segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Mojica early years, parte XV: 1979-83: Deputado Zé do Caixão, às suas ordens

         Capítulo 16: 1979-1983: Deputado Zé do Caixão, ás suas ordens

 

Por André Barcinski e Ivan Finotti

 


          A viagem para a Espanha servira para inflar o ego de Mojica, mas seu bolso continuava vazio. As reportagens publicadas sobre sua premiação no exterior não renderam nenhum convite para novos filmes e, no Brasil, tudo continuava na mesma: cinemas fechavam e produtoras independentes faliam. Mojica não poderia prever, mas Perversão seria o último longa-metragem inteiramente seu a chegar às telas. Dali em diante, trabalharia apenas como diretor contratado. Completamente duro, ele fechou o estúdio da Moóca e ocupou um escritório que pertencia à “milionária assassina”, Elza Leonetti do Amaral, na rua 7 de Abril, centro de São Paulo.

Sua vida pessoal estava um caos absoluto: escondia Fátima de Nilce, Nilce de Maria e, vez por outro, ainda tinha namoricos-relâmpago com outras alunas. Começou a beber cada vez mais. Chegava a virar duas garrafas de licor de menta por dia. Cafezinho, só tomava batizado com rum. Vivia deprimido de tanto álcool e várias vezes teve de ser carregado para casa. Nilce, deprimida, pegou sua filha Nilcinha e foi morar na casa de sua amiga Elza Leonetti, no Itaim Bibi.

Por volta de março de 1979, Mojica atingiu o fundo do poço. Estava a um passo da mendicância. Desesperado, reuniu os últimos alunos que lhe restavam e começou uma campanha, batizada de “Faxina em Prol do Cinema Nacional”. Todo dia a turma ia de porta em porta, no Brás e na Moóca, oferecendo faxina de graça em troca de revistas velhas, que depois eram vendidas para bancas de jornal do centro da cidade. Nilce também começou a se virar como pôde: ela pegava saquinhos de plástico, fazia kits com um exemplar do livro Sentença de Deus, um gibi de Zé do Caixão e um compacto com a marchinha “Castelo dos Horrores”, e saía vendendo os pacotinhos pela rua, dizendo que era para ajudar os cegos e paralíticos.

Em julho, Mojica procurou os jornais para anunciar que estava colocando à venda sua coleção de gibis. Eram mais de quatro mil revistas, muitas raríssimas, que guardara desde a infância e das quais nunca sonhara em se desfazer. Para ele, acostumado a procurar a imprensa para divulgar um novo filme ou projeto, foi uma humilhação ter de confessar sua penúria e apelar para a caridade alheia.

Apesar das várias matérias publicadas, ninguém se interessou pela gibiteca. Mojica, precisando urgentemente de dinheiro, fantasiou-se de Zé do Caixão e foi com Elza Leonetti para a praça Ramos, no centro de São Paulo, onde montou uma barraquinha para vender os gibis. Foram os dias mais tristes de sua vida: multidões paravam para rir daquela insólita dupla de camelôs: pedestres faziam piadas e o ridicularizavam. Mojica sentiu-se como uma atração de circo. A humilhação acabou compensada pela venda de várias revistas, que lhe garantiram sustento por mais alguns dias.

Mesmo passando por tantas dificuldades financeiras, Mojica nunca desistiu de filmar: vivia caçando produtores na Boca do Lixo, mostrando seus roteiros e tentando convencer alguém a financiar a continuação da saga de Zé do Caixão. Ninguém lhe dava bola. Cansados de esperar, alguns alunos resolveram fazer uma coleta para produzir um filme. Arrecadaram uma mixaria. Mojica fez os cálculos e disse que, com aquele dinheiro, só teriam condições de usar filme Super-8, muito mais barato que o negativo de 35 mm normalmente usando em fitas profissionais. Alguém sugeriu filmar em Super-8 e depois ampliar para 35 mm. Essas ampliações invariavelmente resultavam em imagens granuladas e de pouca definição, mas Mojica não estava preocupado com a qualidade. Só queria filmar.

