segunda-feira, 3 de julho de 2023

São Marcos 50 Anos, parte IV de IV: Um espectador privilegiado.

 Capítulo IV: Um espectador privilegiado 



Por Celso de Campos Júnior

 

Muita água havia passado por debaixo da ponte do time principal do Palmeiras desde o retorno de Marcos aos juniores, em junho de 1992. Apesar do apoio dos cartolas e da Parmalat, Nelsinho Batista se demitira nos vestiários depois de um empate sem gols em casa contra o Noroeste, em 19 de agosto – três derrotas consecutivas no Campeonato Paulista haviam feito as torcidas organizadas transformarem o Parque Antártica, naquele dia, em uma panela de pressão que apitava pedindo a cabeça do treinador. Depois de receber recusas de Candinho e Valdir Espinosa, o clube acertou com Otacílio Gonçalves, campeão da segunda divisão do Brasileiro com o Paraná Clube.

 

Apelidado de Chapinha pela excelente relação mantida com seus comandados, o bonachão gaúcho soube preparar, de imediato, um bom minestrone com os ingredientes que estavam à mão. Com o decorrer da temporada, novos reforços chegaram e deram mais substância à receita: os meias Zinho, ex-Flamengo, e Cuca, ex-Grêmio e Internacional; o lateral Mazinho, ex-Vasco e Fiorentina; e o ponta Maurílio, ex-Paraná. Mais importante, o treinador teve o bom senso de reintegrar o centroavante Evair, demonizado por Nelsinho – e foi o camisa 9 que liderou a surpreendente recuperação da equipe no segundo semestre de 1992. O Palmeiras chegou às semifinais da Copa do Brasil, caindo apenas diante do futuro campeão, o Internacional de Porto Alegre, e à decisão do estadual, perdendo para o São Paulo de Telê Santana, Zetti, Cafu, Raí, Müller e Palhinha.

 

De qualquer forma, o triunfo na primeira partida do quadrangular semifinal do Paulista, contra o Corinthians novamente treinado por Nelsinho Batista, já havia valido como um título para a torcida. Domingo chuvoso no Morumbi, 8 de novembro de 1992: Evair, em uma cobrança milimétrica de falta no ângulo de Ronaldo, marcou o gol que derrubou o arquirival e impulsionou o Palestra rumo à primeira disputa de título desde 1986. Seria apenas o primeiro capítulo da doce vingança do centroavante contra o técnico que o encostara.

 

Para o Paulista de 1993, finalmente a Parmalat cumpria a promessa e abria de vez o cofre para entregar à torcida um esquadrão. Roberto Carlos (ex-União São João), Edmundo (ex-Vasco da Gama), Edmundo (ex-Vasco da Gama), Edílson (ex-Guarani) e Antônio Carlos (ex-São Paulo e Albacete) chegavam para compor a Via Láctea palestrina e tirar de vez o Verdão da fila. No gol, Carlos, que perdera a posição no final do semestre anterior para César, se despedia em definitivo. Mas não seria César o guarda-metas para o Paulista. O novo titular era um velho conhecido da torcida palmeirense: Wagner Fernando Velloso. Dono da posição entre 1989 e 1991, o talentoso prata casa fora cedido em 1992 para o União São João de Araras, por conta da chegada de Carlos, mas voltava ao Parque Antarctica em alta, para ser o homem de confiança de Chapinha sob as traves.

 

Apesar da boa campanha, porém, o time dos sonhos não encantava. Problemas de relacionamento entre os medalhões afetavam a performance técnica da equipe, e Otacílio não conseguia encontrar uma solução para os pesadelos. Em 15 de abril, depois de uma derrota em casa para o carrossel caipira do Mogi Mirim – com o gol da vitória marcado por um pernambucano magricela chamado Rivaldo -, Chapinha desceu aos vestiários xingado pela torcida e se demitiu dois dias depois.


A diretoria, agora liderada pelo presidente Mustafá Contursi, eleito em início do ano, tentou primeiro Nelsinho Rosa, campeão brasileiro em 1989 com o Vasco. Entretanto, ainda que tentado a assumir o cargo, o treinador teve de recusar o convite – contabilizando três pontes de safena, foi obrigado pela família a dizer não à montanha-russa de emoções chamada Palmeiras. Assim, em 19 de abril de 1993, o alviverde partiu para o plano B e contatou Wanderley Luxemburgo, famoso por levar o Bragantino ao título paulista de 1989, mas desempregado depois de passagens improdutivas pelo Guarani e pela Ponte Preta. O acerto foi imediato: no dia seguinte, Luxemburgo desembarcava em São Paulo para ser apresentado na sala de troféus do Palestra Itália, tornando-se o trigésimo terceiro a assumir oficialmente o Verdão desde 1976.

