terça-feira, 18 de julho de 2023

Histórias de Heleno de Freitas, parte II de III: Rebelde sem causa

Heleno de Freitas e João Saldanha. Ambos bastante jovens

 Capítulo II: 1920-1933 Rebelde Sem Causa

 

Por Marcos Eduardo Neves

 

Heleno nasceu em berço esplêndido, numa tradicional família de São João Nepomuceno, município inserido na mesorregião da Zona da Mata mineira, e que faz parte da microrregião de Juiz de Fora. A cidade, cuja população é estimada em 25 mil pessoas, localiza-se a 322 quilômetros da capital do estado, Belo Horizonte. Da cidade do Rio de Janeiro distancia-se 247 quilômetros.

 

Com parcos 408 metros quadrados, a mineira São João Nepomuceno não passava de uma bucólica cidade entre montanhas e carros de boi, com ruas, vielas e calçadas de pedras rombudas, que somente aos domingos se mexia, graças ao movimento da roça que vinha para a missa. Conhecida como cidade garbosa, da moda e da alegria, terra de belíssimas cachoeiras, trilhas, rios, matas, ainda hoje é possível admirar fazendas, ricos casarões coloniais, alegria e receptividade em sua gente. E um patrimônio histórico que remete aos tempos dos barões do café.

 

Em 1920, Oscar de Freitas não era barão, mas um próspero negociante de café. E não só de café. A Casa Americana, propriedade sua, refinava também açúcar. Os Freitas, que sempre ocuparam cargos importantes e de destaque na Velha República, tinham negócios espalhados, como roupas, armarinhos, ferragens, louças, chapéus, calçados, papéis e tintas. Oscar era sócio de seu irmão Lincoln, o mais abastado da família, e de Gomes de Freitas, que se desdobrava para acumular, com os negócios a gerência da agência da Caixa Econômica local. Uma de suas irmãs Maria de Freitas, casou-se com o advogado Francisco Zágari, e outra, Ida com Carlos Pinheiro, que exercia cargo de destaque no Banco do Brasil. O outro irmão, Euclides, era médico. Enfim, entre os Freitas nunca se aventaria a hipótese de que fossem gerar para o mundo um jogador de futebol.

 

Natural de Pombal, Oscar era casado com uma moça de Cataguases, mas criada em Ouro Preto, chamada Maria Rita de Freitas. Perdendo a bela silhueta com o passar dos anos, não perdia o respeito na cidade. Chamada por todos de Dona Miquita, orgulhava-se por ser uma das primeiras professoras do Grupo Escola Coronel José Braz, onde seus filhos cursariam primário.

 

Embora se completasse um quinto de século XX, não só São João Nepomuceno como todo o país parecia ter se estagnado no anterior. Poucas eram as mudanças permitidas por aquele rodízio, aparentemente eterno, entre presidentes ora de Minas ora de São Paulo. Naquele começo de ano, Epitácio Pessoa dirigia a nação de pouco mais de trinta milhões de pessoas. As finanças não iam mal; permitiam até despesas de vulto. Enquanto as duas paixões nacionais- o futebol e o Carnaval – floresciam.

 

Em âmbito mundial, sem sequer imaginar que se tornaria uma marca milionária, aos 30 anos a inglesa Agatha Christie explodia com “O misterioso caso de Styler”. E se sua literatura seira sucesso no Brasil, o que dizer do esporte nacional, que traduzia cada vez mais a autoconfiança do povo? Na metade do ano, quando pela primeira vez participaram de uma Olimpíada, os brasileiros conquistaram, nos Jogos de Antuérpia, na Bélgica, suas três primeiras medalhas. Todas na prova de tiro. Inclusive uma de ouro.

 

Antes disso, porém, as emoções do Carnaval. Se o Rio foi contagiado pelas primeiras marchinhas, São João Nepomuceno não deixou por menos. A cidade se dividiu entre os bailes dos clubes Democráticos e Trombeteiros do Momo, além dos blocos e cordões de rua, que, em meio a palmas e vivas dado em profusão, atraíram centenas de visitantes dos municípios vizinhos.

 

Todavia, numa das noites carnavalescas, o clima em uma das casas da rua do Totó estava longe de ser festivo. Enquanto Dona Miquita dava à luz um novo rebento, na chácara da família, aos vinte minutos do dia 12 de fevereiro, os Freitas passaram maus bocados para salvar filho e mão. Tamanha a aflição que Dona Miquita, mulher de muita fé, fez até uma promessa: dar ao filho, ou filha, nome de santo, caso sobrevivesse. Como era devota de Santa Helena, por nascer homem, decidiu, seria Heleno. Heleno de Freitas. Nada melhor que um nome abençoado para protege-lo ao longo da vida.

