terça-feira, 8 de novembro de 2022

Mojica early years, parte XII: 1970-1974: Tempos Difíceis

          Capítulo 13: Tempos Difíceis

 

Por André Barcinski e Ivan Finotti

 

Mojica entrou na década de 70 à beira da miséria absoluta. Enquanto aguardava o lançamento de Ritual dos Sádicos, sobreviveu vendendo o encalhe de seus gibis. Nas horas de maior aperto, apelava para trambiques indecentes, vendendo assinaturas falsas da revista em quadrinhos.

Não tinha dinheiro sequer para botar comida na mesa dos filhos. Sua esposa, Rosita, ainda tinha a sorte de morar com os pais, o que a possibilitava cuidar bem do filho Derian. Já Maria estava tendo muitas dificuldades para criar Crounel, Mariliz e Merisol. Sabendo da situação crítica de Mojica, ela foi à luta: armou um grupinho de teatro infantil e passou a fazer apresentações em escolas, igrejas e associações comunitárias. Até Crounel trabalhava como ator (sua estreia foi aos 7 anos, no papel de Dunga, um dos anões da Branca de Neve). O teatrinho sustentou Maria e as três crianças por vários anos.

A fase difícil de Mojica coincidiu com a desagregação e sua antiga equipe de colaboradores. A essa altura, muitos de seus velhos companheiros de cinema, como Gaúcho, Jean Garrett e Salvador do Amaral, já haviam se tornado profissionais experientes, e passaram a procurar trabalho com outros cineastas. No lugar dos antigos companheiros surgiram alguns jovens ambiciosos e esforçados, mas também vários desocupados e aproveitadores. O estúdio virou uma verdadeira meca para todo tipo deserdado pela vida. Eram miseráveis, retirantes e batedores de carteira que chegavam ao estúdio atrás de emprego e acabavam morando por lá mesmo e vivendo às custas de Mojica. A tropa era da pesada: um dos alunos, Osvaldo Amorim, foi preso após roubar um posto de gasolina e matar o vigia a pauladas. Outra aluna, Luzia, tentou botar fogo no prédio, depois que Nilce a expulsou. Certa noite, um hippie chamado “Baratão”, figurante de Ritual dos Sádicos, roubou parte da coleção de gibis antigos de Mojica. Este nem pôde dar queixa na polícia, já que ninguém sabia o nome verdadeiro de Baratão.

De todos os membros da trupe, nenhum tinha uma história tão triste quanto Andréa Bryan, atriz de Ritual dos Sádicos. Quando começou a trabalhar com Mojica, Andréa morava com o seu pai, um cafetão, que tentou prostitui-la. Ela fugiu de casa e acabou se metendo com um escrivão de polícia, sujeito corrupto e violento. Andréa resolveu adotar o bebê de uma prostituta e avisou ao policial que pretendia arrumar uma casinha e um emprego decente. Inconformado, o sujeito tomou-lhe o filho e deu a criança para outra amante. Andréa desapareceu e passou a viver na rua. Só foi vista vários anos depois, vagando pela Boca do Lixo, desdentada e inchada pela bebida.

 

Mojica apostava no sucesso de Ritual dos Sádicos para recuperar suas finanças. Em junho de 1970, ele acertou o lançamento com a produtora Multifilmes e submeteu a fita à Censura Federal. Junto, foi um texto do roteirista Rubens Lucchetti, classificando Ritual de “um libelo contra o vício e a corrupção da juventude”.

Seis censores assistiram ao filme. Cinco o liberaram. Apenas um, Paulo Leite de Lacerda, votou por sua interdição, qualificando-o de “um documento indesejável, asqueroso, imoral e pornográfico, constituindo um flagrante atentando aos bons costumes e à moral”. O censor Constâncio Montebello, que sequer fora chamado para julgar o filme, indignou-se com os pareceres positivos de seus colegas e escreveu uma carta à chefia da Censura, dizendo que a fita merecia ser interditada. A chefia acatou seu pedido e proibiu Ritual dos Sádicos.

A Multifilmes contra-atacou e pediu à Censura uma reavaliação. Ritual dos Sádicos foi novamente examinado no início de outubro, e mais uma vez interditado. Longe de considerá-lo um “libelo contra o vício”, como havia dito Lucchetti, os censores viram em Ritual uma descarada apologia às drogas. O censor Antônio de Pádua Carvalho Alves, da segunda comissão examinadora, escreveu:

 

Propondo-se analisar o problema da toxicomania, o filme, em auto-identificação pretensamente científica, é uma sucessão de fatos e situações, as mais diversas, cuja tônica principal e constante é a amostragem de, além da prática do vício, de bacanais, orgias, rituais sadomasoquistas, taras, anormalidades, morbidez, deformações personalísticas dos mais variados calibres, enfim, uma gama infindável de aspectos que caracterizam a total degenerescência humana, não conduzidos para um desfecho que possa ser considerado positivo ou de utilidade (...) As mensagens negativas, pelo seu grande número e proporções gigantescas, permanecerão nitidamente, causando impacto vigoroso na mente de receptor.

 

O censor Osmar Fialho concordou:

 

A irrealidade do filme é manifesta e seu objetivo de apelo às manifestações sexuais anormais é evidente. A divulgação do vício e dos seus efeitos alucinatórios, exultantes e excitantes resultam em mensagens de incitamento experimental, muito mais do que de prevenção. O filme não apresenta atenuantes, bem efeitos neutralizadores. O mínimo que se pode sugerir para um espetáculo tão imoral e degradante é a completa INTERDIÇÃO. (O grifo é do censor.)_

 

A Multifilmes continuou batalhando por mais dois anos para liberar o filme. Um de seus sócios, Jair Carlos de Oliveira, escreveu cartas aflitas ao Departamento de Polícia Federal, citando o terrível prejuízo que a interdição estava causando à sua empresa. Oliveira chegou á humilhação de anexar às cartas várias cópias de contas não-pagas e promissórias vencidas, para demonstrar a situação crítica da firma. A briga durou até maio de 1972, quando o chefe do Serviço de Censura de Diversões Públicas, Rogério Nunes, confirmou, em definitivo, a proibição de Ritual dos Sádicos.

