domingo, 2 de julho de 2023

50 Anos de São Marcos, parte III de IV: Leite para engordar o porco

Capítulo III: Leite para engordar o porco


 

Por Celso de Campos Júnior

 

Boca Juniors, na Argentina; Peñarol, no Uruguai; Audax Italiano, no Chile; Benfica, em Portugal – sem contar o Parma, da Itália, que sob suas asas foi transformado progressivamente de clube de província a uma das forças do futebol europeu nos anos 1990. Para a multinacional italiana Parmalat, o investimento em patrocínio esportivo, em especial no futebol, era parte da estratégia e do processo de conquista de mercados. Buscando ampliar sua presença no Brasil, onde operava desde 1977, a gigante do ramo alimentício propôs ao Palmeiras um ousado sistema de cogestão: investiria uma montanha de dinheiro para montar um supertime e participaria ativamente da administração do departamento de futebol do Verdão – obtendo de visibilidade do mercado nacional, e claro, embolsando os lucros da venda dos atletas trazidos por ela, porque ninguém é de ferro.

 

Apresentado no final de março e com duração de três anos, prevendo cifras que poderiam chegar à ordem de US$ 2,5 milhões por temporada, o acordo era uma dádiva. Tanto que, apesar de alguns terem esperneado contra a suposta perda de autonomia do clube, o contrato foi aprovado pela maioria esmagadora do conselho – 220 votos a favor e 6 contra.

 

A caneta do presidente Facchina assinou o documento em abril de 1992 e deu início a uma nova era no Palmeiras, marcada acima de tudo pela profissionalização do departamento de futebol. O amadorismo, marca registrada dos cartolas e verdadeiro câncer no Palestra, foi chutado para escanteio com a chegada de José Carlos Brunoro, novo diretor de esportes da Parmalat. Dono de uma carreira de sucesso no voleibol profissional, como jogador, treinador e dirigente da Pirelli/Santo André, Brunoro, na teoria, faria o meio de campo entre o clube e a empresa – na prática, entretanto, seria ele o mandachuva que definiria os rumos do futebol do alviverde, com inspiração nos modelos europeus de gestão.

 

Para modernizar o produto Palmeiras, a primeira medida da Parmalat seria alterar a embalagem – no caso, o uniforme. Assim, a camisa ganhou inéditas listras verticais brancas, o tradicional verde escuro foi desbotado até virar um verde claro e abriu-se um espacinho para o azul do logotipo da multinacional. Desenhado pela própria Parmalat e produzido pela Adidas, fornecedora de material esportivo do clube desde o final dos anos 1970, o manto chocou os conservadores e provocou, uma chiadeira generalizada. O maior dos crimes, contudo, foi cometido contra os indefesos goleiros palestrinos, obrigados a envergar uma camisa fúcsia (rosa, em bom português) com ombros amarelos e detalhes azuis na gola e nos braços. Foi com essa psicodélica indumentária que Carlos, Marcos, Sérgio – prata da casa que retornava um empréstimo ao Ceilândia, do Distrito Federal – e Ivan, o único dos encostados chamado para o clique, saíram na primeira foto oficial do elenco.

 

Feio ou bonito, o uniforme estrearia com o pé direito: vitória contra o Cruzeiro por 1 a 0 no Parque Antarctica, em 26 de abril de 1992, gol do atacante Paulo Sérgio. Entretanto, apesar de haver deixado as últimas colocações e subido para o décimo terceiro posto, o Verdão já não tinha aspirações no Brasileiro, que classificava apenas os oito primeiros para a fase seguinte. O negócio era já pensar no Campeonato Paulista, cujo pontapé inicial se daria em julho.

 

Nelsinho Batista estava garantido no comando, prova concreta da mudança de mentalidade no Palestra Itália. Ouriçada, a torcida já começava a especular quais seriam as primeiras contratações para o timaço que a Parmalat prometia montar no Palmeiras. Fernando Gamboa, quarto-zagueiro do Newells Old Boys da Argentina, Careca, centroavante do Napoli, e Roberto Carlos, lateral esquerdo revelação do União São João, eram nomes comentados no Jardim Suspenso.