Ele reuniu a equipe numa salinha no bairro do Pari e rodou A Praga, história de um homem cujo corpo começa a apodrecer depois de ser amaldiçoado por uma bruxa. O roteiro havia sido escrito por Rubens Lucchetti para um episódio do programa Além, Muito Além do Além, e fora adaptado para quadrinhos na revista O Estranho Mundo de Zé do Caixão, número 3. O filme foi inteiramente rodado, mas faltou dinheiro para a montagem e o projeto acabou esquecido.

Logo depois, Mojica decidiu filmar um curta-metragem para aproveitar a lei que obrigava os cinemas a exibir um curta nacional em cada sessão de filme estrangeiro. Era uma mamata: qualquer porcaria passava – até 1984, não existia sequer uma comissão de seleção dos curtas – e o produtor recebia 5% da bilheteria das produções estrangeiras. Quem desse a sorte de ter seu curta-metragem exibido junto a um filme de sucesso como Contatos Imediatos de Terceiro Grau ou Os Embalos de Sábado à Noite poderia ficar rico da noite para o dia.

Os cinemas brasileiros foram subitamente invadidos por dezenas de curtas sobre cerzideiras nordestinas, concursos de pipa em Realengo e artistas plásticos piauienses. Muitos diretores fizeram seu pé-de-meia com esses filmes: Nilo Machado, o maior gênio da trambicagem cinematográfica brasileira, fez dezenas de curtas usando colagens de velhos filmes estrangeiros, que ele comprava aos quilos (um dos mais famosos foi Ginástica – Base Para Uma Boa Saúde, totalmente montado a partir de um filme sueco que mostrava um bando de garotas brincando de bambolê).

Mojica convenceu sua turma a fazer outra “vaquinha” e rodou nada menos de cinco curtas-metragens em um mês. Ele não escondeu do pessoal que só estava fazendo esses filmes pela grana: seriam todos rodados às pressas, sem muito capricho, e serviriam apenas para faturar um troco e dar mais experiência à turma. Seu plano era usar o dinheiro que ganhassem com os curtas para produzir filmes melhores.

O primeiro curta-metragem foi A Imigrante (Simplesmente Mulher), que nada mais era do que a história da vida de Nilce. Ela chegou a ficar emocionada com a homenagem, antes de descobrir que Mojica havia convidado a amante Fátima para interpretar o papel principal. Em seguida, ele rodou um filme experimental sobre a automatização da sociedade, chamado Evolução- Homem versus Máquina: A Luta do Século no Planeta dos Botões. O curta – interessante apesar da precariedade da produção – consistia de vários flagrantes de pessoas, na rua e no trabalho, fazendo gestos robotizados e apertando botões. A montagem ficava cada vez mais acelerada, mostrando uma infinidade de botões – em elevadores, calculadoras, máquinas registradoras – até que alguém aperta o botão da bomba atômica e o mundo explode. O filme termina mostrando o homem de volta ao tempo das cavernas, comendo carne crua e carregando uma clava.

Mojica depois fez dois curtas de protesto, É Proibido Caças Produtores de Cinema – Espécie em Extinção, sobre um produtor que comete suicídio depois de ver seu filme fracassar, e Justiça, Justiça, história de um ator que se aproveitava da bondade de seu produtor (interpretado pelo pai de Nilce, Antônio Feo) e depois rouba seu dinheiro. Este filme foi inspirado no episódio envolvendo o ator Amaury Silva, que anos antes ganhara uma ação trabalhista contra Mojica depois de morar de graça em seu estúdio.

O papel do ator desonesto em Justiça, Justiça ficou com Carlos Alberto de Mattos, um aluno mais conhecido por “Tarzan”. Cinco anos mais tarde, provavelmente inspirado por seu personagem, ele entraria com um processo contra Mojica, alegando que trabalhara por vários anos sem receber nada. Só que Tarzan não parecia bater muito bem da cabeça: no tribunal, disse que morava para lá de Ribeirão Preto, a quarto horas do estúdio. Quando o juiz perguntou como ele conseguia trabalhar num lugar tão longe e gastar oito horas por dia num ônibus – quatro para ir e quatro para voltar – Tarzan afirmou que só conseguia porque havia feito um curso de sobrevivência na selva, onde aprendera a suportar qualquer privação. O juiz, irritado, mandou arquivar o processo e ameaçou prendê-lo, caso continuasse mentindo.

