Playboy entrevista Nasi (janeiro de 2006)
Uma conversa franca com o
roqueiro mais sangue-quente do Brasil sobre os anos 80, o inferno das drogas, a
volta ao sucesso
Foram necessários 25 anos de
altos e baixos para uma das mais cultuadas bandas de rock nacional atingir o
ápice do sucesso. Em um ano e meio, o Ira! ultrapassou a estonteante marca de
250 apresentações com o repertório do Acústico MTV – foi um show a cada
dois dias. Também ganhou pela primeira vez um troféu no VMB, premiação anual da
MTV. As plateias lotadas misturavam pessoas que cantavam Flores em Você
no início da década de 80 com jovens mais novos que a própria música.
O revival dos anos 80 é a
chave para entender o retorno fulminante do Ira!. Mas não é tudo. O ponto alto
da banda coincide com a melhor fase de seu vocalista Marcos Valadão, o Nasi, o
roqueiro de sangue mais quente do Brasil. Aliás, não é só roqueiro: foi um dos
primeiros produtores de rap do país e mantém um projeto paralelo de blues. É um
sujeito que já se meteu em toda espécie de escândalo – de brigas na delegacia a
conflitos com colunista social – mas, também diz ter transado com mais de 1 150
mulheres (algumas vezes com mais de uma ao mesmo tempo), fora os badalados
namoros com Marisa Orth e Marisa Monte. Já passou pelo inferno das drogas, mas
agora sua vida anda tão boa que ele está investindo num projeto solo, o CD Onde
os Anjos não Ousam Pisar. Tudo isso sem descuidar do grupo que o projetou.
Nasi é o termômetro do Ira! nos palcos. Minutos antes do penúltimo show da
banda em 2005, ele retirava o protetor que envolvia seu pescoço para
vagarosamente atender a fila de fãs. Por causa de um mau jeito na coluna,
estava com dificuldade para virar a cabeça. Mas bastou a primeira música
começar para o cantor acender seu cigarro e não aguentar ficar sentado no
banco. Dois metros à frente, uma loira e uma morena tentavam superar a altura
dos acordes tocados pela guitarra de Edgard Scandurra. Uma tinha 23 anos. A
outra, 24. Nem eram nascidas quando, em 1981, o Ira! subiu num palco pela
primeira vez. Nasi, com seus 44 anos, se ajoelhou e cantou para ela os versos:
“Pra ficar comigo/De vez”. Quatro dias depois, o músico recebeu o repórter Fernando
Barros de Mello em sua confortável casa no bairro do Butantã, em São Paulo.
Era a segunda sessão de entrevistas para a PLAYBOY. Estava descalço, sorrindo e
tomando alguns goles de café e tequila. No dia seguinte, à meia-noite,
telefonou para o repórter: “Desculpa, eu estava um pouco chapado por causa de
remédio que estou tomando para as costas. Queria falar um pouco melhor sobre
política e sobre os anos 80”.
PLAYBOY – Acústico MTV vendeu
mais de 250 mil discos e rendeu 250 shows. Esta é a melhor fase do Ira!?
NASI – Em
termos de reconhecimento, sim. Mas no Brasil, virou o ano, você tem que provar
tudo de novo. Sem pirataria, um disco como esse há uns cinco anos teria vendido
três vezes mais. Se vendemos 250 mil, os camelôs venderam 500 mil. Até a
crítica mais ranzinza teve de tirar o chapéu para esse trabalho. Está muito bem
tocado e arranjado. Eu coloco o Acústico MTV ao lado dos melhores discos
do Ira!. Minha ordem pessoal é Psicoacústica, Mudança de
Comportamento, Acústico MTV, Você não Sabe Quem Eu Sou e Meninos
da Rua Paulo.
PLAYBOY – Um bocado desse
sucesso se deve ao revival dos anos 80. Por que essa época voltou a ser um bom
negócio?
NASI – Na
verdade, os anos 80 não foram tão legais assim. Teve muita porcaria. Aliás, a
maior parte das coisas conhecidas, como Abismo, Dr. Silvana, representavam tudo
o que tem de descartável, de lixo. A ruindade dos anos 80 fica bem resumida no Ursinho
Blau Blau. Mas o legal é que algumas bandas que não tocavam nas FMs estão
sendo redescobertas, como Mercenárias e Akira S. Em termos de rock
internacional foi pior ainda, brega mesmo. Daqui a pouco espero que comecem a
puxar o saco da década de 90. Afinal, tem o É o Tchan e tanta coisa para ser
ressuscitada para o bem do Brasil, né? (risos)
PLAYBOY – Mas a década de 80
não foi a época de ouro do rock brasileiro?