 

Lateral esquerdo coadjuvante nas grandes equipes do Flamengo e do Internacional da década de 1970, técnico desde 1983, quando estreou no banco do Campo Grande do Rio de Janeiro, Luxemburgo recebia, aos 40 anos, sua segunda oportunidade de ser protagonista em um grande clube brasileiro depois do período de glória em Bragança Paulista. Em 1991, o treinador deixara a terra da linguiça para comandar o Flamengo, seu time de coração, mas não conseguiu corresponder às expectativas rubro-negras e durou apenas oito meses na Gávea.


Adepto do futebol ofensivo e grande estudioso da parte tática do esporte, Luxemburgo não gostava de limitar seu trabalho às quatro linhas. Á moda de alguns colegas europeus, acreditava que o treinador deveria meter o bedelho no próprio planejamento do clube, com a fixação de metas e objetivos. Respaldado pelo profissionalismo da Parmalat, o estrategista encontraria no Palmeiras um campo fértil para semear suas ideias. “Em equipes sem condição financeira você é obrigado a planejar o seu trabalho a médio ou longo prazo. Mas aqui no Palmeiras é diferente. Com essa estrutura financeira, podemos ter resultados imediatos. Tenho certeza de que o Otacílio deixou uma boa base e tentarei explorar isso da melhor maneira possível”, declarou à Folha de S. Paulo de 21 de abril.

 

Dito e feito. Com fama de disciplinador, Luxemburgo chegou, enquadrou as estrelas e colocou o supertime nos eixos, mantenho a ponta da primeira fase do Paulistão e terminando o quadrangular semifinal com 100% de aproveitamento – ganhou os jogos de ida e volta contra Guarani, Ferroviária e Rio Branco. Nas finais, o adversário seria o Corinthians, que superara São Paulo, Santos e Novorizontino em um verdadeiro grupo da morte.

 

Mas os primeiros 90 minutos da decisão ressuscitaram o temor de velhos fantasmas: derrota por 1 a 0 para o arquirrival, gol de Viola, que ficou de quatro na comemoração e imitou um porco. O gesto que provocou a ira dos palestrinos, contudo, virou arma de Luxemburgo: para mexer com o orgulho dos atletas, o professor repetiu a imagem à exaustão em suas palestras motivacionais na semana que antecedeu à finalíssima. Mordidos, os palmeirenses, no dia da graça de 12 de junho de 1993, fizeram o Corinthians chafurdar no verde do Estádio do Morumbi, emplacando uma sonora e humilhante goleada de 4 a 0, 3 a 0 no tempo normal e 1 a 0 na prorrogação. A carnificina foi liderada pelo matador Evair, que completava sua vendetta contra Nelsinho – ele, de novo, técnico do Corinthians.

 

A partir daí, fila, agora, só de troféus.

 

 

Depois de 17 anos segurando o grupo de campeão, a torcida não demorou nem dois meses para voltar a comemorar um título – desta vez a conquista do renascido Rio-São Paulo, em agosto de 1993. Com quase meio time servindo à Seleção nas eliminatórias, o Verdão mostrou que seu misto era quente e bateu nas finais, novamente, o Corinthians. Endiabrado, Edmundo só não fez chover no primeiro jogo: marcou na etapa inicial os dois gols que garantiram a vitória palmeirense, cansou de provocar os rivais e foi expulso logo na volta do intervalo, depois de dar uma bica em Marcelinho Paulista. Na decisão, disputada no Pacaembu em 7 de agosto, o Palestra segurou o empate e fez o Corinthians colocar a viola no saco mais uma vez.

 

Durante o Rio-São Paulo, a equipe já não contava mais com Velloso. O goleirão, na verdade, deu um azar tremendo: logo na segunda partida da temporada, contundiu-se na mão esquerda e abriu espaço para o jovem Sérgio, que ganhou a confiança de Wanderley Luxemburgo e não saiu mais do time. Insatisfeito com a condição de suplente, Velloso foi emprestado ao Santos após o Paulistão – e assim Marcos foi elevado oficialmente ao posto de segundo goleiro do Palmeiras para a disputa do Brasileiro de 1993, já que César também não estava mais no grupo.

 

Para fazer sua estreia em campeonatos oficiais pelo alviverde, Marcos só precisaria de um escorregão do novo camisa 1, justamente seu melhor amigo. E não estamos falando de frangos, perus ou outras penosas: bastava um terceiro cartão amarelo aqui ou uma contusãozinha ali para o reserva imediato da posição fosse escalado.

