segunda-feira, 8 de maio de 2023

Os primeiros tempos do NP VIII: Adeus aos mestres

Capítulo 8: Adeus aos mestres

 

Capa do Notícias Populares no mesmo dia em que o homem andou na lua

Por Celso de Campos Júnior, Denis Moreira, Giancarlo Lepiani e Mark Rene Lima

 

Embalado pelo ritmo do iê-iê-iê, o jornal era sucesso absoluto. Apesar da desconfiança inicial, Mellé não teve grandes problemas no relacionamento com Frias e Caldeira, que jamais interferiram nos projetos do romeno. A fórmula crime-esporte-sexo, aditivada com fofocas sobre os ídolos do povo, fazia com que em 1968 o jornal vendesse 145 mil exemplares em banca, maior venda avulsa no Estado de São Paulo. O sucesso atraiu até a atenção de Sílvio Santos, que, em seu programa de 21 de junho de 1968, na Rádio Nacional, derreteu-se em elogios ao jornal. “O melhor jornal de São Paulo é Notícias Populares, que tem a preciosa colaboração de Jean Mellé, um homem que vive exclusivamente para esse jornal. Está de parabéns Jean Mellé, parabéns a esse grande jornalista brasileiro, que parece ser brasileiro de origem estrangeira. Não o conheço pessoalmente, mas acompanho seu trabalho diariamente”, revelou o apresentador. Em time que está ganhando não se mexe: toda a equipe esmerou-se em manter o NP no topo, firmando-o como um importante canal de comunicação com as camadas populares.

 

Mesmo sem querer, o jornal chegou até a brilhar na televisão. Tudo porque os roteiristas de um programa de teatro da TV Tupi simplesmente copiavam os casos inventados pelo secretário de redação Nicolau Chaui e publicados em sua coluna no NP, “Histórias da Banda de Lá”. Fruto da fértil imaginação do jornalista, os contos retravam desde histórias de detetive e de assaltos cinematográficos até casos misteriosos e inverossímeis. Sem que Chaui soubesse, casos claramente transportados do jornal foram aparecendo na telinha. Leitores e amigos, então, começaram a pará-lo na rua e dizer: “Puxa, Nicolau, vi sua história na televisão ontem, parabéns”. Sem saber o que estava acontecendo, o secretário de redação, depois de uma enxurrada de cumprimentos, resolveu tirar a prova. Passou a assistir aos programas da Tupi, e as semelhanças ficaram evidentes. Entretanto, mesmo pressionado por sua mulher, Laura de Souza Chaui, Nicolau jamais foi a fundo para colocar os pingos nos is – para sorte dos roteiristas, que continuaram coletando farto material para o programa da Tupi. Os leitores do Notícias Populares, porém, não tinham dúvidas sobre a paternidade dos casos.


Dona Laura, aliás, foi peça importante para a solidificação de tão almejada aproximação com os leitores desejada por Mellé. Durante anos, foi a titular da coluna “Correio do Coração”, uma espécie de seção de encontros do periódico. Na verdade, a ideia do romeno fora inspirada no famoso consultório sentimental criado por João Apolinário para o Última Hora. Assinada por “Tia Helena”, a seção fazia um sucesso danado no concorrido caderno de variedades do UH. No Notícias Populares, o pseudônimo dera “Fernanda”, mas a aceitação era a mesma. Laura recebia uma montanha de cartas e foi responsável por realizar quase uma dezena de casamentos entre participantes. Invariavelmente, toda a redação era convidada – e comparecia em peso para filar as guloseimas típicas daquelas festanças: pão com molho de carne moída regado a tubaína. Estreitar mais os laços com o leitor, impossível.

 

Essa ligação imediata com o público acontecia ao mesmo tempo em que outras publicações penavam com a censura. Os militares tinham pouco a se queixar do Notícias Populares: depois do golpe, as reportagens de política podiam ser contadas nos dedos, perdendo disparado para a cobertura do cotidiano em São Paulo. Enquanto o Estadão publicava Camões e a Veja estampava figuras do diabo no lugar dos trechos censurados, o NP mantinha sem problemas sua linha editorial. Apesar das laudas escritas pelos jornalistas serem despejadas numa caixinha para leitura prévia, pouca coisa era proibida – afinal, mesmo para os poucos ponderados censores, era difícil enxergar tendências subversivas em reportagens sobre a vida dos artistas ou de futebol.

 

Somente na publicação de matérias relacionadas a crimes é que o NP tomava alguns cuidados. Dos memorandos com recomendações de militares que o Departamento de Interior, Correspondentes e Sucursais (Dics, espécie de percursos da Agência Folha) era obrigado a transmitir para os jornais da casa, aqueles que regulavam a divulgação de assaltos a banco ou as atividades que as organizações clandestinas tinham como alvo certo o NP. Assim, quando a equipe do Notícias Populares recebia cartas de Miranda Jordão ou Mario Pati, chefes do Dics, todos já sabia que Mellé teria que conter seu ímpeto – como se pode perceber pela transcrição de um desses memorandos, enviado por Pati às redações em 8 de janeiro de 1969.

 

DICS INFORMA

 

ATENÇÃO EDITORES

A presidência solicita a atenção dos editores, com referência à censura, consubstanciada nas informações anexas, prestadas pelo Gal. Silvio Correia, em conversa informal com o nosso repórter.

O sr. Frias lembra que somente podem ser publicados os fatos e nunca comentários sobre bombas, roube de armas e assaltos a bancos. Nada de sensacionalismo e alarde.

 

Menos de dois meses depois, em 10 de março, outra mensagem, agora assinada por Miranda Jordão, limitava o uso da denominação de um dos grupos que não saía das páginas do NP.

 

A Censura avisava aos editores que a expressão “Esquadrão da Morte” não pode figurar nas manchetes dos jornais, na primeira ou última páginas. No texto, pode-se usar aquela expressão. Enfim, resumindo: nos títulos, não. No texto, sim.

 

O Notícias Populares, entretanto, tirou de letra essa proibição. No lugar de “Esquadrão da Morte”, cunhou a expressão “Bando Maldito”. Válida, oportuna, sonora e funcional, como escreveria Ramão Gomes Portão.

 

Mais complicada era a perseguição que ocorria pelo grau de militância dos jornalistas. Um exemplo: Rui Falcão, repórter de esporte que décadas depois seria eleito deputado estadual e federal pelo Partido dos Trabalhadores (PT), foi procurado pelo Dops no Barão de Limeira. Enquanto os policiais subiam até a redação, Falcão descia pela Barão de Campinas. O caso ilustra que a insuportável pressão política da época afetava as pessoas que faziam o jornal, mas não o resultado final. Como não criticava a ditadura nem atacava o governo, o Notícias Populares atravessou os anos de chumbo sem grandes traumas.

 

Por todos esses motivos, o ambiente no NP era o melhor possível, tanto na redação como no trato com a empresa. Quando precisava de algum favor da gráfica, o jornal enviava como cortesia algumas garrafas de cachaça aos funcionários daquele setor, acordo informal que persistiria por mais duas décadas. Jamais um jornalista fora demitido durante a época de Jean Mellé, apesar do chefe ser um reconhecido pão-duro – especialmente quando o assunto era aumento de salário. É sabido que, em acessos de fúria, o romeno mandava os comandados embora. No entanto, poucas horas depois, reconsiderava a decisão, reclamando do “malcriado” funcionário. E se no dia seguinte o quase despedido fizesse uma boa matéria, o chefe não tinha problema em elogiá-lo, soltando um dos seus inconfundíveis bordões: “Você está um astro”.

 

A sólida estrutura que mantinha o Notícias Populares começou a sofrer os primeiros abalos no final da década. No segundo semestre de 1968, Jean Mellé foi internado no Hospital das Clínicas de São Paulo. Diagnóstico: câncer nos ossos. O afastamento em si não foi o grande problema – durante alguns meses, o romeno comandou o jornal do quarto do hospital. Um telefone instalado no local por determinação de Abreu Sodré, então governador de São Paulo e amigo pessoal do jornalista, permitia isso. Mesmo doente, Mellé continuava com a mesma disposição que mostrara desde que pisou pela primeira vez na arcaica redação da rua do Gasômetro, e o jornal não dava sinais de cansaço. Ao ser questionado se seu estado de saúde não poderia piorar caso continuasse comandando o NP, o chefe respondeu: “Amigo, um jornal se faz com homens, máquinas, cérebro e coração”.

 

Os verdadeiros problemas começaram quando o romeno voltou à redação: um desentendimento com Ramão Gomes Portão, melhor amigo de Mellé dentro e fora do jornal, quebrou a harmonia vigente na equipe. O motivo da discórdia jamais foi descoberto pelos jornalistas. Alguns acreditam que tudo aconteceu porque, ainda no período de internação do romeno no hospital, Ramão teria contrariado uma ordem do chefe e mudado a manchete de primeira página. Outros suspeitam de críticas e comentários maldosos tecidos pelo editor de polícia na ausência de Mellé. Muitos juram que tudo não passou de um mal-entendido, que acabou afastando os amigos até então inseparáveis. Seja como for, a situação entre os antigos companheiros tornou-se insustentável. E assim, na virada da década, Ramão Gomes Portão deixou o Notícias Populares.

 

A resposta para o mistério que resultou no afastamento de um dos principais nomes do alto escalão do NP pode estar em um recorte de jornal, que, três décadas após o imbróglio, ainda repousava nos armários esverdeados dos arquivos do jornal. Trata-se de um excerto de uma das colunas “Jean Mellé Informa”, datado de 7 de fevereiro de 1970. Ao contrário do resto do material arquivado, o texto não foi classificado: apenas recortado do jornal e deixado em uma das milhares de pastas do acervo. Escreveu Mellé:

 

Há gente que esquece. Esquece quem foi. Esquece de onde veio, de onde chegou. Esquece que lhe foi dado uma mão de ajuda no momento exato em que precisou. Esquece quem lhe ajudou. Esquece que teve todo apoio, confiança, sem que nada lhe foi exigido. Esquece a gente que sempre sentiu o ombro sólido da ajuda, da segurança. E chega a considerar, como passarinho que aprendeu a voar com a mãe, que doravante é o dono do céu. Com a boca fala coisas boas, as que lhe fizeram bem, mas seus atos são maldosos. É uma mistura de maldade, complexos, frustrações. E o homem de bem recebe os golpes nemerecidos. Nemerecidos, mas esperados, porque somente no céu existem anjos. Um Grande Amigo nos contou a história: alguém lhe comunicou que um determinado amigo criticou-o veementemente. É isto: devemos esperar o mal, daqueles que fizemos o bem.

 

A data do texto coincide com o período da saída de Ramão do jornal. Mas, apesar da mensagem parecer direta, em nenhum momento do texto surge o nome do ex-amigo e antigo editor de polícia. Talvez por isso seja esclarecedor o fato do recorte, hoje amarelado, ter sido cuidadosamente colocado dentro de uma pasta na gaveta da letra P. Mais precisamente, naquela identificada como sendo a de “Portão, Ramão Gomes”.

 

Independentemente dos problemas pessoais com o chefe, a redação sentiu a ausência de Ramão, que levou consigo sua coluna “Flagrantes” e as inesquecíveis histórias da Boca do Lixo. A proximidade geográfica com a zona boêmia da cidade, além da extensa cobertura dada aos seus acontecimentos, fazia com que o NP ostentasse, orgulhoso, o título de jornal oficial da Boca. Com a saída do editor de polícia, o periódico perdeu os épicos relatos da disputa pelo poder do quadrilátero do crime, protagonizados por Quinzinho – o lendário rei da Boca, amigo de fé e irmão camarada de alguns jornalistas do NP – pelo ousado desafiado Hiroito.

 

Órfã de Ramão e com o romeno abalado pelo câncer, a redação começou a temer por seu futuro – especialmente após a repentina saída de Nicolau Chaui, que aceitou um convite para trabalhar no rival Diário Popular. Nomes promissores como Percival de Souza, Tão Gomes Pinto e Sérgio Pompeu já estavam fora há um bom tempo. Para complicar ainda mais a situação, outro possível substituto de Mellé, Eugenio Gertel, abandonou o barco por um lugar na Imprensa Oficial do Estado. A redação estava acéfala, e sabia disso. Só restava torcer para que o pior não acontecesse.

 

Infelizmente, o pior veio em 5 de março de 1971, uma sexta-feira. Mellé já estava mal desde o fim de fevereiro; levado ao Hospital São Lucas, finalmente sucumbiu ao câncer às 10h30 da manhã. Para honrar a tradição judaica, o enterro, no Cemitério Israelita do Butantã, não foi realizado no sábado, e sim no domingo, 7 de março. Batedores da Polícia Militar desviaram o cortejo para que a equipe do Notícias Populares pudesse prestar a última homenagem ao seu idealizador. O carro que levava o corpo do romeno estacionou diante da sede do jornal, na Barão de Limeira, e os trabalhadores, amontados no térreo, pararam por um minuto em respeito ao chefe. No cemitério, políticos, esportistas, artistas, cônsules e até umbandistas dividiam espaço com os jornalistas. Na edição seguinte, todos os colunistas do NP fizeram questão de deixar registrada sua admiração pelo fundados do jornal em seus textos. A Federação Paulista de Futebol determinou que fosse respeitado um minuto de silêncio em todos os jogos disputados no Estado.

 

Mais tarde, Jean Mellé seria eternizado como nome de uma rua em Santo Amaro, na zona sul da capital paulista. Como a maioria dos paulistanos, os moradores da rua não faziam a menor ideia de quem era o dono daquele nome, estampado numa enferrujada placa azul do bairro. Muitos acreditavam ser de um ator da época áurea do cinema francês.

 

Publicado originalmente em JÚNIOR, Celso de Campos, MOREIRA, Denis, LEPIANI, Giancarlo, LIMA, Maik Rene. Nada mais que a verdade: a extraordinária história do jornal Notícias Populares. São Paulo: Carrenho Editorial, 2002.

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