NASI - Os
anos 80, apesar de serem a década do rock, fizeram muito mal para o rock por
causa do saco de gatos que virou o cenário nacional. Se você pegar tudo que se
fez, só 20% presta. Por isso que na década de 90 o rock afundou.
PLAYBOY – Onde é que o rock
errou?
NASI – Os
anos 80 também foram o início das FMs pop rock. Como é que as bandas se
formavam? Com um grupo de jovens comprando discos. É muito difícil você
encontrar na década de 80 bandas que sejam xerox uma da outra. Só no fim, na
decadência. Porque não tinha esse padrão de rock de FM que tem agora. Hoje, um
garoto que começa uma banda vai ouvir FM e falar: “Ó, isso é que pega. Vamos
nessa”. Outro problema é que tem muita gente que se leva a sério e se julga
gênio no rock.
PLAYBOY – Por exemplo?
NASI – Deixo
pra vocês. É muita pretensão, sabe? Acho que o bacana da arte, na música, é ela
ser com “a” minúscula. Música tem um valor de arte no sentido de fazer coisas
levadas, do tipo “menino, para de fazer arte”. O rock é isso.
PLAYBOY – E qual foi a maior
arte que você já fez em palco?
NASI – Eu
tive uma fase meio Iggy Pop, em que quebrava copo, me cortava, enfiava a cabeça
no bumbo. Quando parei com isso, comecei a ver que era um jeito de chocar as
pessoas. Eu imaginava um cantor de rock como um performer. Eu me lembro de
quando um amigo chegou e falou: “Adoro vocês, mas aquela fase em que você se
cortava era mais legal”. Me senti um palhaço e pareio. Para mim era mais um
barato e eu nem usava droga. Só tomava cerveja, mas liberava uma fera de dentro
de mim.
PLAYBOY – O João Gordo disse
que uma vez você o viu na plateia, se empolgou e começou a cuspir e a se cortar
com uns cacos de vidro, e que no fim acertou uma catarrada numa japonesinha...
NASI – O
clima era tão punk naquela época que era comum a plateia cuspir e te ofender
porque estava gostando. A troca de insultos não era uma coisa tão pessoal.
Durante uma fase do Ira!, a gente se vestia até com roupas de militar.
PLAYBOY – É daí que vem o
apelido Nasi?
NASI – Não.
Foi pelo meu mau comportamento no colégio que começaram a me chamar de Nasi. Na
época passava a série Holocausto, sobre nazismo, e eu era o terror da
escola. Nos dois primeiros discos do Ira!, eu assino Marcos Valadão. Te, gente
que até hoje me pergunta: “Pô, quando você entrou no Ira!?” Tentei ver se
Marcos Valadão pegava. Não pegou. Por causa do apelido, sofri assédio de
skinheads e sempre tinha de mostrar que achava isso tudo um absurdo. Já vi gente
fazendo suástica pra mim. Já fui ameaçado por eles. Isso foi durante a década
de 80.
PLAYBOY – E esse visual de
Wolverine, de onde foi que saiu?
NASI – Eu
uso a costeleta há muito tempo, herança de roqueiro mesmo. Mas também gosto
bastante de quadrinhos. Em 1990, conheci o Wolverine e os X-Men e comecei a
colecionar. Acho o Wolverine um personagem complexo. Não é bom nem mau. É
contraditório, solitário, individualista. É um personagem em busca de sua
origem, que enfrenta tudo e é politicamente incorreto. E, o mais legal, ele se
vale dos seus poderes de regeneração para fumar e beber o quanto quiser.
PLAYBOY – Em 1981, você
encontrou o Edgard Scandurra num ponto de ônibus e dali surgiu o Ira!. Você
acordou um dia e falou “quero ser roqueiro”?
NASI – Na
época eu nem pensava em ser cantor, mas estava montando uma banda. Eu cruzei
com o Edgard, que eu conhecia do colégio. Ele estava voltando do serviço
militar: “Vamos tocar uns covers do Clash, do Sex Pistols?” Foi quando rolou um
festival na PUC. Era outubro de 1981, o primeiro show do Ira!, e só tinha punk.
A música era detalhe. Naquela noite me deram Artani. Só depois descobri que era
remédio para doente mental. Misturei com álcool e apaguei. Caí de cara. Estou
falando o que me contaram. Era como uma televisão ligando e desligando. Acordei
todo ensanguentado.
PLAYBOY – Depois do show na
PUC, a carreira não engrenou...
NASI – Não.
Dispensamos. Mas a gente considera essa data como o surgimento do Ira!. Mais
tarde, o Edgard veio me procurar com outro baterista, o Victor Leite. Eu chamei
o Adilson (Fajardo, baixista) e a gente começou a fazer shows, um até
abrindo para a Gangue 90. Tocamos no teatro Lira Paulistana, reduto da MPB.
