Playboy entrevista Paulinho da
Viola (fevereiro de 1996)
Uma conversa franca com o
príncipe da MPB sobre monarquia, samba, Carnaval e rock-and-roll, timidez, fama
de namorador e sexo descomplicado
O Brasil, como se sabe, é um
país difícil de se escandalizar. Apesar disso, muita gente acordou
constrangida, no início de janeiro, com a notícia do primeiro escândalo do ano:
o cantor e compositor Paulinho da Viola havia sido discriminado no monumental
show de réveillon montado pela Pepsi-Cola e pela Prefeitura carioca na praia de
Copacabana. A ideia era promover a mais memorável das passagens de ano, com dream
team da música popular brasileira cantando obras imortais de Tom Jobim – e
assim, subiram ao palco Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa,
Milton Nascimento e Paulinho da Viola. O espetáculo que eles fizeram foi
eletrizante, magnífico, mas acabou abalado por uma obscura manobra dos
organizadores, que pagaram cachês de 100 000- reais para cinco das seis
estrelas da noite, e uma quantia três vezes menor para apenas um dos artistas –
Paulinho.
“Não quero discutir dinheiro,
valores materiais”, diria ele para PLAYBOY, alguns dias depois do turbilhão,
quando uma parte da imprensa já começava a discutir se os cachês por uma noite,
afinal, não seriam altos demais. “Artistas como o Chico, Gil, têm um trabalho
que não pode ser aferido por valor monetário – e, para ser sincero, acredito
que eu também não”, diz Paulinho. Ele se revoltou especialmente pala questão
moral, por ter acredito que o cachê era o mesmo para todos – ou por não ter
sido informado de que haveria um abismo de notas entre ele e os outros. Não há
por que duvidar da sinceridade de suas palavras. Paulinho da Viola que ganha em
média 2 000 reais por mês de direitos autorais e já se acostumou a completar o
orçamento com regularidade e sucesso permanente pelo país, jamais apressou o
passo por dinheiro.
A sua trajetória representa uma linha firme e elegante dentro da música
brasileira, na qual se consagrou como o mais clássico dos compositores
populares brasileiros atuais. Aos 53 anos de idade, é reverenciado e já teve
músicas gravadas por mestres de escolas diferentes como Chico, Caetano, Marisa
Monte e Arrigo Barnabé. “É uma joia preciosa”, disse dele Gilberto Gil. “Me
ensinou a amar a velha guarda”, contou o roqueiro Lobão. “Todos os sambas
deságuam em Paulinho”, afirmou João Bosco. Em seus 31 anos de carreira, esse
carioca de Botafogo, bairro onde nasceu e foi registrado como Paulo César
Batista de Faria, conseguiu a façanha de se equilibrar acima de tendências e modismos:
no tempo em que os desfiles ainda não davam Ibope na televisão, há exatamente
trinta carnavais, Paulinho da Viola compôs o seu primeiro e até agora único
samba-enredo para a Portela, Memórias de um Sargento de Milícias;
depois, quando os desfiles entraram na moda e no calendário das agências
internacionais de turismo, ele se afastou da escola por dezessete anos,
inconformado com a descaracterização da festa e com a perda de identidade das
agremiações. Em seu trabalho como cantor e compositor, trafegou com igual
liberdade pela mão e contramão das paradas de sucesso – fez experimentalismos
com composições como Sinal Fechado, Comprimido e Roendo Unhas,
e revisitou as formas mais tradicionais da música nacional, com a desenvoltura
dos craques absolutos, capazes de jogar no campo todo. Não há pressa: ele já
fez, catorze discos-solo, sem contar as participações em grupos no início da
carreira, mas agora está há cinco anos sem gravar, por várias razões, uma delas
indiscutível: “Não estava na hora”, explica.
Tudo em torno de Paulinho da
Viola parece ter a mesma natureza de seu trabalho – as coisas feitas para
durar. Desde os antigos móveis coloniais espalhados pela casa de tijolos
aparentes que ocupa um terreno de 1 000 metros quadrados num condomínio fechado
na Barra da Tijuca, extremo sul do Rio de Janeiro, até os quadros que ele
escolheu para pendurar nas paredes: por todos os cantos, convivem óleos e
acrílicos de artistas renomados como Glauco Pinto de Moraes, João Câmara,
Takashi Fukushima, Newton Mesquita e Heitor dos Prazeres. Numa saleta, um
tesouro fonográfico: uns 3 000 discos de vinil reúnem gravações históricas de
mestres da música brasileira e americana, especialmente, e discos de
violonistas e guitarristas de várias escolas se sucedem como se uma corda
puxasse a outra – há Dilermando Reis, Garoto, Joe Pass, Wes Montgomery, Charlie
Bird, Jimi Hendrix, Stanley Jordan... E, naturalmente, Jacob do Bandolim, líder
do grupo em que tocou muitos anos o pai de Paulinho, o violonista César Faria, que
lhe deu os primeiro sons para ouvir.
Nessa casa ampla e
confortável, onde vive sem luxos com Lila, mãe de quatro de seus sete filhos e
irmã do falecido violonista Rafael Rabello, Paulinho da Viola conversou durante
dois dias com Guilherme Cunha Pinto, editor-contribuinte de PLAYBOY. Numa sala
vizinha, no primeiro desses dias, sua filha Beatriz, de 17 anos, tinha uma aula
particular de matemática; em outra sala, na mesma tarde, o filho João Paulo, de
13, recebia a primeira aula de violão de um professor contratado pelo pai, que
não teria tempo para lhe dar um curso regular. Ao final de uma das sessões de
gravações, que no total somaram 8 horas de entrevista, o editor-contribuinte de
PLAYBOY saiu com Paulinho para um longo passeio pelo Rio, onde viveu as situações
que relata a seguir.
“Sinal fechado, outra vez,
Paulinho da Viola para o Peugeot 405 vermelho no meio de um quarteirão de
Copacabana, onde o trânsito também está engarrafado, e resmunga alguma coisa.
Ele já tentou seguir por vários caminhos para o Centro, onde tem um compromisso
ás 7 da noite. Mas faltam 10 minutos para as 7 e os carros estão em fila,
parados. Em seu último ano de mandato, César Maia, que muitos consideram uma
versão do imperador Nero formado em Economia, enlouquece a cidade com uma obra
em cada esquina. ‘Não posso me atrasar, é muito importante para o seu Cláudio’,
repente a todo momento Paulinho da Viola.
Seu Cláudio é um senhor de 90 anos, sócio número 1 da Portela, que vai
receber hoje a Medalha de Tiradentes, honraria da Assembleia Legislativa do
Rio. Paulinho da Viola prometeu estar presente – e vai estar. Ele consegue
escapar do congestionamento e chega à Assembleia com meia hora de atraso. Mas
quem não está atrasado, com os engarrafamentos na cidade toda? O compositor é levado para a Mesa da Assembleia,
onde os discursos correm soltos. No plenário, um ou outro deputado mistura-se a
uma planteia não muito convencional: ocupam as poltronas, emocionados com a
homenagem ao velho companheiro, antigos e novos sambistas da Portela e de
escolas rivais, como a Mangueira, Estácio e a Beija-Flor. De repente, encerrado
o palavrório, o compositor Monarco entoa o hino da Portela e a plateia se
levanta para cantar mais um. Quando se ouvem os primeiros versos de Foi um
Rio que Passou em Minha Vida, a música que Paulinho da Viola fez em 1969 em
homenagem à Portela, começa um espetáculo inesquecível, que no entanto no dia
seguinte não merecia uma única linha nos jornais; o coro e batida dos tambores,
pandeiros e tamborins enchem o plenário e sobem até a abóboda de vitrais; pares
de porta-bandeiras e mestres-salas evoluem pelos corredores, e as bandeiras das
escolas se misturam com as bandeiras do Brasil e do Estado do Rio; o próprio
guardas da Polícia Militar caem no samba, balançando o corpo junto com os
deputados e os funcionários da Assembleia que correram às sacadas internas do
plenário. Ao final da cerimônia, a bandinha da Polícia Militar se recompõe e
executa a marchinha Cidade Maravilhosa, hino oficial da cidade do Rio de
Janeiro, que encerram alegremente a sessão solene.
