Capítulo 13: Tempos Difíceis
Por André Barcinski e Ivan Finotti
Mojica entrou na década de 70 à beira da miséria absoluta. Enquanto aguardava o lançamento de Ritual dos Sádicos, sobreviveu vendendo o encalhe de seus gibis. Nas horas de maior aperto, apelava para trambiques indecentes, vendendo assinaturas falsas da revista em quadrinhos.
Não tinha dinheiro sequer para botar comida na mesa
dos filhos. Sua esposa, Rosita, ainda tinha a sorte de morar com os pais, o que
a possibilitava cuidar bem do filho Derian. Já Maria estava tendo muitas
dificuldades para criar Crounel, Mariliz e Merisol. Sabendo da situação crítica
de Mojica, ela foi à luta: armou um grupinho de teatro infantil e passou a
fazer apresentações em escolas, igrejas e associações comunitárias. Até Crounel
trabalhava como ator (sua estreia foi aos 7 anos, no papel de Dunga, um dos
anões da Branca de Neve). O teatrinho sustentou Maria e as três crianças por
vários anos.
A fase difícil de Mojica coincidiu com a
desagregação e sua antiga equipe de colaboradores. A essa altura, muitos de
seus velhos companheiros de cinema, como Gaúcho, Jean Garrett e Salvador do
Amaral, já haviam se tornado profissionais experientes, e passaram a procurar
trabalho com outros cineastas. No lugar dos antigos companheiros surgiram
alguns jovens ambiciosos e esforçados, mas também vários desocupados e
aproveitadores. O estúdio virou uma verdadeira meca para todo tipo deserdado
pela vida. Eram miseráveis, retirantes e batedores de carteira que chegavam ao
estúdio atrás de emprego e acabavam morando por lá mesmo e vivendo às custas de
Mojica. A tropa era da pesada: um dos alunos, Osvaldo Amorim, foi preso após
roubar um posto de gasolina e matar o vigia a pauladas. Outra aluna, Luzia,
tentou botar fogo no prédio, depois que Nilce a expulsou. Certa noite, um
hippie chamado “Baratão”, figurante de Ritual dos Sádicos, roubou parte
da coleção de gibis antigos de Mojica. Este nem pôde dar queixa na polícia, já
que ninguém sabia o nome verdadeiro de Baratão.
De todos os membros da trupe, nenhum tinha uma
história tão triste quanto Andréa Bryan, atriz de Ritual dos Sádicos.
Quando começou a trabalhar com Mojica, Andréa morava com o seu pai, um cafetão,
que tentou prostitui-la. Ela fugiu de casa e acabou se metendo com um escrivão
de polícia, sujeito corrupto e violento. Andréa resolveu adotar o bebê de uma
prostituta e avisou ao policial que pretendia arrumar uma casinha e um emprego
decente. Inconformado, o sujeito tomou-lhe o filho e deu a criança para outra amante.
Andréa desapareceu e passou a viver na rua. Só foi vista vários anos depois,
vagando pela Boca do Lixo, desdentada e inchada pela bebida.
Mojica apostava no sucesso de Ritual dos Sádicos
para recuperar suas finanças. Em junho de 1970, ele acertou o lançamento com a
produtora Multifilmes e submeteu a fita à Censura Federal. Junto, foi um texto
do roteirista Rubens Lucchetti, classificando Ritual de “um libelo
contra o vício e a corrupção da juventude”.
Seis censores assistiram ao filme. Cinco o liberaram.
Apenas um, Paulo Leite de Lacerda, votou por sua interdição, qualificando-o de
“um documento indesejável, asqueroso, imoral e pornográfico, constituindo um
flagrante atentando aos bons costumes e à moral”. O censor Constâncio
Montebello, que sequer fora chamado para julgar o filme, indignou-se com os
pareceres positivos de seus colegas e escreveu uma carta à chefia da Censura,
dizendo que a fita merecia ser interditada. A chefia acatou seu pedido e
proibiu Ritual dos Sádicos.
A Multifilmes contra-atacou e pediu à Censura uma
reavaliação. Ritual dos Sádicos foi novamente examinado no início de
outubro, e mais uma vez interditado. Longe de considerá-lo um “libelo contra o
vício”, como havia dito Lucchetti, os censores viram em Ritual uma
descarada apologia às drogas. O censor Antônio de Pádua Carvalho Alves, da
segunda comissão examinadora, escreveu:
Propondo-se analisar o problema da toxicomania, o
filme, em auto-identificação pretensamente científica, é uma sucessão de fatos
e situações, as mais diversas, cuja tônica principal e constante é a amostragem
de, além da prática do vício, de bacanais, orgias, rituais sadomasoquistas,
taras, anormalidades, morbidez, deformações personalísticas dos mais variados
calibres, enfim, uma gama infindável de aspectos que caracterizam a total
degenerescência humana, não conduzidos para um desfecho que possa ser
considerado positivo ou de utilidade (...)
As mensagens negativas, pelo seu grande número e proporções gigantescas,
permanecerão nitidamente, causando impacto vigoroso na mente de receptor.
O censor Osmar Fialho concordou:
A irrealidade do filme é manifesta e seu objetivo de
apelo às manifestações sexuais anormais é evidente. A divulgação do vício e dos
seus efeitos alucinatórios, exultantes e excitantes resultam em mensagens de
incitamento experimental, muito mais do que de prevenção. O filme não apresenta
atenuantes, bem efeitos neutralizadores. O mínimo que se pode sugerir para um
espetáculo tão imoral e degradante é a completa INTERDIÇÃO. (O grifo é do censor.)_
A Multifilmes continuou batalhando por mais dois
anos para liberar o filme. Um de seus sócios, Jair Carlos de Oliveira, escreveu
cartas aflitas ao Departamento de Polícia Federal, citando o terrível prejuízo
que a interdição estava causando à sua empresa. Oliveira chegou á humilhação de
anexar às cartas várias cópias de contas não-pagas e promissórias vencidas,
para demonstrar a situação crítica da firma. A briga durou até maio de 1972,
quando o chefe do Serviço de Censura de Diversões Públicas, Rogério Nunes,
confirmou, em definitivo, a proibição de Ritual dos Sádicos.