Tinha uma sessão maldita, á meia-noite, que era mais para o rock. Ali se
apresentaram pela primeira vez Titãs, Ultraje a Rigor, Inocentes e Kid Vinil.
PLAYBOY – Foi quando você
decidiu ser músico?
NASI – Ser músico era um
desgosto para a família. Eu cursava história na USP e ia largar pra virar
cantor. Por mais que meus pais nunca tenham me proibido, dava pra sentir a
preocupação. Era como se eu falasse: “Vou ser garota de programa”. Ninguém
tinha ideia de que aquilo iria virar não só uma profissão, mas também um
movimento musical. Comprei minha primeira guitarra, uma Giannini Supersonic –
que depois eu dei para o Edgard -, escondido, com dinheiro que pedi para o meu
avô. Hoje, o rock está tão estabelecido que o pai dá a guitarra pro filho e
fala: “Toma. Vai ganhar dinheiro”.
PLAYBOY – Edgard disse que
numa viagem duas garotas transaram com todo Ira!. Como é a vida sexual de um
roqueiro?
NASI – Eu não sabia disso. Fui
traído! (risos). Mas rola pra caralho. Afinal, estou mexendo com a
emoção e com a sexualidade das pessoas por meio da minha música num ambiente
onde as pessoas estão bebendo, dançando, se soltando. Só falta a panela do
diabo. Rock serve pra isso. Agora, às vezes você está paquerando uma garota e
ela vem: “Ah, você é roqueiro. Cada porta é uma mulher...” E você: “Não, veja
bem...” (risos)
PLAYBOY – Uma das músicas do
seu novo disco diz: “Eu acredito no amor/Nem que seja apenas uma
noite de amor”. Foram muitas “apenas uma noite”?
NASI – A
gente mitificava muito a palavra amor. Você pode viver em uma noite uma coisa
muito intensa. Uma vez me relacionei com uma garota que no dia seguinte estava
indo embora pra Alemanha. Ela gostava de meninas e fazia muito tempo que não
transava com um homem. Foi tão intenso que até hoje, se eu respirar
profundamente, sinto o perfume dela. Não posso reclamar da minha vida sexual.
Gosto de transar com uma, duas, três...
PLAYBOY - Três?
NASI – Já
cheguei a quatro. Um dia, uma ex-namorada que já tinha feito ménage a trois comigo
foi a um show. Eu já estava com duas garotas bem perversas, que gostavam do
babado, e com outra menina de Santos que estava muito interessada em conhecer
esse outro lado da vida. E a gente já estava combinando: “Depois do show vamos
lá pra casa ouvir um som, né?” Aí chegou essa ex-namorada. Eu já tinha tentado
reconquistá-la, mas chegou uma hora que eu desencanei. Naquele dia, falei:
“Fica á vontade”. Acho que isso a provocou. Fui pra casa com as outras três e,
quando o bicho estava pegando, ela apareceu com uma garrafa de vodca na mão.
Parei e disse: “Olha estou acompanhado. E ela (imitando a voz): “É
nóis”.
PLAYBOY – Foi difícil dar
conta de quatro?
NASI – No
sentido físico, não. Mas não acho quatro legal. O ideal é três, porque todo
mundo transa ao mesmo tempo. Quatro acaba dividindo. E, no caso daquela noite,
ainda teve um perrengue. Ela começou a passar mal e eu tive de ir cuidar dela,
deixando as outras três no quarto. De vez em quando eu abria a porta e pensava:
“Não é possível...” Aí ela capotou e as outras duas diabinhas deram área. Ficou
só a menina de Santos e essa ex-namorada, que depois acordou com ideias. Aí
rolou.
PLAYBOY – Em entrevista à PLAYBOY,
o ex-jogador de futebol Paulo César Caju disse que já tinha transado com mais
de mil mulheres. Qual é seu número mágico?
NASI –
Resolvi contar há dois anos. Lembrei de pessoas que namorei, casos marcantes,
grandes relacionamentos, encrencas, namorinhos, transas. Fiz disso um
passatempo. No fim, passou de 1 150.
PLAYBOY – Qual foi a primeira?
NASI – Na
zona, aos 14 anos. Era um lugar bem podreira. Foi com uma negra linda. Acho que
ela percebeu que era a minha primeira vez e não foi profissional, foi uma
rainha. Lembro de todos os detalhes. Senti a passagem: deixava de ser menino
para virar “homem”.
PLAYBOY – Você é um solteiro
convicto?
NASI – Sim.
Acho que casamento não tem nada a ver com amor. Eu acredito em relacionamento,
não em casamento. Os casados são mais sem-vergonha. Talvez porque os solteiros
estejam soltos e não precisem se lambuzar como alguém que tem só alguns
momentos para uma escapadinha.