 

Antes de qualquer um desses astros, porém, seria a primeira vez de o reserva Marcos estrear pelo clube – em um jogo que, embora escondido no rodapé da história palestrina, marcou a conquista do primeiríssimo troféu da era Palmeiras-Parmalat. Alguém lembra?

 

 

Oficialmente eliminado do Brasileiro da derrota para o Náutico no estádio dos Aflitos, no dia 11 de maio de 1992, o Palmeiras ainda teria dois compromissos pela competição nacional – mas o primeiro deles, contra o Atlético Paranaense, só aconteceria no dia 24. No fim de semana de folga, o clube resolveu marcar um amistoso contra a Esportiva de Guaratinguetá, visando começar a preparação para o Paulista e, claro, dar aquela reforçadinha no caixa. Nelsinho Batista não poupou ninguém e escalou força máxima para o duelo contra a Esportiva, que, sob o comando do técnico Benê Ramos, ex-preparador físico do lendário Osvaldo Brandão, fazia excelente campanha na segunda divisão, ponteando seu grupo.

 

Apenas no gol havia um desfalque: Carlos estava na Seleção, novamente convocado por Carlos Alberto Parreira para o amistoso contra a Inglaterra, em Wembley. Marcos e Sérgio disputavam a posição, e Nelsinho, durante a semana, fez um breve suspense antes de anunciar a escalação do menino de Oriente. O amistoso o estádio Dario Rodrigues Leite, então, ganhou ares de Copa do Mundo para o novato. “Preciso mostrar o serviço nesse amistoso para ganhas de vez a confiança do Nelsinho. Confio no meu futebol e sei que o meu dia vai chegar”, declarou, na véspera da partida, ao Diário Popular.

 

No dia 16 de maio, Marcos foi titular dos profissionais do Palmeiras pela primeira vez – e nem teve muito trabalho. Diante de 5.123 espectadores, o alviverde conseguiu impor seu jogo e marcou três gols ainda no primeiro tempo com Toninho, Marcinho e Edu Marangon. Na etapa final, depois de Nelsinho fazer quatro alterações, o Palmeiras diminuiu o ritmo e marcou só mais um, com Biro. O placar de 4 a 0 rendeu ao Verdão o Troféu Guaratinguetá, oferecido pelos organizadores e recebido com orgulho pelo capitão Toninho. Pouco mais de um mês depois da efetivação da parceria com a Parmalat, uma tacinha já chegava ao Palestra – não valia grande coisa, mas era, no mínimo, um bom prenúncio.

 

Com a sensação de dever cumprido, Marcos devolveu respeitosamente a vaga de titular a Carlos, que voltou festejado da terra da Rainha. No empate em 1 a 1 com a Inglaterra, o goleirão defendeu um pênalti de Gary Lineker e impediu o artilheiro da Copa de 1986 de igualar o recorde de Bobby Charlton, que anotou 49 gols pelo English Team – Lineker não conseguiria marcar mais nenhum tento pela seleção e encerraria a carreira com 48. Quem era mesmo o pé frio?

 

 

O Brasileiro acabou, o Paulista começou e os reforços arrasa-quarteirão ainda não havia aparecido. O mais famoso era o centroavante Sorato, herói do Vasco no título nacional de 1989, que entrou na vaga de Evair. De resto, nomes incógnitos como Edinho Baiano, adquirido do Joinville de Santa Catarina, e Jean Carlo, vindo do Matsubara do Paraná, desembarcaram no Parque Antarctica. José Carlos Brunoro, quase profético, pedia tranquilidade à torcida na Gazeta Esportiva de 27 de maio de 1922. “Meu trabalho será a médio prazo, dois anos, mas a curto prazo as coisas serão melhoradas. A torcida pode esperar”.

 

Naquele momento, a prioridade era a renovação do contrato do goleiro Carlos, que venceria no meio do ano. Uma proposta do futebol japonês fez a negociação se tornar uma novela mexicana, cujos capítulos eram acompanhados de perto pelos reservas Marcos e Sérgio, de olho na vaga. O final, porém, não foi dos mais felizes para os suplentes – Carlos ficou no alviverde. Para piorar, o Palmeiras anunciava a chegada de mais um goleiro. César, pirulão de 23 anos que já havia passado pelo Palestra em 1990. Manter quatro guarda-metas no elenco era um tanto quanto desnecessário. E a corda arrebentou do lado mais jovem. Marcos, com seus 18 anos, voltou a compor o elenco dos juniores.


