terça-feira, 22 de novembro de 2022

Mojica early years, parte XIV: 1976-1979: Delírios de Um Anormal

            Capítulo 15: 1976-1979: Delírios de Um Anormal

 

Por André Barcinski e Ivan Finotti


No início de 1976, Mojica procurou o produtor Alfredo Cohen implorando por um emprego. Sua situação nunca estivera tão crítica: além de não ter um tostão furado no bolso, ainda corria risco de perder sua parte em A Estranha Hospedaria dos Prazeres, já que Nelson Teixeira Mendes, de quem havia alugado câmera e luzes para fazer o filme, ameaçava entrar com um processo na Justiça caso não recebesse logo pelo aluguel. Mojica assinou com Cohen um contrato para a produção de Inferno Carnal, uma adaptação de um antigo roteiro de Rubens Lucchetti. Antes, porém, topou dirigir mais uma pornochanchada para Augusto de Cervantes, Como Consolar Viúvas.

Augusto estava passando por uma fazer muito difícil. Poucos meses antes, sua companheira por vinte anos, Nilza de Lima, morrera de um câncer no útero. Agora a filha de Nilza – e sua atual namorada, Georgina Duarte – fora diagnosticada com a mesma doença. Foi a própria Georgina quem escreveu o roteiro de Como Consolar Viúvas, uma comédia erótica sobre um espertalhão que tenta enganar três viúvas ricas. Augusto, sabendo que ela não teria muito tempo de vida, pediu a Mojica que apresasse as filmagens.

Mojica rodou o filme em dezesseis dias. Com o roteiro que dispunha, não conseguiria fazer uma fita decente, mesmo que tivesse dezesseis anos. As piadas eram das mais tacanhas – já uma brincadeira recorrente com um personagem que cultiva mandiocas – e os atores também não ajudavam. A única curiosidade de Como Consolar Viúvas é o local onde foi filmado: Georgina queria um apartamento com uma cama ampla para filmar as cenas de sexo. Sua filha Ana Nilsen (atriz de D´Gajão Mata Para Vingar) sugeriu usar o apartamento de seu namorado, o cantor Peri Ribeiro, que havia herdade de sua mãe, a grande cantora Dalva de Oliveira, vários móveis antigos, incluindo uma linda cama colonial. Todas as cenas eróticas foram filmadas na cama que pertencera à romântica Dalva de Oliveira.

Mojica ainda tentou dar um toque pessoal ao filme, adicionando algumas cenas sobrenaturais, como uma em que um sujeito é atacado por um vibrador voador, mas o resultado não foi dos mais empolgantes. Envergonhado, ele decidiu novamente assinar com o pseudônimo de J. Avelar. Goergina pelo menos pôde ver sei filme concluído. Morreu seis meses depois.

Assim que terminou Como Consolar Viúvas, Mojica iniciou as filmagens de Inferno Carnal. A verba para o filme foi conseguida novamente na base da “vaquinha” entre alunos, e completada por um adiamento do distribuidor Alfredo Cohen. A produção era tão pobre que o almoço da equipe foi o queijo provolone que havia sobrado da festa no Viola de Ouro, cinco meses antes.

No filme, Mojica interpreta o cientista George de Medeiros, um gênio da química que se dedica à descoberta da fórmula de um ácido poderosíssimo. Enquanto ele passa as noites trancado no laboratório, sua mulher, Raquel (Luely Figueiró), diverte-se com o amante, Oliver (Osvaldo de Souza). Juntos, eles planejam matar o cientista e ficar com sua fortuna. Numa noite de tempestade, Raquel entra no laboratório do marido, joga o ácido em seu rosto e foge com Oliver, acreditando ter matado George. Só que George sobrevive e começar a planejar sua diabólica vingança. A história fora escrita por Rubens Lucchetti como um episódio do programa O Estranho Mundo de Zé do Caixão, chamado “A Lei do Talião”, exibido em agosto de 1969 na TV Tupi, com José Parisi no papel do cientista e Irene Ravache interpretando a esposa.

Com Inferno Carnal, Mojica provou mais uma vez ser incapaz de criar um ambiente de alta burguesia convincente. Seu personagem é um milionário, mas anda numa Brasília velha, guiada por um motorista vestido de trocador de ônibus; seu “laboratório” não passa de meia dúzia e tubos de ensaios cheios de suco de uva, e o tal ácido poderoso fica guardado num vidro de maionese destampado. Para completar, George, o cientista, usa um jaleco com o nome de Oliver, amante de sua mulher (a gafe foi resultado de um erro dos dubladores, que trocaram os nomes dos personagens).