A interdição do filme foi um acontecimento crucial
na carreira de Mojica: desde meados de 1970, quando a Censura proibiu Ritual
dos Sádicos pela primeira vez, os produtores da Boca do Lixo começaram a se
afastar dele. Tinha medo de financiar uma fita e depois vê-la apodrecer numa
estante da Polícia Federal. Sem verba para novos filmes, Mojica começou a
aceitar qualquer trabalho, e seus filmes caíram muito em qualidade. Foi um
baque da qual ele jamais viria a se recuperar.
Na segunda-feira, 27 de julho de 1970, Nilce estava
no estúdio da rua Oscar Horta, na Moóca, quando foi abordada por dois detetives
da polícia. Estavam procurando por Mojica. Quando ouviram de Nilce que ele não
estava, os dois detetives agradeceram e saíram. Da janela, ela viu os dois
entrando numa padaria que ficava em frente ao estúdio.
Assim que os detetives saíram da padaria, Nilce
correu até lá e perguntou à dona o que os policiais queriam. Ficou sabendo que
haviam perguntado por Mojica. Nesse mesmo instante, três rapazes do bairro
entraram na padaria, assustados: “Aconteceu alguma coisa por aqui? Tem polícia
no quarteirão todo!”. Nilce foi até a calçada e levou um susto: uma dúzia de
policiais patrulhava a rua.
Ela ficou em pânico: o que queriam com Mojica?
Pensou logo no pior: e se achassem que ele era subversivo? Lembrou das
histórias macabras que corriam sobre os porões do DOI-CODI, histórias de
torturas e perseguições. Mojica nunca se metera em política, mas agora, com a
proibição de Ritual dos Sádicos, bem que poderia ter se tornado um alvo.
Alheio a tudo isso, Mojica estava no Hospital São
Camilo, em Santana, visitando seu pai, que havia sido internado por causa de um
edema pulmonar. Nilce sabia que ele não demoraria a voltar, já que havia
prometido encontrar a mãe, dona Carmen, no estúdio. Ela precisava encontrá-lo
antes dos policiais. Nilce lembro que Mojica, quando vinha de táxi para a
Moóca, costumava vir pela Radial Leste e entrar na rua Barão de Jaguara. Ela
foi para a esquina da rua da Moóca com a Barão da Jaguara, tentar intercepta-lo
antes que ele chegasse ao estúdio. Deu azar: justamente neste dia, Mojica
resolveu economizar no táxi e, em vez de entrar na Barão, saltou na própria
Radial e foi a pé até o estúdio. Mal chegou, foi cercado por quinze policiais:
- Vamos dar uma volta?
Nilce, que esperava angustiada na esquina, resolveu,
depois de quase duas horas, ligar para a padaria. Foi informada de que os
policiais haviam levado a Mojica. Para onde, ninguém sabia. Ela voltou correndo
ao estúdio e encontrou dona Carmen aos prantos: “Levaram meu José! Levaram meu
bebê!”. Nilce pediu ajuda à Andréa Bryan, que namorava o tal escrivão de
policial. O sujeito telefonou para algumas delegacias e não demorou a descobrir
o paradeiro de Mojica: o 1º Distrito, na Praça da Sé. No Distrito, informaram
que a acusação contra ele não tinha nada a ver com subversão. Mojica estava
preso por estelionato.
Algumas horas antes, Sydnei Antônio Francheschini,
um feirante de Pirituba, prestara queixa contra Mojica. Sydnei dizia ter
comprado cotados do filme O Dia, a Hora e as Armas, que deveria ter sido
dirigido por Mojica, mas que nunca fora realizado. O feirante procurou a
produtora do filme, a Superfilmes, mas o escritório da firma estava trancada.
Sua segunda parada foi no Instituto Nacional do Cinema, onde ficou sabendo que
a Superfilmes nem sequer tinha registro de funcionamento. Furioso, correu à
delegacia e denunciou Mojica. Os policiais, excitados com a perspectiva de
prender uma celebridade, não hesitaram em armar um esquema de guerra para
capturar Zé do Caixão.
Mas Mojica era inocente. Ele havia desligado do
projeto depois que os produtores demoraram a iniciar as filmagens. O que ele
não sabia é que a Superfilmes continuava a usar seu nome para vender cotas do
filme. Os donos chegaram a prometer aos cotistas sorteios de geladeiras e
televisores, que seriam entregues pessoalmente por Zé do Caixão.
Além da acusação de estelionato, a polícia o culpava
por um crime muito mais grave: corrupção de menores. Novamente ele entrara de
gaiato na história: dias antes, um de seus alunos fora preso por manter um
romance com uma menina de 15 anos, foragida de casa. Pressionado pela polícia,
o aluno acusou Mojica de manter conhecia meninas menores de idade presas em um
hotel vagabundo próximo ao estúdio. O dono do hotel foi chamado à delegacia,
mas disse que só Mojica da TV e que nunca o havia visto em seu hotel.
Apesar da falta de provas, os policiais armaram um
circo: não só obrigaram Mojica a passar uma noite no xadrez como, na manhã
seguinte, chamaram todos os jornais e redes de televisão para cobrir sua
prisão. Um programa policiaresco da TV Excelsior entrevistou os detetives que o
haviam prendido, tratando-os como heróis nacionais. O apresentador do programa
colocou uma cadeira vazia no cenário, representando Mojica, e passou meia hora
acusando-o de estelionatário e corruptor de menores.