Minutos depois da explosão da alegria provocada por sua
música, Paulinho da Viola está de volta ao carro vermelho, rumo a um último
compromisso naquela noite. Antes, porém, aproveita a ida ao Centro e encosta
por um instante numa esquina da Avenida Rio Branco. Aponta para o edifício da
Escola de Belas-Artes e mostra o local exato em que sua composição mais famosa
começou a nascer, quinze anos antes de tomar forma e de ser colocada no papel:
‘Foi aqui, nessa sacada do canto esquerdo, que vi a Portela pela primeira vez,
eu nunca mais esqueci daquela imagem. Eu tinha uns 12 anos. O desfile ainda
acontecia nesta avenida e ali, no quarteirão seguinte, ficavam as cabines dos
jurados, por isso as luzes eram mais fortes. O guarda-noturno do prédio da
Belas-Artes, um sujeito boa-praça chamado Ataíde, fingia que não via a molecada
subindo pelas sacadas, para ver o desfile de graça. Foi assim que consegui
subir, junto com uns amigos.’
Menos de uma hora depois, Paulinho da Viola chega ao
Shopping Center da Gávea, na zona sul carioca, para prestigiar o lançamento do
livro de seu parceiro e amigo Hermínio Bello de Carvalho. Atravessa a multidão
timidamente, troca algumas palavras com a cantora Beth Carvalho e é puxado pelo
braço pela atriz Regina Casé. Ela o apresenta a um inglês que não mexe um
músculo do rosto – o cantor e produtor Malcolm McLaren, descobridor do grupo
Sex Pistols e por isso considerado o pai do movimento punk do planeta. Malcolm
tinha a curiosidade de conhecer um astro da música popular brasileira, e Regina
informa que ele acabou de achar: ‘He is the real one’, diz, indicando Paulinho
da Viola.
‘Ei, Paulinho, vem cá’, aproxima-se o compositor e
cantor Jards Macalé, que usa óculos redondos de lentes duplas, uma clara e uma
escura. As lentes escuras estão suspensas no sentido horizontal, dando a Macalé
a aparência de uma formiga de desenho animado. ‘Quero te apresentar uma das
minhas seis namoradas’, diz o talentoso autor de Movimento dos Barcos.
‘Seis?’, espanta-se Paulinho. Macalé confirma e aponta, orgulhoso, uma moça
elegante que admira as estantes da livraria do shopping. ‘Ela é executiva do
mercado financeiro, excelente pessoa. Existe também uma aeromoça, que é uma
verdadeira gueixa, e outras amigas. Meu único trabalho é fazer com que uma não
encontre a outra.’ Paulinho da Viola sorri, balançando a cabeça, e Macalé de
quem é amigo desde o final dos anos 60, coloca a mão em seu ombro, satisfeito:
‘Sou um homem livre, Paulinho, livre! Não era isso que a gente queria?’”.
PLAYBOY - Você se acha uma pessoa livre?
PAULINHO DA VIOLA – Dentro do possível, acho que sim. É isso que todos
buscam, não é? Durmo na hora que quero... Mas a liberdade é uma fantasia. É uma
busca. Estamos comprometidos com a vida, com a sobrevivência. Mesmo
profissionalmente, pago um preço pela liberdade – escolho o meu caminho, que
nem sempre é o mais fácil, e não faço concessão para vender mais discos.
PLAYBOY – Olhando o que se publicou sobre vocês nesses anos
todos, a sua definição mais contante é a seguinte: “Paulinho da Viola é um
príncipe”. Muitos críticos e colegas seus, como o Lobão disseram isso. Você já
simpatiza com a monarquia?
PAULINHO – Eu não ! (Risos.) Acho a monarquia uma
loucura. Nem sei o que é um príncipe.
PLAYBOY - O que você sente quando recebe um elogio assim?
PAULINHO – Sinto que é algo carinhoso, uma espécie de
reconhecimento. Me envaidece, claro, mas também fico superconstrangido, porque
não me vejo assim, me vejo como uma pessoa muito comum.
PLAYBOY – Por que você acha que essa imagem ocorre a tanta
gente?
PAULINHO – Não sei, é até possível uma associação que se faz do
samba com a monarquia, a partir das figuras do mestre-sala e da porta-bandeira
nos desfiles de Carnaval. Mas acho que não é bem assim: essas fantasias sempre
foram muito mais calcadas na ideia dos brilhos, da roupa suntuosa, de que na
representação de um príncipe ou de um lorde. Eles surgiram mais para valorizar
o espetáculo, para refletir as luzes, entende?
PLAYBOY –
Você também é considerado um dos homens mais elegantes do Brasil. A elegância é
uma preocupação para você?
PAULINHO – Se for em matéria de roupa, não. Tenho poucos sapatos,
me visto da forma mais simples possível com jeans, mocassim, camisa para fora
ou para dentro da calça, tanto faz. Muitas vezes minha mulher é que me compra
as roupas, minhas filhas dizem para pôr uma camisa ou outra. Jamais comprei
roupa no exterior, não ligo para grife. Só não gosto de usar tecidos
sintéticos.
PLAYBOY – E em outros sentidos? Não dá para imaginar você, por
exemplo, dando uma solada num adversário num jogo de futebol.
PAULINHO – Ah, mas se for por isso parei de jogar bola! Para
mim pelada sempre foi brincadeira, uma coisa de irmandade mesmo, de jogar e
depois tomar cerveja, um gozando o outro dentro de um limite. De repente
começou um negócio de todo o mundo querer ganhar de qualquer jeito, dar
botinada, xingar o companheiro que erra. O que é isso? Se nem no Maracanã mais
tem craque... o sujeito fica tentando se afirmar através do futebol, entre
amigos?
PLAYBOY – Não é mais diversão.
PAULINHO – Então hoje o dia-a-dia está cheio de pequenas
deselegâncias que as pessoas fazem, sei lá, porque estão muito fechadas em si
mesmas, num individualismo exacerbado. Como furar fila, subir com o carro na
calçada porque está com pressa. Falar alto no cinema ou durante um show, sem
respeitar o artista ou as pessoas próximas na plateia. Durante uma conversa –
isso acontece muito em São Paulo, onde tenho mais amigos até que no Rio -, noto
que as pessoas estão tão ansiosas para falar que interrompem o outro toda hora.
Pedem desculpa, mas cortam a conversa. São deselegâncias, eu acho.
PLAYBOY – Você pode dar o exemplo de alguns homens e mulheres
que acha elegantes?
PAULINHO – Difícil, assim... O Martinho da Vila, por
exemplo, eu acho elegante. O (jornalista) Sérgio Cabral, também. O (compositor)
Hermínio Bello de Carvalho. Mulheres, deixa ver... A Fernanda Montenegro,
claro. A Marisa Monte. E a (falecida) Clementina de Jesus, eu achava uma
pessoa superelegante.
PLAYBOY – Na nossa edição de dezembro, a atriz e modelo Betty
Lago destacou você como exemplo de homem charmoso.
PAULINHO – (ajeitando-se na poltrona, incomodado.) Foi
mesmo?
PLAYBOY - Leu a entrevista?
PAULINHO – Não, não li.
PLAYBOY – Então qual é o impacto de saber disso agora?
PAULINHO – Bom, eu fico um pouquinho orgulhoso, envaidecido, é natural.
Mas ao mesmo tempo atordoado, porque também não sei o que significa isso.
PLAYBOY – Quais as mulheres mais bonitas do Brasil, na sua
opinião?
PAULINHO – Normalmente, são aqueles que não estão aí. (Risos.)