Mojica filmou às pressas. Estão tão desinteressado pelo filme que perdeu a seu assistente Marcelo Motta para dirigir algumas sequencias. Na terça-feira, 20 de julho, quando trabalhava na dublagem de Inferno Carnal, recebeu a notícia de que Nelson Teixeira Mandes havia perdido na Justiça a penhora de seus bens. Imediatamente ligou para Mendes, tentando, como já fizera diversas vezes, adiar o pagamento. Pediu que ele esperasse pelo menos até o lançamento de A Estranha Hospedaria, quando então teria dinheiro para quitar sua dúvida. Mas Mendes recusou. Disse que estava farto de desculpas e prometeu confiscar todos os bens de Mojica.

- O único bem que eu tenho é o Biribinha! – respondeu Mojica, referindo-se a uma velha perua DKW que havia comprado em sociedade com o técnico Luizinho de Oliveira. – Se quiser, pode confiscar!

Assim que desligou o telefone, Mojica empalideceu. Nilce perguntou o que havia acontecido. Ele respondeu que não estava se sentindo bem e que precisava descansar. Naquela noite nem bebeu, o que era um péssimo sinal. Acordou na manhã seguinte com uma forte dor no peito. Seu assistente Satã levou-o para a Clínica de Doenças Internas, no Ipiranga, onde os médicos fizeram um eletrocardiograma e descobriram quer ele havia sofrido um enfarte. Teria de ficar internado.

Na verdade, era só uma questão de tempo até que Mojica viesse a sofrer algum problema sério de saúde: ele fumava quatro maços de cigarro por dia, bebia como um peixe e alimentava-se basicamente de torresmo frio e linguiça calabresa boiando no óleo. Na sua cabeça, no entanto, logo despontou um único culpado para seu infortúnio: a “máfia do cinema”. Mojica teve a ideia de usar o enfarte para angarias simpatia e denunciar a tal “máfia” que, na verdade, era composta apenas por seus credores. Ele convocou a imprensa para fotografá-lo deitado na cama da clínica, cercado de médicos, e deu várias entrevistas nas quais dizia ter sofrido uma parada cardíaca que o deixara clinicamente morto por quatro minutos (“Agora que eu já vi a morte de perto, poderei fazer filmes de terror muito melhores!”). Também revelou, sem especificar nomes, que a “máfia do cinema” estaria tentando matá-lo.

- Na primeira noite que passei aqui na clínica, uma mulher veio ao meu quarto de madrugada e desligou meu tubo de oxigênio. Se não fosse por um discípulo meu que estava de guarda, eu estaria morto!

Mojica queria aproveitar ao máximo a situação. Durante sua internação, ele começou a rodar um documentário sobre sua própria vida, chamado O Diabólico Reino de Zé do Caixão. A ideia de fazer o filme já existia há anos, mas o momento agora parecia ser ideal, já que seus alunos e a imprensa estavam sensibilizados pelos episódios do enfarte e não hesitaram em ajudá-lo. Nilce e o faz-tudo Luizinho de Oliveira sugeriram a Mojica reencenar o episódio de sua internação, para incluir no documentário. Poucos dias depois, Mojica, usando o equipamento alugado por Alfredo Cohen para Inferno Carnal, dirigia a cena de sua chegada à clínica. Ele apareceu deitado na cama, sem camisa e desfalecido, enquanto os médicos tentaram reanimá-lo com pancadas no coração. Sua mãe, Carmen, observa angustiada, ao lado de Nilce e Satã.

Uma semana depois, Nilce pediu outro favor a Quintavalle: queria fazer uma entrevista dentro da clínica. O médico ficou temeroso de que o movimento pudesse perturbar os outros pacientes, mas Nilce garantiu que seriam poucos repórteres. No dia marcado, vieram mais de vinte jornalistas, além de fotógrafos e cinegrafistas. A clínica parecia o Maracanã em dia de decisão.

Para aproveitar a presença dos jornalistas e fazer publicidade do novo filme, Mojica mandou decorar o quarto com fotos de Inferno Carnal. Ele chamou seus credores de “abutres que se alimentam da carcaça do cinema nacional” e pediu ajuda ao povo para sair da penúria em que se encontrava. A súplica tocou fundo no coração de seus alunos, que imediatamente iniciaram a campanha “Ouro para o Mestre”, doando alianças, relógios e correntinhas de ouro para pagar a conta da clínica.

Mojica passou quase vinte dias internado. Já havia melhorado bastante e poderia receber alta a qualquer momento. Mas Nilce, percebendo que a sexta-feira seguinte cairia no dia 13 de agosto, teve uma brilhante ideia: implorou ao dr. Quintavalle para deixar Mojica internado por mais alguns dias. Depois ligou para os jornais e anunciou que Zé do Caixão receberia alta na sexta-feira, 13 de agosto, exatamente às 13h13.

