Capítulo 8: Adeus aos mestres
Capa do Notícias Populares no mesmo dia em que o homem andou na lua |
Por Celso de Campos
Júnior, Denis Moreira, Giancarlo Lepiani e Mark Rene Lima
Embalado pelo ritmo do
iê-iê-iê, o jornal era sucesso absoluto. Apesar da desconfiança inicial, Mellé
não teve grandes problemas no relacionamento com Frias e Caldeira, que jamais
interferiram nos projetos do romeno. A fórmula crime-esporte-sexo, aditivada
com fofocas sobre os ídolos do povo, fazia com que em 1968 o jornal vendesse
145 mil exemplares em banca, maior venda avulsa no Estado de São Paulo. O
sucesso atraiu até a atenção de Sílvio Santos, que, em seu programa de 21 de
junho de 1968, na Rádio Nacional, derreteu-se em elogios ao jornal. “O melhor
jornal de São Paulo é Notícias Populares, que tem a preciosa colaboração
de Jean Mellé, um homem que vive exclusivamente para esse jornal. Está de
parabéns Jean Mellé, parabéns a esse grande jornalista brasileiro, que parece
ser brasileiro de origem estrangeira. Não o conheço pessoalmente, mas acompanho
seu trabalho diariamente”, revelou o apresentador. Em time que está ganhando não
se mexe: toda a equipe esmerou-se em manter o NP no topo, firmando-o como um
importante canal de comunicação com as camadas populares.
Mesmo sem querer, o
jornal chegou até a brilhar na televisão. Tudo porque os roteiristas de um
programa de teatro da TV Tupi simplesmente copiavam os casos inventados pelo
secretário de redação Nicolau Chaui e publicados em sua coluna no NP,
“Histórias da Banda de Lá”. Fruto da fértil imaginação do jornalista, os contos
retravam desde histórias de detetive e de assaltos cinematográficos até casos
misteriosos e inverossímeis. Sem que Chaui soubesse, casos claramente
transportados do jornal foram aparecendo na telinha. Leitores e amigos, então,
começaram a pará-lo na rua e dizer: “Puxa, Nicolau, vi sua história na
televisão ontem, parabéns”. Sem saber o que estava acontecendo, o secretário de
redação, depois de uma enxurrada de cumprimentos, resolveu tirar a prova.
Passou a assistir aos programas da Tupi, e as semelhanças ficaram evidentes.
Entretanto, mesmo pressionado por sua mulher, Laura de Souza Chaui, Nicolau
jamais foi a fundo para colocar os pingos nos is – para sorte dos roteiristas,
que continuaram coletando farto material para o programa da Tupi. Os leitores
do Notícias Populares, porém, não tinham dúvidas sobre a paternidade dos
casos.
Dona Laura, aliás, foi peça importante para a solidificação de tão almejada
aproximação com os leitores desejada por Mellé. Durante anos, foi a titular da
coluna “Correio do Coração”, uma espécie de seção de encontros do periódico. Na
verdade, a ideia do romeno fora inspirada no famoso consultório sentimental
criado por João Apolinário para o Última Hora. Assinada por “Tia
Helena”, a seção fazia um sucesso danado no concorrido caderno de variedades do
UH. No Notícias Populares, o pseudônimo dera “Fernanda”, mas a aceitação
era a mesma. Laura recebia uma montanha de cartas e foi responsável por
realizar quase uma dezena de casamentos entre participantes. Invariavelmente,
toda a redação era convidada – e comparecia em peso para filar as guloseimas
típicas daquelas festanças: pão com molho de carne moída regado a tubaína.
Estreitar mais os laços com o leitor, impossível.
Essa ligação imediata com
o público acontecia ao mesmo tempo em que outras publicações penavam com a
censura. Os militares tinham pouco a se queixar do Notícias Populares:
depois do golpe, as reportagens de política podiam ser contadas nos dedos,
perdendo disparado para a cobertura do cotidiano em São Paulo. Enquanto o Estadão
publicava Camões e a Veja estampava figuras do diabo no lugar dos
trechos censurados, o NP mantinha sem problemas sua linha editorial. Apesar das
laudas escritas pelos jornalistas serem despejadas numa caixinha para leitura
prévia, pouca coisa era proibida – afinal, mesmo para os poucos ponderados
censores, era difícil enxergar tendências subversivas em reportagens sobre a
vida dos artistas ou de futebol.
Somente na publicação de
matérias relacionadas a crimes é que o NP tomava alguns cuidados. Dos
memorandos com recomendações de militares que o Departamento de Interior,
Correspondentes e Sucursais (Dics, espécie de percursos da Agência Folha) era
obrigado a transmitir para os jornais da casa, aqueles que regulavam a
divulgação de assaltos a banco ou as atividades que as organizações
clandestinas tinham como alvo certo o NP. Assim, quando a equipe do Notícias
Populares recebia cartas de Miranda Jordão ou Mario Pati, chefes do Dics,
todos já sabia que Mellé teria que conter seu ímpeto – como se pode perceber
pela transcrição de um desses memorandos, enviado por Pati às redações em 8 de
janeiro de 1969.