Aquelas que não estão nas folhas, que as pessoas saúdam como exemplo de
beleza... Não é que essas sejam feias. Mas eu vi na Portela, no subúrbio, moças
bonitas, brancas e negras lindíssimas, completamente diferentes desse padrão de
loura oxigenada, da beleza artificial, moldada, que existe por aí. Não vou
dizer nomes, por favor, não é? Mas uma vez vivi uma situação que me
impressionou. Estava com uns colegas, sentado num lugar, quando chegou uma
mulher bonita, mas que não era meu padrão de beleza. Olha, você precisa ver o
comportamento dos outros: “Que mulher!”, diziam. Só faltou subirem na mesa.
Fiquei admirando e pensando: “Puxa, como é isso – cada um pensa e sente uma
coisa diferente, diante de uma mesma pessoa”. Eu sempre achei minha mulher
lindíssima e já disse a ela mil vezes.
PLAYBOY – O Carnaval é uma festa ultra-sensual, as, nos anos
todos em que comentou os desfiles para a televisão, você jamais parou para
falar de uma mulher que achasse espetacular. Era por timidez?
PAULINHO – Pode ser. Sou muito tímido, venho de uma família
assim, os primos, os tios são deste modo, não sei nem se existe algo genérico.
Pessoas mais recatadas, de ficar caladas mais de ficar ouvindo, quase pedindo
desculpas para falar ou fazer alguma coisa. Então não combina comigo ficar
fazendo comentários a respeito de uma socialite que passa num carro, ou de uma
mulher seminua desfilando. Tem outros que falam, fazem piada. Eu não sei fazer
isso. Nunca fui de ir a um lugar pensando: “Vai ter mulher?” Mesmo quando era
garotão, nunca agi assim: “Aqui eu vou me arrumar”. E acho que quando uma
pessoa amadurece, diminui ainda mais esse negócio de ficar sempre em guarda,
preparado para uma nova aventura.
PLAYBOY – Você não olha para mulheres?
PAULINHO – Olho, como olho para qualquer pessoa – vejo se ela é
bonita e tudo, mas sem imaginar se quero transar ou não com ela. Para mim esse
é um processo mais longo. Não é nem que eu queira ser assim: sou assim. Jamais
olho acintosamente uma mulher, jamais deixo entender que tenho uma segunda
intenção.
PLAYBOY – Nunca dedilhou um violão e cantou para seduzir
alguém?
PAULINHO – (Sinceramente surpreso). Não, não.
PLAYBOY – Nem na adolescência?
PAULINHO- Nunca me ocorreu isso. Eu era uma pessoa muito
tímida. Olha, eu nunca namorei. Eu nunca namorei na vida.
PLAYBOY – Nunca?
PAULINHO – Para não dizer que não namorei, durante uns dias
namorei a irmã de um amigo lá de Jacarepaguá. A gente ficava conversando no
portão, eu de um lado e ela de outro. Só isso. Para mim aquilo era namoro,
entendeu? Mas foram só alguns dias.
PLAYBOY – Mais nada?
PAULINHO – Nada, nada.
PLAYBOY – Mas já conhecia o amor?
PAULINHO – Já conhecia. (Risos).
PLAYBOY – O, digamos assim, amor carnal?
PAULINHO – Já conhecia.
PLAYBOY – (Após um breve silêncio.) É estranho, porque
a sua imagem ...
PAULINHO – É. Como sou reservado, algumas pessoas começaram a
brincar comigo: “Você aí, quietinho...” Sabe como começam essas coisas? Aí
passam a me atribuir uma fama injusta de namorador. Existe toda uma fantasia
das pessoas em torno dos artistas nessas coisas.
PLAYBOY – E existem também alguns números: você tem sete
filhos, aliás de três relacionamentos...
PAULINHO – Nunca fui um cara paquerador. Sempre fiquei muito na
minha. As coisas aconteciam comigo, nesse aspecto, como vou dizer... de formas
sempre inesperadas. Aconteciam até, várias vezes, por iniciativa da outra
parte, que se insinuava.
PLAYBOY – Você já famoso?
PAULINHO – É. A Lila, minha mulher, já disse isso numa
entrevista – foi ela quem tomou a iniciativa. O meu negócio era mais conversar.
PLAYBOY – Mas a primeira vez em sua vida, como foi?
PAULINHO – Não me lembro bem. Esse troço é complicado. Não sei
falar disso, não (risos). Eu era rapazinho, novinho. Mas não gosto de
falar disso. Fico superacanhado, constrangido. Fico, ás vezes, escandalizado
quando vejo pessoas dando declarações, contando detalhes. Como é que uma pessoa
consegue ser tão natural assim? Eu não consigo.
PLAYBOY – Mas você não precisa dar detalhes. É só a história
de vida. Você estava dizendo que com 19 anos nunca tinha namorado, mas já tinha
se iniciado.
PAULINHO – Bem antes.
PLAYBOY – Foi num bordel, como muita gente nessa época?
PAULINHO – Não, comigo não teve isso. Na verdade, para mim essa
ideia de bordel era uma coisa horrível. Nesse período, como vou dizer. Não era
uma coisa começou-não-pára-mais. Sexo nunca foi um enorme problema para mim,
que eu tinha de resolver ali. Eu gostava de música de conversar com as pessoas.
O fato de não ter uma namorada não era para mim um desespero.
PLAYBOY – Não te chateava?
PAULINHO – Não, não achava nada demais. Eu era muito sozinho.
Eu sentia uma grande solidão nessa fase da vida. Sentia uma solidão estranha.
Foi assim dos 12 anos em diante, até 18, ou 19 anos. Uma solidão estranha.
PLAYBOY – Feliz ou infeliz?
PAULINHO – Não, não era uma coisa legal. Isso não impedia que
eu fosse à praia, ao futebol, ao cinema, que tivesse amigos, que fosse até a
esquina conversar. Não evitou que eu saísse no Carnaval. Mas aquilo me
incomodava, porque eu não tinha ninguém para falar determinadas coisas. Lembro
que ficava muito tempo com serrote, martelo, consertando alguma coisa. Isso
preenchia meu tempo e de alguma forma me bastava.
PLAYBOY – Nem no Carnaval você se soltava?
PAULINHO – Eu brincava na rua, nos blocos. Estava sempre na
bateria, tocando instrumento, cantando samba.
PLAYBOY – Você sofria por se sentir diferente?
PAULINHO – Claro, e isso foi agravado com a chegada do
rock-and-roll. Quando o rock apareceu no Brasil, a propaganda toda era: “Vem aí
um ritmo alucinante”. Eu, com meus 12 anos, estava acostumado a ouvir choros,
sambas, o pessoal da seresta que vinha tocar em casa com meu pai, que sempre
foi um excelente instrumentista. Estava habituado àqueles clássicos bem
melódicos, com a harmonia bem redonda. E tinha preconceito em relação às coisas
que desconhecia. Ouvia a propaganda e pensava: como pode ser um ritmo
alucinante? Então o filme Ao Balanço das Horas (Rock Around the
Clock, de 1956, com Bill Haley e Seus Cometas, Little Richard e The Platers,
entre outros) entrou em cartaz no Rio e não ficava uma cadeira no lugar. O
jornal ia lá, fazia uma foto e trazia a notícia: “O cinema tal foi destruído
depois do filme”. Eu ficava em pânico. “O que é isso?”, eu pensava. Para mim, o
rock era a música do diabo. “Como é que eu vou entrar num lugar onde o pessoal
quebra tudo?” Uma vez, o jornal de um cara naquela euforia puxou um revólver e
deu um tiro na tela. Para mim foi a gota d´água. “Não quero saber dessa turma,
nem chegar perto”. E sofri muito, fiquei ainda mais isolado na minha infância,
na juventude toda, porque não ia às festas do pessoal da minha idade. Minhas
primas iam dançar em concurso de rock, botavam o pé na parede... eu achava
aquilo o fim. Ali do meio para o fim dos anos 50 só ouviam Bill Haley, Little
Richard, Elvis Presley – um pessoal que só fui ouvir mesmo na década de 70.
PLAYBOY – E o que achou?
PAULINHO – Muito interessante (risos). Mas aí eu já
tinha uma preparação, uma outra visão.