No dia marcado, seus alunos fizeram uma grande festa na porta da clínica. Todos os jornais e emissoras de TV cobriram o evento. Mojica saiu amparado por dois assistentes, com ar de abatido. Abraçou seus discípulos, choravam e gritavam “Longa vida ao mestre!” e “Os abutres do cinema nunca irão nos derrotar!”. Com lágrimas nos olhos, ele agradeceu o apoio de seus alunos: “Sei que muitos de vocês chegaram até a empenhar seus dentes de ouro na Caixa Econômica. Eu nunca vou esquecer isso!”.

Mojica deu entrevistas aos jornais, identificado os supostos membros da tal “máfia do cinema”: primeiro acusou o produtor Antônio Polo Galante (Trilogia de Terror) de ter dado um calote em seus alunos, que teriam atuado como figurantes num filme, sem receber nenhum tostão. Depois, disse ter sido ludibriado por Nelson Teixeira Mendes numa transação de aluguel de equipamentos. Reservou farpas também para outro produtor, Renato Grecchi, a quem acusou de ter embolsado dinheiro a mais na venda de filmes seus como O Estranho Mundo de Zé do Caixão. Mojica não poupou ninguém: disse estar decepcionado com a falta de profissionalismo das atrizes Marizeth Baumgarten (A Estranha Hospedaria dos Prazeres) e Helena Ramos (Inferno Carnal), que teria se comportado de maneira arrogante no set de filmagens, chegando sempre atrasadas e ainda exigindo aumento de salário. E finalizou: “Outras estrelinhas sem responsabilidade e senso profissional que me sinto na obrigação de denunciar são Arlete Moreira, Sônia Suega, Aldine Müller, Sônia Garcia, Denise Ongarelli e Dirce Moraes”. Curiosamente, ele trabalharia com Arlete Moreira um ano depois, no filme Estupro.

Nelson Teixeira Mendes ficou furioso ao ler as reportagens e pediu direito de resposta. Disse que Mojica não passava de um alcoólatra e charlatão, que enganava seus alunos com falsas promessas de sucesso no cinema. Acusou-o de desonesto e de ter sumido por meses depois de receber dinheiro para dirigir o faroeste Papa Defunto, o Pistoleiro (Mendes acabou contratando o diretor Mimo Valdi para terminar o filme).

No fim das contas, depois de todos os artigos de jornal e de tantas denúncias sobre mafiosos que só existiam na sua imaginação, Mojica continuava sem dinheiro para saldar a dívida com Mendes. Alfredo Cohen veio em seu socorro e saldou a dívida com Mende em troca de um percentual maior na bilheteria de Inferno Carnal. Com um cheque, Cohen aniquilou toda a “máfia do cinema”.

 

Em meio a essa agitação toda, Nilce vivia um grande drama pessoal: estava grávida de Mojica. Ele não queria que Rosita e Maria descobrissem, e tampouco contava com a ajuda de Dona Carmen, que ainda a culpava pelo fracasso do casamento do filho. Resolveu esconder a gravidez de Carmen, apesar de morarem juntas no pequeno sobrado da Moóca. Nilce passou a sair às cinco da manhã e ficava o dia inteiro no estúdio. Só voltava às onze da noite, quando Mojica já estava dormindo.

No dia 5 de janeiro de 1977, exatos doze anos depois de seu primeiro encontro com Mojica, Nilce deu luz à uma menina, Nilcemar, logo apelidada de Nilcinha. Assim que saiu da maternidade, ela levou a filha para a casa dos pais, no Brás, Maria soube do nascimento da criança e, desconfiada de que o filho era de Mojica, foi correndo tirar satisfação. Chegou na porta da casa e tocou a campainha. Ninguém atendeu. Furiosa, começou a esmurrar e chutar a porta como uma louca. Uma vizinha saiu, assustada: “Não faça isso, dona, a moça aí acabou de ter um neném e precisa de descanso!”. Maria respondeu: “Pois eu vim mesmo para estrangular mãe e filha!”.

Depois desse episódio, Nilce mudou-se para um sobrado no Alto da Moóca, alugado por Mojica. Pela primeira vez na vida, tinha casa só sua. Assim que se recuperou do parto, voltou a frequentar o estúdio. Quando saía para trabalhar, deixava a filha com a irmã, Rosa Feo. Às vezes, quem cuidava da menina era Fátima Senna Porto, uma jovem de 19 anos, recém-chegada à escolinha. Nilce gostava de Fátima, menina esforçada e muito prestativa. Mojica também curtia a nova discípula, mas por outras razões: era uma morenaça de encher os olhos. Logo estaria de caso com Fátima.