Sorte da molecada: enquanto os profissionais ainda bateriam na trave naquele ano, o goleiro seria o porto seguro da equipe que comemoraria a conquista de um Campeonato Paulista – pondo fim a um jejum ainda mais longo no clube.

 

 

Sem vencer o Campeonato Paulista de Juniores há duas décadas, o Palmeiras contrataria Raul Pratali no início de 1993 para colocar ordem nas categorias de base. O ex-goleiro do Comercial de Ribeirão Preto teve de fazer uma legítima faxina no elenco dos juniores, dispensando atletas no limite da idade que não seriam aproveitados no profissional (muitos) e promovendo os destaques dos juvenis (poucos). Para completar o grupo, acionou sua rede de olheiros no interior e levou algumas promessas anônimas ao Palestra Itália. Também bateu de gente com o departamento amador para exigir a contratação de um preparador de goleiros, até então um luxo do time principal, atendido pelos serviços de Zé Mário. E conseguiu trazer para a função dos juniores um chapa de nome Carlos Pracidelli, recém-aposentado guarda-metas que fizera relativa fama defendendo o XV de Jaú e o Juventus nos anos 1980.

 

Assim, no peito e na raça, Raul Pratali montou um bom elenco, principalmente armou um excelente time. Na defesa, William, Moraes, Marcos Vicente e Ferreira; no meio-campo, Amaral, André, André Luiz e Fred; Juari e Magrão, assíduo frequentador da Seleção Brasileira de novos. De volta ao Verdinho, Marcos – conhecido nos juniores como Marcos Roberto – ganhou a posição do goleiro Marcelo, ajudando na boa campanha que levou o Palmeiras, em julho, à final do torneio, contra a Portuguesa, quando o placar já apontava 2 a 2, o alviverde teria, de novo, ficado pelo caminho.

 

A finalíssima foi disputada em 22 de julho de 1992, no Estádio Santa Cruz, em Ribeirão. Embora precisasse apenas de um empate para ficar com a taça, já que vencera o jogo de dia no Parque Antarctica por 2 a 1, o Palmeiras, honrando a tradição foi para a frente e abriu 3 a 2 já na primeira etapa, com dois de Magrão e um de Juari – Maurinho fez os dois gols do time da casa. No segundo tempo, Raul Pratali segurou a equipe, que neutralizou o Fogão e ainda esteve perto de anotar o quarto gol. Quando o juiz Paulo Roberto Garbi apitou o final do duelo, o Palmeiras derrubou sua primeira fila. Na volta a São Paulo, o elenco de juniores perfilou-se, orgulhoso, no gramado do estádio Palestra Itália para a foto oficial de campeão – com Marcos já envergando a nova camisa de goleiro, azul com detalhes em branco, criada pela Adidas depois que alguma alma sã finalmente percebeu que o rosa e o amarelo não combinavam muito com o clube.

 

O título trouxe uma responsabilidade extra para os juniores: vencer pela primeira vez o mais tradicional torneio nacional da categoria, a Copa São Paulo, em janeiro do ano seguinte. E a pressão era dobrada porque a equipe faria praticamente toda sua campanha em casa – sede do grupo D, o Parque Antarctica abrigaria os jogos do Palmeiras até as semifinais, caso a equipe lá chegasse. Como mandava a tradição, a finalíssima seria disputada no Pacaembu no dia do aniversário de São Paulo, 25 de janeiro.

 

Justificando a fama, os garotos de Raul Pratali fizeram bonito na primeira fase, batendo o Vitória da Bahia (2 a 0), o Atlético Mineiro (2 a 1) e o Paraná Clube (3 a 0). Na etapa seguinte, os adversários seriam Comercial de Ribeirão Preto, Matsubara e São Paulo, que perdera do Bahia e terminara em segundo no seu grupo. Os times se enfrentariam em um turno único, com o campeão classificado para a semifinal da Copinha. Logo de cara, o Verdinho pegou o Comercial, elo mais fraco da chave – e seguiu a sina do Verdão de tropeçar em equipes do interior. O empate em 1 a 1 colocou o Palmeiras atrás do São Paulo, que vencera o Matsubara. Assim, o alviverde era obrigado a triunfar no clássico do dia 17d e janeiro para seguir dependendo apenas de suas forças.