O último curta-metragem da série foi Brincadeira Fatal, inspirado por um episódio verídico ocorrido com o aluno Manoel Cardoso, um louco de pedra. Mojica tinha dó do rapaz, e até deixou que ele morasse no estúdio por uns tempos. Certa noite, alguns alunos resolveram pregar uma peça em Manoel: esconderam-se no estúdio e, de madrugada, começaram a imitar fantasmas: “Uuuuhhhhh! Manoel, viemos buscar a sua alma!”. Ele ficou apavorado. Um dos engraçadinhos se meteu debaixo de um lençol e tentou assustá-lo. Manoel tomou coragem, sacou um canivete e furou a barriga do “fantasma”. Depois, saiu comemorando pelas ruas: “Sou um herói! Matei o fantasma do estúdio do Zé do Caixão!”. O ferido foi levado para o pronto-socorro, e Manoel, para a delegacia.

Dos cinco curtas, somente os dois primeiros – A Imigrante e Evolução – foram distribuídos comercialmente. Os três últimos nem chegaram a ser sonorizados. Mojica acertou a exibição dos filmes com o dono de um grande circuito de cinemas no Rio de Janeiro, mas o sujeito passou a bola para o filho – um conhecido traficante e cocainômano – que nunca pagou tudo que devia.

 

Em setembro de 1980, nasceu Rose, segunda filha de Nilce e Mojica. Nilce tinha esperança de que o nascimento da menina finalmente convencesse Mojica a ir morar com ela e as filhas. A situação bem que levava a crer que isso acabaria acontecendo: o romance de Mojica e Maria estava no fim e ele decidira, depois de anos de adiamentos, entrar com um pedido de divórcio de Rosita (o desquite sairia em 1981). Além do mais, seus filhos com Maria e Rosita já estavam crescidos. Se havia alguém precisando de um pai, era Nilcinha e a recém-nascida Rose. Quando tudo parecia caminhar para um final feliz, veio a bomba: Fátima estava grávida de Mojica. Nilce ficou arrasada. Pediu demissão do estúdio e arrumou emprego numa confecção. Estava resolvida a largar o cinema e nunca mais procurar Mojica.

A situação de Fátima também era crítica: sua família não aceitou a gravidez e a expulsou de casa. Sem ter onde ficar, foi morar com a mãe de Mojica, dona Carmen, num pequeno apartamento no Brás. Ela passou meses dormindo num sofá desconfortável, sem dinheiro para fazer qualquer exame pré-natal e sobrevivendo da aposentadoria de dona Carmen. Quando nasceu seu filho, Denilson, em abril de 1981, ela não tinha dinheiro sequer para comprar mamadeiras ou fraldas. O bebê dormia no gavetão de uma cômoda. Alguns meses depois, foram despejados do apartamento e acabaram nos fundos de uma garagem, onde nem cômoda havia. Fátima e a criança dormiam no chão.

 

Enquanto isso, Mojica continuava a viver de biscates e aparições em festas. Chegou a montar um pequeno grupo teatral para apresentar-se em bailes, encenando esquetes mambembes nas quais saía de seu caixão e rogava pragas para a plateia, enquanto seus alunos, fantasiados de monstros, entretinham o público. O destaque da trupe era Jurandir, um sujeito que tinha pernas mecânicas e duas garras de aço no lugar dos braços, capaz de apavorar qualquer plateia.

Mojica não sentia prazer algum em participar desses shows. Na verdade, achava uma amolação ter de despencar até o subúrbio para encenar esquetes tão furrecas e constrangedoras. O público só tinha duas reações: ou caía na gargalhada com o ridículo da cena ou vaiava impiedosamente. Mas Mojica não tinha opção; era isso ou vender gibis na rua. Para aliviar sua depressão, bebia cada vez mais.