Com mais uma namorada, a situação de Mojica passou a ser a seguinte: continuava morando com Maria e os três filhos no Brás, mas quase não parava em casa. Passava os dias com Nilce no estúdio e as noites com Fátima em algum boteco. De vez em quando, ainda arrumava um tempinho para visitar Rosita. Tudo isso, enquanto acertava o lançamento de vários filmes e tentava levantar dinheiro para novos projetos. Em fevereiro de 1977, ele tinha nada menos de quatro fitas simultaneamente em cartaz em São Paulo: A Estranha Hospedaria dos Prazeres, Como Consolar Viúvas, Mulheres do Sexo Violento (co-dirigido por Francisco Cavalcanti) e Exorcismo Negro, que estava sendo repisado dois anos depois de seu lançamento. Em maio, estreou também Inferno Carnal. Logo depois, ele foi contratado pela atriz Rosângela Maldonado para ajudá-la na direção da comédia erótica A Mulher que Põe a Pomba no Ar.

Mojica estava ansioso para terminar logo o filme com Rosângela e poder se dedicar a seu próximo projeto, Delírios de um Anormal, que marcaria a volta de Zé do Caixão às telas. Pela primeira vez desde Exorcismo Negro, tinha esperanças de fazer um bom filme. Seria seu retorno ao terror, depois de experiências malsucedidas com pornochanchadas, comédias e filmes de suspense. Rubens Lucchetti havia escrito um ótimo roteiro, sobre um psiquiatra (Jorge Peres) que é atormentado por alucinações com Zé do Caixão.

Assim como a maioria dos filmes que havia rodado durante os anos 70, Delírios de um Anormal foi financiado na base da coleta entre alunos. Mojica sabia que não teria muito dinheiro para fazer o filme, por isso decidiu utilizar diversas cenas que havia criado para outras fitas, fazendo uma colagem com as melhores imagens de seus grandes clássicos. Muitas dessas sequencias ainda eram inéditas para o público, pois haviam sido cortadas pelos censores dez anos antes. Mojica acreditava que a Censura, bem menos severa em 1979 do que no fim dos anos 60, liberasse o novo filme sem reclamar.

Mais de 90% das cenas de alucinação de Delírios de um Anormal foram tiradas de Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, O Estranho Mundo de Zé do Caixão e Exorcismo Negro. A maior ousadia de Mojica, no entanto, foi incluir diversas sequencias de Ritual dos Sádicos, filme que continuava interditado. Nenhum dos censores percebeu o truque.

Em Delírios, Lucchetti novamente colocou Mojica interpretando dois papéis: o dele próprio e o de Zé do Caixão. O cineasta José Mojica Marins é chamado pelos amigos do psiquiatra delirante para ajudá-lo a curar sua obsessão pelo personagem. É curioso – e ao mesmo tempo triste – notar a preocupação de Mojica em mostrar-se sempre como um diretor de sucesso e fortuna: ele aparece sentado na confortável sala de sua mansão (na verdade a casa de um bicheiro, seu amigo), fumando um cachimbo e tomando um bom scotch. Depois, passeia pelo jardim e observa os empregados divertindo-se na piscina. Um amigo comenta: “Poxa, Mojica, você dá tantas regalias a seus funcionários!”.

Enquanto no filme os funcionários de Mojica tomavam banho de piscina, na vida real os infelizes comiam o pão que o diabo amassou: o diretor de produção Giulio Aurichio, o assistente de câmera Luizinho Oliveira e o ator principal do filme, Jorge Peres, foram encarregados de conseguir vários morcegos para uma cena. Alguém sugeriu que eles tentassem embaixo de uma ponte na Via Anchieta, no caminho de Santos. Munidos de lanternas, gaiolas e uma rede de pesca, os três rumaram para o local.

Realmente não faltava morcego na Anchieta. Eram milhares. Luizinho, Giulio e Jorge pegaram a rede e começaram a caçá-los como se estivessem pescando no ar: quando os bichos voavam, dando rasantes em suas cabeças, eles arremessavam a rede e os capturavam em pleno voo. Mas os morcegos morriam esmagados assim que a rede batia no chão. Luizinho teve a ideia de esticar a malha em frente a um buraco, por onde saíam os pequenos vampiros. A tática deu resultado e logo eles pegaram mais de cinquenta. Puseram os bichos nas gaiolas, cobriram com um pano preto e voltaram ao estúdio.

Durante a viagem de volta, morreram trinta morcegos. No estúdio, os outros também começaram a bater as botas, um atrás do outro. Quando chegou a hora de filmar, só haviam sobrado cinco. Assim que o fotógrafo Giorgio Attili ligou os holofotes para iluminar a cena, ouviu-se o crespilhar das asas dos morcegos, torrando sob as luzes fortes. Morreram queimados.

