sábado, 1 de julho de 2023

50 Anos de São Marcos, parte II de IV: No império dos cornetas

Capítulo II: No império das cornetas

 


Por Celso de Campos Júnior

 

“Não é mole, não...Dezesseis anos sem gritar ‘é campeão’!” Os pulmões dos torcedores adversários enchiam-se para soltar, sorridentes, o grito que doía mais do que uma saraivada de palavrões na alma do palmeirense. Até mesmo injúrias, calúnias e difamações sobre a mãe eram mais aceitáveis do que a dura lembrança de que, naquele 1992 que se iniciava, a gloriosa Sociedade Esportiva Palmeiras entrava em seu décimo sexto ano de um aparentemente interminável jejum de títulos.

 

O último caneco levantado pelo clube havia sido no longínquo Paulista de 1976, em uma década de outo na qual o Verdão foi soberano no futebol brasileiro. Treinada pelo lendário Osvaldo Brandão, a irresistível Segunda Academia palestrina, com Leão, Luís Pereira, Dudu, Leivinha, César Maluco, Nei e, claro, o divino Ademir da Guia, entre outras feras, conquistou o bicampeonato brasileiro em 1972 e 73 e os estaduais de 72 e 74. Entretanto, desde então, o alviverde antes imponente engatara uma sucessão de tropeços, trapalhadas e desilusões, dentro e fora de campo. Brigas políticas, má administração, rodízio de treinadores, contratações equivocadas e regulamentos esdrúxulos azedavam a macarronada dos palestrinos e ofereciam um delicioso banquete de gozações aos rivais.

 

Na década perdida de 1980, o torcedor testemunhara fracassos impossíveis, extraordinários, transcendentais até. Em 1986, diante de um Morumbi abarrotado de palmeirenses, a equipe dirigida por Carbone conseguiu perder a final do Paulista para a Internacional de Limeira, na primeira vez em que um clube do interior se sagrava campeão do torneio. Três temporadas depois, o invicto time de Emerson Leão sobrava no estadual e dava mostras de que rumaria ao título quando uma única derrota, para o pequeno Bragantino, o tirou da briga pelo campeonato. Já em 1990, sob a batuta de Telê Santana, bastava vencer a Ferroviária no Pacaembu para avançar a final do Paulista. Empatou, claro.

 

Longe dos gramados, os vexames não eram menores. O frustrante resultado contra a locomotiva de Araraquara desencadeou uma das páginas mais negativas da história do Palmeiras: depois de um jogo, um bando de cem vândalos dirigiu-se para a sede social, no Parque Antárctica, e depredou a sala de troféus do clube, reduzindo a escombros os símbolos das vitórias e vitimando o próprio orgulho palestrino.

 

No desespero de acabar com a fila, a diretoria mudava de treinador como se trocasse de ceroulas. Apenas nos quatro anos anteriores, dez homens comandaram o Palmeiras do banco de reservas: Rubens Minelli, Ênio Andrade, Tata, Leão, Jair Pereira, Telê, Dudu, João Paulo Medina, Paulo César Carpegiani e, finalmente, Nelsinho Batista. Este último foi contratado em junho de 1991 como a salvação da lavoura alviverde – e não era para menos, diante da façanha que alcançara no ano anterior: conduzira o Corinthians à conquista do primeiro campeonato nacional de sua história. Só podia se tratar, portanto, de um verdadeiro mago da prancheta.

 

Mas seu feitiço não funcionaria no torneio em que o técnico estreou no Palestra, o Paulistão de 1991, disputado de agosto a dezembro – a vaga da decisão foi perdida para o São Paulo no quadrangular final.

 

Surpreendentemente prestigiado pelos cartolas, Nelsinho começou seu planejamento para 1992 recebendo da diretoria um reforço para a meta. O goleirão Carlos Roberto Gallo, veterano de 36 anos e três Copas do Mundo, chegava ao Parque Antarctica com status de titular absoluto, empurrando para o banco o antigo dono da camisa 1, Ivan. As qualidades técnicas de Carlos sob a trave eram inquestionáveis, mas os palmeirenses, tão abandonados pela sorte, assustavam-se com a fama de pé-frio do arqueiro. Em 16 anos de carreira, Carlos conquistara apenas um título – o Paulista de 1988, com o Corinthians, e ainda assim o craque nem apareceu no pôster, pois se machucou na semifinal contra o Palmeiras e ficou de fora das finais contra o Guarani.