Na manhã de terça-feira, o 1º Distrito ficou
apinhado de repórteres. Mojica foi levado para uma pequena sala, onde seria
entrevistado. Em vez de se abater, decidiu tirar proveito da situação: primeiro
explicou aos jornalistas a trapalhada em que se metera por causa da
Superfilmes, e depois aproveitou para fazer publicidade de seu novo filme, Finis
Hominis. Mojica não reclamou da polícia e nem se fez de vítima. Disse que
sua noite no xadrez fora muito proveitosa, pois tiveram a chance de conversas
com “elementos criminosos” que certamente serviriam de tema para futuros
filmes. Solícito e bem-humorado, atendeu a todos os pedidos dos fotógrafos e
cinegrafistas, poisando com suas longas unhas sobre a papelada do inquérito que
a polícia abrira contra ele. Acabou saindo como o vencedor da história: no dia
seguinte, todos os jornais o inocentavam das acusações e ainda traziam ampla
cobertura sobre Finis. Mais uma vez ele conseguira transformar um
episódio possivelmente danoso à sua carreira em uma sessão de publicidade
gratuita.
Depois da prisão de Mojica, Nilce foi morar com os
pais dele, Antônio e Carmen. Antônio precisava de cuidados médicos e Mojica
propôs a Nilce que se mudasse para lá. Nilce gostou da ideia. Afinal, estava
morando há dois anos numa pensão, desde que Mojica a convencera a sair da casa
dos pais com a promessa de que logo morariam juntos (promessa que ele levaria
treze anos para cumprir).
Antônio e Carmen pouco sabiam sobre a vida pessoal
de seu filho: desconheciam seu romance com Nilce e tampouco sabiam dos três
filhos que ele tinha com Maria. Para eles, o único neto era Derian, filho de
Rosita. Quando visitava os pais, Mojica tratava Nilce como uma aluna qualquer,
para não levantar suspeitas. Ela ficava furiosa, mas ele dizia que só agia
assim para não irritar sua mãe, que não aprovara sua separação de Rosita.
No fim de 1970, no entanto, a farsa de Mojica
desmoronou. Tudo por culpa da diretora da escola de seu filho Crounel, que
exigira a certidão de nascimento para efetuar sua matrícula. Até então, nenhum
dos três filhos de Mojica e Maria – Crounel, Mariliz e Merisol – havia sido
registrado. Legamente, as crianças não existiam. Mojica ficou num dilema: ou deixava
Maria registrar as crianças sem incluir nas certidões, o que o impossibilitaria
de batizar os filhos com seu sobrenome, ou contava tudo a Rosita e Nilce e
acabava logo com a farsa.
Novamente ele optou por uma solução meia-bomba:
decidiu contar a verdade para Nilce, mas não para Rosita. Se Rosita descobrisse
que ele tinha filhos com outra mulher, poderia impedi-lo de ver seu filho
Derian. Já Nilce era a mais ingênua e submissa das suas mulheres. Mojica
inclusive tinha esperanças de que ela o ajudaria a encontrar uma solução para o
caso.
O primeiro passo era abrir o jogo com Nilce. E
Mojica tinha uma tática infalível para lidar com namoradas ciumentas em
situações delicadas como essa: em vez de assumir a culpa e pedir perdão, ele se
fingia de irritado e xingava a namorada sem nenhum motivo aparente, como se ela
é que tivesse feito algo de errado. Com a moça ainda abalada por seu inesperado
acesso de fúria, ele contava a verdade, com a maior cara-de-pau do mundo. Dessa
vez, não foi diferente. Numa manhã de sábado, ao encontrar Nilce no estúdio,
ele já saiu gritando:
- Sua cretina! Miserável! Safada!
Nilce, sem entender nada, tentou acalmá-lo:
- O que foi que eu fiz, José?
- O que você fez? E precisa perguntar, porra? Eu
confiei em você e é assim que você me paga? Eu não mereço isso!
Mojica continuou esbravejando por vários minutos,
que para Nilce pareceram horas. Ela já estava em lágrimas, tentando descobrir o
que o enfurecera daquela maneira, quando ele soltou a bomba:
- É por isso que eu saio com outras mulheres! E quer
saber o que mais? Eu tenho filhos com outras mulheres! Tenho dezessete filhos!
Só com uma mulher eu tenho doze!
Essa era outra tática de Mojica: depois de humilhar
bastante a namorada, ele soltava alguma mentira tão absurda que qualquer coisa
que confessasse depois seria café pequeno em comparação.
- O que, José, doze filhos?
- É, doze filhos!
Nesta altura Nilce já estava totalmente dominada.
Ela era muito jovem, 24 anos apenas, e completamente apaixonada por Mojica.
Nilce sabia que ele tinha casos com outras mulheres, mas preferia suportar a
humilhação de ser traída a imaginar sua vida sem ele. Ela se recompôs do
choque, enxugou as lágrimas e abraçou-o carinhosamente, como que se
desculpando. Implorou para que ele a perdoasse e perguntou se não poderia
ajudá-lo de alguma forma. Mojica falou então dos três filhos que tinha com
Maria (a tal “prima” de que Nilce ouvia falar há anos) e do problema que estava
tendo com os registros de nascimento das crianças.
Conversaram por mais de uma hora, tentando encontrar
uma solução para o problema. Nilce era uma pessoa extremamente sensata e
pragmática, o oposto de Mojica. Ela sugeriu contar tudo para Rosita e arcar com
as consequências. Ele nem queria pensar na hipótese. Nilce perdeu a calma:
- José, se você não quer assumir o seu erro, por que
não pede para o seu pai assumir a paternidade das crianças? Assim elas podem se
chamar Marins!
Era apenas uma brincadeira, um desabafo de uma
mulher obviamente magoada com a situação. Mas, para Mojica, a ideia até que não
pareceu tão ruim...
Animado, ele correu para a casa dos pais e contou
tudo sobre os três netos que eles não conheciam. Antônio e Carmen ficaram
estarrecidos. Choque maior levaram quando Mojica pediu ao pai que aceitasse pôr
seu nome no registro das crianças. Antônio recusou-se a participar de um
trambique tão absurdo. Mas Mojica insistiu; disse que seria a única forma de
batizar os filmes com sobrenome. O amor paterno acabou falando mais alto, e
novamente Antônio e Carmen vieram em socorro do filho.