- Incompetentes! – gritou Mojica, possesso. – Não conseguem nem achar um morcego que preste!

A turma teve de improvisar, amarrando fios de náilon nas patas dos morcegos. O resultado não foi dos melhores: em vez de voar, os vampirinhos aparecem saltitando pelo cenário, como se fossem ioiôs.

Outra cena que demandou muito esforço foi a do “túnel de nádegas”: Mojica havia pedido ao carpinteiro e eletricista Rafael Bastos que construísse um túnel de madeira com vários buracos no teto. A ideia era botar moças sentadas em cima da estrutura, com as nádegas nos buracos. De dentro do túnel, veria-se apenas um monte de nádegas, que seriam maquiadas e pintadas com olhos e bocas. Como as moças não podiam se mexer, sob risco de arruinar a maquiagem, as coitadas tinham de ficar por horas enlatadas no túnel, num desconforto terrível.

 

A decisão de reciclar cenas antigas para compor as alucinações em Delírios de um Anormal foi vista como uma grande trambicagem por vários produtores e fãs. De um ponto de vista puramente estético, no entanto, o filme é uma maravilha: a montagem de Nilce é preciosa e a seleção de cenas não poderia ser melhor.

Para atrair a atenção da imprensa, Mojica começou a espalhar que Delírios era uma colagem de todas as cenas cortadas pela Censura, o que não era verdade (muitas sequencias já haviam sido exibidas nos cinemas). Inventou também uma tremenda cascata, dizendo que havia usado no filme um novo processo cinematográfico, recém-descoberto nos Estados Unidos, chamado “para-audiovisual”. Segundo ele, o processo causava delírios e alucinações nos próprios espectadores. Para provar, mandou seus alunos simular chiliques e desmaios dentro dos cinemas. Ninguém acreditou. Quando o filme estreou, Mojica bolou outra atração, o “estande humano”: diversos alunos foram para a porta dos cinemas, fantasiados de monstros, e reencenaram sequencias do filme. O estande foi um sucesso e rendeu diversas reportagens.

Todo esse esforço promocional, no entanto, não livrou o filme de críticas negativas. No jornal Última Hora, Jean-Claude Bernardet reclamou – com razão – que o uso de imagens antigas e o excesso de cenas de alucinação prejudicavam o andamento da fita:

 

Delírios de um Anormal apresenta-se como uma antologia ou museu de filmes anteriores de Mojica, a totalidade, ou quase, das alucinações do “anormal” são fragmentos de outros filmes, o que dá um tom particular a este novo filme. Primeiro porque Zé do Caixão fica mudando constantemente de caro: as sobrancelhas, a barba, as unhas de Mojica, a cara mais ou menos gorda se modificam a cada sequência, uma variação sobre si próprio. E também porque as sequencias de inferno, tortura, sadismo, isoladas dos enredos para os quais foram concebidas, tornam-se estáticas. O filme não anda. Os pesadelos se multiplicam, mas em cada um deles repetem-se incansavelmente. O tempo parou. O que sobra são efeitos visuais, cenografia, bichinhos etc. Algumas dessas imagens são fortes, outras ridículas, como as desse inferno povoado de chacretes infernais de véus roxos. Aqui, o inferno está entre o fantástico show da vida e Chacrinha.

 

O crítico de O Globo, Ely Azeredo, viu no uso de cenas antigas um protesto de Mojica contra Censura:

 

Delírios de Um Anormal é menos (ou mais) que um filme. É um desabafo, um protesto, um festival. A rigor, não deveria receber cotação. Dez anos depois de proibição (que persiste) de Ritual dos Sádicos, o criador de Zé do Caixão, José Mojica Marins – que sofreu cortes desde o início de sua filmografia de terror, iniciada em meados da década de 60 – resolveu promover à sua maneira uma celebração do obscurantismo oficial. Aproveitando certo relaxamento dos rigores censórios, realizou Delírios apoiado no fato de que nada se perde, tudo se transforma (...) Para os críticos e cineastas aficionados de Zé do Caixão e de seu criador, Delírios deve valer por uma orgia de prazeres cinematográficos (...) Quem não conhece outros filmes de Mojica e entrar na sala que exibe Delírios deve ficar perplexo e/ou desertar sem demora. O que a Censura, em outras oportunidades, condenou como excesso, torna-se efetivamente excessivo nesse festival de cortes resgatados. As alucinações (além de repetitivas, redundantes) têm em comum uma poluição sonora e visual difícil de suportar (...) Mojica presenteia os aficionados com visões infernais temperadas com insólitas aparições de nus e de muros decorados com muitos traseiros e seios. Um gênio incompreendido? Há quem responda afirmativamente.