Sua constante embriaguez causou diversos problemas durante as apresentações de seu grupinho teatral: certo dia ele foi convidado por um amigo, o empresário Samuel Moura, para participar do “Baile das Bruxas”, uma festa a fantasia num clube em Jundiaí, perto de São Paulo. Uma semana antes do baile, Mojica precisou ir a Belo Horizonte dar aulas numa escolinha de atores, mas garantiu que voltaria logo para São Paulo. Os dias foram passando e nada de ele voltar. Samuel, desesperado, mandou um assistente buscá-lo em Belo Horizonte. O sujeito caçou Mojica por toda a cidade e só o encontrou na manhã do baile, bêbado de cair. Levou-o para o aeroporto e marcou um voo para aquela mesma noite, mas na hora do embarque desabou um temporal na capital mineira e o avião não pôde decolar.

Samuel estava dentro do clube quando recebeu a notícia de que Mojica não viria. Do lado de fora, mais de 2 mil pessoas – fantasiadas de diabos e bruxas - esperavam na fila. Ele procurou um dos diretores do clube e contou tudo. O sujeito ficou tão irritado que começou a arremessar cadeiras contra uma parede. Os outros diretores deram no pé, com medo de serem linchados. O baile foi cancelado e Samuel perdeu um bom dinheiro.

Isso foi fichinha perto de um show em Araçoiaba da Serra, 110 quilômetros a oeste de São Paulo. No dia marcado, Mojica estava novamente dando aulas em Belo Horizonte. Samuel, com medo de um novo fiasco, resolveu buscá-lo pessoalmente. Durante o voo para São Paulo, Mojica roubou três garrafas de vinho do carrinho da aeromoça e chegou totalmente chumbado. Já passava das onze da noite quando chegaram a Araçoiaba da Serra. Mojica não conseguia nem andar: caiu duro num sofá e só acordou á uma da manhã, quando foi colocado no caixão e carregado para o palco, totalmente grogue. O público, que à essa altura já achava que Zé do Caixão havia dado o cano, invadiu o palco para ver mais de perto. No meio do fuzuê, um sujeito, conhecido na cidade como “Capeta”, chegou perto de Mojica e arrancou-lhe uma das unhas da mão. Depois saiu gritando: “Viva! Arranquei a unha do Zé do Caixão!”. Mojica, chorando de dor, voltou correndo para o camarim, e o delegado teve de intervir para que o baile não terminasse em batalha campal.

 

Não faltavam ofertas de trabalho para Mojica, mas sua falta de organização e irresponsabilidade punham tudo a perder. Ele foi convidado para aparecer em diversos programas de rádio e na TV, mas vivia bêbado e nunca cumpria os horários. Sua grande chance de recuperação surgiria em julho de 1981, quando a TV Record o convidou para estrear um novo programa.

A emissora estava passando por uma fase difícil com a inauguração da TVS, o novo canal de Sílvio Santos, que havia contratado alguns dos maiores nomes da Record, como Jacinto Figueira Jr., que apresentava O Homem do Sapato Branco, um show de entrevistas especializado em “mundo-cão”. A Record pensou em criar um programa de auditório com Zé do Caixão, no qual ele apresentaria cantores e faria concursos de calouros. Chegaram a rodar um piloto, mas o resultado foi tão ruim, que o projeto foi imediatamente engavetado. Foi então que a TVS anunciou que O Homem do Sapato Branco entraria no ar aos sábados às onze da noite. A Record resolveu colocar Zé do Caixão para disputar cabeça a cabeça com Figueira Jr., e sugeriu a Mojica um programa popularesco sobre terror e esoterismo. Três semanas depois, estrearia Um Show de Outro Mundo.