 

O primeiro desafio da temporada era o Campeonato Brasileiro, e tudo indicava que ainda não seria daquela vez que Carlos e o Verdão sairiam da seca. No fim de março, depois de dez jogos no nacional, o clube amargava a antepenúltima colocação, com duas vitórias, dois empates e seis derrotas. As cornetas já começavam a soar pedindo a demissão de Nelsinho quando o treinador, sem aviso prévio, tomou uma medida drástica: às vésperas do duelo contra o Corinthians, afastou em definitivo os titulares Evair, Andrei e Jorginho, além do goleiro reserva Ivan, por deficiência técnica.

 

A notícia caiu como uma bomba. Jorginho foi chamado à sala do treinador e não teve tempo nem de trocar de roupa antes de sair. O capitão Toninho, líder da equipe e presidente do Sindicato dos Atletas Profissionais de São Paulo, foi tirar satisfações com o chefe, mas voltou com o rabo entre as penas. O presidente Carlos Bernardo Facchina Nunes e o diretor de futebol Adriano Beneducce garantiram que o exílio dos “Quatro Cavaleiros do Apocalipse” – como os apoiadores de Nelsinho batizaram os atletas barrados – era a primeira providência para melhorar o futuro do Palmeiras.

 

Enquanto as labaredas da crise espalhavam-se nervosamente pelo Palestra Itália, um goleiro de 18 anos recém-contratado pelos juniores era convocado para ocupar o lugar de Ivan no banco de reservas da equipe profissional no maior clássico da cidade de São Paulo.

 

Marcos Roberto Silveira Reis, bem-vindo ao Palmeiras.

 

 

Ironicamente, o campo que forjara o mais novo arqueiro alviverde não tinha sequer traves. O contorno da meta a ser defendida pelo filho de Antônia e Ladislau era pintado com tinta na divisória do terrão vizinho à casa da família, em Oriente, a cerca de 450 quilômetros da capital paulista. Nesse sugestivo paredão, os irmãos bombardeavam o caçula Marcos Roberto, nascido em 4 de agosto de 1973, a quem sobrava, pela menor idade e intimidade com a bola, a posição de goleiro.


Só que o garoto tomou gosto pela coisa. Espichou e passou a se destacar nas peladas de Oriente, assumindo a camisa 1 do Primavera, time amador patrocinado pelo mercadinho homônimo que disputava os campeonatos locais e regionais. Alguns desses embates foram testemunhados pelo goleiro do time adulto da usina açucareira da cidade natal de Marcos – acreditem, chamada Usina Paredão. Pois Flávio, guarda-metas da Paredão, ficou impressionado com o jovem do Primavera. Tanto que, na virada de 1989 para 1990, decidiu avisar um amigo treinador de futebol, Antônio Novais, mais conhecido como Neno, do potencial daquele garoto. Formado pelo mestre Pupo Gimenez, Neno, já trabalhara na base do Marília Atlético Clube e estava assumindo as categorias inferiores do Clube Atlético Lençoense, de Lençóis Paulista. Envolvido com o novo trabalho, o técnico demorou para responder ao pedido de Flávio, que, contudo, não parava de insistir. “Você precisa vir a Oriente para olhar esse moleque, Neno. O quanto antes”.

 

Algumas semanas depois, diante da teimosia do colega, finalmente o treinador resolveu ver de uma vez por todas o que o tal goleiro tinha de tão especial. Ao lado do preparador físico João Sérgio de Moraes, dirigiu-se à cidade de Vera Cruz, onde o Primavera disputaria um campeonato de tiro curto. Ali, os olhares da dupla do Lençoense se arregalaram: estavam diante de um atleta talentoso, rápido, de excelente porte físico, com falhas comuns a qualquer iniciante, mas que jogava com o coração, falando o tempo todo, orientando os defensores, incentivando a equipe. A decisão estava tomada: o clube investiria no rapaz. Ao final do dia, Neno apresentou-se a Marcos e convidou-o a ingressar nas categorias de base do clube de Lençóis Paulista.


Compor as fileiras do Demolidor da Sorocabana não era pouca coisa para um aspirante. O clube, que fizera sua fama nos anos 1940 fora do circuito oficial da bola – amistosos nada amistoso pelo interior de São Paulo e do Paraná, seguindo os trilhos da Estrada de Ferro Sorocabana -, vinha de uma excelente campanha na segunda divisão de 1988. Só perdeu o acesso inédito à elite na fase semifinal para o esquadrão caipira do Bragantino de Wanderley Luxemburgo, que, naqueles idos de 1990, já estava fazendo estragos na elite do futebol, em especial na alma do palmeirense.

 

Além disso, todo moleque que chegava ao Lençoense pensando em vencer no futebol – e na vida – tinha um exemplo e tanto em que se espelhar. Em meados da década de 1950, de forma tão anônima quanto qualquer novato, desembarcara no clube um armador de fino trato e silhueta chamado Valdir Pereira, vindo do Americano de Campos, do Rio de Janeiro. Em sua temporada em Lençóis Paulista, o atleta destacou-se e atraiu a atenção do Madureira, então na primeira divisão do futebol carioca. Não demorou para que o Fluminense o contratasse – e aí se iniciava a saga de Didi, o Príncipe Etíope, cérebro da Seleção Brasileira na conquista dos mundiais de 1958 e 1962 para um menino chamado Pelé.

 

Da quarta opção para a meta do Lençoense, Marcos logo pulou para a titularidade, disputando o equivalente ao Campeonato Paulista da segunda divisão de juniores, além da Copa Londrina e de torneios regionais. Destaque da equipe, chamou a atenção de um dos integrantes da diretoria, que tinha contratos no departamento de futebol de um clube tradicional de São Paulo. E assim Marcos foi fazer um teste no...Corinthians.

 

De acordo com a versão contada em público pelo goleiro, o time da Fazendinha o aprovou – mas, com saudades de casa e sem a perspectiva de ser efetivamente escalado, já que seria apenas o terceiro arqueiro dos juniores, atrás de Felício e Edílson, decidiu largar a capital e retornar ao Lençoense. Ao mestre Neno, porém, o aspirante relatou outra história à época do acontecido. Afirmou ter sido dispensado pelo Corinthians, e que, inconformado, juntara coragem e respondera aos cartolas alvinegros: “Um dia vou jogar em um time profissional e ganhar de vocês em uma decisão”.

 

Por uma dessas coincidências do destino, nessa mesma época, o técnico dos juniores do Palmeiras, Raul Pratali, buscava atletas para renovar seu elenco. Pratali entrou em contato com Neno, com quem havia trabalhado no Marília, e perguntou se o colega conhecia algum guarde-metas de talento. O treinador da Lençoense, então, levou Marcos e mais uma leva de promessas – entre elas, o volante André Luiz, o atacante Itamar e o lateral esquerdo Beto – para a Academia de Futebol. Sem tempo de testar os jogadores, já que precisava completar o grupo com urgência, Raul Pratali, confiando apenas na palavra de Neno, arrematou o lote. Marcos chegava ao Parque certo – de onde não escaparia mais.

 

(Independentemente de o goleiro ter sido aprovado ou não na Fazendinha, fato é que, pela segunda vez, o Corinthians deixava escapar um fora de série que alcançaria status de ídolo no maior rival. O primeiro? Um tal de Ademir da Guia. “A primeira vez que eu coloquei chuteiras foi para fazer um teste no Corinthians, em 1955. Tinha 13 anos e meu pai me levou do Rio, onde a gente morava, para o Parque São Jorge”, afirmou o divino filho de Domingos da Guia à revista FourFourTwo de outubro de 2003. “O técnico das categorias de base era o Rato, que havia jogado com meu pai no Corinthians. Foi a primeira vez num clube profissional, num clube de verdade, e foi demais. Mas o Rato disse ao meu pai que, apesar de eu jogar bem, ele não podia me contratar porque eu ainda era muito jovem – a idade mínima para entrar lá era de 15 anos. Então a gente voltou para o Rio e eu fui para o Bangu, onde fiquei por um bom tempo. Daí veio o Palmeiras”.)