PLAYBOY – E a bossa nova, quando surgiu, no fim, dos anos 50?
PAULINHO – Eu também não quis saber. Talvez para se afirmar
como movimento, o pessoal dava declarações negando o valor de tudo aquilo que
fosse mais antigo na música brasileira. Bom, tudo aquilo que significava “mais
antigo” eram as coisas que eu mais gostava: Sinhô, Jacob do Bandolim, Orlando
Silva, Ciro Monteiro. Meu pai fazia parte dos grupos regionais, com uma
estrutura musical baseada em violões com suas terças e seus contracantos, que
eles chamavam de “baixaria”. A turma da bossa nova dizia que precisava eliminar
a baixaria do violão, então já torci contra. Só vim a me aproximar do pessoal
da bossa nova quando um grupo com o Carlinhos Lyra e a Nara Leão procurou o som
do samba mesmo, foi atrás do Cartola, do Zé Kéti. Até então, da bossa nova, eu
só ouvia o João Gilberto, que sempre achei uma coisa diferente, à parte de
tudo.
PLAYBOY – Você não se identificava em si mesmo nem um pouco
daquele inconformismo, daquela vontade de quebrar tudo?
PAULINHO – Acho que o ser humano, em geral, procura algo que
torne as coisas mais confortáveis para ele – em todos os sentidos. Só as
criaturas excepcionais, desde cedo, manifestam um comportamento mais rebelde. É
uma insatisfação da pessoa em relação a ela mesma, que às vezes encontra formas
criativas de abrir outras perspectivas, outros caminhos. Mas a grande maioria,
na qual eu me incluo, pensa essa coisa mais normal. Quer dizer, fui um garoto
que vivia na rua jogando bola de gude, bola de borracha. Na escola era um aluno
médio, sem nada demais. Não há nada de
excepcional na minha vida.
PLAYBOY – Talvez, a não ser sua obra. Você tem mais de 200
músicas gravadas, muitas delas consideradas obras-primas absolutas,
originalíssimas. Como foi que isso começou?
PAULINHO – Eu me envolvi primeiro como ouvinte, não pensava em
compor. Quase toda semana tinha música lá em casa, em reuniões distintas:
aparecia o pessoal do choro num determinado dia e o pessoal das serestas e
sambas de outro. Eu era apaixonado pro aquilo, meus ídolos por perto – Jacob do
Bandolim, o Altamiro Carrilho, o Pixinguinha foi em casa uma vez. Havia um tio,
irmão do meu pai, o Zezinho, que chegava lá para cantar e cantava com uma voz
maravilhosa. Chegou a gravar um ou dois discos, com o nome de Sílvio Barbosa.
Eu só queria ficar ouvindo essas pessoas.
PLAYBOY – Não tocava nada?
PAULINHO – Tocava, mas só de farra. Meu pai, quando percebeu
que eu gostava daquilo, me arrumou um professor – seu Zé Maria, que era meu
padrinho e fazia arranjos para o grande violonista Dilermando Reis. Ele era
zelador num prédio, morava na nossa rua e começou a me ensinar notas, divisão,
arpejo, me deu uma base legal. A última vez em que vi seu Zé Maria ele estava
num quartinho, já com idade avançada, recarregando uma pilha dessas pequenas
com um aparelhinho lá que ele tinha. Disse para mim: “As pessoas ficam gastando
dinheiro à toa”.
PLAYBOY – Quando foi que você começou a compor?
PAULINHO – A gente tinha um bloco de Carnaval em Cascadura,
perto da casa de uma tia minha, aonde eu ia muito. Então fiz um samba para esse
bloco, não sei nem por quê – devia ser bem ruinzinho, não lembro nada dele.
Nunca tinha pensado em compor, só queria acompanhar alguém cantando para criar
adestramento no violão. Achava fantástico o meu pai, como ele conseguia
acompanhar qualquer música ali na hora. Então queria aprender a tocar da mesma
maneira. Quando fiquei melhorzinho, o pessoal me pagava para tocar em tudo
quanto era canto.
PLAYBOY – Já queria ser artista?
PAULINHO – Eu trabalhava no Banco Nacional, na Avenida
Presidente Vargas. Pensava em estudar, com o perdão da palavra, Economia (risos).
Meu irmão e meus primos foram para esse lado, viraram auditores, contadores,
economistas. Eu trabalhava numa seção que nem existe mais em banco,
mecanografia, que fazia o balanço de caixa no fim dos expedientes. Um dia vi o
Hermínio Bello de Carvalho no balcão, achei o rosto familiar e me aproximei:
“Já foi atendido?” e tal. Na conversa descobri que a gente já tinha se visto na
casa do Jacob do Bandolim e falei do meu pai. O Hermínio me perguntou se eu também
era músico, eu disse que tocava um pouquinho de violão. Então ele disse que ia
me levar para conhecer um lugar – e me levou ao Zicartola, o famoso bar que o
Cartola tinha com sua mulher, Zica, na Rua da Carioca (centro do Rio),
onde conheci o Elton Medeiros, que depois viria a ser meu parceiro mais
contante, o Zé Kéti e muitos outros. Mas o meu primeiro parceiro foi o próprio
Hermínio, com quem eu faria anos depois Sei Lá, Mangueira. Ali, de cara,
ele me deu logo duas letras para colocar melodia.
PLAYBOY – Que músicas saíram daí?
PAULINHO – Uma foi um samba chamado Duvideodó, gravado
muito depois pela Isaurinha Garcia. E uma valsa, que nem lembro mais o nome,
gravada pela Elizeth Cardoso. Eles descobriram que eu sabia tocar violão e o
Hermínio e o Zé Kéti ficavam me estimulando a compor.
PLAYBOY – Mas como eles sabiam que você seria um bom
compositor?
PAULINHO – Não sei...Acho que eles não sabiam (risos).
PLAYBOY – Duvideodó foi sua primeira música gravada?
PAULINHO – Não. Eu comecei a fazer parte de um pessoal que
tocava à noite no Zicartola: tinha o Zé Kéti, o Elton Medeiros, o Nelson
Sargento. Um dia fomos mostrar nossas músicas numa gravadora, a Musidisc, e
sugeriram que a gente formasse um conjunto para gravar um disco. Não tínhamos a
menor intenção de formar um conjunto, mas acabou saindo um disco do nosso
grupo, chamado Roda de Samba. Três discos, aliás. O terceiro é até meio ruim.
No primeiro, tem um samba meu chamado Jurar com Lágrimas.
PLAYBOY – E sua timidez, como ia nessa época? Ela desaparecia
no palco, ou diante de um microfone?
PAULINHO- Num grupo, no meio dos outros, tudo bem. Saí do banco
em 1964, ganhei uma indenização e estava vendo se seguia carreira por ali na
música. Me sentia bem, enturmado. Mas me destacar para um solo, para cantar
sozinho, era mais complicado. Mesmo muito tempo depois. Para ter uma ideia, em
1968 concorri a um festival chamado Bienal do Samba, na TV Record, com a música
Coisas do Mundo. Claro que nem pensei em cantar lá na frente, quem
cantou foi o Jair Rodrigues. Eu estava tão nervoso que fiquei com febre, e me
escondi atrás de uma pilastra do teatro, perto da porta de saída, pensando: “Se
começarem a vaiar, saio correndo”. Para minha surpresa, um grupo abriu uma
faixa com o nome da minha música e depois eu soube que era um pessoal da
família do Chico Buarque, o pai dele e tudo, torcendo por mim. Aí fui chamado
pela TV Record, que tinha o costume de contratar por seis meses alguém que se
destacasse nos musicais. Um dia, me levaram ao programa da Hebe Camargo. Foi
horrível, não consegui dizer uma palavra. Ela dizia: “Que bonitinho, como ele é
tímido!” E eu me afundava cada vez mais naquele sofá. Foi um vexame.
PLAYBOY – Você não acha que é meio implacável com você mesmo?
