segunda-feira, 17 de julho de 2023

Histórias de Heleno de Freitas, parte I de III: Gilda!

 

Capítulo I: 1947- Gilda!

 


Por Marcos Eduardo Neves

 

Adentrou o gramado o Fluminense, perfilando-se defronte às sociais. Seus atletas foram aplaudidos com frenesi. O Botafogo, ao fim do trote, tomou a tradicional chuva de vaias. Fazia parte do espetáculo.

 

Heleno de Freitas, o ídolo da massa alvinegra, batia bola para se aquecer. A aristocrática social de Álvaro Chaves, não o perdoava, xingando-o sem cessar sempre que por lá pisava os pés. Afinal, jogara na base tricolor, era um “traidor”. O centroavante, titular da seleção brasileira, seguia tranquilamente se exercitando. E com um quê de narcisismo. Bem ou mal, adorava ser reconhecido.

 

Quando o Botafogo saía da casa para enfrentar times pequenos, os zagueiros o cutucavam:

 

- Lá vem o “viadinho” de Copacabana.

 

Tudo porque deixava o vestiário com as pernas brilhando da massagem de aquecimento, encharcadas de óleo. E um penteado à base de gomalina que, aliado à beleza física, dava-lhe um ar de Rodolfo Valentino de chuteiras. Era uma vedete.

 

Ao dar o pontapé inicial, rolando para Otávio, Heleno escutou um grito diferente:

 

- Gilda!

 

Reconheceu a voz – era um amigo seu, tricolor, do “Clube dos Cafajestes” -, sorriu, aceitou o desafio.

 

Começava o jogo.

 

Aquele berro despertou a argúcia da torcida pó-de-arroz, a do Fluminense, assim chamada com desdém pelas massas rivais por causa de seu perfil aristocrático. Gilda remetia à personagem de Rita Hayworth no filme homônimo de Charles Vidor, que estreara cinco dias antes na cidade. Não havia apelido melhor. Gilda era uma linda, glamourosa e temperamental mulher. Capaz de derrubar homens cantando e jogando suas luvas para eles. Atributos que se encaixavam, exceto pelas luvas e melodias, com Heleno de Freitas de forma perfeita. Não tardou em virar coro da multidão.

 

- Gilda! Gilda! Gilda! – os torcedores do time da casa já começavam a incomodar. Heleno não podia pegar na bola que escutava a saudação. Começava a ser travada uma espécie de guerra psicológica, que, embora tentasse disfarçar, o desestabilizava emocionalmente.

 

Corajoso, impetuoso, Heleno seguia lutando, louco para fazer um gol. Quando errava um chute, não escapava da gozação:

 

- Gilda! Gilda! Gilda! – a massa se divertida, aliviava o espírito.

 

Sujo, no empurra-empurra da área, nos escanteios, segurava os colhões de adversários, artimanha que aprendera com os argentinos:

 

- Gilda ! Gilda! Gilda !

 

Num lance, atracou-se com o meia Orlando Pingo de Ouro:

 

- Gilda! Gilda! Gilda!

 

Assim que o juiz Mario Vianna virou as costas para os dois, Orlando deu uma cotovelada em Heleno. Insaciável, o goleador alvinegro se vingou sem medir consequências. Com força diabólica, arrancou o cordão do pescoço dele.

 

- Gilda! Gilda! Gilda!

 

A torcida teimava em não se calar. Nas arquibancadas e sociais, uma festa só. Ainda mais com o resultado, nitidamente, dando certo. Ainda que o Botafogo estivesse vencendo, Heleno estava a um passo da insalubridade. Maliciosos, o teste psicológico perduraria por todo o segundo tempo.

 

Heleno se martirizava a cada “Gilda!”. As provações miravam-lhe mais e mais os nervos já desgastados. E não era só “Gilda!”. Marchinha de carnaval da época, o público esgoelava-se cantando “Helena, Helena, vem me consolar!”, música de Antonio Almeida. O centroavante reagia. Ou correndo até a lateral do campo para ensaiar passos de Carnaval, ou distribuindo “bananas” para as arquibancadas.

 

- Escandalosa! – berrava um ou outro. Mas “Gilda! Gilda! Gilda!” era o som que tomava conta do ambiente. E de seu espírito atormentado.

 

O ídolo reagiria de forma agressiva. Agressiva e pornográfica. Sabendo que a alta burguesia das Laranjeiras concentrava nas cadeiras várias senhoras de família, Heleno fez que ia mostrar a genitália para as sociais.

 

- Uh! Cafajeste! – respondiam. E tacavam veneno, em perfeita sincronia: - Gilda! Gilda! Gilda!

 

“Houve um instante em que a torcida tricolor gritou com toas as suas forças: ‘Gilda! Gilda!’. Heleno olhou o placar, meditou, e só depois de concluir a jogada colocou o indicador e o médio em V, como que antecipando a conquista do segundo gol. E teve sorte, porque Teixeirinha fez o segundo”.

 

O Botafogo ganhou de 2 X 1. O outro gol foi assinalado por Geninho. Ironizando os tricolores – fez sinais de que espalhava pó-de-arroz pelo rosto -, Heleno de Freitas, a melhor figura em campo, saiu de campo nos ombros da torcida.

 

Duas semanas depois, o astro viveu o mais memorável dia de sua carreira. Na última partida do turno, 12 de outubro de 1947, o estádio da rua General Severiano ficou pequeno para Botafogo e América. Foi um jogo fantástico. Incansável, destemido, Heleno fez dois belos gols. Era um virtuose da pelota. Na metade do segundo tempo o Glorioso se acomodou, permitindo que o time rubro crescesse e surpreendentemente, empatasse. O pior estava por vir. O goleiro Ary Nogueira César tomou uma bolada na cabeça e desmaiou. Como o médico não conseguiu reanimá-lo, teve de deixar o campo. O zagueiro Gérson dos Santos passou a tomar conta das traves. Qualquer chute a gol era um golpe de emoção nos corações botafoguenses.

 

Com a igualdade no marcador, Heleno teve uma crise de nervos. Friamente, buscou a bola nas redes e a levou ao meio, mas o que se viu no restante do jogo foi um atacante alucinado. Gesticulava sem parar, incitava os companheiros, xingava Deus e o mundo. Revoltado, o treinador Ondino Vieira chegou perto dele numa jogada colada à linha e gritou:

 

- Continue assim que eu vou te responsabilizar pelo placar!

 

Heleno retribuiu com um olhar cheio de ódio. De repente, começou a fazer misérias em campo. Numa investida, sozinho com a bola dominada, quase marcou seu terceiro. Aproximava-se o final do jogo e os zagueiros americanos não desgrudavam do artilheiro.

 

“Mas veio uma bola alta na área e Heleno saiu do chão como um bailarino clássico, leve, macio, fácil, como se tivesse asas...Ninguém pôde impedir que ele mandasse a bola de cabeça para um companheiro, que a devolveu alta. Na corrida, um salto de Heleno e cabeçada magistral no canto. Então, houve outro milagre e o goleiro Osni voou, e com a ponta dos dedos, pôs a corner. Aí só faltavam agarrar Heleno e amarrá-lo.

 

“Devia faltar um ou dois minutos. Heleno fingiu desinteresse no corner e saiu da área para amarrar as chuteiras. Todos os zagueiros se preocupavam então com Nílton, half forte e alto, bom cabeceador. Todos pularam sobre Nílton, que deixou a bola passar. Heleno entrou na área como um tufão e a bola foi limpinha para ele. Osni subiu de braços abertos, mas Heleno, lá no alto, deu com a testa na esfera e a mandou ao chão, bem no cantinho atrás dele. Nem sei como pôde fazer isso”, escreveu, estupefato, o presidente da Federação Metropolitana de Futebol – e sobrinho de Getúlio – Vargas Neto, colunista do Jornal dos Sports.

 

Narrando a partida pela Rádio Globo, Luiz Mendes se recorda que, depois de seu terceiro gol no jogo, Heleno deu um pique até Ondino e vociferou:

 

- Agora, seu gringo filho-da-puta, quero ver você me responsabilizar!

 

O árbitro apitou o fim da batalha. Botafogo 3 X 2. Imediatamente os companheiros e Alvinegro o carregaram em triunfo. Era normal que torcedores, enlouquecidos, invadissem o campo e suspendessem seus heróis nos ombros. Mas os próprios jogadores, era um fato novo. Uma prova de que era mesmo diferente. De que nunca houve um homem como Heleno.

 

Publicado originalmente em NEVES, Marcos Eduardo. Nunca houve um homem como Heleno. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.

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