O novo programa misturava episódios fictícios (roteirizados por Norbert Novotny, amigo de Mojica), com apresentações de todo tipo de rituais esdrúxulos e macabros. Mojica exibiu um sujeito que dizia ser lobisomem, um artista de rua – Dito Satã – que comia cobras vivas, e um mago chamado Augustok, que atravessava a própria garganta com um espeto de churrasco. Também apresentou um ritual de satanismo comandado pela “diabóloga” Lina Capeta e um casamento de umbanda celebrado por Pai Jaú que, antes de ser macumbeiro, ganhava a vida como zagueiro do Corinthians.

A novidade do programa era a presença de um “júri” composto por supostos especialistas em fenômenos sobrenaturais, que analisavam as bizarrices mostradas. Participaram do grupo de jurados o padre Quevedo, líder de um instituto em estudos parapsicológicos; Jamil Rachid, presidente da Federação dos Umbandistas de São Paulo, e Arlete Moreira, atriz de Perversão e figurante dos Trapalhões.

Mesmo com o novo emprego e as novas responsabilidades, Mojica não parava de beber. Às vezes chegava tão biritado ao set, que precisava se amparar em cadeiras, para não cair. No dia da gravação do primeiro programa, tiveram de tirá-lo à força da casa do amigo Francisco Cavalcanti, onde estava há 48 horas jogando pôquer. O diretor artístico da Record, Hélio Ansaldo, proibiu o pessoal de beber em dia de filmagem, mas não adiantou: Mojica mandava um de seus assistentes encher uma garrafa de guaraná com pinga e fingia estar tomando refrigerante.

Apesar de todos os problemas, os índices de audiência foram surpreendentes: o primeiro programa deu quase trinta pontos, equivalente a metade dos televisores ligados no horário e a um público de quase 2 milhões de pessoas, só em São Paulo. Mesmo com a estreia de O Homem do Sapato Branco, em 22 de agosto – o que causou uma queda considerável na audiência de Mojica – seus números permaneceram fortes: sua média durante o mês de agosto foi de dezenove pontos (1,2 milhão de espectadores).

A crítica, no entanto, saiu matando: Gabriel Priolli Netto, da Folha de S. Paulo, disse que preferia ver mais terror e menos “mundo-cão”. Na Folha da Tarde, o jornalista Ferreira Netto – que havia transferido seu programa de entrevistas da Record para a TVS – criticou sua ex-emissora e zombou do português de Mojica: “Aviso ao mocinho: ‘pograma’ não existe; ‘exprocação’ também não”. (Netto encerrou a coluna escrevendo “prevaleceu” com “S”).

Com o sucesso na TV, alguns produtores voltaram a procurar Mojica: Enzo Barone, que começara sua carreira em cinema trabalhando como ator em O Estranho Mundo de Zé do Caixão, disse que havia comprado, num leilão do interior, a carcaça de um velho avião, com poltronas e tudo o mais, e queria usá-la num filme. Mojica pediu ajuda ao filho, Crounel, e em poucos dias escreveram o roteiro de O Diabólico Voo de Zé do Caixão, sobre um avião que é sequestrado por Zé e levado para outra dimensão, sobre um avião que transformaram nas figuras históricas com as quais mais se identificam. Assim, um passageiro transforma-se em Hitler, outro em Napoleão, um terceiro em Jesus Cristo, e por aí vai. Barone chegou a convidar Anselmo Duarte e o famoso grupo de discoteca As Frenéticas para atuar no filme, mas o projeto acabou ficando muito caro e nunca foi levado adiante.

Mojica ficou tão entretido na produção da fita que se descuidou totalmente do programa de TV: chegava sempre atrasado às filmagens, não decorava suas falar e faltou diversas vezes. O show caiu de qualidade e a audiência despencou: de dezenove pontos em agosto, passou para nove em setembro e seis em outubro. A Record ainda tentou transferir o programa para domingo, mas não houve jeito: no fim de outubro, apenas três meses depois da estreia, Um Show do Outro Mundo foi cancelado.