 

Cresceria o pequeno Heleno ao lado dos cinco irmãos, Rômulo, Marina, Heraldo, Oscar e Vera Maria – os gêmeos Lúcio e José Lúcio morreram ainda crianças.

 

Marina era a mais velha. Gordinha, cabelos pretos que escorriam até os ombros, revelava desde pequena, ninando bonecas no colo, traços da dona de casa cuidadosa e amorosa que seria. Ajudaria muito a mãe a cuidar dos irmãos. Como Rômulo, seu primeiro, e que lhe deu muito trabalho. Lindo semblante, bem moreno, cabelos em forma de onda e olhos azuis que, quando molhados, tendiam ao verde, se nunca gostou de brincar de bola, assim que crescer passou a se gabar do seu indiscutível sucesso com as mulheres. Antes de se formar, no Rio de Janeiro, em direito, Rômulo chamava a atenção por sua beleza e simpatia. Quando bem-sucedido, trabalhando no departamento jurídico do SESC, casou-se e teve herdeiros, sem jamais deixar de aventurar-se na boemia do então Distrito Federal.

 

Segundo homem a nascer, desde pequeno Heraldo apresentava-se como o de melhor gênio. Sorridente, cativava as pessoas com um olhar. Cresceu sempre amigo, alegre e comunicativo. Nas peladas era dos primeiros a ser escolhido. Muitos o aconselhavam a seguir carreira de jogador de futebol, mas, com problemas sucessivos no joelho, teve de abandonar a bola. Mesmo assim, seria diretor do Mangueira Futebol Clube, um dos melhores clubes da região. Magro, 1,78 metro, olhos negros como os cabelos, também se formaria em direito no Rio, mas para voltar e trabalhar em sua terra.

 

Oscar seria outro a desistir do futebol, apesar do dom. Quatro anos mais velho que Heleno, foi a criança mais pacata, tranquila, da casa. Sossegado, para não dizer fechado, só se rebelava quando, jovem, o chamavam de Oscarito – personagem que fazia sucesso em peças e filmes. Com olhos claros, cabelos lisos e 72 quilos satisfatoriamente distribuídos por 1,75 metro, formar-se-ia na Faculdade de Odontologia, na Urca, montando em seguida um consultório na avenida Nossa Senhora de Copacabana, esquina com Joaquim Nabuco. Determinado a construir família e apaixonado, firmaria matrimônio com Irene Ramos, dando-lhe como o maior presente o sobrenome Freitas.

 

Sobrenome que herdara de nascença Vera Maria, a caçula. Morena alta, de cabelos lisos, pele branca, aparência europeia, simpática e com tendência para engordar, tinha uma beleza quer lhe valia o corpo sempre inconstante. Adulta, ao ser desposada Vera Maria não trocou os deveres de funcionária pública – trabalhava no IBGE, também na Urca – pelas tarefas do lar.

 

Antes de Vera, dando uma pequena volta na história, naquele segundo mês de 1920, veio ao mundo Heleno. Dentre todos, quem possuía os olhos mais brilhantes, cheios de vida. Ao mesmo tempo, disparado, o mais tímido, mais introvertido. E paradoxalmente, o mais exaltado, como assegura sua prima Ema Zágari, filha de Maria de Freitas:

 

- Ele defendia os mais jovens, aprontava a maior confusão, se irritando com o que não achava certo. Desde pequeno foi assim.

 

 

Todos os irmãos eram muito queridos na cidade. Apontados como os mais bonitos e bem cuidados da região, foram sempre tratados a pão-de-ló pelo pai e pela mãe, cada vez mais gorda, bochechuda, olhos carregados. Apesar da idade, Dona Miquita não se descuidava de apresentar-se sempre bem-vestida. Colecionava turbantes, mas não era de ostentar. Dona de um sorriso sincero, sua alegria de viver começava e acabava dentro de casa, onde passava horas contando historias para os pimpolhos, e onde, com o passar dos anos, acolhia com educação e delicadeza os amiguinhos que seus meninos diariamente convidavam.

 

Não achava Dona Miquita que carinho demais podia atrapalhar a formação dos rebentos. Quanto a Heleno, por exemplo, o mimo era tanto que a matriarca o queria sempre limpinho, arrumadinho, engomadinho. Heleno pouco brincava no chão, como qualquer guri, fosse de bola de gude ou pião, temendo se sujar. Seu negócio era pique e corda de pular. Aos 6 anos começou a demonstrar notável interesse pela leitura. Ficava horas se entretendo com livros e coleções, sozinho, encantado.

 

Criança desconfiada, ansiosa, o pequeno Heleno temia cometer atos ridículos. Perturbava-se, por exemplo, quando um brinquedo se quebrava. Era como se tudo estivesse perdido. Ficava agitado, impaciente. Mas era um mundo de felicidade e confiança quando se mostrava capaz de desempenhar sozinho qualquer tarefa solicitada, principalmente se o êxito viesse acompanhado dos honestos elogios dos adultos amigos de seu pai. Os de fora o tinham como muito agradável. Arrebatando-os com deliciosas gargalhadas, seu caharme joveil conquistava qualquer um.