 

Mas o boa-praça Sérgio Luiz Araújo, então com 23 anos, não largou o osso de jeito nenhum – mesmo diante das dúvidas e cobranças de boa parte da torcida, que colocava sobre ele uma pressão anormal (e absolutamente injusta) até mesmo para os padrões do Palmeiras. Para a incredulidade de Marcos, o titular jogou cada um dos 1.980 minutos que o Verdão fez na campanha irrepreensível ao título brasileiro: 16 vitórias, 4 empates e 2 derrotas. A final contra o Vitória da Bahia foi um passeio, com triunfos de 1 a 0 na Fonte Nova e 2 a 0 no Morumbi. Neste jogo, por sinal, Sérgio recebeu uma homenagem pública do matador Evair, que atravessou o campo para comemorar seu gol com o tão questionado arqueiro – mea-culpa que cada um dos quase 90 mil palmeirenses presentes ao Morumbi dividiu com o Matador. “O Sérgio teve seu valor contestado por muita gente, foi bastante criticado. Mas sempre que nós precisamos ele deu conta do recado com grandes defesas”, declarou o camisa 9 ao Diário Popular de 20 de dezembro.

 

O alviverde exterminava assim mais um jejum. O último Brasileiro fora conquistado havia exatos 20 anos, em 1973. Era a chegada a hora de partir para desafios internacionais – só que aí a batata assou para o caipira de Oriente.

 

 

Depois que o São Paulo venceu os Mundiais Interclubes de 1992 e 93 no Japão, o chamado “Projeto Tóquio” tornou-se uma fixação dos grandes clubes do Brasil. Rivalizando com o Tricolor pelo posto de melhor time do país, o Palmeiras pretendia repetir na temporada de 1994 o sucesso do time de Telê – e, respaldado pela Parmalat, certamente tinha cacife. Para a Copa Libertadores da América, primeira parada rumo à terra do sol nascente, o Verdão decidiu ir atrás de reforços de sangue latino. O primeiro deles era um legítimo trem-bala: o meia colombiano Freddy Rincón, astro da seleção que havia enfiado 5 a 0 na Argentina nas eliminatórias da Copa do Mundo dos Estados Unidos, em 1993.

 

O segundo veio para completar o grupo e dar experiência ao goleiro Sérgio e realmente experiência talvez fosse a única coisa que o paraguaio Roberto Eladio Fernández Roa, popularmente conhecido como Gato, poderia oferecer ao Palmeiras do alto de seus quase 38 anos de idade. Do apelido felino, só restava ao arqueiro o finório bigode. Mas com nada menos do que 12 participações em Libertadores, o veterano poderia passar aos companheiros os macetes da competição continental – e Gato Fernández ainda ganharia a posição de titular dois meses mais tarde, durante uma fase infeliz de Sérgio. Com a chegada do hermano, Marcos foi reconduzido à função de terceiro goleiro, posto que manteria nos dois anos seguintes. Vez ou outra, ajudava a compor o banco de reservas, mas jogos mesmo só com o time de aspirantes, em uma assiduidade que lhe rendeu a braçadeira de capitão.

 

Apresentando um futebol vistoso e eficiente, o Palmeiras de Wanderley Luxemburgo conquistou o bicampeonato no Paulista – fechando o torneio com nova vitória sobre o Corinthians, em 15 de maio. Limitado ao tobogã do Pacaembu, a torcida alvinegra assistiu, silenciosa, ao Verdão meter 2 a 1, com um golaço do capetinha Edílson, que fuzilou Ronaldo depois de sapecar um drible da vaca em Ezequiel. Entretanto, naquele primeiro semestre, o sonho maior do clube ficaria pelo caminho. Uma inexplicável excursão caça-níqueis para o Japão às vésperas do confronto decisivo contra o São Paulo pelas oitavas de final da Libertadores deixou o time sem pernas e provocou a eliminação precoce da competição continental.


O baque, porém, não alteraria o planejamento da nau palmeirense para o Campeonato Brasileiro de 1994. O alviverde manteve a base e ainda trouxe um reforço de peso: o meia Rivaldo, que havia deixado o Mogi Mirim no ano anterior e estava desfilado sua desengonçada classe pelo Corinthians. Com um talento do tamanho do mundo, o pernambucano driblou a desconfiança e ganhou a torcida. Com os pelos ainda arrepiados pelas atuações de Gato Fernández, a diretoria dispensou o paraguaio e promoveu a volta de Velloso, que assumiu de vez a meta palestrina e rumou para sua primeira conquista como titular do clube que o revelara cinco anos antes. Para os outros goleiros do elenco, nada mudou: Sérgio manteve a reserva e Marcos sua posição de segundo suplente.

 

Publicado originalmente em CAMPOS JÚNIOR, Celso. São Marcos de Palestra Itália. Santos: Realejo Edições, 2011.

 

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