 

Não havia passado uma semana desde sua demissão da Record, quando Mojica foi com seu parceiro Mário Lima à Câmara dos Vereadores de São Paulo visitar um amigo, que havia prometido conseguir dinheiro para um filme. A Câmara vivia um período de intensa agitação, por causa das eleições marcadas para dali a um ano. Nos corredores, políticos faziam alianças estratégicas e tentavam atrair bons nomes para suas chapas. Mojica mal colocou os pés no recinto e foi logo abordado por vários vereadores, que o convidavam a se candidatar a um cargo público:

- Você é muito famoso, Zé, não quer ser candidato? Podemos fazer um bom par, você como deputado e eu como vereador – disse um sujeito do PMDB.  

- É, mas tem que ser no PDS – respondeu outro, puxando-o pelo braço.

Em cinco minutos, ele recebeu convites de todos os partidos e tendências, do mais reacionário direitista do PDS ao mais xiita dos petistas.

O tal amigo de Mário Lima trabalhava no Partido Popular (PP), um grupo liderado por Tancredo Neves e egresso da ala moderada do antigo MDB. Mojica foi apresentado ao presidente regional do PP, o banqueiro Olavo Setúbal, dono do Itaú, que imediatamente o convidou para ingressar no partido e candidatar-se a deputado estadual:

- Você é muito importante para nós. Se resolver sair candidato pelo PP, garantimos todo o apoio!

O PP, assim como todos os outros partidos, estava realmente desesperado atrás de candidatos. Pouco antes, um novo pacote eleitoral proibia as coligações partidárias, o que intensificou a luta por candidatos de peso. Na corrida para ganhar votos valia qualquer coisa: o próprio PP havia convidado Solange Joubert, a autoproclamada “rainha das massagistas” – e imortal da Academia de Letras do Vale do Paraíba, por sua obra Estes Homens Passaram por Minha Mesa de Massagem – para concorrer a uma vaga na Assembleia Legislativa. Agora era a vez de Zé do Caixão.

 

Mojica nunca havia sonhado em entrar para a política e não entendia nada do assunto. Quando lhe perguntavam sua posição ideológica, dizia situar-se “em algum lugar entre a esquerda e a direita, mais para o meio”. Era impossível negar, no entanto, que aquela bajulação toda não lhe havia subido à cabeça: por que não poderia ser um deputado? Se todos aqueles políticos já davam como certa sua vitória, por que não arriscar? Afinal, um deputado ganhava bem, tinha privilégios, e tudo que ele precisava naquela hora era um empreguinho bom. Resolveu aceitar.

Se houve uma classe de profissionais que se favoreceu de imediato com a candidatura de Zé do Caixão, foi a dos jornalistas. Nunca foi fácil criar manchetes bacanas. Algumas das melhores: “O candidato das forças ocultas”; “Zé do Caixão garante que não será um político-fantasma”; “horror na Assembleia”; “Mojica, uma luz nas trevas da política”; “O candidato que é um horror” e “Da urna funerária à urna eleitoral”.

Em entrevistas, Mojica afirmava que, caso eleito, concentraria seus esforços na defesa de três classes que considerava as mais desprivilegiadas do país: os coveiros, os lixeiros e os cineastas. “São pessoas que ninguém gosta, mas todo mundo precisa”. Quando um repórter lhe perguntou por que havia escolhido o PP, um “partido de banqueiros”, ele retrucou: “É melhor que sejam banqueiros, assim já são ricos e não precisam mais roubar. Pior seria se eu tivesse me juntado a uns mortos de fome!”. Depois, disse que a política nacional se assemelhava a um filme de ficção-científica e terror: “Veja só, os candidatos prometem mundos e fundos e, depois de eleitos, desaparecem, como se fossem tragados por um disco voador para outra dimensão. Só aparecem de novo na época de outra eleição. Parecem umas múmias, que só acordam de tempos em tempos”.

Sua plataforma incluía a proibição de seriados de TV americanos (“Precisamos prestigiar os programas brasileiros!”) e cursos obrigatórios de tiro para vigias noturnos (“Esses coitados arriscam a vida para proteger a família brasileira e nem aprender a atirar; é um absurdo!”). Mas ele também tinha boas ideias para incentivar o cinema nacional, como a criação de escolas para formar técnicos de laboratórios onde cineastas independentes pudessem revelar seus filmes por preços mais baixos.