A interdição do filme foi um acontecimento crucial na carreira de Mojica: desde meados de 1970, quando a Censura proibiu Ritual dos Sádicos pela primeira vez, os produtores da Boca do Lixo começaram a se afastar dele. Tinha medo de financiar uma fita e depois vê-la apodrecer numa estante da Polícia Federal. Sem verba para novos filmes, Mojica começou a aceitar qualquer trabalho, e seus filmes caíram muito em qualidade. Foi um baque da qual ele jamais viria a se recuperar.

 

Na segunda-feira, 27 de julho de 1970, Nilce estava no estúdio da rua Oscar Horta, na Moóca, quando foi abordada por dois detetives da polícia. Estavam procurando por Mojica. Quando ouviram de Nilce que ele não estava, os dois detetives agradeceram e saíram. Da janela, ela viu os dois entrando numa padaria que ficava em frente ao estúdio.

Assim que os detetives saíram da padaria, Nilce correu até lá e perguntou à dona o que os policiais queriam. Ficou sabendo que haviam perguntado por Mojica. Nesse mesmo instante, três rapazes do bairro entraram na padaria, assustados: “Aconteceu alguma coisa por aqui? Tem polícia no quarteirão todo!”. Nilce foi até a calçada e levou um susto: uma dúzia de policiais patrulhava a rua.

Ela ficou em pânico: o que queriam com Mojica? Pensou logo no pior: e se achassem que ele era subversivo? Lembrou das histórias macabras que corriam sobre os porões do DOI-CODI, histórias de torturas e perseguições. Mojica nunca se metera em política, mas agora, com a proibição de Ritual dos Sádicos, bem que poderia ter se tornado um alvo.

Alheio a tudo isso, Mojica estava no Hospital São Camilo, em Santana, visitando seu pai, que havia sido internado por causa de um edema pulmonar. Nilce sabia que ele não demoraria a voltar, já que havia prometido encontrar a mãe, dona Carmen, no estúdio. Ela precisava encontrá-lo antes dos policiais. Nilce lembro que Mojica, quando vinha de táxi para a Moóca, costumava vir pela Radial Leste e entrar na rua Barão de Jaguara. Ela foi para a esquina da rua da Moóca com a Barão da Jaguara, tentar intercepta-lo antes que ele chegasse ao estúdio. Deu azar: justamente neste dia, Mojica resolveu economizar no táxi e, em vez de entrar na Barão, saltou na própria Radial e foi a pé até o estúdio. Mal chegou, foi cercado por quinze policiais:

- Vamos dar uma volta?

Nilce, que esperava angustiada na esquina, resolveu, depois de quase duas horas, ligar para a padaria. Foi informada de que os policiais haviam levado a Mojica. Para onde, ninguém sabia. Ela voltou correndo ao estúdio e encontrou dona Carmen aos prantos: “Levaram meu José! Levaram meu bebê!”. Nilce pediu ajuda à Andréa Bryan, que namorava o tal escrivão de policial. O sujeito telefonou para algumas delegacias e não demorou a descobrir o paradeiro de Mojica: o 1º Distrito, na Praça da Sé. No Distrito, informaram que a acusação contra ele não tinha nada a ver com subversão. Mojica estava preso por estelionato.

Algumas horas antes, Sydnei Antônio Francheschini, um feirante de Pirituba, prestara queixa contra Mojica. Sydnei dizia ter comprado cotados do filme O Dia, a Hora e as Armas, que deveria ter sido dirigido por Mojica, mas que nunca fora realizado. O feirante procurou a produtora do filme, a Superfilmes, mas o escritório da firma estava trancada. Sua segunda parada foi no Instituto Nacional do Cinema, onde ficou sabendo que a Superfilmes nem sequer tinha registro de funcionamento. Furioso, correu à delegacia e denunciou Mojica. Os policiais, excitados com a perspectiva de prender uma celebridade, não hesitaram em armar um esquema de guerra para capturar Zé do Caixão.

Mas Mojica era inocente. Ele havia desligado do projeto depois que os produtores demoraram a iniciar as filmagens. O que ele não sabia é que a Superfilmes continuava a usar seu nome para vender cotas do filme. Os donos chegaram a prometer aos cotistas sorteios de geladeiras e televisores, que seriam entregues pessoalmente por Zé do Caixão.

Além da acusação de estelionato, a polícia o culpava por um crime muito mais grave: corrupção de menores. Novamente ele entrara de gaiato na história: dias antes, um de seus alunos fora preso por manter um romance com uma menina de 15 anos, foragida de casa. Pressionado pela polícia, o aluno acusou Mojica de manter conhecia meninas menores de idade presas em um hotel vagabundo próximo ao estúdio. O dono do hotel foi chamado à delegacia, mas disse que só Mojica da TV e que nunca o havia visto em seu hotel.

Apesar da falta de provas, os policiais armaram um circo: não só obrigaram Mojica a passar uma noite no xadrez como, na manhã seguinte, chamaram todos os jornais e redes de televisão para cobrir sua prisão. Um programa policiaresco da TV Excelsior entrevistou os detetives que o haviam prendido, tratando-os como heróis nacionais. O apresentador do programa colocou uma cadeira vazia no cenário, representando Mojica, e passou meia hora acusando-o de estelionatário e corruptor de menores.

