Capítulo III: Leite para engordar o porco
Por Celso de Campos Júnior
Boca Juniors, na Argentina;
Peñarol, no Uruguai; Audax Italiano, no Chile; Benfica, em Portugal – sem contar
o Parma, da Itália, que sob suas asas foi transformado progressivamente de
clube de província a uma das forças do futebol europeu nos anos 1990. Para a
multinacional italiana Parmalat, o investimento em patrocínio esportivo, em
especial no futebol, era parte da estratégia e do processo de conquista de
mercados. Buscando ampliar sua presença no Brasil, onde operava desde 1977, a
gigante do ramo alimentício propôs ao Palmeiras um ousado sistema de cogestão:
investiria uma montanha de dinheiro para montar um supertime e participaria
ativamente da administração do departamento de futebol do Verdão – obtendo de
visibilidade do mercado nacional, e claro, embolsando os lucros da venda dos
atletas trazidos por ela, porque ninguém é de ferro.
Apresentado no final de março
e com duração de três anos, prevendo cifras que poderiam chegar à ordem de US$
2,5 milhões por temporada, o acordo era uma dádiva. Tanto que, apesar de alguns
terem esperneado contra a suposta perda de autonomia do clube, o contrato foi
aprovado pela maioria esmagadora do conselho – 220 votos a favor e 6 contra.
A caneta do presidente
Facchina assinou o documento em abril de 1992 e deu início a uma nova era no
Palmeiras, marcada acima de tudo pela profissionalização do departamento de
futebol. O amadorismo, marca registrada dos cartolas e verdadeiro câncer no
Palestra, foi chutado para escanteio com a chegada de José Carlos Brunoro, novo
diretor de esportes da Parmalat. Dono de uma carreira de sucesso no voleibol
profissional, como jogador, treinador e dirigente da Pirelli/Santo André,
Brunoro, na teoria, faria o meio de campo entre o clube e a empresa – na prática,
entretanto, seria ele o mandachuva que definiria os rumos do futebol do
alviverde, com inspiração nos modelos europeus de gestão.
Para modernizar o produto
Palmeiras, a primeira medida da Parmalat seria alterar a embalagem – no caso, o
uniforme. Assim, a camisa ganhou inéditas listras verticais brancas, o
tradicional verde escuro foi desbotado até virar um verde claro e abriu-se um
espacinho para o azul do logotipo da multinacional. Desenhado pela própria
Parmalat e produzido pela Adidas, fornecedora de material esportivo do clube
desde o final dos anos 1970, o manto chocou os conservadores e provocou, uma
chiadeira generalizada. O maior dos crimes, contudo, foi cometido contra os
indefesos goleiros palestrinos, obrigados a envergar uma camisa fúcsia (rosa,
em bom português) com ombros amarelos e detalhes azuis na gola e nos braços.
Foi com essa psicodélica indumentária que Carlos, Marcos, Sérgio – prata da
casa que retornava um empréstimo ao Ceilândia, do Distrito Federal – e Ivan, o
único dos encostados chamado para o clique, saíram na primeira foto oficial do
elenco.
Feio ou bonito, o uniforme
estrearia com o pé direito: vitória contra o Cruzeiro por 1 a 0 no Parque
Antarctica, em 26 de abril de 1992, gol do atacante Paulo Sérgio. Entretanto,
apesar de haver deixado as últimas colocações e subido para o décimo terceiro
posto, o Verdão já não tinha aspirações no Brasileiro, que classificava apenas
os oito primeiros para a fase seguinte. O negócio era já pensar no Campeonato
Paulista, cujo pontapé inicial se daria em julho.
Nelsinho Batista estava
garantido no comando, prova concreta da mudança de mentalidade no Palestra
Itália. Ouriçada, a torcida já começava a especular quais seriam as primeiras
contratações para o timaço que a Parmalat prometia montar no Palmeiras.
Fernando Gamboa, quarto-zagueiro do Newells Old Boys da Argentina, Careca,
centroavante do Napoli, e Roberto Carlos, lateral esquerdo revelação do União
São João, eram nomes comentados no Jardim Suspenso.
Antes de qualquer um desses
astros, porém, seria a primeira vez de o reserva Marcos estrear pelo clube – em
um jogo que, embora escondido no rodapé da história palestrina, marcou a
conquista do primeiríssimo troféu da era Palmeiras-Parmalat. Alguém lembra?