DICS INFORMA
ATENÇÃO EDITORES
A presidência solicita a
atenção dos editores, com referência à censura, consubstanciada nas informações
anexas, prestadas pelo Gal. Silvio Correia, em conversa informal com o nosso
repórter.
O sr. Frias lembra que
somente podem ser publicados os fatos e nunca comentários sobre bombas, roube
de armas e assaltos a bancos. Nada de sensacionalismo e alarde.
Menos de dois meses
depois, em 10 de março, outra mensagem, agora assinada por Miranda Jordão,
limitava o uso da denominação de um dos grupos que não saía das páginas do NP.
A Censura avisava aos
editores que a expressão “Esquadrão da Morte” não pode figurar nas manchetes
dos jornais, na primeira ou última páginas. No texto, pode-se usar aquela
expressão. Enfim, resumindo: nos títulos, não. No texto, sim.
O Notícias Populares,
entretanto, tirou de letra essa proibição. No lugar de “Esquadrão da Morte”,
cunhou a expressão “Bando Maldito”. Válida, oportuna, sonora e funcional, como
escreveria Ramão Gomes Portão.
Mais complicada era a
perseguição que ocorria pelo grau de militância dos jornalistas. Um exemplo:
Rui Falcão, repórter de esporte que décadas depois seria eleito deputado
estadual e federal pelo Partido dos Trabalhadores (PT), foi procurado pelo Dops
no Barão de Limeira. Enquanto os policiais subiam até a redação, Falcão descia
pela Barão de Campinas. O caso ilustra que a insuportável pressão política da
época afetava as pessoas que faziam o jornal, mas não o resultado final. Como
não criticava a ditadura nem atacava o governo, o Notícias Populares
atravessou os anos de chumbo sem grandes traumas.
Por todos esses motivos,
o ambiente no NP era o melhor possível, tanto na redação como no trato com a
empresa. Quando precisava de algum favor da gráfica, o jornal enviava como
cortesia algumas garrafas de cachaça aos funcionários daquele setor, acordo
informal que persistiria por mais duas décadas. Jamais um jornalista fora
demitido durante a época de Jean Mellé, apesar do chefe ser um reconhecido
pão-duro – especialmente quando o assunto era aumento de salário. É sabido que,
em acessos de fúria, o romeno mandava os comandados embora. No entanto, poucas
horas depois, reconsiderava a decisão, reclamando do “malcriado” funcionário. E
se no dia seguinte o quase despedido fizesse uma boa matéria, o chefe não tinha
problema em elogiá-lo, soltando um dos seus inconfundíveis bordões: “Você está
um astro”.
A sólida estrutura que
mantinha o Notícias Populares começou a sofrer os primeiros abalos no
final da década. No segundo semestre de 1968, Jean Mellé foi internado no
Hospital das Clínicas de São Paulo. Diagnóstico: câncer nos ossos. O
afastamento em si não foi o grande problema – durante alguns meses, o romeno
comandou o jornal do quarto do hospital. Um telefone instalado no local por
determinação de Abreu Sodré, então governador de São Paulo e amigo pessoal do
jornalista, permitia isso. Mesmo doente, Mellé continuava com a mesma
disposição que mostrara desde que pisou pela primeira vez na arcaica redação da
rua do Gasômetro, e o jornal não dava sinais de cansaço. Ao ser questionado se
seu estado de saúde não poderia piorar caso continuasse comandando o NP, o
chefe respondeu: “Amigo, um jornal se faz com homens, máquinas, cérebro e
coração”.
Os verdadeiros problemas
começaram quando o romeno voltou à redação: um desentendimento com Ramão Gomes
Portão, melhor amigo de Mellé dentro e fora do jornal, quebrou a harmonia
vigente na equipe. O motivo da discórdia jamais foi descoberto pelos
jornalistas. Alguns acreditam que tudo aconteceu porque, ainda no período de
internação do romeno no hospital, Ramão teria contrariado uma ordem do chefe e
mudado a manchete de primeira página. Outros suspeitam de críticas e comentários
maldosos tecidos pelo editor de polícia na ausência de Mellé. Muitos juram que
tudo não passou de um mal-entendido, que acabou afastando os amigos até então
inseparáveis. Seja como for, a situação entre os antigos companheiros tornou-se
insustentável. E assim, na virada da década, Ramão Gomes Portão deixou o Notícias
Populares.