PAULINHO – Já fui mais. Hoje, se tiver de falar para mil
pessoas, vou e falo, já relaxei muito. Mas há certas coisas – e não sei se de
inibição ou de autocrítica. Por exemplo: até hoje tenho dúvidas se canto
direito ou não.
PLAYBOY – Mas os críticos todos elogiam... De onde vem essa
dúvida?
PAULINHO – Muitas vezes acho que não me preparei
suficientemente para isso, que deveria ter estudado mais, praticado mais, me
disciplinado mais. Mas também não tenho certeza disso, porque no trabalho de
criação existe um terreno nebuloso, um a linha perigosa entre o que deve ser
mantido de espontâneo e o que deve ser mais elaborado. É um negócio estranho,
que já senti várias vezes de uma forma concreta. Quer ver uma coisa?
Antigamente eu tinha um gravadorzão em que registrava algumas ideias, umas
melodias que me vinham à cabeça. Ligava o gravador e saía cantando, sem
instrumento, bem devagarzinho. Hoje não tenho mais esse hábito, porque com o
tempo fui achando que esse era um elemento complicador – ligar o gravador, ter a
noção de estar registrando a criação no momento me que ela surge, isso tudo
vira uma interferência numa hora em que você está ali, mas ao mesmo tempo está
longe dali, entende? Só que outro dia encontro uma fita antiga desse
gravadorzão, ponho para rodar e encontro a versão original de um samba meu de
1969, chamado de Nada de Novo, um samba que eu gosto muito.
PLAYBOY – (Cantarolando) “Papéis sem conta sobre a
minha mesa...”
PAULINHO – Pois é, começa assim na versão definitiva, que
gravei em disco. Mas nesse dia pude ouvir a fita original e achei a música mais
bonita, ainda que menos elaborada do que ficou depois. Pô, era tão mais rica na
forma bruta, tão expressiva! Isso já me aconteceu de montão.
PLAYBOY – Se você for cantar agora, como vai ser?
PAULINHO – Não me lembro mais como era a primeira versão,
precisaria achar a fita de novo – ela está em algum lugar aqui de casa. Mas
isso não é tão simples assim. Posso dar exemplos que são o contrário disso que
acabei de dizer – músicas que ganharam mais alma depois de eu mexer bastante
nelas. Por exemplo, Foi um Rio Que Passou em Minha Vida tinha outra
melodia. Foi um samba que fiz para um festival da TV Tupi, do (diretor de
musicais) Fernando Faro. Primeiro eu tinha feito a letra e precisava fazer
a música. Um dia o Macalé chegou em casa e eu disse, já com o tema na cabeça:
“Pega o violão aí que eu vou na caixinha de fósforos, porque preciso mandar
essa música pra São Paulo”. Comecei a cantar e o Macalé foi me acompanhando (até
hoje ele brinca, dizendo que é meu parceiro, mas não é não). E o samba saiu
assim, na fita cassete mandada para concorrer ao festival: “Se um dia/ meu
coração for consultado...” (Canta a letra com outra melodia.)
PLAYBOY – Nossa, era toda mais para baixo!
PAULINHO – Toda mais para baixo. Fui ensaiar o samba com o
pessoal da Portela, mas assim que eles começaram a cantar eu disse: “Pára,
para!” E alterei a música. Cansei de fazer isso em estúdio, mexendo nas músicas
na hora. Mas, como aquela outra versão que gravei com o Macalé é que tinha sido
classificada para o festival, quando apresentei o samba em São Paulo o Faro
estranhou e perguntou se a música era aquela. Eu disse que era, sim, só tinha
mudado um acorde. Mentira. A melodia era outra.
PLAYBOY – Quando é que você costuma compor? Mais de dia ou
mais de noite? Quando está alegre ou está triste?
PAULINHO – Não tenho nenhuma regra para isso. Já fiz músicas e
já me envolvi com composições nas situações mais estranhas. Da pessoa dizer uma
palavra e eu ficar olhando... Da pessoa contar uma história, ir embora e eu
fazer daquilo um enorme poema e sem ter bem a consciência do que era. De depois
que ficar pronto eu mesmo me perguntar: “Ué, de onde veio isso? De uma palavra
só? Associada a quê?”
PLAYBOY – Você começa pela letra?
PAULINHO – Posso começar pela letra ou pela música.
Ontem à noite fui ver minha filha, depois passei na minha mãe, em seguida fui
ver um amigo que está indo para o Amapá. Voltei meio tarde para casa e de
repente, no caminho, tinha uma valsa inteira na cabeça. Quando me dei conta,
falei: “Puxa, mas que coisa antiga!” Me veio inteira e, numa fração de segundo,
cheguei a memorizar as notas dela num pentagrama a minha cabeça, pensando no
nome que daria para a composição: Valsa Antiga, porque o som não era de
agora, era muito antigo. Me veio assim, pronta. Agora, como esse troço vem? Não
sei explicar.
PLAYBOY – Chegando em casa, você escreveu essa melodia?
PAULINHO – Não. Estava muito cansado e fui deitar.
PLAYBOY – Você perdeu a valsa?
PAULINHO – Perdi. Mas pode ser que ela volte. Já aconteceu
muito.
PLAYBOY – Você trabalha uma música por vez ou pode ir fazendo
várias? Em seu livro No Tempo de Ary Barroso, Sérgio Cabral conta que
Ary fez outra música na noite em que fez Aquarela do Brasil.
PAULINHO – Isso já aconteceu comigo. Numa madrugada em que
estava sem dormir, desesperado com um problema, fiz um samba chamado A Toda
Hora Rola uma História. Quando a letra estava pronta, a melodia definida,
surgiu um outro tema e eu nem tinha acabado aquilo direito. E recentemente
aconteceu uma situação parecida. Eu estava fazendo uma letra que o Elton
Medeiros tinha me pedido para colocar numa música dele, quando um verso que não
tinha nada a ver, estranhíssimo. Na mesma hora botei o papel de lado e escrevi
uma letra inteira com uma característica de humor que parece um maxixe, parece
um samba do Noel Rosa, parece Sinhô, que coisa estranha, porque é diferente de
tudo o que estou fazendo agora...
PLAYBOY – Você não completou ainda?
PAULINHO – Não. A música está tão explícita, tão clara dentro
da letra que nem mexi. Deixei só registrado, porque quando eu pegar aquilo a
música sai em 10 minutos. Faço isso quando estiver mais perto da gravação do
meu novo disco, este ano.
PLAYBOY – Por que muitos artistas deixam para compor na hora
de gravar? A gente lê no jornal: “Chico fez três músicas do disco tal no
próprio estúdio...” Não é mais confortável estar com tudo pronto antes?
PAULINHO – Eu já tentei ter um repertório pronto, todo arrumadinho,
mas não gostei. Prefiro ir para o estúdio com algumas músicas e o resto ir
fazendo e gravando, porque uma música puxa outra, é um processo curioso. E
rápido, no meu caso. Chego em casa, faço um esboço do arranjo, levo para o
estúdio: “Ó rapaziada, é isso aqui, vamos lá”. Às vezes, ainda mexo aqui e ali,
às vezes não. Reescrevo um verso na hora. O risco que se corre é que às vezes a
gente escorrega, o disco não sai perfeito, mas prefiro trabalhar assim, o
resultado me parece mais natural.
PLAYBOY – É curioso: todo o mundo gosta de você, mas nem
tantos compram seus discos. Você não ganhou até hoje um Disco de Ouro, por
exemplo, que as gravadoras dão para vendagens acima de 100 000 cópias. Como se
explica isso?
PAULINHO – Bom, também nunca dei prejuízo. E esse negócio de
vendagem... O meu último disco tinha vendido 80 000 cópias em três meses, o que
é uma marca excelente. Cinco anos depois, se a gente for olhar a vendagem, vai
estar lá: os mesmos 80 000. É possível que não tenha vendido mais nada, nesse
tempo todo? Mas tudo bem. Não acho que eu tenha um público imenso, que me
acompanhe regularmente. Tenho essas 80 000 pessoas, ou algo acima disso, que
compram meus discos, vão aos meus shows. Meu público é esse.