Oficialmente eliminado do Brasileiro
da derrota para o Náutico no estádio dos Aflitos, no dia 11 de maio de 1992, o
Palmeiras ainda teria dois compromissos pela competição nacional – mas o
primeiro deles, contra o Atlético Paranaense, só aconteceria no dia 24. No fim
de semana de folga, o clube resolveu marcar um amistoso contra a Esportiva de
Guaratinguetá, visando começar a preparação para o Paulista e, claro, dar
aquela reforçadinha no caixa. Nelsinho Batista não poupou ninguém e escalou
força máxima para o duelo contra a Esportiva, que, sob o comando do técnico Benê
Ramos, ex-preparador físico do lendário Osvaldo Brandão, fazia excelente
campanha na segunda divisão, ponteando seu grupo.
Apenas no gol havia um
desfalque: Carlos estava na Seleção, novamente convocado por Carlos Alberto
Parreira para o amistoso contra a Inglaterra, em Wembley. Marcos e Sérgio
disputavam a posição, e Nelsinho, durante a semana, fez um breve suspense antes
de anunciar a escalação do menino de Oriente. O amistoso o estádio Dario
Rodrigues Leite, então, ganhou ares de Copa do Mundo para o novato. “Preciso
mostrar o serviço nesse amistoso para ganhas de vez a confiança do Nelsinho. Confio
no meu futebol e sei que o meu dia vai chegar”, declarou, na véspera da
partida, ao Diário Popular.
No dia 16 de maio, Marcos foi
titular dos profissionais do Palmeiras pela primeira vez – e nem teve muito trabalho.
Diante de 5.123 espectadores, o alviverde conseguiu impor seu jogo e marcou
três gols ainda no primeiro tempo com Toninho, Marcinho e Edu Marangon. Na etapa
final, depois de Nelsinho fazer quatro alterações, o Palmeiras diminuiu o ritmo
e marcou só mais um, com Biro. O placar de 4 a 0 rendeu ao Verdão o Troféu
Guaratinguetá, oferecido pelos organizadores e recebido com orgulho pelo
capitão Toninho. Pouco mais de um mês depois da efetivação da parceria com a Parmalat,
uma tacinha já chegava ao Palestra – não valia grande coisa, mas era, no
mínimo, um bom prenúncio.
Com a sensação de dever cumprido,
Marcos devolveu respeitosamente
a vaga de titular a Carlos, que voltou festejado da terra da Rainha. No empate
em 1 a 1 com a Inglaterra, o goleirão defendeu um pênalti de Gary Lineker e
impediu o artilheiro da Copa de 1986 de igualar o recorde de Bobby Charlton,
que anotou 49 gols pelo English Team – Lineker não conseguiria marcar mais
nenhum tento pela seleção e encerraria a carreira com 48. Quem era mesmo o pé
frio?
O Brasileiro acabou, o Paulista começou e os reforços
arrasa-quarteirão ainda não havia aparecido. O mais famoso era o centroavante
Sorato, herói do Vasco no título nacional de 1989, que entrou na vaga de Evair.
De resto, nomes incógnitos como Edinho Baiano, adquirido do Joinville de Santa
Catarina, e Jean Carlo, vindo do Matsubara do Paraná, desembarcaram no Parque Antarctica.
José Carlos Brunoro, quase profético, pedia tranquilidade à torcida na Gazeta
Esportiva de 27 de maio de 1922. “Meu trabalho será a médio prazo, dois
anos, mas a curto prazo as coisas serão melhoradas. A torcida pode esperar”.
Naquele momento, a prioridade era a renovação do
contrato do goleiro Carlos, que venceria no meio do ano. Uma proposta do
futebol japonês fez a negociação se tornar uma novela mexicana, cujos capítulos
eram acompanhados de perto pelos reservas Marcos e Sérgio, de olho na vaga. O
final, porém, não foi dos mais felizes para os suplentes – Carlos ficou no
alviverde. Para piorar, o Palmeiras anunciava a chegada de mais um goleiro.
César, pirulão de 23 anos que já havia passado pelo Palestra em 1990. Manter quatro
guarda-metas no elenco era um tanto quanto desnecessário. E a corda arrebentou
do lado mais jovem. Marcos, com seus 18 anos, voltou a compor o elenco dos
juniores.