A resposta para o
mistério que resultou no afastamento de um dos principais nomes do alto escalão
do NP pode estar em um recorte de jornal, que, três décadas após o imbróglio,
ainda repousava nos armários esverdeados dos arquivos do jornal. Trata-se de um
excerto de uma das colunas “Jean Mellé Informa”, datado de 7 de fevereiro de
1970. Ao contrário do resto do material arquivado, o texto não foi
classificado: apenas recortado do jornal e deixado em uma das milhares de
pastas do acervo. Escreveu Mellé:
Há gente que esquece.
Esquece quem foi. Esquece de onde veio, de onde chegou. Esquece que lhe foi
dado uma mão de ajuda no momento exato em que precisou. Esquece quem lhe ajudou.
Esquece que teve todo apoio, confiança, sem que nada lhe foi exigido. Esquece a
gente que sempre sentiu o ombro sólido da ajuda, da segurança. E chega a
considerar, como passarinho que aprendeu a voar com a mãe, que doravante é o
dono do céu. Com a boca fala coisas boas, as que lhe fizeram bem, mas seus atos
são maldosos. É uma mistura de maldade, complexos, frustrações. E o homem de
bem recebe os golpes nemerecidos. Nemerecidos, mas esperados, porque somente no
céu existem anjos. Um Grande Amigo nos contou a história: alguém lhe comunicou
que um determinado amigo criticou-o veementemente. É isto: devemos esperar o
mal, daqueles que fizemos o bem.
A data do texto coincide
com o período da saída de Ramão do jornal. Mas, apesar da mensagem parecer
direta, em nenhum momento do texto surge o nome do ex-amigo e antigo editor de
polícia. Talvez por isso seja esclarecedor o fato do recorte, hoje amarelado,
ter sido cuidadosamente colocado dentro de uma pasta na gaveta da letra P. Mais
precisamente, naquela identificada como sendo a de “Portão, Ramão Gomes”.
Independentemente dos
problemas pessoais com o chefe, a redação sentiu a ausência de Ramão, que levou
consigo sua coluna “Flagrantes” e as inesquecíveis histórias da Boca do Lixo. A
proximidade geográfica com a zona boêmia da cidade, além da extensa cobertura
dada aos seus acontecimentos, fazia com que o NP ostentasse, orgulhoso, o
título de jornal oficial da Boca. Com a saída do editor de polícia, o periódico
perdeu os épicos relatos da disputa pelo poder do quadrilátero do crime,
protagonizados por Quinzinho – o lendário rei da Boca, amigo de fé e irmão
camarada de alguns jornalistas do NP – pelo ousado desafiado Hiroito.
Órfã de Ramão e com o
romeno abalado pelo câncer, a redação começou a temer por seu futuro –
especialmente após a repentina saída de Nicolau Chaui, que aceitou um convite
para trabalhar no rival Diário Popular. Nomes promissores como Percival
de Souza, Tão Gomes Pinto e Sérgio Pompeu já estavam fora há um bom tempo. Para
complicar ainda mais a situação, outro possível substituto de Mellé, Eugenio
Gertel, abandonou o barco por um lugar na Imprensa Oficial do Estado. A redação
estava acéfala, e sabia disso. Só restava torcer para que o pior não
acontecesse.
Infelizmente, o pior veio
em 5 de março de 1971, uma sexta-feira. Mellé já estava mal desde o fim de
fevereiro; levado ao Hospital São Lucas, finalmente sucumbiu ao câncer às 10h30
da manhã. Para honrar a tradição judaica, o enterro, no Cemitério Israelita do
Butantã, não foi realizado no sábado, e sim no domingo, 7 de março. Batedores da
Polícia Militar desviaram o cortejo para que a equipe do Notícias Populares
pudesse prestar a última homenagem ao seu idealizador. O carro que levava o
corpo do romeno estacionou diante da sede do jornal, na Barão de Limeira, e os
trabalhadores, amontados no térreo, pararam por um minuto em respeito ao chefe.
No cemitério, políticos, esportistas, artistas, cônsules e até umbandistas
dividiam espaço com os jornalistas. Na edição seguinte, todos os colunistas do
NP fizeram questão de deixar registrada sua admiração pelo fundados do jornal
em seus textos. A Federação Paulista de Futebol determinou que fosse respeitado
um minuto de silêncio em todos os jogos disputados no Estado.
Mais tarde, Jean Mellé
seria eternizado como nome de uma rua em Santo Amaro, na zona sul da capital
paulista. Como a maioria dos paulistanos, os moradores da rua não faziam a
menor ideia de quem era o dono daquele nome, estampado numa enferrujada placa
azul do bairro. Muitos acreditavam ser de um ator da época áurea do cinema
francês.
Publicado originalmente em JÚNIOR, Celso de Campos, MOREIRA, Denis, LEPIANI, Giancarlo, LIMA, Maik Rene. Nada mais que a verdade: a extraordinária história do jornal Notícias Populares. São Paulo: Carrenho Editorial, 2002.
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