no entanto, usaria o personagem
central como inspiração para o roteiro do filme Finis Hominis (1970),
dirigido por Mojica.
Além
da novela, a Bandeirantes havia encomendado a Lucchetti roteiros para um
programa de rádio com histórias macabras, que seriam narradas por Mojica. Já na
Tupi, Mojica chegou a gravar um desses programas, A Maldição das Aranhas,
mas o episódio nunca foi ao ar (a história acabou sendo adaptada para os
quadrinhos pelo desenhista Rodolfo Zalla, na revista O Estranho Mundo de Zé
do Caixão, número 6). Logo depois, a gravadora Chantecler propôs a Mojica
gravar um disco com histórias de terror, Para se Ouvir Numa Noite de
Temporal. Lucchetti foi a gravadora e acertou todos os detalhes. Mojica, no
entanto, ficou adiando o acerto com a gravadora e a ideia acabou morrendo.
O
mesmo ocorreu com o projeto da Boate Zé do Caixão, um restaurante temático
(pré-Planet Hollywood) em que o tema central seria o terror. Lucchetti bolou
diversas atrações para o local: na entrada, o freguês seria recebido por um
lobisomem, que recolheria o bilhete e o queimaria numa fogueira, em vez de
rasgar. Os frequentares sentariam em cadeiras feitas de ossos humanos; o bar
serviria apenas bebidas vermelhas, em copos imitando crânios, e as garçonetes
seriam vampiras (Lucchetti reciclou a ideia quase vinte anos depois, no filme As
Sete Vampiras, de Ivan Cardoso). Um empresário ofereceu a Mojica sociedade
numa boate localizada na esquina da avenida Paulista com a rua da Consolação,
ponto nobre de São Paulo. Mojica chegou a comemorar a assinatura do acordo e
deu entrevistas anunciando a boate, mas o tal empresário faliu e ninguém mais
tocou no assunto.
O
fracasso de todos esses projetos se deveu principalmente ao amadorismo e
ingenuidade de Mojica, que nunca se preocupou em conseguir um empresário
honesto, e era facilmente tapeado por qualquer um. Ele assinava contratos
impulsivamente, sem pensar nas consequências e sem consultar seus parceiros.
Também nunca pensou em guardar dinheiro ou em profissionalizar suas atividades.
A sinagoga do Brás, nem telefone tinha: quando precisava dar um telefonema,
Mojica andava dois quarteirões e usava o telefone do botequim Gato Preto (que
Lucchetti, polido como ele só, preferia chamar de “leiteria”). Era de lá que
Mojica ligava para gente importante como Sílvio Santos e Mazzaropi. Os pinguços
que frequentavam o boteco não acreditavam quando o ouviam dizer: “É do
escritório do Sílvio Santos? Me chama ele aí, por favor!”.
Lucchetti
ficava desesperado com a situação. Poderia ter ficado rico com Zé do Caixão,
mas depois de uma infinidade de negócios fracassados, continuava recebendo
menos que o salário que o primo lhe oferecia como gerente de uma loja de
autopeças. Em julho de 1969, Mojica, chorando como uma criança, procurou-o para
dizer que não tinha mais condições de pagá-lo. Estava falido. A situação era
tão braba que ele fora forçado a sair da sinagoga e transferir seu estúdio para
um sobrado vagabundo na avenida Brigadeiro Luiz Antônio.
Luchettti
não conseguia acreditar no que estava ouvindo. Nos últimos anos, Mojica havia
lançado três filmes de sucesso e dois programas de TV líderes de audiência,
além de gibis, produtos de beleza e um disco de carnaval. Àquela altura, Zé do
Caixão deveria ter se tornado um novo Mazzaropi, um novo Roberto Carlos! Mojica
deveria estar morando num palacete no Morumbi! Mas ali estava ele, sem um
centavo no bolso e ainda dividindo um pequeno apartamento com Maria e os três
filhos pequenos. Toda a fortuna gerada por Zé do Caixão fora parar em outras
mãos: o dinheiro da bilheteria de seus filmes ficara com os produtores e
distribuidores; a renda dos gibis e seu salário na TV foram gastos pagando
banquetes para sua corriola.