PLAYBOY – Uma banda também é
um relacionamento e, no início dos anos 90, as coisas no Ira! não iam bem. O
que rolou?
NASI – Foi uma fase que juntou
decadência com excesso. Na década de 90 o ambiente estava ruim. Era um momento
sem perspectiva no cenário do rock. Decadência mesmo. Nossa relação ficou muito
agressiva por muito tempo. Ás vezes, pior do que sair na mão é ficar jogando
indiretas um para o outro. Nós temos um relacionamento de 25 anos. Ainda não
transamos, acho que nem vamos transar (risos).
PLAYBOY – Como vocalista, você
aparece mais, mas é o Edgard quem escreve a maioria das letras. Como é a
convivência entre vocês?
NASI – Na
relação entre dois ícones de uma banda de rock – o herói da guitarra e o cantor
– sempre há tensão. Mas ela pode ser boa. Se os dois estiverem em condições
normais de temperatura e pressão, ela pode ser a eletricidade que vai mover a
banda. Naturalmente eu tenho uma personalidade agressiva, sangue calabrês, e a
cocaína só piorava isso. Mas eu e o Edgard nunca chegamos às vias de fato. A
única vez que eu briguei com alguém da banda foi com o André (Jung,
baterista), por causa de uma discussão de futebol. Muito loucos, nós
começamos a discutir sobre São Paulo e Palmeiras e acabamos nos pegando.
PLAYBOY – Você sentia ciúmes
ao ouvir coisas como “Edgard é o melhor guitarrista do Brasil”?
NASI –
Muitas coisas me afetaram. Na imprensa você percebe que tem gente que, para
tentar valorizar um determinado elemento da banda, despreza outro. E a coisa
sempre pega entre cantor e guitarrista. Ninguém gosta de ler alguma coisa que
desmerece você, mesmo quando a crítica é merecida. Como eu lidei com isso? Em
um processo de desenvolver a minha musicalidade. Hoje, eu me senti mais seguro
sabendo das minhas qualidades e dos meus limites. Sem a pretensão de ser o
melhor.
PLAYBOY – É daí que vem o
disco solo?
NASI – Acho
que o trabalho solo traz problemas, encavala datas, mas esse disco marca uma
fase mais completa do meu trabalho. Tenho outros três discos de blues. É um
projeto que eu inventei, o Nasi e os Irmãos do Blues. Algumas pessoas pensam
que é uma banda, mas não é. Os Irmãos do Blues é uma grife de blues, os músicos
inclusive variam.
PLAYBOY – O que existe de
diferente em Onde os Anjos não Ousam Pisar?
NASI – Nesse
disco eu saio mais da ideia de banda fixa e estilo único. As faixas são
universos completamente diferentes. Não é um disco de band leader, é um
disco de intérprete e compositor. Demorei três anos para finalizá-lo. São os
arranjos que eu conduzi, são as músicas que eu compus ou fiz em parceria.
PLAYBOY – O clipe da música Corpo
Fechado está causando polêmica por causa das cenas de violência e sexo. De
quem foi a ideia?
NASI – O
Selton Mello (ator) me telefonou e disse: “Quero fazer o clipe dessa
música”. Acho legal porque é uma das músicas mais fortes e é a que abre o CD Eu
liguei pra ele e disse: “Faz o que você quiser”. A única coisa que eu coloquei
foram uns elementos de candomblé, porque a letra fala de um fundamento do
candomblé.
PLAYBOY – Esse guia que você
tem no pescoço é de candomblé?
NASI – Meu
pai sempre se ligou no kardecismo e foi daí que comecei e me interessar pelo
espiritismo. Mas minha mãe, que era de família italiana e católica, manifestou
dons mediúnicos durante boa parte da vida. Um preto velho que minha mãe
incorporava descreveu exatamente como ela iria morrer. Foi um tumor na cabeça,
desenvolvido em seis meses. Essa entidade falou comigo, com o meu pai e meu
irmão. Eu me lembro da entidade apontando para a cabeça da minha mãe. Gosto do
candomblé pela relação com a natureza, pela humanização e pelo jeito que mexe
com a música e com a dança. Pô, todo católico gosta de ir a um terreirinho,
gosta de um santinho, sempre tem um quebrantinho, um segredinho. Sou de um
orixá forte: Oguim Xoroquê.
PLAYBOY – Como essa mudança de
rumos, você pensa em sair do Ira!?
NASI – Nada
dura pra sempre. O Ira! está há 20 anos em turnê. Acho que vai chegar uma hora
que a gente talvez tenha que ter um distanciamento maior. Eu escolhi uma vida
solteira, não desenvolvi essa verve de ser pai. Meus filhos são meus discos,
minhas coisas, as pessoas de quem eu gosto. Eles ainda têm essa vida familiar
tradicional, que deve ser uma alegria e um trabalho maior.