 

No café-da-manhã, porém, irritava-se no copo de leite enxergasse vestígios de nata. Criado com regalias e fartura, os pais prometiam qualquer coisa que lhe interrompesse o pranto desconsolado. Seu Oscar era bastante amoroso – instituía a disciplina, não o castigo, enquanto sua mãe apoiava-lhe as tendências. Na profissão que optasse, daria a maior força. Desde que escolhesse entre ser médico ou advogado.

 

O problema é que, entre os irmãos, Heleno sempre foi o mais vidrado em futebol. Durante sua infância o esporte bretão tornou-se sucesso popular no país. Embora pretendesse seguir o roteiro dos irmãos, formando-se no Rio, Heleno não desgrudava da redonda. Na cidade, havia um escalvado improvisado de campo, desmarcado por quatro escadas, onde, entre pedras e buracos, chutou sua primeira bola, feita com meias de mulher, que perdia depressa a forma, ainda mais com todos a lutarem por ela ao mesmo tempo. Ás vezes, podia ser encontrado ali, até porque gostava de pesar lambari num córrego próximo. Juntava o útil ao agradável.

 

Tinha muito intimidade com a pelota tanto em campos duros quanto nos de terra batida. Não tardou a treinar no Mangueira, sendo dirigido pelo mano Heraldo, um dos atletas do time de cima. O clube era o principal da região; o maior rival do Botafogo e Operário locais. Aos 7 anos, atuando entre os mais velhos, Heleno já cavava seu espaço. Da reserva ao infantil, rapidamente se tornou titular. Ao contrário do que pregaria mais tarde o “Príncipe Etíope” Didi, para Heleno treino não era treino, era jogo – e de vida ou morte.

 

Disputava cada lance como se estivesse numa guerra; vencer era uma questão de honra. Invariavelmente arrumava encrenca. Uma vez Heraldo decidiu expulsá-lo, para repreendê-lo, impor limite. Altivo, gênio forte, Heleno recusou-se a sair. Para reforçar sua autoridade, Heraldo o arrastou pelo campo do meio à lateral e, como irmão ainda resistia, dirigiu o restante do treino a segurá-lo com o pé sobre seu pescoço.

 

O infantil do Mangueira logo se transformou na mais temida equipe da região. Por contar com Heleno. Segundo seu vizinho Renê Mendonça, o jogador se enfezava com tudo, embora não guardasse rancor:

 

- Vi Heleno no começo de carreira, jogando pelo Mangueira. Jogava o fino, de half-esquerdo, half-direito, onde fosse. Mas a qualquer momento podia se tornar intolerável. Que foi que deu na sua telha, Heleno? Se quer respondia. Num piscar de olhos, transformava-se no sujeito mais desagradável do mundo.

 

Companheiro de Heleno no Grupo Escolar, a melhor escola pública da região, Renê sentia que o guri tinha um quê de especial. Além de compor músicas e jogar muita bola, era quem melhor se apresentava na sala de aula e na igreja – a mãe sempre tentou encaminhá-lo, tanto que Heleno confessava e comungava -, apesar de, algumas vezes, zangar-se por qualquer contrariedade.

 

Como na hora das refeições. Heleno dava bastante trabalho à Dona Miquita, pois agora seu feijão não podia ter casca, o arroz não podia estar molhado e o bife, como ele, sempre fino e sem gordura. E nada, nada de cebola. Tinha alergia e nojo.

 

Apesar das idiossincrasias, sempre foi o mais querido da mãe e aquele em quem o pai depositava as maiores esperanças. O velho Oscar queria que se tornasse um doutor, de anel e diploma, ou general como Floriano Peixoto, valente e patriota. Heleno pensava da mesma forma. Jogar bola era bastante divertido, mas ser advogado era seu grande sonho.

 

 

Por volta dos oito anos, em casa, com a sala repleta de visitas – os velhos e sisudos amigos do pai - , Heleno erguia atrevidamente sua voz infantil às alturas defendendo tese. Falava, com olhar de indignação, das futuras condenações inexoráveis que aplicaria aos mais tórridos criminosos. Fossem eles ricos e tentasse suborna-lo, dizia:

 

- Eu lhes cuspiria as ventas e as condenações seriam perpétuas!

 

Nessa parte foi interrompido pelo pastor Clementino, presente à reunião. Procurando acalmar seu espírito conflitante, o religioso só lhe fez crescer a raiva. Ao denunciar o feio pecado de escarrar a face de um irmão...