Poucos dias antes de Mojica formalizar sua candidatura, o PP fundiu-se ao PMDB. No novo partido, o mais poderoso do país, não haveria lugar para Zé do Caixão. Foi então que o radialista Fernando Silveira, candidato a deputado estadual pelo PTB, convidou-o para se filiar a seu partido, prometendo arcar com todos os custos da campanha caso Mojica topasse aparecer ao seu lado em cartazes e santinhos. Só havia um problema: como Silveira já estava concorrendo a deputado estadual, Mojica, se quisesse entrar numa dobradinha, teria que se candidatar a deputado federal – uma parada muito mais dura. Mesmo assim, ele topou. Na mesma hora, Silveira o levou para o diretório central do PTB, na avenida Angélica, onde o apresentou a Ivete Vargas, filha de Getúlio, que preencheu pessoalmente sua ficha de inscrição. Mojica saiu empolgado: “Pô, a filha do Getúlio Vargas preencheu minha ficha! Esse partido é bom mesmo!”.

O candidato do PTB ao governo de São Paulo era outro velho conhecido de “forças ocultas”: Jânio Quadros. Mojica foi apresentado ao ex-presidente, que logo o convidou para um bate-papo em seu apartamento. No dia combinado, Mojica foi à casa de Jânio. Não passava das dez da manhã quando tocou a campainha. Jânio atendeu a porta de pijamas e chinelos. Bem-humorado, levou-o para a mesa da sala, onde sua esposa, dona Eloá, serviu suco de laranja e biscoitos.

- José, quero que você saiba que sua presença é muito importante para nós – disse o ex-presidente. – Você é uma pessoa de nome, pode atrair muitos votos!
          Mojica só balançava a cabeça, concordando. De vez em quando soltava uns “é claro”, “sim, sim”, mas na maior parte do tempo ouviu calado. Jânio pediu que não esquecesse de incluir seu nome para governador em todos os santinhos, e disse que Mojica teria de trabalhar muito para se eleger:

- Tem que fazer campanha o tempo todo, sem descanso. É preciso fazer como eu, que acordo todo dia às seis da manhã e durmo à meia-noite! (Mojica continuaria dormindo às seis da manhã e acordando meio-dia). Jânio deu dicas de como falar em comícios, e reiterou a importância da campanha corpo-a-corpo. Aí, Mojica falou pela primeira vez:

- Jânio, estou com um problema muito sério...Eu não tenho dinheiro para a campanha...

- Eu também não tenho pra te dar, mas vou te passar o telefone de dois amigos que podem te ajudar...

Os amigos de Jânio eram o dono de uma fábrica de embalagens em Santo Amaro e o proprietário de uma casa lotérica. Também não tinham grana, mas prometeram emprestar uma kombi para a campanha. Já a dobradinha com Fernando Silveira não deu certo: os dois brigaram e Mojica acabou se juntando aos candidatos Fábio Porchat (deputado estadual) e Fábio Fleming (vereador), que também se dispuseram a imprimir cartazes e santinhos, com a condição de que ele os apoiasse. Alguns dias depois, Mojica recebeu do Tribunal Regional Eleitoral (TER) a oficialização de sua candidatura: Zé do Caixão, candidato a deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro, com o número 430. Até soava bem.

Mojica logo percebeu que campanha política não era brincadeira: ele começou a ser chamado para reuniões do partido e encontros com políticos. Gostava especialmente das reuniões de cúpula do PTB, no centro, porque serviam uísque importado com amendoim. Mas nunca bebeu além da conta, pelo menos na presença dos graúdos. Sempre que avistava Jânio, Ivete Vargas ou algum outro figurão, maneirava na birita. Vexame mesmo só deu numa convenção do partido em São José dos Campos, quando subiu ao palanque com duas garrafas de Tatuzinho na cuca e fez um discurso que ficou para a história da política joseense:

- A quem pertence a terra? A Deus? Ao Diabo? Ou aos espíritos desencarnados? Meus eleitores, a besta está chegando para tomar a terra e o leite das crianças! Vamos dar leite pras crianças! Temos que dar leite pras crianças!