No dia seguinte, Mojica apresentou Maria a seus
pais. Ironia das ironias: dez anos antes, ela interpretaria a esposa de Antônio
no filme Meu Destino em Tuas Mãos. Agora, teria três filhos com ele –
ainda que só no papel.
Foram todos juntos ao cartório. Carmen nem parecia
abalada com a perspectiva de ver o marido assumir a paternidade dos filhos de
outra mulher. Antônio estava doente do pulmão e teve que ser amparado para
entrar no táxi. Ele assinou a papelada e tornou-se, aos 64 anos, pai de três
crianças que nunca havia visto. E Mojica virou irmão dos próprios filhos! Até
hoje, as certidões de nascimento de Crounel, Mariliz e Merisol trazem o nome de
Antônio como pai.
O cambalacho foi providencial: poucas semanas
depois, Rosita, que já muito desconfiava de Mojica, seguiu-o até a casa de
Maria. Bateu na porta e o pequeno Crounel atendeu. Rosita entrou na casa,
furiosa. Flagrou Mojica e Maria sentados lado a lado no sofá da sala.
- Seu vagabundo! Quem é essa mulher?
Ele não hesitou:
- É a amante do meu pai!
- Amante do teu pai? Tá achando que eu sou idiota?
Mojica prontamente mostrou os registros com o nome
de Antônio.
- Tá vendo? O velho teve três filhos com a Maria
aqui. Eu não gosto nem de falar, porque o pessoal do bairro pode descobrir e
vai pegar mal pra minha mãe!
Rosita não foi a única enganada pelos registros
falsos: durante vários anos, os próprios filhos de Mojica e Maria – Crounel,
Mariliz e Merisol – acreditaram que o nome verdadeiro de seu pai não era José,
mas Antônio André Marins. Maria dizia que José era apenas seu nome artístico.
Foi só quando Crounel completou 14 anos que ela lhe contou a verdade.
As cabeças das crianças deviam dar voltar com toda a
confusão: elas não sabiam que tinham um irmão – Derian – mas não o conheciam.
Também sabiam que seu pai tinha outra mulher, mas achavam que sua mãe, Maria,
era a esposa “oficial” e não a amante. Às vezes, ouviam falar de uma namorada –
Nilce – que frequentava o estúdio. Por vários anos, Crounel achou que Nilce e
Rosita eram a mesma pessoa.
Apesar de sua vida conturbada e das bebedeiras,
Mojica se dava bem com os filhos e fazia de todo para demonstrar carinho. Como
seus horários de trabalho eram incompatíveis com os da criançada – levantava-se
ao meio-dia ficava no estúdio até duas da manhã – ele sempre acordava os filhos
quando chegava em casa, de madrugada, para contar como havia sido seu dia.
Nunca deixava de trazer uma pizza ou alguma lembrancinha.
A vida da família era uma dureza: Mojica, Maria e as
três crianças moravam num quarto e sala na rua Coronel Albino Bairão, no Brás.
O casal dormia no quarto e as duas meninas dividiam um beliche na copa. Crounel
dormia no corredor. Embora nunca tenham passado fome, as crianças comiam mal.
Adoravam ir a Santo André visitar a avó materna, porque tinham chance de provar
guloseimas como sorvete e Coca-Cola, artigos raros em casa.
As brigas entre Mojica e Maria eram assunto no
bairro todo. Ambos eram atores, e suas discussões atingiam níveis de
dramaticidade impressionantes. Maria chorava e ameaçava se jogar pela janela;
Mojica chegou a deixar duas ou três cartas de suicídio: “Já que não me querem
mais, vou sair agora para me matar. Adeus”. Maria saía atrás dele, preocupada,
e encontrava-o trabalhando no estúdio, como se nada tivesse acontecido.
As crianças também sofriam um bocado na escola.
Crounel foi apelidado de “Zé da Caixinha”. Seus coleguinhas de classe sempre
perguntavam se ele gostava de comer morcego no lanche. Um dia, tentaram forçá-lo
a engolir uma minhoca:
- Ué, o seu pai não faz isso? Por que você também
não pode fazer?
Muitos pais de alunos recusavam-se a deixar seus
filhos brincar na casa dos Marins. Alguns chegaram a pedir à direção da escola
que proibisse Mojica de participar das reuniões de pais (desnecessário, já que
ele nunca compareceu).
Durante o ano de 1970, a saúde de Antônio Marins
piorou muito. O edema pulmonar havia formado uma enorme mancha roxa em suas
costas. Antônio respirava com dificuldade e tinha terríveis acessos de tosse.
Os médicos lhe deram poucos meses de vida. No dia 5 de janeiro de 1971, Mojica
e Nilce estavam na Odil Fono Brasil trabalhando na dublagem de Finis Hominis,
quando alguém telefonou do hospital avisando que Antônio havia morrido.
No velório, Carmen, aos prantos, beijava o rosto do
marido e gritava: “Eu te perdoo! Eu te perdoo!”. Ela o amava demais, apesar da
infidelidade que tivera que suportar ao longo de 38 anos de casamento. Mojica
ficou abaladíssimo com a morte do pai. Começou a beber muito depois disso. Pela
primeira vez na vida, parecia desinteressado por cinema. Passou duas semanas
inteiras bebendo todo dia, até cair.
Mojica levou pelo menos três meses para conseguir
voltar à rotina. Aos poucos, foi diminuindo as bebedeiras e começou a
concentrar-se novamente em seus projetos. No fim de maio, foi ao Paraná filmar
o bangue-bangue D´Gajão Mata Para Vingar, história de um cigano que sai
em busca de vingança depois que os capatazes de um coronel chacinam sua tribo.
O produtor Augusto Pereira – que nessa época já havia mudado seu nome para
Augusto Cervantes, em homenagem ao grande escritor espanhol – havia iniciado as
filmagens meses antes, com outro diretor. Só não sabia que o sujeito bebia como
uma esponja. Quando revelaram os negativos, não havia cena que prestasse.