 

Delírios de Um Anormal levaria mais de um ano para ser lançado. Nesse meio-tempo, Mojica prosseguiu as filmagens do documentário O Diabólico Reino de Zé do Caixão, e co-dirigiu outro filme de Rosângela Maldonado, A Deusa de Mármore – Escrava do Diabo, uma história mística sobre uma mulher de 2 mil anos de idade – interpretada pela própria Rosângela – que se conserva bonita e jovem sacrificando homens para Satã.

Foi durante esta filmagem que ele fez amizade com o produtor Wilson Garcia, dono de uma grande loja de autopeças no centro de São Paulo. Garcia tinha bastante dinheiro e gostava de cinema. Quando Mojica lhe falou da ideia que tinha para um novo filme, Estupro, ele ficou imediatamente interessado. O projeto tinha tudo para ser um sucesso: alguns meses antes, Mojica havia sido apresentado a Elza Leonetti do Amaral, uma quarentona bonita e elegante, conhecida em todo o país como a “milionária assassina”. Fazia dois anos que ela havia matado a tiros seu amante, o ricaço Roberto Lee. Elza alegou legítima defesa e foi condenada a dois anos de prisão domiciliar. Depois surgiram indícios que ela havia forjado o suicídio de seu primeiro marido, o milionário Anésio Augusto do Amaral Filho, de quem havia herdado não só o sobrenome, mas também todo o dinheiro. Mojica sugeriu a Elza fazer um filme inspirado em sua vida, sobre uma mulher que, traída e maltratada pelo marido, resolve se vingar. Ela adorou a ideia se dispôs a bancar parte da produção. Mojica foi além e prometeu inclusive usá-la como atriz. Já podia até ver as manchetes: “Filme reúne Milionária Assassina e Zé do Caixão”.

Wilson Garcia farejou ouro na jogada e topou entrar de sócio. O orçamento ficou em 1 milhão de cruzeiros. Combinaram que Garcia pagaria metade e Mojica e Elza dividiam a outra parte. Só que Mojica não tinha onde cair morto. Seu plano era pegar a grande de Garcia, começar a rodar Estupro e depois usar o dinheiro da bilheteria de O Diabólico Reino de Zé do Caixão e Inferno Carnal para finalizá-lo. Isto é, se conseguisse lançar os dois filmes. Outra hipótese seria convencer atores e técnicos a trabalhar de graça. Ele teve uma ideia: reuniu seus amigos e sugeriu rodar um filme-relâmpago, bancado por cotar, na qual ele atuaria e dirigiria sem ganhar nada. A bilheteria seria toda dos alunos. Em troca, o pessoal se comprometeria a trabalhar de graça em Estupro. A turma concordou e poucas semanas depois já estava rodando Mundo, Mercado do Lixo – Manchete de Jornal.

Mojica anunciou o filme como sua homenagem aos jornalistas. Ele interpreta um repórter que recebe de seu editor a missão de encontrar uma manchete em menos de 24 horas, sob risco de perder seu emprego. O intrépido homem de imprensa pega seu bloquinho e sai pela cidade em busca de uma notícia, mas dá um azar tremendo e sempre perde os acontecimentos por questão de minutos.  É só ele ir embora de um lugar que logo acontece alguma tragédia ou crime. Enquanto ele está na rua procurando uma manchete, o editor vai até sua casa e estupra sua mulher (bela homenagem aos jornalistas!). No final, o personagem de Mojica mata o editor e acaba virando a própria manchete do dia.

As filmagens levaram apenas três semanas. Mojica filmou numa correria louca, improvisando a maioria das cenas. Seu filho Crounel, então com 15 anos, foi assistente de direção, continuísta e escreveu vários diálogos, além de fazer uma ponta. Para Crounel, foi um curso intensivo de cinema “mojicano”, uma chance de sentir na pele a dureza de filmar sob condições tão precárias. No roteiro, havia uma cena passada numa favela. A equipe de Mojica chegou ao local e não havia favela alguma.

- Ué pai, cadê a favela? – perguntou Crounel.

- Que favela? Não tem favela, tem um bar! – disse Mojica, apontando para um botequim.

- Mas pai, no roteiro não tem bar, tem favela!

- Não tem, porque você não escreveu ainda! Começa logo, que a gente vai filmar já!

Crounel ficava louco com o esculacho do pai. Ele era um rapaz caprichoso e metódico, que se orgulhava de suas boas notas na escola e de seu conhecimento de teatro e cinema. Passara meses estudando o método de Stanislavsky, e agora tinha de aprender, em questão de minutos, o método “caixotesco” de cinema de improviso. Como todos os outros discípulos de Mojica, Crounel aprendeu rápido: Mundo, Mercado do Lixo foi rodado, montado e dublado em menos de dois meses. Só estrearia, no entanto, mais de um ano depois, com o título mudado para Mundo, Mercado do Sexo, para tentar faturar em cima da onda de pornochanchada.

 

A equipe nem teve tempo de descansar: mal terminaram Mundo, já iniciaram as filmagens de Estupro, outra história passada nos círculos do “soçaite” paulistano. Mojica bolou um enredo envolvendo uma moça pobre que se vinga do milionário que violentara sua irmã. Ele próprio interpreta o vilão, comendador Vitório Palestrina, um ricaço italiano, cafajeste ao extremo, que se satisfaz humilhando suas amantes e gabando-se de suas conquistas sexuais.

Palestrina violenta uma jovem, Sílvia (Nádia Destro) e, numa cena grotesca, arrancha um dos mamilos da moça a dentadas. Orgulhoso de sua façanha, o tarado exibe o mamilo para os amigos, como se fosse um troféu de caça. Em seguida, é apresentado a uma linda moça, Verônica (Arlete Moreira), mas ela não parece atraída por seu charme irresistível. Louco de paixão e desejo, Palestrina faz de tudo para conquistar a rapariga, sem saber que na verdade ela é irmã da menina que ele seduzira. Elza Leonetti interpreta uma advogada que acusa o comendador de ter violentado Sílvia.

Os grã-finos de Estupro andam de terno quadriculado e tomam uísque em copo de requeijão; o comendador, para impressionar Verônica, leva-a para um banho de mar em Santos, e em seguida convida seus amigos para um jantar chique – numa churrascaria da Praça da República! Os diálogos são pretensamente rebuscados e soam ridículos. Durante uma aula na USP (a personagem de Verônica é estudante de medicina) um dos alunos pergunta: “Professor, o soro glicosado 5% pode ser injetado na veia?”. O professor rebate com outra pérola: “O coração é dividido em duas aurículas e dois ‘ventríloquos’”. A trilha sonora do filme beira o surreal: Mojica usou – sem pagar um centavo – músicas de Pink Floyd e Paul McCartney. Cada vez que seu personagem aparece, ouve-se o tema de A Ponte do Rio Kwai.

Ninguém gostou do filme. os críticos malharam e a Censura exigiu a mudança do título para algo mais “ameno”: Perversão. Na revista Isto É, Rubens Ewald Filho escreveu:

 

Difícil é aceitar que Mojica seja um milionário, principalmente italiano, como é seu personagem, o comendador Vitório, com sua casa povoada de grã-finos da Boca do Lixo, vestindo terninhos da Ducal e comendo salgadinhos em bandejas de papelão. A ideia que Mojica e seus colegas cineastas da Boca fazem dos ricos merece um estudo sociológico. Segundo eles, os ricos são todos imbecis sem profissão, que dizem frases em português escorreito, formulando ideias dignas de uma novela de rádio, e com uma única ideia na cabeça: de faturar as vadias que se passam por mulheres da sociedade (...) O triste é que José Mojica Marins, nos seus primeiros filmes (Á Meia-Noite Levarei Sua Alma e Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver) tinha um certo charme do malfeito. Era como um pintor primitivo que levaram para a escola a fim de aprender a pintar. Disseram-lhe que era gênio e ele acreditou. Hoje já sabe fazer fotografias de cartão-postal e dar declarações intelectualizadas. Mas é apenas um borra-botas igual a tantos outros.

 

Quando finalizou Perversão, Mojica estava exausto. Entre 1976 e 1978, ele dirigira ou co-dirigira nada menos de oito filmes: Como Consolar Viúvas, Inferno Carnal, A Mulher que Põe a Pomba no Ar, Deusa de Mármore, Delírios de Um Anormal, Mundo, Mercado do Sexo, Estupro (Perversão) e o documentário O Diabólico Reino de Zé do Caixão. Nenhum desses se comparava, em termos de inventividade e força, aos filmes que fizera nos anos 60. Apesar de sua produção prolífica, Mojica continuava numa dureza de dar pena. Ele não recebia percentual sobre a bilheteria de alguns filmes, e o desempenho das fitas nas quais tinha parte – Inferno Carnal, Delírios de um Anormal e Perversão – não ficou nem peto do que esperava.

Quanto a O Diabólico Reino de Zé do Caixão, Mojica deu um azar tremendo: na véspera de começar a dublagem, seu continuísta Ronaldo Rocha dos Santos desapareceu, levando os blocos de anotação com todos os diálogos. Não era costumeiro fazer documentários com som dublado, mas Mojica nunca havia aprendido a usar som direto e ainda utilizava o antiquado método de copiar à mão as falas, para depois reproduzi-las em estúdio. Com o sumiço do continuísta, ele agora tinha horas de cenas filmadas e não sabia o que os personagens estavam falando. A solução foi inventar uma esquisita narração em off, na qual ele simplesmente comentava as cenas que eram mostradas.