Luchetti
também ficou numa pior: desempregado, foi trabalhar numa editora, por um
salário de fome. Para pagar o aluguel, teve de vender sua amada máquina de
escrever e o piano de sua mulher, Tereza. Pensou até em aceitar o convite do
primo e tornar-se vendedor de autopeças. Sua carreira de escritor seria salva,
curiosamente, por uma tragédia: no início de 1971, Zé Arigó, o famoso médium
que encarnava o espírito do Dr. Fritz, morreu em um acidente de automóvel. Uma
editora ofereceu a Lucchetti um bom dinheiro para que escrevesse – em 24 horas
– um livro sobre a vida de Arigó. Ele topou e desde então passou a viver de
livros de encomenda.
Os
inúmeros projetos associados à imagem de Zé do Caixão deixaram em Mojica uma
sequela muito mais dolorosa do que simplesmente a falência financeira. Cada vez
mais ele dependia de seu personagem para sobreviver. Mojica começou a fazer
aparições públicas vestido de Zé, em festas, bingos e gincanas de subúrbio. O
povo queria ver as longas unhas e a capa negra. Logo esqueceram que, por trás
da criatura, existia o criador. Mojica tornou-se escravo de seu próprio
personagem. Com medo de perder os trocados que ganhava com esses biscates,
deixou suas unhas crescerem absurdamente. Enquanto tivesse as unhas longas e
retorcidas, pensou, seria reconhecido na rua e receberia ofertas de trabalho.
Não imaginou nem por um segundo que poderia estar escondendo a sua metade mais
criativa.
Ainda
em 1969, Mojica, precisando de dinheiro, aceitou participar como ator de três
filmes: O Cangaceiro Sem Deus, um faroeste de Osvaldo de Oliveira
(assistente de câmera de Á Meia-Noite Levarei Sua Alma), no qual
interpretava um fanático religioso inspirado em Antônio Conselheiro; Audácia!
A Fúria dos Desejos, de Carlos Reichenbach e Antônio Lima, interpretando a
si próprio; e em O Profeta da Fome, de Maurice Capovilla, no papel de um
faquir especializado em truques como engolir giletes e deitar em camas de
pregos.
Mojica
não via a hora de voltar a dirigir. Já tinha na cabeça uma ideia fantástica
para um novo filme, O Dia, a Hora e as Armas, sobre um líder estudantil
que conclama um exército de mendigos a invadir as terras de seu pai, um rico
coronel do interior. A produtora Superfilmes interessou-se pela ideia e começou
a vender cotas do filme, mas vários meses passaram sem que a empresa desse o
menor indício de que começaria a produção. Mojica, irritado com a demora, foi à
sede da Superfilmes e deu um ultimato: ou iniciavam imediatamente a fita ou ele
começaria a rodar outro projeto. Os donos acharam que ele estava blefando.
“Então, eu vou fazer um filme, nem que tenha que pedir dinheiro na rua!”,
respondeu decidido.
Ele
não chegou a esse extremo, mas passou bem perto: nas semanas seguintes, procuro
todos os seus amigos cineastas, mendigando qualquer sobra de negativo. Roberto
Santos lhe deu uma lata que havia sobrado de seu O Homem Nu, Reichenbach
cede uma ponta de Audácia! e Capovilla conseguiu sobras de O Profeta
da Fome. Sganzerla também colaborou. Mojica associou-se ao fotógrafo
Giorgio Attili e, juntos, conseguiram num banco o financiamento para a
produção.
Mojica
não sabia direito que filme iria fazer. Só tinha certeza de uma coisa: faria o
filme mais revoltado, imundo e violento da história. Iria descarregar toda a
raiva acumulada em seu peito. Estava cansado de empresários desonestos e
censores idiotas. Queria, com um filme, vingar-se de todos que o haviam prejudicado.
Provaria de uma vez por todas que ninguém sabia chocar uma plateia como ele.
A
ideia para a fita surgiu por acaso: andando certa noite próximo a uma
delegacia, Mojica viu uma prostituta grávida sendo surrada por policiais. A
cena o aterrorizou. Na noite seguinte voltou ao local e, conversando com outras
prostitutas, descobriu que a mulher havia sido morta. “Quem entra nessa
delegacia não volta viva não!”, disse uma delas. Ele não conseguiu tirar a
imagem da cabeça. Nunca vira nada tão assustador. Resolveu esquecer o terror
ficcional de monstros e vampiros e fazer um filme sobre o terror do dia-a-dia,
da miséria e da violência urbana.
Nessa
época, Mojica estava também impressionado com o movimento hippie e com toda a
onda da contracultura. A Tropicália era a última moda no país; hippies de
cabeleiras esquisitas andavam pela cidade pregando o amor livre e fumando
cigarros suspeitos. Ele não tinha interesse algum em Jimi Hendrix, e a única
viagem alucinante que curtia era o táxi até o Brás, mas achou que poderia fazer
um filme juntando tudo isso: prostitutas, violência, policiais, hippies,
drogas...
O
resultado foi Ritual dos Sádicos.
Ritual
dos Sádicos começa com um debate entre um psicólogo
(Sérgio Hingst) e um grupo de “especialistas” (não fica claro de que área),
interpretados pelo próprio Mojica, por seu advogado Walter Portela, e por
quatro cineastas, Carlos Reichenbach, Maurice Capovilla, Jairo Ferreira e João
Callegaro. O psicólogo começa a relatar uma série de casos envolvendo viciados
em drogas: uma menina é levada para uma casa abandonada, onde experimenta um
cigarro de maconha, participa de uma bizarra orgia com um bando de hippies e
depois é barbaramente violentada por uma figura fantasiada de Moisés, que a
penetra com um cajado; uma ricaça cheia cocaína e fica acariciando um jumento,
enquanto observa sua filha transando com o mordomo; o dono de uma agência de
empregos, cocainômano, assedia sexualmente uma empregada doméstica e depois
convoca um rapaz musculoso para estupra-la.
Os
experts do painel não entendem as motivações do doutor. Consideram-no
louco e sádico. Ele explica que só está contando esses casos excêntricos para
ilustrar os resultados de uma experiência que havia realizado com quatro
toxicômanos (interpretados por Ozualdo Candeias, Andréa Byran, Lurdes Ribas e
Mário Lima). A experiência consistia em injetar LSD nos quatro e fazê-los
pensar sobre o mesmo assunto, para depois colher as descrições de suas
“viagens” e analisar os efeitos da droga em diferentes pessoas. O filme mostra
o psicólogo e os quatro viciados saindo em busca de “experiências fortes” que
poderiam servir de tema para a viagem lisérgica da turma: primeiro, vão ao
Teatro Oficina assistir à peça Na Selva das Cidades, de Brecht. Depois
visitam um inferninho, onde hippies pelados dançavam iê-iê-iê e queimavam
cigarros de maconha. A noitada termina num cinema, onde assistem a Esta
Noite Encarnarei no Teu Cadáver.
É
óbvio que os quatro escolhem o filme de Mojica como a experiência mais
marcante. No terço final do filme, o psicólogo lhes aplica o LSD e os quatro
têm alucinações psicodélicas bizarríssimas – e coloridas! – envolvendo Zé do
Caixão. O final é uma surpresa: depois de ser acusado de criminoso pelo painel
de especialistas, por ter usado humanos em suas experiências, o psicólogo
revela que não injetou LSD nos viciados, mas água destilada. “Tudo o que eles
viram já estava em seu subconsciente”, explica o doutor. “O tóxico é apenas uma
desculpa para libertar o instinto!”.
Ritual
dos Sádicos é muito diferente dos filmes que Mojica havia realizado até então.
Em primeiro lugar não é explicitamente um filme de horror, como Á Meia-Noite
Levarei Sua Alma ou Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, mas uma obra bem mais
realista e contemporânea. Outra diferença fundamental é que o novo filme tem um
cenário e uma época claramente definidos. Enquanto suas fitas anteriores
poderiam ter sido ambientadas tanto em Porto Alegre como em Manaus, nos anos 20
ou na década de 50, Ritual dos Sádicos é, inequivocamente, um filme sobre São
Paulo no fim dos anos 60, um raio-x da vida na metrópole durante o apogeu da
contracultura.
Mojica
deixa isso bem claro ao usar personagens e cenários reais e reconhecíveis: os
participantes de debates são conhecidos cineastas do “udigrudi” paulistano;
outro cineasta, Ozualdo Candeias, interpreta um dos drogas. O psicólogo leva os
quatro viciados ao Teatro Oficina (há uma cena mostrando a fachada do prédio),
para assistir a uma peça polêmica que realmente estava em cartaz na época (o
diretor José Celso Martinez Corrêa, inclusive, aparece na plateia). Lucchetti
escreveu uma introdução para o roteiro que dá uma boa ideia do tom documental e
realista do filme:
Vários
aspectos da vida noturna dos diversos cabarés, taxi-girls, teatros de revista,
boates, ambientes esfumaçados. Viciados. Polícia dando batida em casas de
prostituição. Transviados. Viciados. Contrabando da erva maldita. Polícia dando
voz de prisão. Pobreza. Miséria. Favela. Gente morando sob viadutos. Pedintes
de esmolas. Manchete de jornais anunciando assaltos a bando, batidas em
inferninhos. Terrorismo. Futebol.
Ritual
dos Sádicos é também um grande veículo de
autopromoção. Mojica mostra pessoas comprando sua revista em quadrinhos,
assistindo a seus filmes e discutindo seus programas de TV. O psicólogo que
liga a televisão e vê Mojica sendo entrevistado no programa Quem Tem Medo da
Verdade? (o mesmo em que Sílvio Luiz rasgou os exemplares de seu gibi).
Pela primeira vez, Mojica e Zé do Caixão apareciam no mesmo filme, como
personagens diferentes, numa mistura inusitada de ficção e realidade.
O
realismo do filme foi acentuado por um acontecimento curioso, que por pouco não
acabou de vez com as filmagens: certa noite, um vizinho estava observando a
movimentação no estúdio, quando viu vários jovens fumando cigarros esquisitos.
Revoltado, chamou a polícia. Minutos depois, um grupo de policiais invadiu o
local de metralhadora em punho. Os tiras renderam a equipe e puseram todos
contra a parede.
-
O que é que vocês estão fazendo, cambada de vagabundos? – gritou um deles.
Os
policiais colocaram todos contra a parede e começaram a revistar a equipe.
Mojica estava petrificado. De braços estendidos e rosto colado à parede, não
conseguia ver o que estava acontecendo. Sentiu que um dos policiais aproximava-se
pelas suas costas. Suou frio, antecipando um soco ou coronhada...
-
Puta que pariu! Que unhas são essas? Você é Zé do Caixão, por acaso?
Mojica
virou-se e deu de cara com um policial gordo. Achou-o muito parecido com Jô
Soares:
-
E você? É parente do Jô Soares, por acaso?
A
piada quebrou a tensão no ambiente e os policiais caíram na gargalhada. Mojica
explicou que aquilo era apenas uma filmagem e que ninguém estava com droga de
verdade.
-
Não é cocaína, é açúcar, pode ver!
Os
tiras acharam todo mundo engraçado e deram boas risadas. Mojica, aliviado,
passou um bom tempo rindo e conversando com um investigador que parecia ser o
chefe da equipe. O sujeito se identificou como “delegado Sérgio”. Nome
completo: Sérgio Paranhos Fleury.
Naquela
época, Fleury já era um destacado membro do Departamento Estadual de Ordem
Política e Social, o temido DOPS, mas ainda não gozava da celebridade que viria
a ter durante os anos 70, quando se tornou o mais polêmico policial do país,
temido por sua truculência e famoso pela participação nas operações que
resultariam nas mortes de Carlos Marighella, Joaquim Câmara Ferreira e Carlos
Lamarca, principais líderes da guerrilha urbana. Fleury foi acusado de liderar
o Esquadrão da Morte em São Paulo, mas acabou inocentado e promovido á chefe do
Departamento Estadual de Investigações Criminosas (DEIC). Morreria afogado em
1979, num suspeitíssimo acidente de barco que muitos dizem ter sido “queima de
arquivo” da polícia.
Nessa
noite, Fleury estava de bom humor. Ele perguntou a Mojica sobre o filme e
mostrou-se genuinamente interessado quando soube que se tratava de um “libelo
contra as drogas”. Ofereceu até ajuda, como “consultor técnico”:
-
Nós já prendemos muitos traficantes, conhecemos todos os segredos deles –
disse.
Mojica
não só aceitou a oferta, como ainda convidou os investigadores para atuar no
filme. Os policiais, que meia hora antes estavam prestes a prender toda a
turma, agora faiam parte do elenco. Na noite seguinte, participaram da cena da
prisão de um gigolô. Fleury e seus companheiros apareceram descendo as escadas
de um bordel arrastando o preso e jogando-o dentro de um camburão. Mojica
também aproveitou ao máximo a “consultoria técnica” oferecida por Fleury: um
dos policiais ensinou à atriz Andréa Bryan, que interpretava uma viciada, a
injetar drogas no pé. Mojica gostou tanto da cena que a filmou em close,
mostrando, nos mínimos detalhes, a agulha furando o pé de Andréa. Outro tira
acabou ganhando um papel de destaque no filme, como o repugnante dono de uma
agência de empregos que assedia sexualmente uma empregada doméstica
(interpretada por Ítala Nandi). Mojica havia oferecido o papel a Jô Soares, mas
o policial acabou dando conta do recado.
Como
toda filmagem de Mojica, esta também, foi marcada por acidentes e episódios
pitorescos. Para filmar a cena em que a grã-fina assistia à sua filha transando
com um mordomo, Mojica precisava de um apartamento luxuoso. Um dos atores
conhecia o zelador de um prédio chique na avenida Brigadeiro Luiz Antônio. O
zelador disse que o morador da cobertura, um ricaço, estava viajando por alguns
dias e que havia deixado a chave com ele. Sem demora, a equipe invadiu
apartamento do ricaço e começou a filmar. Ninguém lembrou, no entanto, de
avisar ao zelador que pretendiam usar um jumento na cena. Mojica havia
imaginado uma sequência surreal, na qual a grã-fina acariciava a cabeça do
animal, enquanto sua filha fazia sexo com o mordomo. Mário Lima conseguiu um
jegue emprestado e o levou para o prédio. Tentou subir pelo elevador, mas o
bicho não cabia. O zelador ficou possesso: “Se algum morador aparecer, tô
frito!”. Mário escondeu o jegue no playground. Depois Mojica filmou a cena no
corredor do térreo e montou a sequência para parecer que o animal estava dentro
do apartamento.
Tudo
corria bem, até que o zelador entrou correndo no apartamento, histérico: “Tamos
fodidos! O homem voltou!”. Não havia tempo de fugir; o equipamento era muito
pesado e o apartamento estava toda revirado. Mojica achou melhor abrir o jogo
com o ricaço. Quando o sujeito viu seu apartamento de pernas para o ar, virou
uma fera: gritou e xingou por meia hora, ameaçando chamar a polícia e processar
todo mundo. Mojica assumiu a culpa pela invasão e disse que só agira assim
porque não tinha condições de alugar um estúdio decente. O sujeito acabou se
sensibilizando, confessou ser fã de seu programa de TV e disse que teria
emprestado apartamento se ele tivesse pedido. “Sei que não é moleza fazer
cinema no Brasil. Quando precisarem de alguma coisa, é só pedir”.
Mojica
deixou para o final a filmagem dos delírios dos viciados. Ele decidiu usar o
mesmo recurso que utilizara em Esta Noite Encanarei no Teu Cadáver,
quando filmou o pesadelo de Zé do Caixão em cores. Assim que o LSD fosse
injetado nas veias dos viciados, o filme passaria de preto-e-branco a colorido.
Mojica adorava rodar cenas de delírio. Nessas horas, sentia-se mais livre e
criativo. Podia fazer o que quisesse, sem se preocupar com nada além do impacto
visual de cada cena.
A
viagem lisérgica dos quatro viciados em Ritual dos Sádicos dura mais de
meia hora e tem algumas das imagens mais bizarras e chocantes já imaginadas por
Mojica. É um delírio psicodélico e surrealista repleto de explosões, gritos,
tempestades e relâmpagos. O personagem de Candeias se vê numa masmorra, onde
mulheres são acorrentadas e supliciadas por homens musculosos; Andréa Bryan é
torturada por Zé do Caixão; Mário Lima entra num cemitério e presencia um
ritual macabro. Durante este ritual surge um monstro grotesco e disforme, que
nada mais é senão um pênis, com a extremidade pintada com olhos e boca (Mojica
usou fios de náilon para movimentar o membro como se estivesse andando). Depois
aparece um exército de seres ainda mais esquisitos, com cabeças grandes e
pernas que começam no pescoço. Uma olhada mais cuidadosa revela serem nádegas,
pintadas com rosto de gente. Algumas dessas criaturas estão fumando charutos.
Mojica simplesmente pediu para que seus alunos segurassem charutos acessos
entre suas coxas e depois mandou pintar bocas nas coxas do pessoal.
Mal
sabia Mojica que, do outro lado do Atlântico, diretores americanos também
estavam lançando seus próprios drug-movies: Roger Corman fez The Trip,
Richard Rush dirigiu Psych-Out e Dennis Hopper lançou o cultuado Easy
Rider. Todos esses filmes foram considerados escandalosos e polêmicos na
época mas, comparados a Ritual dos Sádicos, parecem ter sido produzidos pela
Liga das Senhoras Católicas. Corman jamais se atreveria a mostrar um close de
uma agulha penetrando o pé de uma viciada; Hopper, por mais alucinado que
estivesse durante os anos 60, nunca pensaria em criar um exército de nádegas.
Quando Mojica projetou o filme para amigos, a reação foi de estarrecimento e
empolgação. Carlos Reichenbach escreveu uma crítica apaixonada no jornal São
Paulo Shinbun:
Acabei
de ver um filme em sua primeira cópia, no laboratório. O filme mais ribombante
feito no Brasil até hoje. Ritual dos Sádicos, dirigido por um tarado mental, um
gênio do escrotismo, o maior homem de cinema já surgido no Hemisfério Sul, José
Mojica Marins. O que o teatro moderno preconizado por Artaud, o cinema
subterrâneo e os movimentos que se pretendem corajosos conseguiram no decorrer
destes anos não fazem nem sombra à importância desse filme único. Ou faremos
filmes mais corajosos ou abandonemos definitivamente o cinema!
O
homem é fulminante. Samuel Fuller, até agora o mais marginal cineasta
independente do mundo, vai fazer pipi de tanto medo ao assistir a esta bomba
atômica. Este filma representa o fim do cinema imbecil, cáustico, fajuto. Filme
macho, pagão, desavergonhado. A tela narcotizada. Os gênios, virando bestas,
hão de comer capim depois de assisti-lo. Glauber não existe mais. Sganzerla,
com o novo e corajosíssimo Betty Bomba (que eu já vi) vai voltar pro jardim de
infância.
Ritual
dos Sádicos é o primeiro filme didático – próprio para exibições em
hospícios, conventos, institutos vocacionais, casas de detenção e de
tolerância, festinhas privadas, diretorias de clubes esportivos, festivais de
primavera etc.
Olhem:
o tarado me violentou. Não vou escrever mais. Assistam ao filme, assim que a
Censura brindar o espectador brasileiro com um balde de bom gosto (se
liberá-la). É uma daquelas coisas que aparecem na vida da gente uma só vez!
Publicado originalmente em BARCINSKI, André & FINOTTI, Ivan. Maldito: a vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. São Paulo: Editora 34, 1998.
Um comentário:
Que capítulo! Obrigado, Matheus!
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