Sorte da molecada: enquanto os profissionais ainda bateriam na trave naquele
ano, o goleiro seria o porto seguro da equipe que comemoraria a conquista de um
Campeonato Paulista – pondo fim a um jejum ainda mais longo no clube.
Sem vencer o Campeonato Paulista de Juniores há duas
décadas, o Palmeiras contrataria Raul Pratali no início de 1993 para colocar
ordem nas categorias de base. O ex-goleiro do Comercial de Ribeirão Preto teve
de fazer uma legítima faxina no elenco dos juniores, dispensando atletas no
limite da idade que não seriam aproveitados no profissional (muitos) e promovendo
os destaques dos juvenis (poucos). Para completar o grupo, acionou sua rede de
olheiros no interior e levou algumas promessas anônimas ao Palestra Itália.
Também bateu de gente com o departamento amador para exigir a contratação de um
preparador de goleiros, até então um luxo do time principal, atendido pelos
serviços de Zé Mário. E conseguiu trazer para a função dos juniores um chapa de
nome Carlos Pracidelli, recém-aposentado guarda-metas que fizera relativa fama
defendendo o XV de Jaú e o Juventus nos anos 1980.
Assim, no peito e na raça, Raul Pratali montou um bom
elenco, principalmente armou um excelente time. Na defesa, William, Moraes,
Marcos Vicente e Ferreira; no meio-campo, Amaral, André, André Luiz e Fred;
Juari e Magrão, assíduo frequentador da Seleção Brasileira de novos. De volta
ao Verdinho, Marcos – conhecido nos juniores como Marcos Roberto – ganhou a
posição do goleiro Marcelo, ajudando na boa campanha que levou o Palmeiras, em
julho, à final do torneio, contra a Portuguesa, quando o placar já apontava 2 a
2, o alviverde teria, de novo, ficado pelo caminho.
A finalíssima foi disputada em 22 de julho de 1992, no
Estádio Santa Cruz, em Ribeirão. Embora precisasse apenas de um empate para
ficar com a taça, já que vencera o jogo de dia no Parque Antarctica por 2 a 1,
o Palmeiras, honrando a tradição foi para a frente e abriu 3 a 2 já na primeira
etapa, com dois de Magrão e um de Juari – Maurinho fez os dois gols do time da casa.
No segundo tempo, Raul Pratali segurou a equipe, que neutralizou o Fogão e
ainda esteve perto de anotar o quarto gol. Quando o juiz Paulo Roberto Garbi
apitou o final do duelo, o Palmeiras derrubou sua primeira fila. Na volta a São
Paulo, o elenco de juniores perfilou-se, orgulhoso, no gramado do estádio
Palestra Itália para a foto oficial de campeão – com Marcos já envergando a
nova camisa de goleiro, azul com detalhes em branco, criada pela Adidas depois que
alguma alma sã finalmente percebeu que o rosa e o amarelo não combinavam muito
com o clube.
O título trouxe uma responsabilidade extra para os
juniores: vencer pela primeira vez o mais tradicional torneio nacional da
categoria, a Copa São Paulo, em janeiro do ano seguinte. E a pressão era
dobrada porque a equipe faria praticamente toda sua campanha em casa – sede do
grupo D, o Parque Antarctica abrigaria os jogos do Palmeiras até as semifinais,
caso a equipe lá chegasse. Como mandava a tradição, a finalíssima seria disputada
no Pacaembu no dia do aniversário de São Paulo, 25 de janeiro.
Justificando a fama, os garotos de Raul Pratali fizeram
bonito na primeira fase, batendo o Vitória da Bahia (2 a 0), o Atlético Mineiro
(2 a 1) e o Paraná Clube (3 a 0). Na etapa seguinte, os adversários seriam
Comercial de Ribeirão Preto, Matsubara e São Paulo, que perdera do Bahia e
terminara em segundo no seu grupo. Os times se enfrentariam em um turno único, com
o campeão classificado para a semifinal da Copinha. Logo de cara, o Verdinho
pegou o Comercial, elo mais fraco da chave – e seguiu a sina do Verdão de
tropeçar em equipes do interior. O empate em 1 a 1 colocou o Palmeiras atrás do
São Paulo, que vencera o Matsubara. Assim, o alviverde era obrigado a triunfar no
clássico do dia 17d e janeiro para seguir dependendo apenas de suas forças.