 

Na hora de oficializar a transferência de Marcos e companhia limitada, dentro da sala do departamento amador do Verdão, os representantes do Lençoense sugeriram um acordo aos palestrinos. Com nome sujo na Federação Paulista de Futebol por conta de uma dívida de 40 mil dólares com o Ituano, o Demolidor da Sorocabana não podia renovar seu registro para a disputa dos campeonatos oficiais daquela temporada; a proposta, assim, era que o Palmeiras assumisse o débito em troca da liberação dos atletas. De quebra, a agremiação de Lençóis Paulista também pedia que o clube da capital cedesse uma remessa de material esportivo, principalmente calções, meias e chuteiras, já que a rouparia do alvinegro estava zerada. Negócio fechado.


A curiosa história permaneceu escondida no Parque Antárctica até 1995, quando o volante Amaral, também integrante do time de juniores do Palmeiras na ocasião, revelou aos colegas a transação – não sem antes modificar sensivelmente os termos do acerto. De acordo com o dedo-duro, o Lençoense cobrou, pelo passe do goleiro de 18 anos, um pagamento tão modesto quanto inusitado: apenas doze pares de chuteiras. Marcos, previsivelmente, virou algo de gozações dos colegas, mas levou na brincadeira e até posou para fotos com seu suposto pagamento – uma fileira de chuteiras. Para se vingar do colega linguarudo, espalhou que também Amaral fora contratado em uma permuta pouco usual: o ex-preparador de cadáveres teria sido liberado por seu clube de Capivari em troca de três calças de agasalho.

 

O pessoal de Capivari jura de és juntos que o escambo jamais existiu, mas, para ambas as histórias, vale a célebre frase do clássico filme de faroeste Os brutos também amam: quando a lenda se torna fato, publique-se a lenda.

 

 

“Sempre fui palmeirense, e ficar no banco logo contra o Corinthians vai ser demais”, vibrava Marcos, em uma de suas primeiras aparições na imprensa esportiva paulista, no Diário Popular de 27 de março de 1992. Com o afastamento de Ivan, o goleiro de Oriente, ainda em fase de ambientação nos juniores, se viu convocado para a reserva de Carlos, medalhão do Palmeiras e da Seleção Brasileira. “Aconteceu tudo muito de repente. Mas tenho de estar preparado para agarrar a oportunidade”. Sobre o titular, que tinha exatamente o dobra de sua idade, Marcos era só elogios. “O Carlos é meu ídolo, um goleiro que sabe usar toda sua experiência e tranquilidade”.

 

O Derby de 29 de março de 1992 seria a primeira partida em que Marcos assinaria a súmula como jogador de futebol profissional – e nele o jovem guarda-metas já foi apresentado à acirrada rivalidade entre os clubes. No boletim de ocorrência do “Clássico do Medo”, como o jogo foi apelidado devido ao mau momento dos dois times, registraram-se quatro vermelhos, sete amarelos e um tumulto generalizado depois de uma briga fora de campo entre Márcio e Luiz Henrique. Na bola, o volante César Sampaio marcou para o Palmeiras, mas o Corinthians saiu vitorioso, empurrando o alviverde para a penúltima colocação: 2 a 1, gols de Fabinho e Viola em falhas da sempre emocionante dupla Alexandre Rosa e Tonhão.

 

(Como prêmio de consolação, Marcos pôde ao menos ver o titular Carlos defender a cobrança de pênalti do meia Neto, que retornava ao clássico depois da suspensão pela cusparada no árbitro José Aparecido de Oliveira, seis meses antes.)

 

Onze jogos, sete derrotas, vice-lanterna do Brasileiro depois de levar uma piaba do maior rival. Em se tratando de Palmeiras, o cenário era apocalíptico. Mas, graças a uma notícia confirmada na véspera do clássico, a crise foi milagrosamente substituída por uma centelha de esperança. A vida do goleiro novato e de toda a torcida alviverde ficaria mais fácil depois que, em um acordo inédito do futebol brasileiro, uma leiteria italiana pediu passagem para pôr fim ao período de vacas magras no Palestra.

 

Publicado originalmente em CAMPOS JÚNIOR, Celso. São Marcos de Palestra Itália. Santos: Realejo Edições, 2011.


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