PLAYBOY – Mas você tem uma
filha adolescente. Já foi a alguma reunião de pais e mestres?
NASI – Não,
mas já me peguei em situações do tipo: “Olha, sua filha está colocando
piercing, uma tatuagem. Você não vai fazer nada?” É claro que eu não vou fazer
nada, eu sou um cantor de rock e vou dizer para ela não colocar um piercing? Eu
mesmo não tinha nenhum piercing ou tatuagem. Como ela não foi fruto de um
relacionamento, não a vi crescer, eu tenho um distanciamento que não me faz
sentir como um pai que vai dar bronca. Mas eu já botei uns caras pra correr.
Teve namorado da mãe dela que falou coisa pra minha filha e teve que escutar.
PLAYBOY – Você tem fama de
brigão...
NASI – Outro
dia achei meu boletim do segundo ano. São todas notas altas, só em
comportamento é que não entendi se R é ruim ou regular. Nunca fui valentão. Me
dou muito bem com as pessoas do meu condomínio, nos lugares que eu frequento,
mas sempre acabo esbarrando com algum filho-da-puta. Acho que meu santo é
forte. Eu dou muito trabalho, mas ele é muito competente.
PLAYBOY – Você esbarrou com o
Haroldo Tzirulnik, empresário do Capital Inicial...
NASI – Eu
fui pra delegacia com ele em 1994, época em que ele nem era empresário do
Capital. Ele fez uma puta sacanagem comigo. Eu falei: “Estou indo aí com uma
testemunha e quero ver você falar na cara dele o que você falou pra mim”.
Cheguei lá e ele estava me esperando com outro cara e uma barra de ferro. Era o
Milton Sales, que depois viria a ser o empresário dos Racionais. O cara veio
pra cima, mas eu sou que nem o demônio-da-tasmânia e esquivei. Meu amigo acabou
sendo atingido pela barra de ferro. Depois os anos passaram, a gente ficou numa
boa.
PLAYBOY – E com os Titãs?
NASI –
Imagina! Fui superamigo do Marcelo Fromer. Eu discotequei em show dos Titãs,
jogamos muita bola juntos. O que aconteceu é que estávamos dentro de uma
gravadora sujeitos aos tititis. No começo, éramos todos da cena ascendente. Só
que num determinado momento a coisa estourou e estávamos dentro de uma grande
corporação disputando o mesmo espaço. Eu procuro ficar alheio a isso, mas às
vezes isso acaba sendo explorado pelas pessoas em volta e pela imprensa. Agora,
estou respondendo por mim. Acho que isso faz parte um pouco de todo o molho que
precisa ter na cena. Tem gente no mundo musical de quem eu não gosto mesmo.
Alguns nem são músicos. Mas a minha maneira de agir não é pela imprensa, é
pessoalmente mesmo.
PLAYBOY – Você teve muitos
problemas com a polícia?
NASI – Eu
tenho dificuldade de me relacionar com autoridade. Já fui levado à delegacia
três vezes por desacato. Na última – e espero que tenha sido a última -, depois
de um show, caí na besteira de ir tomando uma biritinha. Acabei batendo boca
com um cara. Veio aquela turma do deixa-disso. Fui empurrado, fiquei puto,
esperei o cara na saída e fui tirar satisfação. Nessa hora, um sujeito com
roupa de segurança chegou: “Polícia”. E eu falei: “Cadê seu documento”. Ele
tirou uma pistola automática, me imobilizou e botou a arma na minha cabeça.
Depois eu descobri que era um tremendo de um filha-da-puta, suspeito de
extermínio da região. Ele me levou pra delegacia e o delegado disse: “Pô, Nasi.
Eu estava no seu show com meu filho. Desculpa pelo excesso...” Mas eu tenho uma
ficha limpa. Nada de processos. Quem puxar meu DVC, minha capivara, vai ver que
eu tenho passagens em delegacia como vítima de ameaças e depredação.
PLAYBOY – Que tipo de
ameaças?
NASI – Namorada que eu defendi
contra a família ou ex-namorado que veio encher o saco da minha namorada.
Depredaram a minha casa de madrugada. Já tive que ir para a delegacia, por
armarem emboscada para mim na rua. Em 1999, eu tive uma relação com uma menina
e ela me disse que a mãe controlava uns bens dela. Não era grande coisa, meia
dúzia de imóveis. A mãe era amasiada com um psiquiatra, que tinha esquemas de
fraudar laudos de sanidade mental. Na época, ela parou de tomar remédios que o
padrasto dava para ela ser considerada mentalmente incapacitada. Eu levei essa
menina pra morar na minha casa, hoje somos amigos, ela está escondida. Eu sei
onde ela mora, a família não sabe. O disco Isso É Amor eu gravei
escondido em um flat, por causa dela. Um dia, eu quero transformar isso em um
romance.