Num comício no Anhangabaú, Mojica foi rodeado por um grupo de motoristas de ônibus, que queriam saber mais sobre sua plataforma. Ele disse que pretendia liberar o jogo do bicho e legalizar a prostituição, inclusive dando 13º salário e benefícios às profissionais do ramo. Depois de se recuperar do baque, um dos motoristas perguntou o que ele pretendia fazer pela economia. Mojica, longe de ser um Galbraith, respondeu:

- Vou aumentar os juros da poupança! Vamos ficar ricos!

Os motoristas disseram que, se ele aumentasse os juros da poupança, as lojas também aumentariam seus preços, e ficaria tudo na mesma.

- Não, não, você vai ver! Vamos aumentar a poupança sempre mais que a inflação! Confiem em mim!

A campanha de Mojica era realmente revolucionária: ele substituiu o tradicional “corpo-a-corpo” pelo “copo-a-copo”: todo dia, visitava um bairro diferente e fazia a ronda dos botecos, enchendo a cara com os eleitores e divulgando sua plataforma, entre um gole e outro de Velho Barreiro. Enquanto isso, a candidatura de Jânio não decolava: os institutos de pesquisa anunciavam uma liderança folgada de Franco Montoro, do PMDB, seguido de longe por Reinaldo de Barros, do PDS. Jânio só aparecia em terceiro, empatado com Lula, do PT.

Para dar impulso à campanha, o PTB marcou um grande comício para o dia 9 de outubro em Sapopempa, na zona leste. As maiores atrações, além da presença de Jânio e Ivete Vargas, seriam um show de Moacir Franco – também candidato – e um concurso de sósias de Getúlio Vargas, Sílvio Santos e Pedro de Lara. O evento foi visto como a última grande cartada de Jânio. Ele declarou aos jornais que, se não conseguisse levar pelo menos 20 mil pessoas a Sapopemba, renunciaria à candidatura. Todos os candidatos do PTB foram convocados a discursar, inclusive Zé do Caixão.

Jânio cumpriu sua promessa: bem mais de 20 mil pessoas compareceram ao comício. Naquela manhã, Mojica vestiu um terno, encontrou-se com o amigo Samuel Moura e partiram juntos para Sapopemba. Antes, porém, deram uma paradinha na casa de Elza Leonetti, onde Mojica matou meio litro de Cinzano. Acabaram chegando atrasados ao comício. Largaram o carro numa esquina qualquer e só então perceberam que haviam estacionado ao lado errado, próximo à multidão e longe do palanque. Tiveram que atravessar a massa a pé, cortando pelo meio do povão. Mojica era reconhecido e abraçado. Foi um sufoco. Levaram quase uma hora para alcançar o palanque e, quando chegaram, os discursos já haviam terminado. Mojica não pôde discursas e ainda sofreu a humilhação de ouvir o apresentador chamá-lo de “José Maria Marin”.

Com todas essas galhofadas, não foi surpresa alguma quando saiu o resultado da eleição: Zé do Caixão obteve 1.228 votos, ficando em 61º lugar entre os 71 candidatos do PTV. Na classificação geral, ficou em 256º lugar entre os 278 candidatos. Jânio acabou mesmo em terceiro, atrás de Franco Montoro e Reinaldo de Barros. Os parceiros de Mojica também entraram pelo cano: nenhum dos Fábios, nem Porchat nem Fleming, conseguiu se eleger. Mojica depois acusou o TRE de ter anulado os votos dados a Zé do Caixão e computado apenas as cédulas com seu nome verdadeiro, mas a reclamação não procedia: em sua ficha de inscrição, ele havia registrado tanto o nome José Mojica Marins quanto Zé do Caixão.

 

Publicado originalmente em BARCINSKI, André & FINOTTI, Ivan. Maldito: a vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. São Paulo: Editora 34, 1998.

Nenhum comentário: