Capítulo I: A noite de São Marcos
Por Celso de Campos Júnior
Derby do Século. Duelo
Histórico. Jogo da Vida. Não faltavam nomes fantasia para aquele Palmeiras e Corinthians
de 5 de maio de 1999, o mais importante confronto em oito décadas de intensa
rivalidade entre os dois maiores clubes de São Paulo. Alviverdes e alvinegros,
claro, já haviam protagonizado batalhas eletrizantes, como a final do
Campeonato Paulista de 1954, que deu ao time da Fazendinha a faixa de Campeão
dos Centenários, ou a decisão do Paulista de 1993, triunfo que redimiu o
Verdão de uma fila de 17 anos sem conquistas. Pela primeira vez, porém, o Derby
deixava os redutos do Brás, Bixiga e Barra Funda para ganhar ares e dimensões
internacionais: Palmeiras e Corinthians digladiavam-se em uma fase eliminatória
da Copa Libertadores da América, e apenas o vencedor poderia saciar a obsessão
latina que tomava conta de ambas as torcidas.
Em jogo, estava uma vaga na
semifinal do mais prestigiado torneio do continente. Mas diante do alto poder
de fogo das duas equipes, o clima era de final antecipada: quem sobrevivesse ao
combate estaria com uma taça na mão. A conquista da América era o objetivo
traçado pelo Palmeiras desde o momento em que o técnico Luiz Felipe Scolari
desembarcara no clube, um ano e dez meses antes. Igualmente hipnotizado pela
competição, depois de vencer o Brasileiro de 1998, o Corinthians confiava no
entrosamento do elenco campeão nacional para superar o rival.
Além da tradicional atmosfera de guerra, contudo, um curioso aspecto místico
pairava sobre a peleja daquela quarta-feira à noite, no Morumbi, o primeiro
capítulo da série de duas partidas entre os inimigos mortais. Enquanto os
alvinegros caprichavam nas promessas a São Jorge, padroeiro do clube, e o meia
Marcelinho Carioca, vulgo Pé de Anjo, revelava na véspera uma conversa com Deus
para vencer o jogo, os palestrinos direcionavam suas orações à Nossa Senhora do
Caravaggio, de quem Felipão era devoto fervoroso, e ao recém contratado Santo
Expedito – o patrono das causas impossíveis virou o mais novo reforço do time
depois que o sargentão creditou uma parcela da vitória contra o Vasco, pelas
oitavas de final da Libertadores, à intercessão de uma estatueta do mártir,
levada a Academia de Futebol por uma torcedora na véspera do duelo.
Depois que a bola rolou, no
entanto, não sobrou espaço para suposições sobrenaturais. Houve milagres, sim.
Mas eles foram operados por um só homem, diante do olhar incrédulo de 30 mil
testemunhas.
Em uma das atuações mais
espetaculares de um goleiro na história da cristandade, Marcos, do Palmeiras,
fez coisas de que até Deus duvidou. Segurou, de todas as formas, o ataque do
Corinthians que bombardeou a meta alviverde sem clemência durante os 90
minutos. Ricardinho, Marcelinho, Edílson e Fernando Baiano se revezavam nas investidas
– neutralizadas pelas mãos, pelos pés, pelo peito e até pelas costas do arqueiro
do Palestra. Multiplicando-se na pequena área, o camisa 12 se manteve intransponível,
para desespero dos alvinegros. Ao final da partida, as estatísticas eram
inacreditáveis. O Corinthians finalizou 32 vezes contra o gol de Marcos, sem
conseguir marcar. Já o Verdão chutou apenas dez bolas em direção às traves de
Nei – e anotou dois tentos.
O atacante Oséas e o volante
Rogério foram os autores dos gols da vitória, mas, já nos vestiários, poucos se
lembravam disso. A noite era de Marcos. Sorriso aberto e corpo fechado, o rapaz
de 25 anos atendia pacientemente aos repórteres ávidos por ouvir suas palavras,
transferindo para terceiros, com humildade franciscana, os louros da vitória. “Senti
a mão de Deus em cada defesa que fiz. Ele é o grande responsável por esse
momento, junto com meus companheiros”.
Não era essa a opinião da torcida.
Ao apito final do árbitro, dispensando o longo e burocrático processo do
Vaticano, palmeirenses de pouca e de muita fé já haviam canonizado o goleiro.
Nascia, naquela noite a lenda
de São Marcos – parábola celestial iniciada sete anos antes, no inferno das
alamedas do Palestra Itália.
Publicado originalmente em CAMPOS
JÚNIOR, Celso. São Marcos de Palestra Itália. Santos: Realejo Edições, 2011.
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