Entretanto, diante de um Palestra Itália lotado, o Tricolor do técnico Márcio Araújo, que tinha no elenco promessas como Pavão, André Luiz, Catê, Jamelli e o goleiro Rogério Ceni, de 17 anos, conseguiu segurar o campeão paulista. O empate de 1 a 1, gols de Sérgio Baresi e Fred, forçava o Verdinho a ganhar do Matsubara na última rodada e torcer por uma escorregada do rival contra o Comercial. “É duro depender de outro resultado como é o nosso caso, mas temos que fazer nossa parte e ver o que acontece”, declarou Marcos ao Diário Popular de 19 de janeiro. Realmente, de nada adiantou a vitória por 2 a 1 contra os paranaenses; o expressinho do São Paulo encaçapou 2 a 0 no Comercial e derrubou o invicto time de Raul Pratali do torneio, para desconsolo da nação palestrina.

 

O campeão? Estava escrito nas estrelas. A edição de número 24 do torneio pertencia ao Tricolor do Morumbi, que bateu o Corinthians por 4 a 3 na decisão e levantou sua primeira Copa São Paulo.

 

 

A boa campanha de Marcos nos juniores do Palmeira não passou despercebida pela comissão técnica da Confederação Brasileira de Futebol. Em 1992, o goleiro já havia sido convocado para os treinamentos com vista ao Sul-Americano de Juniores, classificatório para o Mundial da Austrália do ano seguinte, mas acabou cortado do grupo que embarcou para a Colômbia – um balde de água fria recebido justamente no dia do seu décimo nono aniversário, em 4 de agosto. Em 1993, porém, Marcos recebia novo chamado, agora para compor a Seleção Brasileira da categoria que excursionava pela Europa. O palmeirense vestiu pela primeira vez a amarelinha no II Festival internacional do Futebol Val´Action, na França, competição que o Brasil faturou passeando sobre os adversários: 6 a 1 na República Tcheca, 3 a 2 na Eslováquia e 2 a 1 na Rússia.

 

A parada mais importante do giro europeu aconteceria de 6 a 15 de junho, em Toulon, sede do Festival Internacional de Futebol “Espoirs”, um dos mais prestigiados certames ente seleções de base do planeta. Daniel Passarella, Stoichkov e Zinedine Zidane, entre outros, brilharam pela primeira vez ao mundo na vitrine do torneio, disputado desde 1967. O Brasil triunfara em 1980, 1981 e 1983, e registrara sua última participação em 1987, com uma equipe que, mesmo contando com Taffarel, André Cruz e César Sampaio, ficou apenas na terceira colocação.

 

A expectativa em Toulon com o escrete canarinho era grande – afinal, a Seleção vencera, no primeiro semestre, o Mundial de Futebol Júnior, na Austrália, e vinha da boa impressão deixada em Val´Action. Mas vexame é pouco para o desempenho dos garotos. Treinada por Carlos Alberto da Luz, a equipe, que tinha como destaques Sávio, Yan, Bruno Carvalho e Argel, além de Wagner e Magrão, do Palmeiras, terminou em um horrível sétimo posto, à frente somente da Bulgária. Marcos ficou de fora da estreia – em que a República Tcheca venceu por 3 a 2 e vingou-se da goleada sofrida no último encontro – e voltou contra Portugal, na vitória dos lusos por 1 a 0. O máximo que o arqueiro palmeirense conseguiu fazer foi garantir o empate sem gols contra a Inglaterra, que se sagraria campeão da competição. Para completar a tortura, a Seleção, ainda com Marcos na meta, se despediu da turnê com uma derrota para Itália, 2 a 1.

 

Mas a tristeza do goleiro não duraria muito tempo. Em seu retorno ao Brasil, Marcos se juntaria a um elenco que, dede 12 de junho de 1993, já não tinha mais fantasmas para exorcizar.

 

Publicado originalmente em CAMPOS JÚNIOR, Celso. São Marcos de Palestra Itália. Santos: Realejo Edições, 2011.

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