PLAYBOY – Por falar em
romance, na sua estante tem a PLAYBOY da Marisa Orth. Como você conseguiu
conquistar um mulherão daqueles?
NASI – Eu namorei ela em uma
fase difícil, no início da década de 90. A Maria era de uma turma muito próxima
da gente, a turma do Luni (um grupo musical paulista). Depois conheci a
Marisa melhor, na época em que ela já era atriz lá na Globo e fazia a Nilcinha,
na novela Rainha da Sucata. Uma vez, numa casa noturna, eu paquerei uma
amiga dela, mas, de repente, eu estava com ela na pista de dança.
PLAYBOY – E aí bateu a
química?
NASI – Ela confessou que se
interessava por mim. E sabe por quê? Cara, ela disse que eu nunca tinha dado
bola para ela. Eu não dava bola pra ela porque achava que ela nunca daria bola
pra mim! A Marisa é uma mulher marcante, forte, grande. Ela é uma mulher tão
fogosa, que é impossível um homem chegar perto sem se render aos seus encantos.
PLAYBOY – Por que
terminou?
NASI – Foi uma fase muito
difícil. Eu não dava atenção pra ela. Tinha noites que ela estava dormindo na
minha cama e eu estava na cozinha fazendo uma balada com uma moçada. Eu estava
casado com uma mulher vestida de branco. Cocaína, entendeu? Mas lembro de
várias coisas que ela falou: que daquele jeito eu iria morrer, que estava
vivendo uma vida paralela. Depois que eu me recuperei, fui procurá-la para
agradecer porque, diferentemente de outras pessoas que relacionaram comigo na
época e embarcaram nessa onda, ela não entrou. Ela sempre procurou me resgatar.
Qualquer homem daria tudo pra ficar de mão dada com ela no cinema. E quantas
vezes eu não a deixei dormindo enquanto ficava até 5 da manhã falando as mesmas
coisas, no mesmo lugar.
PLAYBOY – Como é que
você se envolveu com drogas?
NASI – Só comecei a fumar
cigarro aos 20 anos, porque fumava muita maconha. Queria diminuir. Resultado:
comecei a fumar os dois pra caramba. Eu tive um momento sério com drogas no
começo de carreira. Até que sofri um acidente de carro e acabei passando um
tempo limpo. Quer dizer, fumava maconha, mas nada de heroína, cocaína e
qualquer outra coisa por cinco anos. Depois, isso voltou como uma avalanche,
coincidindo com um momento ruim da banda. Fumava muito e perdi a iniciativa. Na
época achava que era crise existencial, artística. Foi assim que reencontrei a
cocaína. No meu primeiro ano de uso de coca, eu dormia quando queria dormir,
comia quando queria comer, transava muito bem. Olhava para quem tinha problemas
e pensava: “Isso é um problema dele, não meu. Por que a pessoa usa se ela fica
nesse estado? Eu me divirto, escuto as pessoas, não fico só falando”.
PLAYBOY – Depois isso
mudou?
NASI – A euforia durou um ano.
Depois, você desenvolve tolerância à droga e começa a sofrer de solidão,
depressão, insônia e incapacidade sexual. Foi uma descida ao inferno. Eu já
tinha perdido tudo: relacionamentos, a banda estava indo pro saco. Estava
isolado e paranóico. Lembro que acordava com a planta do pé doente e não sabia
por quê. É que eu ficava na ponta do pé vigiando, um quadro clássico de “nóia”.
Meu sobradinho estava caindo nos pedaços e eu só não o cheirei porque não
consegui vender. Não que não tenha tentado...Ficava em casa, enfurnado. Os
shows eram um inferno. Tocava pra pagar a fornada. Cada um tem o seu poço, por
isso é difícil tratar alguém que não queria. Por causa disso perdi várias
mulheres lindas.
PLAYBOY – Como é estar
em uma clínica de recuperação?
NASI – Eu me
internei uma vez, mas sei que como dependente sou um vampiro com uma estaca no
coração. Se eu tirar a estava, volto a ser vampiro. Parei no dia 26 de abril de
1997 e não tenho ilusão de que possa voltar a usar. Respeito a cocaína. Quando
decidi me internar, ninguém acreditava mais em mim. Foi o meu irmão que me
ajudou. Uma vez, ele mandou um psiquiatra lá em casa. Tocou a campainha, 3 da
tarde e eu acordando de mau humor: “Quem é?” “O doutor Van Helsing”, o cara
respondeu. Na clínica você fica 28 dias sendo tratado por ex-dependentes
químicos, porque só um dependente sabe reconhecer os troques do outro. É foda.