 

Nessa época, Mojica havia transferido sua escolinha para um prédio na rua Barão de Jaguara, na Moóca. Estava tão duro que costumava ir a pé até o centro para economizar o dinheiro do ônibus. Um dia, Crounel teve uma ideia louca: queria fazer uma discoteca no estúdio. O Brasil vivia a febre de Os Embalos de Sábado à Noite e da novela Dancin´Days, e a juventude da Moóca só queria saber de calças boca-de-sino e camisas de náilon. Mojica, que não tinha nada a perder mesmo, permitiu.

A primeira festa foi um desastre: uma caixa de som caiu na cabeça de um sujeito que estava dançando e o pessoal, assustado, se mandou. Crounel não desistiu. Na semana seguinte, alugou um som potente, decorou o estúdio com desenhos de caveiras e batizou o lugar de Discoteca do Caixão. O público gostou da novidade. Em menos de um mês, a discoteca transformou-se no maior programa da moçada da Moóca. Às sextas e sábados, o point da galera era o “Caixão”. A polícia também aprovou:

- Seu Mojica, muito legal essa discoteca que o senhor montou. Antes, a gente tinha que policiar a Moóca inteira, agora é só aqui, porque os maus elementos estão todos reunidos!

A discoteca sustentou o estúdio por seis meses, até que os vizinhos, fartos do movimento e barulho, reclamaram na delegacia e exigiram seu fechamento.

Em julho, Mojica foi convidado para exibir Delírios de um Anormal e o faroeste A Sina do Aventureiro numa mostra de filmes de horror que seria realizada paralelamente ao Festival de Brasília. Era a primeira vez que participava de um festival no Brasil. Apesar de a mostra ter sido batizada de Horror Nacional, o único diretor efetivamente dedicado ao gênero era ele. Os outros filmes eram de cineastas ligados ao cinema “udigrudi”, como Rogério Sganzerla (O Abismu, Sem Essa Aranha e Anjo), Júlio Bressane (Agonia e Rei do Baralho) e Elizeu Visconti (Os Monstros de Babaloo).

Essa mostra paralela, dominada pelo chamado cinema alternativo, ou marginal, fez um contraponto interessante à mostra oficial, marcada por fitas de diretores do establishment embrafílmico como Cacá Diegues (Chuvas de Verão), Ruy Guerra (A Queda), Walter Lima Júnior (A Lira do Delírio) e Arnaldo Jabor (Tudo Bem). Mojica foi o grande destaque do festival: não só exibiu dois filmes, como ainda atuava em O Abismo, de Sganzerla, e era tema de um curta-metragem do cineasta Ivan Cardoso, O Universo de Mojica Marins. Deu dezenas de entrevista e passou tardes bebendo uísque na piscina do Hotel Nacional, em companhia do diretor de TV Walter Clark.

Quando voltou a São Paulo, Mojica recebeu um, convite para participar do Festival de Cinema Fantástico de Sitges, na Espanha, que se realizaria em outubro. Ele já havia sido convidado em anos anteriores, mas sua desorganização e problemas com a liberação dos filmes na Censura haviam atrapalhado seus planos. Desta vez, estava decidido a ir. Para divulgar sua viagem, organizou uma festa em comemoração aos quinze anos do caixão que o acompanhava desde as filmagens de Á Meia-Noite Levarei Sua Alma. Vários amigos e admiradores compareceram, como Rubens Lucchetti, o físico nuclear Mário Schemberg e Almeida Salles, presidente da Cinemateca Brasileira.

Mojica rebocou para a Espanha uma verdadeira comitiva: além dele e do assistente Satã, viajaram o produtor de Estupro, Wilson Garcia, sua mulher, Aparecida e o jornalista e cineasta Jairo Ferreira, que cobriu o evento para a Folha de S. Paulo. A viagem não foi tão excitante quanto a visita a Paris, quatro anos antes. Em vez de exibir seus velhos clássicos, Mojica teimou de levar três produções recentes – Estupro, Delírios de um Anormal e Mundo, Mercado do Sexo – que decepcionaram o público. Os jurados, para não o deixar voltar de mãos vazias, resolveram lhe conceder uma menção honrosa pelo conjunto de sua obra e por “grandes serviços prestados ao cinema de horror”.

 

Publicado originalmente em BARCINSKI, André & FINOTTI, Ivan. Maldito: a vida e o cinema de José Mojica Marins, o Zé do Caixão. São Paulo: Editora 34, 1998.

Um comentário:

José Bezerra de Oliveira disse...

Que vida incrível! Obrigado, Matheus!