Na manhã de terça-feira, o 1º Distrito ficou apinhado de repórteres. Mojica foi levado para uma pequena sala, onde seria entrevistado. Em vez de se abater, decidiu tirar proveito da situação: primeiro explicou aos jornalistas a trapalhada em que se metera por causa da Superfilmes, e depois aproveitou para fazer publicidade de seu novo filme, Finis Hominis. Mojica não reclamou da polícia e nem se fez de vítima. Disse que sua noite no xadrez fora muito proveitosa, pois tiveram a chance de conversas com “elementos criminosos” que certamente serviriam de tema para futuros filmes. Solícito e bem-humorado, atendeu a todos os pedidos dos fotógrafos e cinegrafistas, poisando com suas longas unhas sobre a papelada do inquérito que a polícia abrira contra ele. Acabou saindo como o vencedor da história: no dia seguinte, todos os jornais o inocentavam das acusações e ainda traziam ampla cobertura sobre Finis. Mais uma vez ele conseguira transformar um episódio possivelmente danoso à sua carreira em uma sessão de publicidade gratuita.

Depois da prisão de Mojica, Nilce foi morar com os pais dele, Antônio e Carmen. Antônio precisava de cuidados médicos e Mojica propôs a Nilce que se mudasse para lá. Nilce gostou da ideia. Afinal, estava morando há dois anos numa pensão, desde que Mojica a convencera a sair da casa dos pais com a promessa de que logo morariam juntos (promessa que ele levaria treze anos para cumprir).

Antônio e Carmen pouco sabiam sobre a vida pessoal de seu filho: desconheciam seu romance com Nilce e tampouco sabiam dos três filhos que ele tinha com Maria. Para eles, o único neto era Derian, filho de Rosita. Quando visitava os pais, Mojica tratava Nilce como uma aluna qualquer, para não levantar suspeitas. Ela ficava furiosa, mas ele dizia que só agia assim para não irritar sua mãe, que não aprovara sua separação de Rosita.

No fim de 1970, no entanto, a farsa de Mojica desmoronou. Tudo por culpa da diretora da escola de seu filho Crounel, que exigira a certidão de nascimento para efetuar sua matrícula. Até então, nenhum dos três filhos de Mojica e Maria – Crounel, Mariliz e Merisol – havia sido registrado. Legamente, as crianças não existiam. Mojica ficou num dilema: ou deixava Maria registrar as crianças sem incluir nas certidões, o que o impossibilitaria de batizar os filhos com seu sobrenome, ou contava tudo a Rosita e Nilce e acabava logo com a farsa.

Novamente ele optou por uma solução meia-bomba: decidiu contar a verdade para Nilce, mas não para Rosita. Se Rosita descobrisse que ele tinha filhos com outra mulher, poderia impedi-lo de ver seu filho Derian. Já Nilce era a mais ingênua e submissa das suas mulheres. Mojica inclusive tinha esperanças de que ela o ajudaria a encontrar uma solução para o caso.

O primeiro passo era abrir o jogo com Nilce. E Mojica tinha uma tática infalível para lidar com namoradas ciumentas em situações delicadas como essa: em vez de assumir a culpa e pedir perdão, ele se fingia de irritado e xingava a namorada sem nenhum motivo aparente, como se ela é que tivesse feito algo de errado. Com a moça ainda abalada por seu inesperado acesso de fúria, ele contava a verdade, com a maior cara-de-pau do mundo. Dessa vez, não foi diferente. Numa manhã de sábado, ao encontrar Nilce no estúdio, ele já saiu gritando:

- Sua cretina! Miserável! Safada!

Nilce, sem entender nada, tentou acalmá-lo:

- O que foi que eu fiz, José?

- O que você fez? E precisa perguntar, porra? Eu confiei em você e é assim que você me paga? Eu não mereço isso!

Mojica continuou esbravejando por vários minutos, que para Nilce pareceram horas. Ela já estava em lágrimas, tentando descobrir o que o enfurecera daquela maneira, quando ele soltou a bomba:

- É por isso que eu saio com outras mulheres! E quer saber o que mais? Eu tenho filhos com outras mulheres! Tenho dezessete filhos! Só com uma mulher eu tenho doze!

Essa era outra tática de Mojica: depois de humilhar bastante a namorada, ele soltava alguma mentira tão absurda que qualquer coisa que confessasse depois seria café pequeno em comparação.

- O que, José, doze filhos?

- É, doze filhos!

Nesta altura Nilce já estava totalmente dominada. Ela era muito jovem, 24 anos apenas, e completamente apaixonada por Mojica. Nilce sabia que ele tinha casos com outras mulheres, mas preferia suportar a humilhação de ser traída a imaginar sua vida sem ele. Ela se recompôs do choque, enxugou as lágrimas e abraçou-o carinhosamente, como que se desculpando. Implorou para que ele a perdoasse e perguntou se não poderia ajudá-lo de alguma forma. Mojica falou então dos três filhos que tinha com Maria (a tal “prima” de que Nilce ouvia falar há anos) e do problema que estava tendo com os registros de nascimento das crianças.

Conversaram por mais de uma hora, tentando encontrar uma solução para o problema. Nilce era uma pessoa extremamente sensata e pragmática, o oposto de Mojica. Ela sugeriu contar tudo para Rosita e arcar com as consequências. Ele nem queria pensar na hipótese. Nilce perdeu a calma:

- José, se você não quer assumir o seu erro, por que não pede para o seu pai assumir a paternidade das crianças? Assim elas podem se chamar Marins!

Era apenas uma brincadeira, um desabafo de uma mulher obviamente magoada com a situação. Mas, para Mojica, a ideia até que não pareceu tão ruim...

Animado, ele correu para a casa dos pais e contou tudo sobre os três netos que eles não conheciam. Antônio e Carmen ficaram estarrecidos. Choque maior levaram quando Mojica pediu ao pai que aceitasse pôr seu nome no registro das crianças. Antônio recusou-se a participar de um trambique tão absurdo. Mas Mojica insistiu; disse que seria a única forma de batizar os filmes com sobrenome. O amor paterno acabou falando mais alto, e novamente Antônio e Carmen vieram em socorro do filho.