Não é fácil ficar limpo lá dentro, mas você fica; E na hora de voltar pra rua?
Na frente da clínica tem uma bocada. Muitos já recaem ali mesmo. Sempre vai ser
difícil se uma hora você relaxar e falar: “Essa estaca está me incomodando.
Deixa eu tirar que o vampiro foi embora”.
PLAYBOY – Você chegou perto da
morte por causa da droga?
NASI –
Fisicamente, não. Outro dia fiz um check-up e, apesar do meu histórico, está
tudo perfeito. Agora, se eu dirigisse, estaria morto. Meu anjo da guarda me
tirou a paixão masculina por automóveis. Uma vez discuti na saída de um motel
com o dono. O cara veio com uma arma, e eu fui pra cima dele: “Atira se você é
homem”. E o coitado do taxista que trabalha comigo até hoje teve coragem pra
levantar e me tirar de lá. Já tive até treta com quem vendia pó. De ficar
devendo, de eu peitar, de fazer cagada. Por exemplo, uma vez eu não tinha mais
dinheiro e estava devendo, o cara não quis mais me dar e eu fui onde ele
morava, intimidando o porteiro. Conheci gente que por muito menos morreu. Você
se mete com pessoas com quem a vida não é nada.
PLAYBOY – Logo depois que você
saiu da clínica de desintoxicação, o Ira! foi gravar um disco. Foi difícil não
ter recaídas?
NASI – Eu
acabei passando por uma mudança que meus amigos necessariamente não precisavam
passar. Mesmo porque eles nem usavam drogas com a mesma intensidade que eu
usava. Eles tinham uma vida menos doentia. A verdade é que, quando você sai de
uma situação como aquela que eu estava vivendo, precisa do máximo de
tranquilidade possível. É muito difícil porque você se sente inadequado. Você
vai a um festa e se sente deslocado, já não se diverte como se divertia
antigamente. Vai a um show de rock e parece que falta alguma coisa. Quando eu
sai da clínica, fui direto fazer um disco (Você não Sabe Quem Eu Sou).
Eu tinha duas opções: ou fazia o disco e me tratava, ou me tratava e ia fazer o
disco. Foi um disco muito bom, mas também muito louco, de ruptura sonora. Isso
mexeu comigo e testou muito a minha recuperação. É difícil sair de uma clínica
onde você dá comigo para os músicos e faz terapia 12 horas por dia pra cair numa
rotina de ver todo mundo em volta em um estado de rock and roll. Se eu tivesse
gravado o disco e depois pensado em me tratar, talvez tivesse entrado em outro
embalo e falado: “Ah, meu...”
PLAYBOY – O Psicoacústica
é um dos discos do Ira! que mais têm experimentação. Ele teve ajuda da “lata” (carga
de maconha despejada no litoral do Rio no verão de 1987)?
NASI – Teve.
Todo mundo fumou da lata. Foi necessário para o disco. Por isso que ele é do
jeito que é. A gente se trancou por três meses num estúdio para fazer um disco
lisérgico mesmo. A gente colocava conhaque no narguilé e fumava. Tanto que o
disco tem longos solos e músicas sem refrão. Foi o primeiro disco do Brasil a
usar sampler, o primeiro a usar o toca-discos como instrumento. Foi a
droga certa, no estúdio certo, na hora certa, com a banda certa. Mesmo assim
foi mal recebido pela crítica. Mas, hoje, toda vez que eu abro uma biblioteca
básica do rock nacional, o Psicoacústica está lá. Em nenhum momento a
gente falava: “Estamos fazendo uma coisa de vanguarda. Vamos guardar como se
fosse um vinho e lançar no mercado só daqui a dez anos”. Não existe coisa de
querer ser vanguarda. A vanguarda simplesmente é. E você só percebe isso depois
que foi.
PLAYBOY – Você foi vanguarda
no rap.
NASI – Eu
fui um dos primeiros a produzir rap no Brasil, em 1985, 86. O Thaíde e DJ Hum,
por exemplo. Nessa época, todo mundo me olhava torto. Me perguntaram se eu não
sofria preconceito do pessoal do rap. Muitas vezes, aquela garotada me olhava
meio de soslaio, porque, pô, eu sou roqueiro, branco, o que é que eu estava
fazendo lá? E eles têm toda razão, porque a história deles é de exploração do
homem branco, né? Agora, o dia que eles chegaram na minha casa e viram a minha
coleção do James Brown e os discos que eu tinha, falaram: “Pô, ó o cara”...
PLAYBOY – Foi nessa época em
que você namorou a Marisa Monte?