Preocupado, Augusto resolveu chamar Mojica para apagar o incêndio. O problema é
que a verba para D´Gajão, que já era pouca, ficara reduzida a quase nada
depois da filmagem mal-sucedida com o diretor pinguço. Augusto e sua
companheira, Nilza de Lima, haviam desembolsado uma fábula com o aluguel de
equipamento e transporte de toda a equipe. Sobrara apenas um terço do
orçamento, e só mesmo Mojica conseguiria fazer um filme com tão pouco dinheiro.
Sua primeira providência foi conseguir atores quer
trabalhassem de graça. O papel principal, o do cigano D´Gajão, ficou com o
advogado de Mojica e aluna da Apolo, Walter Portela. Já Nilza de Lima persuadiu
sua neta, Ana Nilson, a interpretar a cigana Nadja. Ana Nilsen aceitou o papel
mis por amor à avó do que por vocação artística. Ela estudava medicina e não
tinha experiência alguma em cinema. Estava insegura e temerosa de que acabaria
estragando o filme. Nilza tranquilizou-a: “Não se preocupe, Aninha, que o
Mojica dá um jeito. Ele trabalha com aquele bando de pés-rapados e não vai
conseguir fazer de você uma atriz?”.
Ana Nilsen não sabia no que estava se metendo: era
uma moça mimada, frágil, acostumada a passeios por jardins e lanches em
sorveterias, e agora teria que galopar em cavalos selvagens e rolar por
ribanceiras pedregosas. Seu martírio começou cedo: logo no primeiro dia, havia
uma cena em que ela tinha que descer um morro a cavalo, galopando velozmente ao
lado de dezenas de outros ciganos. Augusto contratou um peão para ensiná-la a
montar. “Não tem mistério”, disse o peão, “é só segurar firme nas rédeas e
puxar quando quiser parar”. Os atores levaram seus cavalos para trás do morro e
ficaram esperando o sinal de Mojica. O sinal foi dado e eles vieram galopando.
Depois que os cavalos passaram pela câmera, Mojica gritou “corta”. Todos os
cavalos pararam, menos o de Ana Nilsen, que continuou galopando por mais dois
quilômetros, com a donzela no lombo. A equipe, boquiaberta, viu o cavalo sumir
no horizonte, enquanto Ana gritava por socorro.
No dia seguinte, havia uma cena ainda mais
complicada, na qual Nadja era resgata por D´Gajão. Ana Nilsen precisaria saltar
de uma cerca e cair em cima de um cavalo, que viria correndo em pleno galope,
montado pelo ator Walter Portela. Ela ensaiou a cena pela primeira vez e se
esborrachou no chão. O cavalo era muito alto. Na segunda tentativa, novo tombo.
Na terceira vez, seu pé ficou preso no escribo e ela quase foi arrastada pelo
animal. Ana estava moída, coberta de poeira e a ponto de mandar todos para o
inferno.
Augusto chamou Mojica e o fotógrafo Edward Freund
para uma reunião de emergência. Precisavam encontrar uma maneira de filmar a
cena. Não seria fácil: o cavalo era um puro-sangue branco com manchas pretas,
enorme, e a cerca era baixa demais. Ou aumentava-se a cerca ou diminuía-se o
cavalo. Foi aí que Mojica viu um pangaré branco pastando nas imediações. Mandou
selar o animal e disse que usariam aquele cavalo. Freund respondeu que não
seria possível, pois haviam rodado a cena anterior com o puro-sangue e a
continuidade ficaria prejudicada. Além do mais, o puro-sangue tinha manchas
pretas pelo corpo, enquanto o pangaré era todo branco.
Mojica não se abalou: mandou um assistente trazer
uma lata de graxa e um rolo de gaze, e começou a pintar as manchas no pangaré,
que ficou parecendo um dálmata. Rodaram a cena com o cavalo-dálmata mesmo. O
resultado foi hilariante: Walter Portela vem galopando num cavalo grande e
garboso; em seguida, há um corte e, subitamente, o animal encolhe meio metro.
Quando Ana Nilsen pula em cima do velho pangaré, o coitado sai arfando, como se
estivesse prestes a sofrer um ataque do coração.
As filmagens de D´Gajão Volta Para Vingar
terminaram em junho. Três meses depois, a Censura liberou Finis Hominis,
com quatro cortes (dois na cena do velório, um no ritual hippie e outro na
sequência em que Terezinha Sodré é flagrada com o amante na cama). Enquanto
qualquer outro diretor ficaria furioso vendo sua obra mutilada em quatro
partes, Mojica comemorou: há cinco anos um filme seu não recebia tão poucos
cortes. O lançamento de Finis foi marcado para dezembro. Até lá, ele se
dedicaria a seu projeto mais ambicioso: Os Sapos.
No
domingo, 31 de outubro de 1971, os moradores de Marília abriram os jornais e
deram de cara com esta manchete aterrorizante:
BILHÕES
DE SAPOS INVADEM MARÍLIA
Mojica
era o culpado. Dias antes, ele havia procurado o prefeito da cidade, Barretto
Prado, pedindo apoio à Os Sapos, um filme catástrofe sobre uma invasão
de batráquios assassinos. “Meu filme será uma mistura de Os Pássaros com O
Planeta dos Macacos”, prometeu.
O
roteiro de Os Sapos misturava mensagens ecológicas e parapsicologia,
numa história das mais excêntricas: tudo começava numa indústria que preparava
carne de rã para restaurantes chiques. Os sapos – aparentemente imbuídos de
consciência de classe – se revoltam com a chacina de seus semelhantes e atacam
a cidade. “Eles chegam de trem, de carro e até de avião”, explicou Mojica,
sério. A única esperança de salvação para os humanos é o professor Backer –
personagem que seria interpretado pelo próprio Mojica – um cientista de poderes
paranormais que consegue se comunicar telepaticamente com o líder dos
batráquios, um sapão dourado e voador.