No dia seguinte, Mojica apresentou Maria a seus pais. Ironia das ironias: dez anos antes, ela interpretaria a esposa de Antônio no filme Meu Destino em Tuas Mãos. Agora, teria três filhos com ele – ainda que só no papel.

Foram todos juntos ao cartório. Carmen nem parecia abalada com a perspectiva de ver o marido assumir a paternidade dos filhos de outra mulher. Antônio estava doente do pulmão e teve que ser amparado para entrar no táxi. Ele assinou a papelada e tornou-se, aos 64 anos, pai de três crianças que nunca havia visto. E Mojica virou irmão dos próprios filhos! Até hoje, as certidões de nascimento de Crounel, Mariliz e Merisol trazem o nome de Antônio como pai.

O cambalacho foi providencial: poucas semanas depois, Rosita, que já muito desconfiava de Mojica, seguiu-o até a casa de Maria. Bateu na porta e o pequeno Crounel atendeu. Rosita entrou na casa, furiosa. Flagrou Mojica e Maria sentados lado a lado no sofá da sala.

- Seu vagabundo! Quem é essa mulher?

Ele não hesitou:

- É a amante do meu pai!

- Amante do teu pai? Tá achando que eu sou idiota?

Mojica prontamente mostrou os registros com o nome de Antônio.

- Tá vendo? O velho teve três filhos com a Maria aqui. Eu não gosto nem de falar, porque o pessoal do bairro pode descobrir e vai pegar mal pra minha mãe!

Rosita não foi a única enganada pelos registros falsos: durante vários anos, os próprios filhos de Mojica e Maria – Crounel, Mariliz e Merisol – acreditaram que o nome verdadeiro de seu pai não era José, mas Antônio André Marins. Maria dizia que José era apenas seu nome artístico. Foi só quando Crounel completou 14 anos que ela lhe contou a verdade.

As cabeças das crianças deviam dar voltar com toda a confusão: elas não sabiam que tinham um irmão – Derian – mas não o conheciam. Também sabiam que seu pai tinha outra mulher, mas achavam que sua mãe, Maria, era a esposa “oficial” e não a amante. Às vezes, ouviam falar de uma namorada – Nilce – que frequentava o estúdio. Por vários anos, Crounel achou que Nilce e Rosita eram a mesma pessoa.

Apesar de sua vida conturbada e das bebedeiras, Mojica se dava bem com os filhos e fazia de todo para demonstrar carinho. Como seus horários de trabalho eram incompatíveis com os da criançada – levantava-se ao meio-dia ficava no estúdio até duas da manhã – ele sempre acordava os filhos quando chegava em casa, de madrugada, para contar como havia sido seu dia. Nunca deixava de trazer uma pizza ou alguma lembrancinha.

A vida da família era uma dureza: Mojica, Maria e as três crianças moravam num quarto e sala na rua Coronel Albino Bairão, no Brás. O casal dormia no quarto e as duas meninas dividiam um beliche na copa. Crounel dormia no corredor. Embora nunca tenham passado fome, as crianças comiam mal. Adoravam ir a Santo André visitar a avó materna, porque tinham chance de provar guloseimas como sorvete e Coca-Cola, artigos raros em casa.

As brigas entre Mojica e Maria eram assunto no bairro todo. Ambos eram atores, e suas discussões atingiam níveis de dramaticidade impressionantes. Maria chorava e ameaçava se jogar pela janela; Mojica chegou a deixar duas ou três cartas de suicídio: “Já que não me querem mais, vou sair agora para me matar. Adeus”. Maria saía atrás dele, preocupada, e encontrava-o trabalhando no estúdio, como se nada tivesse acontecido.

As crianças também sofriam um bocado na escola. Crounel foi apelidado de “Zé da Caixinha”. Seus coleguinhas de classe sempre perguntavam se ele gostava de comer morcego no lanche. Um dia, tentaram forçá-lo a engolir uma minhoca:

- Ué, o seu pai não faz isso? Por que você também não pode fazer?

Muitos pais de alunos recusavam-se a deixar seus filhos brincar na casa dos Marins. Alguns chegaram a pedir à direção da escola que proibisse Mojica de participar das reuniões de pais (desnecessário, já que ele nunca compareceu).

 

Durante o ano de 1970, a saúde de Antônio Marins piorou muito. O edema pulmonar havia formado uma enorme mancha roxa em suas costas. Antônio respirava com dificuldade e tinha terríveis acessos de tosse. Os médicos lhe deram poucos meses de vida. No dia 5 de janeiro de 1971, Mojica e Nilce estavam na Odil Fono Brasil trabalhando na dublagem de Finis Hominis, quando alguém telefonou do hospital avisando que Antônio havia morrido.

No velório, Carmen, aos prantos, beijava o rosto do marido e gritava: “Eu te perdoo! Eu te perdoo!”. Ela o amava demais, apesar da infidelidade que tivera que suportar ao longo de 38 anos de casamento. Mojica ficou abaladíssimo com a morte do pai. Começou a beber muito depois disso. Pela primeira vez na vida, parecia desinteressado por cinema. Passou duas semanas inteiras bebendo todo dia, até cair.

