sexta-feira, 30 de junho de 2023

50 Anos de São Marcos, parte I de IV: a noite de São Marcos

Capítulo I: A noite de São Marcos



Por Celso de Campos Júnior

 

Derby do Século. Duelo Histórico. Jogo da Vida. Não faltavam nomes fantasia para aquele Palmeiras e Corinthians de 5 de maio de 1999, o mais importante confronto em oito décadas de intensa rivalidade entre os dois maiores clubes de São Paulo. Alviverdes e alvinegros, claro, já haviam protagonizado batalhas eletrizantes, como a final do Campeonato Paulista de 1954, que deu ao time da Fazendinha a faixa de Campeão dos Centenários, ou a decisão do Paulista de 1993, triunfo que redimiu o Verdão de uma fila de 17 anos sem conquistas. Pela primeira vez, porém, o Derby deixava os redutos do Brás, Bixiga e Barra Funda para ganhar ares e dimensões internacionais: Palmeiras e Corinthians digladiavam-se em uma fase eliminatória da Copa Libertadores da América, e apenas o vencedor poderia saciar a obsessão latina que tomava conta de ambas as torcidas.

 

Em jogo, estava uma vaga na semifinal do mais prestigiado torneio do continente. Mas diante do alto poder de fogo das duas equipes, o clima era de final antecipada: quem sobrevivesse ao combate estaria com uma taça na mão. A conquista da América era o objetivo traçado pelo Palmeiras desde o momento em que o técnico Luiz Felipe Scolari desembarcara no clube, um ano e dez meses antes. Igualmente hipnotizado pela competição, depois de vencer o Brasileiro de 1998, o Corinthians confiava no entrosamento do elenco campeão nacional para superar o rival.


Além da tradicional atmosfera de guerra, contudo, um curioso aspecto místico pairava sobre a peleja daquela quarta-feira à noite, no Morumbi, o primeiro capítulo da série de duas partidas entre os inimigos mortais. Enquanto os alvinegros caprichavam nas promessas a São Jorge, padroeiro do clube, e o meia Marcelinho Carioca, vulgo Pé de Anjo, revelava na véspera uma conversa com Deus para vencer o jogo, os palestrinos direcionavam suas orações à Nossa Senhora do Caravaggio, de quem Felipão era devoto fervoroso, e ao recém contratado Santo Expedito – o patrono das causas impossíveis virou o mais novo reforço do time depois que o sargentão creditou uma parcela da vitória contra o Vasco, pelas oitavas de final da Libertadores, à intercessão de uma estatueta do mártir, levada a Academia de Futebol por uma torcedora na véspera do duelo.

 

Depois que a bola rolou, no entanto, não sobrou espaço para suposições sobrenaturais. Houve milagres, sim. Mas eles foram operados por um só homem, diante do olhar incrédulo de 30 mil testemunhas.

 

Em uma das atuações mais espetaculares de um goleiro na história da cristandade, Marcos, do Palmeiras, fez coisas de que até Deus duvidou. Segurou, de todas as formas, o ataque do Corinthians que bombardeou a meta alviverde sem clemência durante os 90 minutos. Ricardinho, Marcelinho, Edílson e Fernando Baiano se revezavam nas investidas – neutralizadas pelas mãos, pelos pés, pelo peito e até pelas costas do arqueiro do Palestra. Multiplicando-se na pequena área, o camisa 12 se manteve intransponível, para desespero dos alvinegros. Ao final da partida, as estatísticas eram inacreditáveis. O Corinthians finalizou 32 vezes contra o gol de Marcos, sem conseguir marcar. Já o Verdão chutou apenas dez bolas em direção às traves de Nei – e anotou dois tentos.

 

O atacante Oséas e o volante Rogério foram os autores dos gols da vitória, mas, já nos vestiários, poucos se lembravam disso. A noite era de Marcos. Sorriso aberto e corpo fechado, o rapaz de 25 anos atendia pacientemente aos repórteres ávidos por ouvir suas palavras, transferindo para terceiros, com humildade franciscana, os louros da vitória. “Senti a mão de Deus em cada defesa que fiz. Ele é o grande responsável por esse momento, junto com meus companheiros”.

 

Não era essa a opinião da torcida. Ao apito final do árbitro, dispensando o longo e burocrático processo do Vaticano, palmeirenses de pouca e de muita fé já haviam canonizado o goleiro.

 

Nascia, naquela noite a lenda de São Marcos – parábola celestial iniciada sete anos antes, no inferno das alamedas do Palestra Itália.

 

Publicado originalmente em CAMPOS JÚNIOR, Celso. São Marcos de Palestra Itália. Santos: Realejo Edições, 2011.

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