Mojica
pediu ao prefeito que construísse viveiros para abrigar os 10 mil sapos que
seriam usados na filmagem. Em troca, garantiu que o filme seria uma grande
oportunidade de divulgação turística para Marília: “Nós mostraremos os prédios
e praças mais lindos de Marília sendo atacados pelos sapos”, explicou. “Estrou
planejando uma grande cena em que os sapos invadem o prédio do Paço. Tenho
certeza de que turistas de todo o Brasil vão querer conhecer esta bela cidade
depois que o filme for lançado!”.
Havia
também, segundo afirmou Mojica ao jornal Diário da Noite, uma razão
filantrópica por trás do filme: depois de terminada a filmagem, os sapos seriam
enviados para a cidade de Altinho, em Pernambuco, que estava sofrendo um
devastador ataque de gafanhotos. “Os sapos, embora repelentes, são animais
muito úteis. Se não fosse pelos sapos, o ser humano nem existiria. Nós, seres
humanos, poderíamos aprender muito com eles. Eu, inclusive, estou procurando
telepatas e espíritas que possam me ajudar a me comunicar com os anfíbios”.
Mojica encerrou a entrevista com uma declaração que se arrependeria
amargamente: “Peço à população que ajude o cinema nacional, enviando para o meu
estúdio na Moóca todos os sapos que encontrarem”.
A
população se sensibilizou: no dia seguinte, mais de cinquenta sapos foram
entregues no estúdio. Fãs foram pessoalmente levar suas contribuições anfíbias
e cumprimentar Zé do Caixão. Em poucos dias, Mojica havia juntado mais de
duzentos sapos num caixote. Era um coaxar infernal. Poucos meses depois, Os
Sapos estreou em São Paulo. Não o filme de Mojica, mas uma produção
americana, dirigida por George McCowan e estrelada por Ray Milland. Mojica
desistiu do projeto e mandou um assistente jogar os sapos no Tietê.
No
início de 1972, Mojica conheceu Francisco Cavalcanti, um veterano ator de rádio
que ficara famoso no circo interpretando o palhaço Goiabada. Cavalcanti
comandava outra escola de atores e propôs uma sociedade num filme que não
estava conseguindo terminar. Dois anos antes, ele iniciara as filmagens de Glória
dos Canalhas, um filme policial estrelado por Carlos Gonzaga, um cantor
romântico que fazia um tremendo sucesso nas rádios populares com a balada
“Diana”, versão do hit de Paul Anka. A produção parou por alguns meses por
falta de verba. Quando o dinheiro finalmente saiu, Gonzaga havia se tornado
crente e não queria mais saber de cinema.
Cavalcanti
procurou Mojica e sugeriu uma coprodução: Mojica ajudaria na direção do filme e
interpretaria o vilão. Em troca, ficaria com 30% da bilheteria. Os dois
juntariam também os alunos de suas escolinhas, formando uma super-escola e
garantindo dezenas de figurantes para o filme. Mojica aceitou a oferta, e a
nova escola foi batizada de Ribalta Filmes. Somando os alunos dos dois cursos,
a Ribalta tinha agora mais de trezentos membros pagantes. Os novos sócios
começaram a expandir suas atividades: além de dar aulas de interpretação,
contrataram professores para ensinar caratê, balé, canto, judô e até futebol.
Mojica
teve a ideia de oferecer também aulas de luta-livre, e saiu atrás de um
professor. Ele sondou alguns amigos que andavam metidos em espetáculos de
tele-catch, muito populares na época, e eles indicaram Satã, um jovem lutador
que despontava como um dos melhores da cidade. Mojica ficou entusiasmado:
-
Com um nome desses, deve ser bom mesmo!
Assim
que bateu o olho em Satã, Mojica sabia que precisaria usá-lo em algum filme.
Era o ator perfeito para uma fita de terror: 1,90 metro de altura, forte como
um touro e dono de um rosto amedrontador. Satã – ou Melquíades França Neto –
era mineiro de Mateus Leme, filho de mãe branca e pai preto, e nascera com os
olhos esticados de um mongol. Não havia no mundo ninguém mais adequado para
interpretar Gengis Khan.
Aos
21 anos, Melquíades saíra de Minas e fora para São Paulo trabalhar em obra.
Estava carregando cimento no centro da cidade, quando foi avistado por Hélio
Silva, dono de uma academia de luta-livre. Impressionado com o porte físico do
rapaz, Silva convidou-o para se juntar à sua caravana, que fazia lutas pelo
interior. Melquíades recebeu o apelido de Satã e poucos meses depois já estava
se engalfinhando nos ringues com feras como Ted Boy Marinho, Fantomas e Tigre
Paraguaio.
Mojica
acabou contratando-o como seu guarda-costas. Melquíades ficou empolgado: em
Mateus Leme, costumava reunir-se com seus amigos num boteco, toda sexta-feira,
para assistir na TV ao programa de Zé do Caixão. Ficavam tão assustados com as
histórias macabras de Mojica que voltavam para casa juntos, com medo das
sombras. Satã escreveu para os amigos contando a novidade. Só pediu ao pessoal
não comentar sobre seu apelido: se sua mãe, uma católica fervorosa, soubesse
que ele havia sido batizado com o nome do senhor das trevas, com certeza viria
para São Paulo busca-lo no tapa.
A
sociedade entre Mojica e Francisco Cavalcanti durou apenas oito meses. A escola
de atores não progrediu e Glória dos Canalhas seguia a passo de tartaruga.
O filme acabaria sendo lançado três anos depois, com o nome de Mulheres do
Sexo Violento (título imposto pelo produtor Nelson Teixeira Mendes, apesar
de a fita não ter muitas mulheres e muito menos “sexo violento”). A única
curiosidade desta obra esquecível é a participação, como ator, de um retirante
paraibano que depois faria sucesso nacional em filmes como O Homem Que Virou
Suco e A Hora da Estrela: José Dumont.
Nesse
meio-tempo, Mojica envolveu-se em dois filmes que não foram sequer terminados:
a pornochanchada Pega no Meu Ganso, produzida por seu amigo – e
companheiro de copo – Fred Scarlatti, e Boni, o Homem Virgem, de George
Michel Serkeis, uma bizarra fita de terror psicológico e erotismo. Sentindo que
não estava tendo muita sorte com cinema, Mojica tentou faturar um trocando
encenando peças de terror em teatros do subúrbio, dando aulas de teatro na
praia de Santos e vendendo gibis em festas. Nada deu certo. Sem condições de
pagar o aluguel do estúdio da Moóca, foi forçado a transferir sua escolinha para
uma sala na rua Visconde de Parnaíba, no Belém.
Mojica
tinha vários filmes na gaveta, mas não conseguia realizá-los por falta de
produtor. Chegou a discutir com vários produtores o filme A Encarnação do
Demônio, a continuação da saga de Zé do Caixão, mas todos continuavam
assustados com a proibição de Ritual dos Sádicos, e não queriam se
arriscar. A única saída, na cabeça de Mojica, seria continuar bolando alguns
eventos bizarros para manter seu nome na mídia e tentar atrair o interesse de
algum investidor.
Em
junho de 1973, o jornal Notícias Populares publicou uma série de
reportagens sobre um boato que andava circulando pela cidade: dizia-se que um
vampiro andava à solta em Osasco, na Grande São Paulo. A lenda surgiu depois
que foram encontrados alguns cachorros mortos, com buracos nos pescoços. O NP
batizou o monstro de “Vampiro de Osasco” e dedicou-lhe várias reportagens.
Farejando uma boa oportunidade, Mojica procurou o repórter Nelson Delbino e
combinou uma excursão a Osasco, onde faria um “desafio ao vampiro”.
Na
sexta-feira, 22 de junho de 1973, depois de tomar cachaça adoidado num bar da
Boca do Lixo, Mojica e seu séquito saíram em carreata até Osasco. Já era noite
quando chegaram à cidade. No cemitério, o vigia bronqueou: não iria deixar
ninguém entrar. Onde já se viu, visitar o cemitério numa hora daquelas? Acabou
levando uns tabefes de Satã e mudou de idade. A turma invadiu o cemitério e fez
dezenas de fotos. Dois dias depois, o NP publicava ampla reportagem sobre o
exorcismo, na qual Mojica declarava: “O Vampiro de Osasco não existe! O único
Drácula brasileiro sou eu, e eu não sou doido de beber sangue; bebo vinho, e do
bom!”.
A
performance não lhe rendeu grande coisa. O único que veio em seu auxílio foi
seu velho conhecido, Augusto de Cervantes. Augusto convidou-o para dirigir uma
pornochanchada, A Virgem e o Machão, história de um conquistador que vai
a uma cidade do interior e vira a grande coqueluche das mulheres locais. O
roteiro havia sido escrito por Georgina Duarte, filha da companheira de
Augusto, Nilza de Lima. Ninguém desconfiava, mas Augusto estava vivendo um
romance secreto com Georgina. Depois de dezessete anos com Nilza, ele a havia
trocado pela filha.
As
filmagens aconteceram em São Paulo e Ilhabela, no litoral paulista. Mojica
procurou rodar o filme o mais rápido possível. O roteiro, como tantos outros da
época da pornochanchada, limitava-se a uma sequência de cenas eróticas
intercaladas por uma história das mais fracas, com diálogos sem graça e piadas
de duplo sentido. Mojica sabia que esses filmes de encomenda acabariam
manchando sua reputação, tanto que exigiu assinar a direção com o pseudônimo de
J. Avellar.
Quando
A Virgem e o Machão estreou, um ano depois, o crítico do Jornal da
Tarde, Telmo Martino foi impiedoso:
Os
filmes de outros países falam de 2001 e 2020. Mas o cinema brasileiro é o único
que já está produzindo e estreando filmes para as próximas plateias do
prometido planeta dos macacos. A Virgem e O Machão
é uma dessas produções simiescas que tornam a venda de pipocas e balas nos
cinemas que os exibem um comércio anacrônico. Só o consumo de bananas seria
capaz de dar à plateia um prazer coerente com o humor que o filme escolheu. A
única defesa que esse filme brasileiro pode usar para sua inclusão na
atualidade é dizer que pertence ao cinema fantástico. Afinal de contas, mesmo
vendo é impossível acreditar no que suas cenas mostram.
O
ano de 1973 foi um dos mais difíceis e frustrantes da carreira de Mojica. Seu
maior ganha-pão foi como jurado do programa de Raul Gil. Não que o salário
fosse lá grande coisa, mas ele ganhava um dinheirinho vendendo os brindes que
recebia dos patrocinadores, como ferros de passar e vitrolas. Nas horas de
maior aperto, chegou a aceitar propinas de alguns calouros para não os
desclassificar.
O
curioso é que muitos nessa época o tomavam por milionário, por causa de um
episódio ocorrido numa gincana do programa Cidade contra Cidade, apresentado por
Sílvio Santos: um grupo de idosos recebeu a tarefa de descobrir onde morava Zé
do Caixão. Acabaram encontrando, num quarteirão chique do Morumbi, uma
horrorosa casa em forma de caixão. Mojica, só para ajudar os velhinhos, disse
que morava mesmo naquela casa. Logo a cidade inteira estava comentando sobre a
“mansão do Caixão”; não passava um dia sem que alguém importunasse o morador
perguntando por Mojica.
Enquanto
isso, ele continuava duro e infeliz. Já estava há quase três anos sem fazer um
filme que pudesse ser considerado genuinamente seu, desde Finis Hominis.
E a perspectiva não era das melhores: a Embrafilme fechava cada vez mais seu círculo de
apaniguados e a Censura continuava a persegui-lo. A implicância dos censores
ficou evidente quando Mojica solicitou a renovação do certificado de liberação
de Á Meia Noite Levarei Sua Alma. O filme havia passado pela Censura em
1964 e fora liberado para maiores de 18 anos. A renovação do certificado era
uma simples formalidade burocrática. Os censores Antônio Gomes Ferreira e Maria
Luiza Cavalcante, no entanto, decidiram interditar o filme, justificando sua
decisão com um parecer risível e cheio de erros de português, no qual
consideravam “um paradoxo” o fato de o filme chocar “até mesmo a sensibilidade
censória”:
É
inconcebível que ainda permitam películas tão negativas e afrontosas ao bom
senso e decoro social. É de uma perversidade inominável, cujo único fim é
ferir, humilhar, destruir o que há de humano em cada espectador. Num verdadeiro
paradoxo, esta película fere até mesmo a sensibilidade censória, por se vê (sic)
obrigada a tolerar chantagens semelhantes, num embuste à realidade artística da
sétima arte (...) Finalmente, é um filme indigno de uma tela nacional.
Mojica
tinha agora dois filmes interditados, Ritual dos Sádicos e Á Meia
Noite Levarei Sua Alma, além de outros completamente retalhados pela
Censura, como O Estranho Mundo de Zé do Caixão e Esta Noite
Encarnarei no Teu Cadáver, os quatro filmes em que aparecia o personagem Zé
do Caixão – Á Meia Noite, O Estranho Mundo e Ritual dos
Sádicos – totalizavam 359 minutos de duração. Destes, mais de 200 minutos
estavam censurados.
Em
dezembro, Mojica finalmente recebeu uma boa notícia: O Estranho Mundo de Zé
do Caixão havia sido premiado no Festival Internacional do Cinema
Fantástico e de Horror em Sitges, na Espanha, um dos mais importantes do mundo,
no gênero. Foi uma surpresa, já que ele nem sabia que a fita estava
concorrendo. Um ano antes, Augusto de Cervantes havia enviado uma cópia do
filme à Espanha, tentando conseguir algum distribuidor interessado. Os
espanhóis gostaram tanto que resolveram incluí-lo no festival.
Até
então, nenhum de seus filmes havia sido distribuído fora do Brasil. Sua fama,
no entanto, começava a se espalhar, graças a uma rede informal de
correspondência entre fãs e também a pequenos artigos publicados em revistas e
jornais. O roteirista Rubens Francisco Lucchetti se correspondia com vários
jornalistas europeus, como o português Vasco Granja e o espanhol Luis Gasca, e
ajudou a divulgar o nome de Mojica na Europa. Lucchetti também escreveu um
longo artigo sobre Zé do Caixão para a revista norte-americana Cinema-TV-Digest.
O
primeiro contato dos europeus com os filmes de Mojica acontecera em 1971,
durante o Festival de Cannes. Naquele ano, a Embrafilme organizou uma mostra de
vinte filmes brasileiros e decidiu incluir Esta Noite Encarnarei no Teu
Cadáver (outros filmes programados: Memória de Helena, de David Neves,
Pindorama de Arnaldo Jabor, e A Grande Cidade, de Cacá Diegues).
Entre
1971 e 1973, artigos sobre Mojica foram publicados na Itália, Espanha, Portugal
e México. As prestigiadas revistas francesas Midi-Minuit Fantastique e L´Ecran
Fantastique dedicaram-lhe amplas reportagens. Alain Scholockoff, editor do L´Ecran
Fantastique, empolgou-se tanto com os filmes de Mojica que resolveu
convidá-lo para a 3º Convenção de Cinema Fantástico, que se realizaria em
Paris, em abril de 1974.
Schlockoff
programou a exibição de dois filmes, Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver
e O Estranho Mundo de Zé do Caixão. Mojica descobriu que Ritual dos
Sádicos, embora proibido para exibição no Brasil, havia recebido da Censura o
selo de “livre para exportação”. Ele avisou à direção do festival que poderia
levar uma cópia. Seria a primeira exibição pública de Ritual, quatro
anos após ter sido rodado. O festival chegou a anunciar a exibição do filme,
mas a cópia ficou retida pela Censura e nunca saiu do país.
Mojica
embarcou para Paris em 5 de abril, acompanhado por seu amigo Cleber de
Hollanda. Cleber trabalhava há anos com distribuição e produção de filmes, e
Mojica havia pedido que ele fosse à França para negociar com os produtores que
estariam no festival (no fim das contas, nenhum acordo foi firmado durante a
viagem). Mojica foi muito bem-sucedido no festival e tratado como celebridade.
O
momento mais emocionante para Mojica, no entanto, foi o encontro com o outro
convidado de honra do festival, o ator britânico Christopher Lee, um dos mais
famosos “Drácula” do cinema. Lee e Mojica posaram para fotos juntos e
participaram de um debate. Mojica disse aos jornalistas que gostaria de
convidar Lee para atuar em seu próximo filme. O britânico, gentil, sorriu sem
graça e respondeu que admirava seu trabalho e que adoraria trabalhar com ele –
na verdade, nunca ouvira falar de Mojica até aquele dia.
No
encerramento do festival, Mojica ganhou o troféu L´Ecran Fantastique pelo
conjunto de sua obra. Enquanto a imprensa especializada em filmes de terror o
tratava como um astro, os jornais “normais” não conseguiam entender o seu
apelo: o Le Monde disse que, se o festival quisesse dar um prêmio ao
melhor humorista, Mojica deveria ser coroado. Já o repórter do Le Figaro
ficou impressionadíssimo quando Mojica contou das inúmeras mortes ocorrias com
atores e técnicos durante suas filmagens. Algum tempo depois, o jornal
publicaria um artigo dizendo que o diretor matava seus atores e, mesmo assim,
“continuava a andar impunemente pelas ruas de São Paulo”.
Publicado
originalmente em BARCINSKI, André & FINOTTI, Ivan. Maldito: a vida e o
cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. São Paulo: Editora 34, 1998.
Um comentário:
Mesmo sabendo que tudo isso aconteceu, difícil acreditar! Obrigado, Matheus!
Postar um comentário