Mojica levou pelo menos três meses para conseguir voltar à rotina. Aos poucos, foi diminuindo as bebedeiras e começou a concentrar-se novamente em seus projetos. No fim de maio, foi ao Paraná filmar o bangue-bangue D´Gajão Mata Para Vingar, história de um cigano que sai em busca de vingança depois que os capatazes de um coronel chacinam sua tribo. O produtor Augusto Pereira – que nessa época já havia mudado seu nome para Augusto Cervantes, em homenagem ao grande escritor espanhol – havia iniciado as filmagens meses antes, com outro diretor. Só não sabia que o sujeito bebia como uma esponja. Quando revelaram os negativos, não havia cena que prestasse. Preocupado, Augusto resolveu chamar Mojica para apagar o incêndio. O problema é que a verba para D´Gajão, que já era pouca, ficara reduzida a quase nada depois da filmagem mal-sucedida com o diretor pinguço. Augusto e sua companheira, Nilza de Lima, haviam desembolsado uma fábula com o aluguel de equipamento e transporte de toda a equipe. Sobrara apenas um terço do orçamento, e só mesmo Mojica conseguiria fazer um filme com tão pouco dinheiro.

Sua primeira providência foi conseguir atores quer trabalhassem de graça. O papel principal, o do cigano D´Gajão, ficou com o advogado de Mojica e aluna da Apolo, Walter Portela. Já Nilza de Lima persuadiu sua neta, Ana Nilson, a interpretar a cigana Nadja. Ana Nilsen aceitou o papel mis por amor à avó do que por vocação artística. Ela estudava medicina e não tinha experiência alguma em cinema. Estava insegura e temerosa de que acabaria estragando o filme. Nilza tranquilizou-a: “Não se preocupe, Aninha, que o Mojica dá um jeito. Ele trabalha com aquele bando de pés-rapados e não vai conseguir fazer de você uma atriz?”.

Ana Nilsen não sabia no que estava se metendo: era uma moça mimada, frágil, acostumada a passeios por jardins e lanches em sorveterias, e agora teria que galopar em cavalos selvagens e rolar por ribanceiras pedregosas. Seu martírio começou cedo: logo no primeiro dia, havia uma cena em que ela tinha que descer um morro a cavalo, galopando velozmente ao lado de dezenas de outros ciganos. Augusto contratou um peão para ensiná-la a montar. “Não tem mistério”, disse o peão, “é só segurar firme nas rédeas e puxar quando quiser parar”. Os atores levaram seus cavalos para trás do morro e ficaram esperando o sinal de Mojica. O sinal foi dado e eles vieram galopando. Depois que os cavalos passaram pela câmera, Mojica gritou “corta”. Todos os cavalos pararam, menos o de Ana Nilsen, que continuou galopando por mais dois quilômetros, com a donzela no lombo. A equipe, boquiaberta, viu o cavalo sumir no horizonte, enquanto Ana gritava por socorro.

No dia seguinte, havia uma cena ainda mais complicada, na qual Nadja era resgata por D´Gajão. Ana Nilsen precisaria saltar de uma cerca e cair em cima de um cavalo, que viria correndo em pleno galope, montado pelo ator Walter Portela. Ela ensaiou a cena pela primeira vez e se esborrachou no chão. O cavalo era muito alto. Na segunda tentativa, novo tombo. Na terceira vez, seu pé ficou preso no escribo e ela quase foi arrastada pelo animal. Ana estava moída, coberta de poeira e a ponto de mandar todos para o inferno.

Augusto chamou Mojica e o fotógrafo Edward Freund para uma reunião de emergência. Precisavam encontrar uma maneira de filmar a cena. Não seria fácil: o cavalo era um puro-sangue branco com manchas pretas, enorme, e a cerca era baixa demais. Ou aumentava-se a cerca ou diminuía-se o cavalo. Foi aí que Mojica viu um pangaré branco pastando nas imediações. Mandou selar o animal e disse que usariam aquele cavalo. Freund respondeu que não seria possível, pois haviam rodado a cena anterior com o puro-sangue e a continuidade ficaria prejudicada. Além do mais, o puro-sangue tinha manchas pretas pelo corpo, enquanto o pangaré era todo branco.

Mojica não se abalou: mandou um assistente trazer uma lata de graxa e um rolo de gaze, e começou a pintar as manchas no pangaré, que ficou parecendo um dálmata. Rodaram a cena com o cavalo-dálmata mesmo. O resultado foi hilariante: Walter Portela vem galopando num cavalo grande e garboso; em seguida, há um corte e, subitamente, o animal encolhe meio metro. Quando Ana Nilsen pula em cima do velho pangaré, o coitado sai arfando, como se estivesse prestes a sofrer um ataque do coração.

As filmagens de D´Gajão Volta Para Vingar terminaram em junho. Três meses depois, a Censura liberou Finis Hominis, com quatro cortes (dois na cena do velório, um no ritual hippie e outro na sequência em que Terezinha Sodré é flagrada com o amante na cama). Enquanto qualquer outro diretor ficaria furioso vendo sua obra mutilada em quatro partes, Mojica comemorou: há cinco anos um filme seu não recebia tão poucos cortes. O lançamento de Finis foi marcado para dezembro. Até lá, ele se dedicaria a seu projeto mais ambicioso: Os Sapos.

 

No domingo, 31 de outubro de 1971, os moradores de Marília abriram os jornais e deram de cara com esta manchete aterrorizante:

 

BILHÕES DE SAPOS INVADEM MARÍLIA

 

Mojica era o culpado. Dias antes, ele havia procurado o prefeito da cidade, Barretto Prado, pedindo apoio à Os Sapos, um filme catástrofe sobre uma invasão de batráquios assassinos. “Meu filme será uma mistura de Os Pássaros com O Planeta dos Macacos”, prometeu.

O roteiro de Os Sapos misturava mensagens ecológicas e parapsicologia, numa história das mais excêntricas: tudo começava numa indústria que preparava carne de rã para restaurantes chiques. Os sapos – aparentemente imbuídos de consciência de classe – se revoltam com a chacina de seus semelhantes e atacam a cidade. “Eles chegam de trem, de carro e até de avião”, explicou Mojica, sério. A única esperança de salvação para os humanos é o professor Backer – personagem que seria interpretado pelo próprio Mojica – um cientista de poderes paranormais que consegue se comunicar telepaticamente com o líder dos batráquios, um sapão dourado e voador.

Mojica pediu ao prefeito que construísse viveiros para abrigar os 10 mil sapos que seriam usados na filmagem. Em troca, garantiu que o filme seria uma grande oportunidade de divulgação turística para Marília: “Nós mostraremos os prédios e praças mais lindos de Marília sendo atacados pelos sapos”, explicou. “Estrou planejando uma grande cena em que os sapos invadem o prédio do Paço. Tenho certeza de que turistas de todo o Brasil vão querer conhecer esta bela cidade depois que o filme for lançado!”.

Havia também, segundo afirmou Mojica ao jornal Diário da Noite, uma razão filantrópica por trás do filme: depois de terminada a filmagem, os sapos seriam enviados para a cidade de Altinho, em Pernambuco, que estava sofrendo um devastador ataque de gafanhotos. “Os sapos, embora repelentes, são animais muito úteis. Se não fosse pelos sapos, o ser humano nem existiria. Nós, seres humanos, poderíamos aprender muito com eles. Eu, inclusive, estou procurando telepatas e espíritas que possam me ajudar a me comunicar com os anfíbios”. Mojica encerrou a entrevista com uma declaração que se arrependeria amargamente: “Peço à população que ajude o cinema nacional, enviando para o meu estúdio na Moóca todos os sapos que encontrarem”.

A população se sensibilizou: no dia seguinte, mais de cinquenta sapos foram entregues no estúdio. Fãs foram pessoalmente levar suas contribuições anfíbias e cumprimentar Zé do Caixão. Em poucos dias, Mojica havia juntado mais de duzentos sapos num caixote. Era um coaxar infernal. Poucos meses depois, Os Sapos estreou em São Paulo. Não o filme de Mojica, mas uma produção americana, dirigida por George McCowan e estrelada por Ray Milland. Mojica desistiu do projeto e mandou um assistente jogar os sapos no Tietê.

 

No início de 1972, Mojica conheceu Francisco Cavalcanti, um veterano ator de rádio que ficara famoso no circo interpretando o palhaço Goiabada. Cavalcanti comandava outra escola de atores e propôs uma sociedade num filme que não estava conseguindo terminar. Dois anos antes, ele iniciara as filmagens de Glória dos Canalhas, um filme policial estrelado por Carlos Gonzaga, um cantor romântico que fazia um tremendo sucesso nas rádios populares com a balada “Diana”, versão do hit de Paul Anka. A produção parou por alguns meses por falta de verba. Quando o dinheiro finalmente saiu, Gonzaga havia se tornado crente e não queria mais saber de cinema.

Cavalcanti procurou Mojica e sugeriu uma coprodução: Mojica ajudaria na direção do filme e interpretaria o vilão. Em troca, ficaria com 30% da bilheteria. Os dois juntariam também os alunos de suas escolinhas, formando uma super-escola e garantindo dezenas de figurantes para o filme. Mojica aceitou a oferta, e a nova escola foi batizada de Ribalta Filmes. Somando os alunos dos dois cursos, a Ribalta tinha agora mais de trezentos membros pagantes. Os novos sócios começaram a expandir suas atividades: além de dar aulas de interpretação, contrataram professores para ensinar caratê, balé, canto, judô e até futebol.

Mojica teve a ideia de oferecer também aulas de luta-livre, e saiu atrás de um professor. Ele sondou alguns amigos que andavam metidos em espetáculos de tele-catch, muito populares na época, e eles indicaram Satã, um jovem lutador que despontava como um dos melhores da cidade. Mojica ficou entusiasmado:

- Com um nome desses, deve ser bom mesmo!

Assim que bateu o olho em Satã, Mojica sabia que precisaria usá-lo em algum filme. Era o ator perfeito para uma fita de terror: 1,90 metro de altura, forte como um touro e dono de um rosto amedrontador. Satã – ou Melquíades França Neto – era mineiro de Mateus Leme, filho de mãe branca e pai preto, e nascera com os olhos esticados de um mongol. Não havia no mundo ninguém mais adequado para interpretar Gengis Khan.

Aos 21 anos, Melquíades saíra de Minas e fora para São Paulo trabalhar em obra. Estava carregando cimento no centro da cidade, quando foi avistado por Hélio Silva, dono de uma academia de luta-livre. Impressionado com o porte físico do rapaz, Silva convidou-o para se juntar à sua caravana, que fazia lutas pelo interior. Melquíades recebeu o apelido de Satã e poucos meses depois já estava se engalfinhando nos ringues com feras como Ted Boy Marinho, Fantomas e Tigre Paraguaio.

Mojica acabou contratando-o como seu guarda-costas. Melquíades ficou empolgado: em Mateus Leme, costumava reunir-se com seus amigos num boteco, toda sexta-feira, para assistir na TV ao programa de Zé do Caixão. Ficavam tão assustados com as histórias macabras de Mojica que voltavam para casa juntos, com medo das sombras. Satã escreveu para os amigos contando a novidade. Só pediu ao pessoal não comentar sobre seu apelido: se sua mãe, uma católica fervorosa, soubesse que ele havia sido batizado com o nome do senhor das trevas, com certeza viria para São Paulo busca-lo no tapa.

 

A sociedade entre Mojica e Francisco Cavalcanti durou apenas oito meses. A escola de atores não progrediu e Glória dos Canalhas seguia a passo de tartaruga. O filme acabaria sendo lançado três anos depois, com o nome de Mulheres do Sexo Violento (título imposto pelo produtor Nelson Teixeira Mendes, apesar de a fita não ter muitas mulheres e muito menos “sexo violento”). A única curiosidade desta obra esquecível é a participação, como ator, de um retirante paraibano que depois faria sucesso nacional em filmes como O Homem Que Virou Suco e A Hora da Estrela: José Dumont.

Nesse meio-tempo, Mojica envolveu-se em dois filmes que não foram sequer terminados: a pornochanchada Pega no Meu Ganso, produzida por seu amigo – e companheiro de copo – Fred Scarlatti, e Boni, o Homem Virgem, de George Michel Serkeis, uma bizarra fita de terror psicológico e erotismo. Sentindo que não estava tendo muita sorte com cinema, Mojica tentou faturar um trocando encenando peças de terror em teatros do subúrbio, dando aulas de teatro na praia de Santos e vendendo gibis em festas. Nada deu certo. Sem condições de pagar o aluguel do estúdio da Moóca, foi forçado a transferir sua escolinha para uma sala na rua Visconde de Parnaíba, no Belém.

Mojica tinha vários filmes na gaveta, mas não conseguia realizá-los por falta de produtor. Chegou a discutir com vários produtores o filme A Encarnação do Demônio, a continuação da saga de Zé do Caixão, mas todos continuavam assustados com a proibição de Ritual dos Sádicos, e não queriam se arriscar. A única saída, na cabeça de Mojica, seria continuar bolando alguns eventos bizarros para manter seu nome na mídia e tentar atrair o interesse de algum investidor.

Em junho de 1973, o jornal Notícias Populares publicou uma série de reportagens sobre um boato que andava circulando pela cidade: dizia-se que um vampiro andava à solta em Osasco, na Grande São Paulo. A lenda surgiu depois que foram encontrados alguns cachorros mortos, com buracos nos pescoços. O NP batizou o monstro de “Vampiro de Osasco” e dedicou-lhe várias reportagens. Farejando uma boa oportunidade, Mojica procurou o repórter Nelson Delbino e combinou uma excursão a Osasco, onde faria um “desafio ao vampiro”.

Na sexta-feira, 22 de junho de 1973, depois de tomar cachaça adoidado num bar da Boca do Lixo, Mojica e seu séquito saíram em carreata até Osasco. Já era noite quando chegaram à cidade. No cemitério, o vigia bronqueou: não iria deixar ninguém entrar. Onde já se viu, visitar o cemitério numa hora daquelas? Acabou levando uns tabefes de Satã e mudou de idade. A turma invadiu o cemitério e fez dezenas de fotos. Dois dias depois, o NP publicava ampla reportagem sobre o exorcismo, na qual Mojica declarava: “O Vampiro de Osasco não existe! O único Drácula brasileiro sou eu, e eu não sou doido de beber sangue; bebo vinho, e do bom!”.

A performance não lhe rendeu grande coisa. O único que veio em seu auxílio foi seu velho conhecido, Augusto de Cervantes. Augusto convidou-o para dirigir uma pornochanchada, A Virgem e o Machão, história de um conquistador que vai a uma cidade do interior e vira a grande coqueluche das mulheres locais. O roteiro havia sido escrito por Georgina Duarte, filha da companheira de Augusto, Nilza de Lima. Ninguém desconfiava, mas Augusto estava vivendo um romance secreto com Georgina. Depois de dezessete anos com Nilza, ele a havia trocado pela filha.

As filmagens aconteceram em São Paulo e Ilhabela, no litoral paulista. Mojica procurou rodar o filme o mais rápido possível. O roteiro, como tantos outros da época da pornochanchada, limitava-se a uma sequência de cenas eróticas intercaladas por uma história das mais fracas, com diálogos sem graça e piadas de duplo sentido. Mojica sabia que esses filmes de encomenda acabariam manchando sua reputação, tanto que exigiu assinar a direção com o pseudônimo de J. Avellar.

Quando A Virgem e o Machão estreou, um ano depois, o crítico do Jornal da Tarde, Telmo Martino foi impiedoso:

 

Os filmes de outros países falam de 2001 e 2020. Mas o cinema brasileiro é o único que já está produzindo e estreando filmes para as próximas plateias do prometido planeta dos macacos. A Virgem e O Machão é uma dessas produções simiescas que tornam a venda de pipocas e balas nos cinemas que os exibem um comércio anacrônico. Só o consumo de bananas seria capaz de dar à plateia um prazer coerente com o humor que o filme escolheu. A única defesa que esse filme brasileiro pode usar para sua inclusão na atualidade é dizer que pertence ao cinema fantástico. Afinal de contas, mesmo vendo é impossível acreditar no que suas cenas mostram.

 

O ano de 1973 foi um dos mais difíceis e frustrantes da carreira de Mojica. Seu maior ganha-pão foi como jurado do programa de Raul Gil. Não que o salário fosse lá grande coisa, mas ele ganhava um dinheirinho vendendo os brindes que recebia dos patrocinadores, como ferros de passar e vitrolas. Nas horas de maior aperto, chegou a aceitar propinas de alguns calouros para não os desclassificar.

O curioso é que muitos nessa época o tomavam por milionário, por causa de um episódio ocorrido numa gincana do programa Cidade contra Cidade, apresentado por Sílvio Santos: um grupo de idosos recebeu a tarefa de descobrir onde morava Zé do Caixão. Acabaram encontrando, num quarteirão chique do Morumbi, uma horrorosa casa em forma de caixão. Mojica, só para ajudar os velhinhos, disse que morava mesmo naquela casa. Logo a cidade inteira estava comentando sobre a “mansão do Caixão”; não passava um dia sem que alguém importunasse o morador perguntando por Mojica.

Enquanto isso, ele continuava duro e infeliz. Já estava há quase três anos sem fazer um filme que pudesse ser considerado genuinamente seu, desde Finis Hominis. E a perspectiva não era das melhores: a Embrafilme  fechava cada vez mais seu círculo de apaniguados e a Censura continuava a persegui-lo. A implicância dos censores ficou evidente quando Mojica solicitou a renovação do certificado de liberação de Á Meia Noite Levarei Sua Alma. O filme havia passado pela Censura em 1964 e fora liberado para maiores de 18 anos. A renovação do certificado era uma simples formalidade burocrática. Os censores Antônio Gomes Ferreira e Maria Luiza Cavalcante, no entanto, decidiram interditar o filme, justificando sua decisão com um parecer risível e cheio de erros de português, no qual consideravam “um paradoxo” o fato de o filme chocar “até mesmo a sensibilidade censória”:

 

É inconcebível que ainda permitam películas tão negativas e afrontosas ao bom senso e decoro social. É de uma perversidade inominável, cujo único fim é ferir, humilhar, destruir o que há de humano em cada espectador. Num verdadeiro paradoxo, esta película fere até mesmo a sensibilidade censória, por se vê (sic) obrigada a tolerar chantagens semelhantes, num embuste à realidade artística da sétima arte (...) Finalmente, é um filme indigno de uma tela nacional.

 

Mojica tinha agora dois filmes interditados, Ritual dos Sádicos e Á Meia Noite Levarei Sua Alma, além de outros completamente retalhados pela Censura, como O Estranho Mundo de Zé do Caixão e Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, os quatro filmes em que aparecia o personagem Zé do Caixão – Á Meia Noite, O Estranho Mundo e Ritual dos Sádicos – totalizavam 359 minutos de duração. Destes, mais de 200 minutos estavam censurados.

Em dezembro, Mojica finalmente recebeu uma boa notícia: O Estranho Mundo de Zé do Caixão havia sido premiado no Festival Internacional do Cinema Fantástico e de Horror em Sitges, na Espanha, um dos mais importantes do mundo, no gênero. Foi uma surpresa, já que ele nem sabia que a fita estava concorrendo. Um ano antes, Augusto de Cervantes havia enviado uma cópia do filme à Espanha, tentando conseguir algum distribuidor interessado. Os espanhóis gostaram tanto que resolveram incluí-lo no festival.

Até então, nenhum de seus filmes havia sido distribuído fora do Brasil. Sua fama, no entanto, começava a se espalhar, graças a uma rede informal de correspondência entre fãs e também a pequenos artigos publicados em revistas e jornais. O roteirista Rubens Francisco Lucchetti se correspondia com vários jornalistas europeus, como o português Vasco Granja e o espanhol Luis Gasca, e ajudou a divulgar o nome de Mojica na Europa. Lucchetti também escreveu um longo artigo sobre Zé do Caixão para a revista norte-americana Cinema-TV-Digest.

O primeiro contato dos europeus com os filmes de Mojica acontecera em 1971, durante o Festival de Cannes. Naquele ano, a Embrafilme organizou uma mostra de vinte filmes brasileiros e decidiu incluir Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (outros filmes programados: Memória de Helena, de David Neves, Pindorama de Arnaldo Jabor, e A Grande Cidade, de Cacá Diegues).

Entre 1971 e 1973, artigos sobre Mojica foram publicados na Itália, Espanha, Portugal e México. As prestigiadas revistas francesas Midi-Minuit Fantastique e L´Ecran Fantastique dedicaram-lhe amplas reportagens. Alain Scholockoff, editor do L´Ecran Fantastique, empolgou-se tanto com os filmes de Mojica que resolveu convidá-lo para a 3º Convenção de Cinema Fantástico, que se realizaria em Paris, em abril de 1974.

Schlockoff programou a exibição de dois filmes, Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver e O Estranho Mundo de Zé do Caixão. Mojica descobriu que Ritual dos Sádicos, embora proibido para exibição no Brasil, havia recebido da Censura o selo de “livre para exportação”. Ele avisou à direção do festival que poderia levar uma cópia. Seria a primeira exibição pública de Ritual, quatro anos após ter sido rodado. O festival chegou a anunciar a exibição do filme, mas a cópia ficou retida pela Censura e nunca saiu do país.

Mojica embarcou para Paris em 5 de abril, acompanhado por seu amigo Cleber de Hollanda. Cleber trabalhava há anos com distribuição e produção de filmes, e Mojica havia pedido que ele fosse à França para negociar com os produtores que estariam no festival (no fim das contas, nenhum acordo foi firmado durante a viagem). Mojica foi muito bem-sucedido no festival e tratado como celebridade.

O momento mais emocionante para Mojica, no entanto, foi o encontro com o outro convidado de honra do festival, o ator britânico Christopher Lee, um dos mais famosos “Drácula” do cinema. Lee e Mojica posaram para fotos juntos e participaram de um debate. Mojica disse aos jornalistas que gostaria de convidar Lee para atuar em seu próximo filme. O britânico, gentil, sorriu sem graça e respondeu que admirava seu trabalho e que adoraria trabalhar com ele – na verdade, nunca ouvira falar de Mojica até aquele dia.

No encerramento do festival, Mojica ganhou o troféu L´Ecran Fantastique pelo conjunto de sua obra. Enquanto a imprensa especializada em filmes de terror o tratava como um astro, os jornais “normais” não conseguiam entender o seu apelo: o Le Monde disse que, se o festival quisesse dar um prêmio ao melhor humorista, Mojica deveria ser coroado. Já o repórter do Le Figaro ficou impressionadíssimo quando Mojica contou das inúmeras mortes ocorrias com atores e técnicos durante suas filmagens. Algum tempo depois, o jornal publicaria um artigo dizendo que o diretor matava seus atores e, mesmo assim, “continuava a andar impunemente pelas ruas de São Paulo”.

 

Publicado originalmente em BARCINSKI, André & FINOTTI, Ivan. Maldito: a vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. São Paulo: Editora 34, 1998.

Um comentário:

José Bezerra de Oliveira disse...

Mesmo sabendo que tudo isso aconteceu, difícil acreditar! Obrigado, Matheus!