NASI – Nos
conhecemos em 1988 num show do Ed Motta em que ela cantou The Closer I Get
to You. Fiquei apaixonado. Trocamos telefone e começamos a nos falar. Na
primeira vez em que manifestei um interesse mais objetivo, ela foi clara: “Eu
tenho uma relação meio mal resolvida. Melhor não”. A gente continuou a se ligar
para falar amenidades. Começamos até a escrever cartas – que eu acho uma coisa
muito legal – e a criar uma certa cumplicidade. Ela me disse que a relação que
estava tendo não era uma coisa oficial e que queria se desprender. A coisa
chegou a um ponto em a gente estava praticamente transando pelo telefone. Foram
meses assim. Até chegou uma hora que o bicho pegou. Ficamos juntos um ano e
meio.
PLAYBOY – O relacionamento
dela era com o Nelson Motta. Você e ele chegam a se desentender?
NASI – Eu
procurava não me envolver. Era ela quem tinha de resolver. Mas lembro que o
Nelson escreveu um artigo – nunca referindo a mim nem ao Ira! – que caiu como
uma bomba e era impossível não ser pessoal. Ele falava que o rock era aids - ou
o câncer, sei lá – da música brasileira. Também saía muita fofoca. A Joyce (Pascowitch,
então colunista da Folha de S. Paulo) soltava umas notinhas picantes, tipo:
“Marisa Monte foi vista no colo do cantor Nasi no Circo Voador”. A Marisa se
incomodava porque achava que era uma coisa pessoal. Eu não ligava, porque nunca
frequentei coluna social.
PLAYBOY – Frequentou, sim.
Você ameaçou processar a Folha de S. Paulo porque a mesma Joyce escreveu
que você tinha declarado apoio ao Collor em 1989.
NASI – Um
dia eu voltava de um show de Brasília e vi essa nota dizendo que eu estaria
aderindo e que os meus amigos estavam pasmos. Na época eu era superbrizolista,
achava o projeto educacional do Brizola incrível. Quando saiu a nota, minha
primeira atitude foi procurar a redação. Eles disseram: “Estiveram no seu show
e parece que você fez um manifesto ou falou alguma coisa”. Ninguém me procurou.
Fiquei puto. Pensei em jogar tinta na cabeça dessa gente. Depois fui procurar o
lado jurídico. Pedi por meio de uma notificação judicial o direito da réplica e
uma retratação. Foi aí que a Folha lançou a figura do ombudsman. O Caio
Túlio Costa, o primeiro ombudsman, foi nos arquivos e viu que essa notificação
tinha sido recebida e arquivada pelo setor responsável ou irresponsável. A
Folha fez uma retratação, mas não foi do jeito que eu queria.
PLAYBOY – Você é filiado ao PC
do B. O que está achando da crise política?
NASI – A
decepção não vem só por causa do mensalão. Claro que também é por causa disso,
já que eu achava que o governo iria instaurar uma nova forma de fazer política.
Mas, quando vi as políticas de alianças...Porra, não assinei um cheque em
branco para o PP, PL, que representam o pior na política. Tem ainda as alianças
artísticas. Quando vi o a trilha sonora da campanha do Lula: são artistas que
estavam na casa da Dinda e que sempre fazem campanha para quem vai vencer.
Estão ligados a grandes empresas de marketing e publicidade. E depois Zezé Di
Camargo & Luciano vêm aparecer na mídia se pintando de Madalena
arrependida. Como se eles tivessem algum comprometimento na vida que não fosse
com os latifundiários e os empreiteiros. E ainda vêm cobrar dívida depois de
fazer campanha com shows superfaturados.
PLAYBOY – Mas você já fez
shows para o PT...
NASI – Já fiz
muitos shows em campanhas do PT, muitos de graça. Inclusive me chamaram de
novo, mas não aceitei. Falei: “Pô, vocês estão pagando o KLB e não vão me pagar?
Estão superfaturando eles e não vão me pagar? Não estou nem pedindo pra me
pagar mais do que receberia em qualquer outro lugar. Você está pedindo pra eu
deixar de ganhar pra tocar”.
PLAYBOY – Você viu Dois
Filhos de Francisco, do Zezé Di Camargo & Luciano?
NASI – Não.
Mas vi que aquele anão de jardim, meia-foda do Luciano falou na PLAYBOY sobre o
Lobão (na edição de novembro, Luciano disse que as drogas deixaram inúteis
os poucos neurônios que restaram no roqueiro). Eles não tem história,
estofo cultural pra falar coisa alguma de um artista que, além de compositor, é
um dos maiores representantes da classe. Se fosse comigo, ele ia ver, se
cruzasse nos bastidores.
Publicado originalmente na
revista “Playboy” em janeiro de 2006
Um comentário:
O que mais gosto no blog são as entrevistas da extinta revista Playboy no Brasil. Very Good!
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