PLAYBOY – A propósito disso, vamos falar do episódio que
aconteceu no show de réveillon em Copacabana?
PAULINHO – Em agosto de 1995, eu tinha sido procurado por uma promoter
chamada Helena Rocha, que queria saber se eu topava participar de um tributo ao
Tom Jobim, num show que seria realizado em Ipanema no dia 9 de dezembro, para
não deixar passar em branco o primeiro aniversário da morte dele. Ela explicou
que seria um cachê simbólico em torno de 2 000 reais, para cantar duas músicas,
e eu disse que em princípio tudo bem, pelo espírito da homenagem. Depois a
ideia foi crescendo, entrou um patrocinador forte e o show foi marcado para a
passagem do ano. E o cachê oferecido já estava em torno de 30 000 reais. Num
determinado momento das negociações, a Helena Rocha foi substituída por outra promoter,
a Gilda Mattoso, que me passou um fax confirmando o espetáculo e o cachê de 30
000.
PLAYBOY – Quando você percebeu que havia alguma coisa errada?
PAULINHO – No próprio dia 31 de dezembro. Acabei de almoçar,
dei uma espiada no Jornal do Brasil e vi uma nota a respeito do show.
Ela dizia que estavam finalmente acertados os cachês para o espetáculo de réveillon
em Copacabana – Chico, Gil, Caetano, Gal e Milton receberiam 100 000 reais e
Paulinho da Viola “um pouco menos”.
PLAYBOY – Um pouco menos? Uma BMW a menos?
PAULINHO – Um pouco menos de 100 000 é quanto? Noventa, 80 000?
Liguei na hora para a Gilda e pedi uma reunião assim que chegasse a Copacabana
para o show, porque estava muito chateado, sem entender a diferenciação. Lá,
foi a Lila, minha mulher, que conversou com os promotores. A Gilda disse que a
notícia não era verdadeira, mas um representante da Riotur acabou confirmando.
E eu avisei que iria falar à imprensa, não para buscar reparação material, mas
para comunicar que tinha acontecido essa diferenciação.
PLAYBOY – Você chegou a falar com o Chico Buarque, Caetano
Veloso e os outros artistas sobre isso?
PAULINHO – O Gil me telefonou e conversamos bastante. A Paulinha (Lavigne, mulher de Caetano)
também me ligou, disse que o Caetano estava chateado e que iria mandar um
artigo para os jornais. Eu pedi para ele não escrever, para não reacender a
polêmica. Vários jornais e revistas já estavam discutindo o problema por um
ângulo agressivo, irônico.
PLAYBOY – É que o cachê de 100 000 reais impressionou a todos.
PAULINHO – Mas quem pode determinar se o valor pago a um
artista está exagerado? Como a imprensa pode arbitrar uma coisa dessas? Achei
melhor encerrar minha participação no caso só revelando o que aconteceu, sem
buscar mais nada – nunca me sujei por dinheiro, não me sujaria nem por 1 milhão
de dólares.
PLAYBOY – Talvez você tenha se prejudicado justamente pela
imagem de não dar um sentido comercial a carreira. Por exemplo: você está há
cinco anos sem gravar...
PAULINHO – Eu tenho o meu tempo, minhas reciclagens. Aconteceu
um monte de coisas nesses últimos anos, estava reorganizando minha vida
profissional quando teve o episódio da árvore que caiu em cima de casa, um
negócio inacreditável.
PLAYBOY – Como foi essa história?
PAULINHO – Num sábado, eu olho para o terreno em cima do meu e
percebo que há uma árvore imensa, centenária, ligeiramente inclinada na direção
da minha casa. Estavam construindo nesse terreno e aquilo mexeu com o solo,
tirou a base da árvore. Procuro o responsável pela obra e ele não liga a
mínima. Na quarta-feira seguinte, dia 20 de abril de 1994, estou fazendo um
show em Porto Alegre e minha mulher me telefona de madrugada, desesperada: a
árvore tinha caído em casa, o teto cedeu bem no quarto da nossa filha Cecília,
que escapou por milagre – tinha acabou de levantar para ir ao banheiro. Pode
imaginar uma coisa dessas?
A gente nasceu de novo! Uma árvore de 7 toneladas e meia, que precisou ser
serrada, em dropes, para que conseguissem tirar dali. Ela fez o maior estrago:
entortou a estrutura da piscina, que está inutilizada; precisei fazer a maior
reforma em casa e a construtora da obra no vizinho pagou só um quinto do que
gastei – ninguém pode imaginar o transtorno, o susto, as discussões, a mudança
que a gente precisou fazer, o trauma todo. Nem gosto de falar sobre isso, e
agora está tudo voltando a entrar nos eixos, a gente está se sentindo bem aqui,
pela primeira vez em muito tempo.
PLAYBOY – Bem, se você nem gosta de falar, vamos mudar de assunto.
Como é o seu dia-a-dia, geralmente?
PAULINHO – Depende da época. Se tem show, começo a ensaiar uma
semana antes. Se estou gravando, mergulho nisso às vezes por dois meses...
PLAYBOY – Não, num período sem compromissos, livre. Como você
estabelece o seu dia seguinte?
PAULINHO – Não faço muitos planos. Acordo e posso ligar para um
amigo. Posso ficar mexendo com marcenaria, consertando umas coisas em casa. Não
tem algumas pessoas com necessidade de caminhar, de correr todo dia? Não sei
por que tenho a necessidade de trabalhar com as mãos, fazendo força – isso é
uma constante, até hoje. Sempre tive habilidade manual e aprendi a fazer de
tudo numa casa: sou capaz de assentar o piso, instalar toda a parte elétrica,
pintar tudo, mexer na parte hidráulica, desmontar e montar os armários. Também
é do temperamento, acho que vem da família da minha mãe, que sempre trabalhou
muito – nunca fui de ficar sentado falando com os outros fazerem nada. Quando
levanto, arrumo a cama, ás vezes pego o aspirador e ajudo na limpeza, levo o
meu próprio instrumento para consertar na cidade.
PLAYBOY – E no trabalho na música, por que é difícil estabelecer
uma disciplina?
PAULINHO – Acho que se estabeleceu entre nós, no Brasil, uma
cultura do improviso. Na hora de apresentar um show, são tantos os problemas de
estrutura que aparecem – no som, na luz, no palco – que a gente se acostumou a
resolver tudo na última hora. E mesmo para compor, aí por uma questão minha,
acho que preciso ser um pouco cutucado. A pressão da encomenda me ajuda. Na
década de 1970, fui visitar o Fernando Faro na (extinta) TV Tupi, e ele
me disse: “Tem uma novela aí que vai ser lançada, precisa de um tema musical,
você não quer fazer?” Eu disse que tudo bem, mas ele falou: “Não, tem que ser
agora. Olha, a sinopse é essa aqui. Agora eu vou sair, você vai ficar trancado
aqui e só sai quando a música estiver pronta”. Pensei: “Mas que sacanagem!” Mas
fiz. Era uma novela mexicana, Maria não sei do quê...
PLAYBOY – Simplesmente Maria.
PAULINHO – Isso! (Cantarola um trecho.) “Na cidade a
vida...” Saiu um samba grande pra caramba (risos). Reuni os músicos,
gravei e nunca mais ouvi. Sei que colocaram no disco da novela, até ando atrás
de alguém que tenha a gravação, porque é uma das raras coisas minhas que não
tenho em casa. Também fiz outra assim naquela novela da Globo, Pecado
Capital. O (produtor musical) Guto Graça Mello me pediu o tema de um
dia para o outro. Compus de madrugada, gravei no dia seguinte com um grupo e
tinha um motoqueiro do lado de fora do estúdio, para levar a fita até a Globo.
“Dinheiro na mão é vendaval...”, lembra? Nunca vi um capítulo dessa novela.
PLAYBOY – E Sinal Fechado, como surgiu? É talvez sua música
mais elaborada, tensa – aliás, não se parece com nada do que você fez antes e
depois dela.