Entretanto, diante de um Palestra Itália lotado, o Tricolor do técnico Márcio
Araújo, que tinha no elenco promessas como Pavão, André Luiz, Catê, Jamelli e o
goleiro Rogério Ceni, de 17 anos, conseguiu segurar o campeão paulista. O empate
de 1 a 1, gols de Sérgio Baresi e Fred, forçava o Verdinho a ganhar do
Matsubara na última rodada e torcer por uma escorregada do rival contra o
Comercial. “É duro depender de outro resultado como é o nosso caso, mas temos
que fazer nossa parte e ver o que acontece”, declarou Marcos ao Diário
Popular de 19 de janeiro. Realmente, de nada adiantou a vitória por 2 a 1
contra os paranaenses; o expressinho do São Paulo encaçapou 2 a 0 no Comercial
e derrubou o invicto time de Raul Pratali do torneio, para desconsolo da nação
palestrina.
O campeão? Estava escrito nas estrelas. A edição
de número 24 do torneio pertencia ao Tricolor do Morumbi, que bateu o
Corinthians por 4 a 3 na decisão e levantou sua primeira Copa São Paulo.
A boa campanha de Marcos nos juniores do Palmeira não
passou despercebida pela comissão técnica da Confederação Brasileira de
Futebol. Em 1992, o goleiro já havia sido convocado para os treinamentos com
vista ao Sul-Americano de Juniores, classificatório para o Mundial da Austrália
do ano seguinte, mas acabou cortado do grupo que embarcou para a Colômbia – um balde
de água fria recebido justamente no dia do seu décimo nono aniversário, em 4 de
agosto. Em 1993, porém, Marcos recebia novo chamado, agora para compor a
Seleção Brasileira da categoria que excursionava pela Europa. O palmeirense
vestiu pela primeira vez a amarelinha no II Festival internacional do Futebol
Val´Action, na França, competição que o Brasil faturou passeando sobre os adversários:
6 a 1 na República Tcheca, 3 a 2 na Eslováquia e 2 a 1 na Rússia.
A parada mais importante do giro europeu aconteceria de
6 a 15 de junho, em Toulon, sede do Festival Internacional de Futebol “Espoirs”,
um dos mais prestigiados certames ente seleções de base do planeta. Daniel
Passarella, Stoichkov e Zinedine Zidane, entre outros, brilharam pela primeira
vez ao mundo na vitrine do torneio, disputado desde 1967. O Brasil triunfara em
1980, 1981 e 1983, e registrara sua última participação em 1987, com uma equipe
que, mesmo contando com Taffarel, André Cruz e César Sampaio, ficou apenas na
terceira colocação.
A expectativa em Toulon com o escrete canarinho era
grande – afinal, a Seleção vencera, no primeiro semestre, o Mundial de Futebol
Júnior, na Austrália, e vinha da boa impressão deixada em Val´Action. Mas
vexame é pouco para o desempenho dos garotos. Treinada por Carlos Alberto da
Luz, a equipe, que tinha como destaques Sávio, Yan, Bruno Carvalho e Argel,
além de Wagner e Magrão, do Palmeiras, terminou em um horrível sétimo posto, à
frente somente da Bulgária. Marcos ficou de fora da estreia – em que a
República Tcheca venceu por 3 a 2 e vingou-se da goleada sofrida no último
encontro – e voltou contra Portugal, na vitória dos lusos por 1 a 0. O máximo
que o arqueiro palmeirense conseguiu fazer foi garantir o empate sem gols
contra a Inglaterra, que se sagraria campeão da competição. Para completar a tortura,
a Seleção, ainda com Marcos na meta, se despediu da turnê com uma derrota para Itália,
2 a 1.
Mas a tristeza do goleiro não duraria muito tempo. Em
seu retorno ao Brasil, Marcos se juntaria a um elenco que, dede 12 de junho de
1993, já não tinha mais fantasmas para exorcizar.
Publicado originalmente em CAMPOS JÚNIOR, Celso. São Marcos de Palestra Itália.
Santos: Realejo Edições, 2011.
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