 

- Considerar criminoso meu irmão – replicou, na hora, Heleno. – Ah, isso, nunca!

 

Disse-lhe isso e botou as mãos nos bolsos. Lançou em torno e notou que os velhos senhores, amigos do pai, sorriam a bastar daquilo que o sacerdote fora obrigado a escutar.

 

- Se todos os advogados tivessem a mentalidade do pastor Clementino – discursava Heleno -, não repelindo subornos nem cuspindo no rosto de quem os propusera, os pobres e oprimidos teriam de clamar pela justiça divina, porque clamar pela justiça da erra é que não podiam, ou, se clamassem, não arranjariam nem para o café -concluiu, insolente.

 

Palavras tais, argumentos expostos por um menino que beirava os 9 anos, causaram impacto. Aqueles respeitáveis fidalgos foram a seu encontro, apertaram-lhe a mão e teceram elogios à sua personalidade. Heleno chegou a ser comparado a Cícero.

 

- Não, talvez ne Cícero fosse tão eloquente na sua idade – comentou, amável, um velhinho.

 

O elogio motivou Heleno a permanecer insensível perante o pastor. Quando deixou a sala, vangloriado pelos aplausos que recebera, um turbilhão de imagens tomou-lhe a mente. Viu-se crescido, advogado famoso. Projetou um futuro de sucesso e glória.

 

 

Da infância Heleno não esquecia da primeira vez que entrou em um circo. Nada o maravilhara mais que o trapezista – e sua coragem dar o salto da morte. Os ouros personagens do espetáculo se apresentaram a seus olhos como “míseros fósforos apagados”, diria anos mais tarde. Quando o anfiteatro se despediu da cidade, foi tomado por cólera. Até matutar uma solução que lhe aplacasse a ira. A ideia luminosa: inaugurar com os irmãos e alguns amigos um novo picadeiro. Em casa.

 

Com a permissão dos pais, chegava o dia da estreia. A garotada toda da região se juntou para ver o acontecimento. Seu lar, um formigueiro humano. Ninguém faltou. Lá estavam, novamente, o pastor Clementino e sua senhora, e, principalmente, Margarida, a filha de seu professor no primário.

 

Embora menina, Margarida se enquadrava perfeitamente no tipo “mulher fatal”. Lançava olhares ora doces ora vampirescos. Namorava três ao mesmo tempo. Certa tarde, numa tentativa desesperada e inútil, Heleno foi procura-la, com sua autoridade de futuro advogado, para conduzi-la ao “caminho do bem”. Traduzindo: foi rogar que deixasse em paz aqueles três corações sofredores, três meninos que não tinham mais vontade de estudar, muito menos de aparecer em campo para defender as cores do Mangueira.

 

Primeiramente, Margarida riu do pobre coitado. Depois o percebeu melhor; começou a se insinuar. Recitou que jogava tanto, fazia composições tão bonitas, dançava tão bem nos bailes do Democráticos...Falava tudo sorrindo, meio envergonhada, soltando olhares cálidos, inquietantes. Acabou conquistando-. Tornou Heleno sua quarta e mais bela vítima.

           

Quanto ao circo, as exibições foram abertas com Heleno no papel principal. O primeiro número do espetáculo era, justamente, o salto da morte – por ele desastrosamente encerrado. De tão mal executado, quase morreu de verdade. Quebrou a cabeça, machucou a clavícula, teve de tomar 123 pontos na coxa e, como o corte da perna infeccionou, passou um mês de cama. Em compensação, todo dia Margarida visitava-o, como se fosse enfermeira. Quando ele gemia, ela o beijava. Talvez intuindo a tal lei de Skinner – estímulo/resposta -, Heleno passou a gemer sempre.

 

A alegria terminou com a morte prematura do pai, aos 46 anos, em 11 de novembro de 1931. Oscar foi levado por uma pneumonia que, à época, era praticamente fatal, devido à falta de antibióticos. A família pôs luto por quase meio ano:

 

- Nem brincamos carnaval três meses depois – conta Ema Zàgari.

 

O medo de seus impulsos agressivos, combinados com o conhecimento da morte como algo real, próximo, causou em Heleno insônia, madrugadas mal dormidas. Chegaria a trocar o dia pela noite. Pelo menos, lia bastante durante as horas de vigília.

 

O forte golpe da perda do marido fez que Dona Maria Rita agisse. Após dois anos vivendo em Barbacena, onde Heleno cursou a primeira e segunda séries do Ginásio Mineiro, a matrona mudou radicalmente o destino dos Freitas. Com Rômulo a cantar e decantar as vantagens do Rio de Janeiro, vendeu, em junho de 1933, a casa e os negócios da família para que toda a prole tentasse a sorte na capital federal.

 

Publicado originalmente em NEVES, Marcos Eduardo. Nunca houve um homem como Heleno. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.

 

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