PAULINHO – Quando fiz essa música, em 1969, havia uma coisa que me
preocupava muito: a falta de comunicação entre as pessoas. Era uma correria,
não muito diferente desta que vivemos hoje, só que agravada por uma tensão que
todos vivíamos na época – a censura, o regime militar. Pessoas saindo do país,
outras sumindo. Nesse tempo eu frequentava alguns bares, o Lamas, uns outros em
Ipanema e tinha um cara que eu encontrava e me dizia sempre, de passagem:
“Paulinho, precisamos falar”. Ele passava sempre depressa e dizia isso. Era uma
dessas pessoas que andavam procuradas, levava uma vida clandestina. Nunca mais
vi esse cara, mas ainda tenho a imagem na minha cabeça: “Preciso muito falar
com você”. E ele nunca falava nada. Tinha outra cena que me vinha muito nessa
época, não sei se foi um sonho que tive: eu estava numa calçada na Glória (bairro
da região central do Rio), em frente ao Monumento dos Pracinhas, de repente
chegava um ônibus e eu entrava. O ônibus estava cheio e tinha uma pessoa lá na
frente com quem eu queria falar, mas não conseguia chegar até ela. Aquilo tudo
estava na minha cabeça, quando fiz a música. Coloquei Sinal Fechado no
último Festival da Record, porque o Fifuca, irmão do Sérgio Porto (o
cronista e humorista Stanislaw Ponte Preta, morto em 1968), me pediu para
participar do festival, que estava meio desacreditado. A música venceu o
festival de 1969, mas passou um pouco despercebida. Eu mesmo acho que não tinha
consciência do potencial dela, na época.
PLAYBOY – Ela virou um clássico da resistência ao regime militar.
PAULINHO – Mais isso só depois da gravação do Chico, alguns anos
mais tarde, num disco em que ele cantou obras de outros compositores. Essa
música, cantada pelo Chico, ganhou outra força, ficou mais popular, mereceu
mais atenção. Muita gente, até hoje, acha que essa música é dele.
PLAYBOY – Mas você, nessa época braba, chegou a ter uma
militância, não é?
PAULINHO – É.
PLAYBOY – Chegou a entrar no Partido Comunista, não foi?
PAULINHO – Cheguei.
PLAYBOY – De ter carteirinha?
PAULINHO – Não, isso não tinha (risos). Olha, eu não me
sinto muito à vontade para falar sobre isso...
PLAYBOY – Por quê não? O pessoal da AP (Ação Popular, grupo de
esquerda que atuou na clandestinidade nos anos 60 e 70) já faz churrasco,
chama a imprensa, convida ministro ex-militante...
PAULINHO – Mas eu...
PLAYBOY – Você não acha que poderia falar um pouquinho dessa fase?
É sua história, também...
PAULINHO – Não me sinto muito à vontade. Eu não era muito
enfronhado, e também sinto que me falta embasamento teórico.
PLAYBOY – Não, só a sua experiência pessoal, como foi?
PAULINHO – Entre 1967 e 68 eu morava num lugar incrível em
Botafogo, o Solar Santa Terezinha, que era chamado o Solar da Fossa, onde
moravam outros artistas na época, inclusive o Caetano. Era uma antiga casa de
saúde, acho, que um cara arrendou, reformou e fez uns noventa apartamentos para
alugar. Era lindo, com pátio interno, um negócio meio mouro. Talvez tenha sido
o primeiro apart-hotel do Brasil, porque existia um serviço central de limpeza,
eles trocavam as roupas de cama e tudo. Ali, o (letrista José Carlos)
Capinam, o (também letrista) Abel Silva e eu formávamos uma célula do
partido, ligada à cultura.
PLAYBOY – O que vocês faziam?
PAULINHO – Fiz muitos shows que sabia que eram para o partido.
Participei de debates, reuniões – foram contribuições desse tipo. Li um pouco
de Marx e outros autores, participei de seminários para discutir textos de
economia e política.
PLAYBOY – Não era meio chato?
PAULINHO – A gente estava interessado naquilo, na busca de saídas
para os problemas sociais. Aliás, eu continuo interessado, muita gente
continua. Só que as coisas mudaram. O Partido Comunista assumiu uma outra
identidade, a própria União Soviética acabou e eu me surpreendi com o que veio
depois – as lutas, as diferenças aflorando entre os países, muito diferente da
imagem harmoniosa que havia no passado da unidade soviética, entende? Mas por
outro lado vem essa coisa meio esquisita do neoliberalismo...
PLAYBOY – Em quem você votou para presidente?
PAULINHO – Fernando Henrique.
PLAYBOY – Votaria de novo?
PAULINHO – Não sei, acho que ainda é muito cedo para dizer.
PLAYBOY – Você frequentou favelas em outros tempos. Mudou muito o
espírito dentro delas, por causa da violência, do tráfico de drogas?
PAULINHO – As favelas em si já são uma violência. A precariedade,
os espaços exíguos, as condições todas. Isso é um negócio complicado, que vem
de longe. Começa com uma falta de política agrária, que expulsa as pessoas do
campo e traz para as grandes cidades. Rio e São Paulo viraram um caos. Por um
lado a cidade não anda, porque as indústrias automobilísticas têm de continuar
a produzir, mas não há mais espaço para os carros, então fica uma tensão enorme
no ar, as pessoas perdem um tempo enorme no trânsito, se irritam. Não há uma
política transparente para os transportes coletivos. E principalmente existe
uma miséria crescente em torno de todos. Muita gente busca as soluções para as
favelas, as opiniões se dividem, mas eu nunca vejo alguém buscar a opinião dos
próprios favelados, como é que eles imaginam uma saída para aquilo que estão
vivendo. E adianta só urbanizar? Vai ter escola, saúde? Tem ainda a questão dos
sequestros, do tráfico de drogas, que em qualquer lugar do mundo se estabelece
de uma forma violenta, truculenta, e não seria mais bonzinho no Brasil.
PLAYBOY – O tráfico de drogas hoje é mais atuante que o jogo do
bicho nas escolas de samba, ou virou tudo uma coisa só?
PAULINHO – Olha, esse é um assunto que eu não sei. Não me meto
nisso e também estou afastado das escolas de samba. Há muitos anos me afastei
da Portela, por várias divergências. Achei que a direção da escola estava
voltada unicamente para o desfile, que por sua vez também já tinha perdido sua
identidade original. Falavam em “samba-empresa”, e a minha ideia era outra.
Passeio a não me identificar nem com aquele tipo de samba, de andamento
frenético e ao mesmo tempo uniforme, uma escola parecida com a outra – todo o
mundo correndo na avenida para não perder o ponto, o que é isso? E mais a
Passarela do Samba, que acho um equívoco em todos os aspectos, acústico,
visual.
PLAYBOY – Você chegou a se afastar completamente, a ponto de nem
assistir aos desfiles?
PAULINHO – Não, eu sempre via pela TV, mesmo quando não comentava
os desfiles. Só uma vez, há dois anos, estava tão incomodado com aquilo que nem
vi nada. Passei o Carnaval inteiro em casa, sem ligar a TV.
PLAYBOY – E por que você voltou a desfilar, no passado?
PAULINHO – Porque teve uma festa lá na Portela, minha filha mais
velha cantou e eu fui ver. Me chamaram no palco e de repente uma pessoa da
velha guarda fez um apelo para sai na ala dos compositores e eu não vi razão
para não aceitar. Ainda mais que a direção da escola me prometeu mudanças – que
não aconteceram. Esperava que a direção me procurasse para ouvir meu projeto,
mas ninguém me procurou até agora.
PLAYBOY – Que projeto é esse?
PAULINHO – Gostaria de fazer uma espécie de centro cultural, para
recuperar a história da escola. Um lugar em que os jovens pudessem entender
como isso tudo começou. Porque não é só uma coisa teórica, entende? Houve todo
um empobrecimento com a perda das raízes. Antes, o samba era mais rico pela sua
própria diversidade. Cada escola de samba, cada agrupamento num lugar diferente
do Rio de Janeiro tinha o seu toque característico. A Mangueira, por exemplo,
com os surdos todos juntos marcando a música com uma pancada só: o Salgueiro
tinha um toque diferente dos taróis (pequenos tambores de som claro e
vibrante), tinha uma ala de chocalhos – inclusive esses instrumentos estão
sumindo das baterias. Os sambas da Portela começavam com os pandeiros bem
lentos, a gente ouvia de vez em quando, bem lentos, e a gente achava que o
samba não ia sair, de repente ele ganhava força e ritmo. Tudo isso tinha uma
origem, muitas vezes a própria origem da escola, como foi no caso da Portela. A
Portela, em seu começo ali nos anos 1920, não era nem de samba, era de algo
anterior – o jongo.
PLAYBOY – O que é jongo?
PAULINHO – É uma festa de origem religiosa, muito fechada. Era uma
música que se tocava em cerimônias secretas, só para os iniciados, em matas e
lugares afastados. Havia uma parte, chamada caxambu, que podia ser mostrada
fora desses lugares, a Clementina de Jesus cantava, acompanhada por dois
tambores. Mas em geral as pessoas da seita não falavam sobre aquilo e muita
coisa se perdeu. Uma vez eu tentei conversar com o seu Rufino, um jongueiro
antigo, que já morreu, mas parece que havia um compromisso de não falar
naquilo. O que se sabe é que quem levou o samba para a Portela foi o pessoal do
Estácio, que ia participar de algumas dessas festas e num determinado momento
fazia um samba. O pessoal do Estácio era respeitado e admirado pelos antigos,
como um grupo especial de valentes, umas figuras assim...
PLAYBOY – Agressivas?
PAULINHO – Valentes. Eles usavam muito esse termo. Eram homens
respeitados, alguns eram malandros – e muitos nem eram, trabalhavam, tinham
suas profissões e tudo. Uma figura sempre lembrada é a de Paulo da Portela, fundamental
no processo de levar o bloco para a rua. Nos anos 20 e 30 as famílias não gostavam
muito que suas filhas saíssem à rua, porque ficavam malvistas. Então o Paulo da
Portela, como contavam, ia de casa em casa falar com os pais, explicava o que o
bloco ia fazer, se era ensaio, se era desfile. O sujeito confiava a filha dele,
depois o Paulo voltava de casa em casa, devolvendo as filhas.
PLAYBOY – Agora que os desfiles viraram essa coisa meio aeróbica,
e a festa se transformou num Carnaval de resultados.
PAULINHO – O espírito está completamente desfigurado. Uma vez, li
que um grupo de turistas estrangeiros reclamou com sua agência de viagens,
porque eles tinham pago para desfilar na escola que seria campeã – e a escola
em que foram colocados, sei lá qual, não ganhou.
PLAYBOY – Mas não foi sempre meio subjetivo, dar notas para
quesitos que não puramente técnicos?
PAULINHO – Sempre discuti isso. Cansei de perguntar para grandes
conhecedores de samba, de dentro das escolas mesmo, porque achavam um
mestre-sala melhor que o outro. “Porque eu acho”, “porque sim”, “porque eu
gosto mais, ora” – essas eram as respostas.
PLAYBOY – Vamos ver o seu gosto, então, fora das escolas de samba,
quem são os melhores cantores do Brasil?
PAULINHO – Ah, tem muita gente. Bom, os clássicos: Orlando Silva,
que ouvi muito – ouvi até através de outros cantores, porque ele influenciou
muita gente. Ciro Monteiro, Roberto Silva, Mário Reis. Acho o Cauby um cantor
fantástico.
PLAYBOY – E os mais novos?
PAULINHO – Gosto do Martinho da Vila cantando. Gosto do Caetano, do
Gil. Entre as mulheres, Marisa Monte, Elza Soares, Gal, Cida Moreyra... acho
que a Bethânia está cantando como nunca. Eu gostava da Silvinha Telles, Dircinha
Batista, Zezé Gonzaga... Sou meio da antiga (risos).
PLAYBOY – Se alguém inventasse a máquina do tempo e oferecesse a
você uma passagem, você iria para a frente e para trás?
PAULINHO – Pelo meu temperamento, iria para o passado primeiro.
Gostaria de presencias duas coisas: uma era ver o Ernesto Nazaré tocando (o
choro) Odeon. A outra, o Pixinguinha tocando flauta no auge dele, lá pelos
anos 1920 ou 1930.
PLAYBOY – E mais ainda no passado: Grécia, Roma antiga?
PAULINHO – (Depois de um longo silêncio.) A África. Gostaria
de ver algumas nações ligadas À cultura banto, antes da escravidão. Ou no
momento e que estivessem chegando aqui no Brasil. Queria saber como é que
começou essa coisa toda porque, de uma certa forma, eu hoje também estou dentro
dela.
PLAYBOY – A nave americana Pioneer 10, que está percorrendo o espaço
desde 1972, rumo a Júpiter, e já mandou fotos até do nascimento de um grupo de
estrelas, leva uma espécie de CD-ROM com grandes obras feitas pelos seres
humanos – uma sinfonia de Beethoven, uma obra de Michelangelo, uma faixa dos Beatles,
uma cena de Marilyn Monroe... Enfim, um retrato do nosso melhor ângulo, para o
caso de topar com seres de outros planetas. Se você contribuísse para essa
seleção, o que escolheria?
PAULINHO- Em música?
PLAYBOY – Música brasileira?
PAULINHO – Escolheria Carinhoso, do Pixinguinha. Ou um dos
choros dele de que mais gosto: Vou Vivendo.
PLAYBOY – E jazz?
PAULINHO- Um solo do Louis Armstrong, com certeza.
PLAYBOY – Um pintor brasileiro.
PAULINHO – Um quadro do Di Cavalcanti, dos anos 30 para 40.
PLAYBOY – Um livro brasileiro.
PAULINHO – Adoro Memorial de Aires, de Machado de Assis. Mas
talvez colocasse Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa.
PLAYBOY – E uma música sua?
PAULINHO – Foi um Rio Que Passou em Minha Vida. A mais
popular.
PLAYBOY – Para terminar: você tem medo de envelhecer?
PAULINHO – Não.
Só não gostaria de chegar numa certa idade e de repente ficar senil, sem
capacidade de pensar com certa clareza. Disso tenho medo. No resto, não brigo
com o tempo, não.
PLAYBOY – Você se considera uma pessoa triste?
PAULINHO – (Rindo.) Eu não! É provável que no meu trabalho
você encontre isso em alguns momentos. Acho que isso também faz parte da vida
da gente – às vezes um sentimento mais nostálgico, outras vezes mais lírico.
Mas uma coisa melancólica, não. Sou uma pessoa de Carnaval, de jogar bola,
sinuca, de conversar, contar piada – e, às vezes, até de incorporar a
melancolia alheia. Porque os poetas, os artistas fazem isso. O Nelson
Cavaquinho fazia isso. Todo mundo pensava que o Nelson Cavaquinho era triste –
que nada, era um cara gozador pra caramba, sempre alegre, sacaneando os outros.
Mas, na música que fazia, tinha muito mais do que observava nos outros do que
dele mesmo.
PLAYBOY – Você acorda bem-humorado?
PAULINHO – Bem-humorado, sim, mas às vezes acordo meio cansado. É
que eu durmo pouco, rapaz.
PLAYBOY – Quantas horas por noite?
PAULINHO – Pô, tem dia que durmo 3 horas. Quando estou estourado,
com acúmulo de sono, aí caio na cama às 11 da noite e levanto ao meio-dia,
entende? Mas eu gostaria de dormir o sono tranquilo dos justos.
Publicado
originalmente na revista “Playboy” em fevereiro de 1996
2 comentários:
Parabéns pelo blog. Sugestão: poderia postar outras entrevistas e matérias da extinta revista Playboy.
Olá amigo, agradeço o comentário e a ideia. Mas não poderia informar quem você é? Abraço, Matheus
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