quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Playboy entrevista Nasi (janeiro de 2006)

Playboy entrevista Nasi (janeiro de 2006)

 


Uma conversa franca com o roqueiro mais sangue-quente do Brasil sobre os anos 80, o inferno das drogas, a volta ao sucesso

 

Foram necessários 25 anos de altos e baixos para uma das mais cultuadas bandas de rock nacional atingir o ápice do sucesso. Em um ano e meio, o Ira! ultrapassou a estonteante marca de 250 apresentações com o repertório do Acústico MTV – foi um show a cada dois dias. Também ganhou pela primeira vez um troféu no VMB, premiação anual da MTV. As plateias lotadas misturavam pessoas que cantavam Flores em Você no início da década de 80 com jovens mais novos que a própria música.

 

O revival dos anos 80 é a chave para entender o retorno fulminante do Ira!. Mas não é tudo. O ponto alto da banda coincide com a melhor fase de seu vocalista Marcos Valadão, o Nasi, o roqueiro de sangue mais quente do Brasil. Aliás, não é só roqueiro: foi um dos primeiros produtores de rap do país e mantém um projeto paralelo de blues. É um sujeito que já se meteu em toda espécie de escândalo – de brigas na delegacia a conflitos com colunista social – mas, também diz ter transado com mais de 1 150 mulheres (algumas vezes com mais de uma ao mesmo tempo), fora os badalados namoros com Marisa Orth e Marisa Monte. Já passou pelo inferno das drogas, mas agora sua vida anda tão boa que ele está investindo num projeto solo, o CD Onde os Anjos não Ousam Pisar. Tudo isso sem descuidar do grupo que o projetou. Nasi é o termômetro do Ira! nos palcos. Minutos antes do penúltimo show da banda em 2005, ele retirava o protetor que envolvia seu pescoço para vagarosamente atender a fila de fãs. Por causa de um mau jeito na coluna, estava com dificuldade para virar a cabeça. Mas bastou a primeira música começar para o cantor acender seu cigarro e não aguentar ficar sentado no banco. Dois metros à frente, uma loira e uma morena tentavam superar a altura dos acordes tocados pela guitarra de Edgard Scandurra. Uma tinha 23 anos. A outra, 24. Nem eram nascidas quando, em 1981, o Ira! subiu num palco pela primeira vez. Nasi, com seus 44 anos, se ajoelhou e cantou para ela os versos: “Pra ficar comigo/De vez”. Quatro dias depois, o músico recebeu o repórter Fernando Barros de Mello em sua confortável casa no bairro do Butantã, em São Paulo. Era a segunda sessão de entrevistas para a PLAYBOY. Estava descalço, sorrindo e tomando alguns goles de café e tequila. No dia seguinte, à meia-noite, telefonou para o repórter: “Desculpa, eu estava um pouco chapado por causa de remédio que estou tomando para as costas. Queria falar um pouco melhor sobre política e sobre os anos 80”.

 

PLAYBOY – Acústico MTV vendeu mais de 250 mil discos e rendeu 250 shows. Esta é a melhor fase do Ira!?

NASI – Em termos de reconhecimento, sim. Mas no Brasil, virou o ano, você tem que provar tudo de novo. Sem pirataria, um disco como esse há uns cinco anos teria vendido três vezes mais. Se vendemos 250 mil, os camelôs venderam 500 mil. Até a crítica mais ranzinza teve de tirar o chapéu para esse trabalho. Está muito bem tocado e arranjado. Eu coloco o Acústico MTV ao lado dos melhores discos do Ira!. Minha ordem pessoal é Psicoacústica, Mudança de Comportamento, Acústico MTV, Você não Sabe Quem Eu Sou e Meninos da Rua Paulo.

 

PLAYBOY – Um bocado desse sucesso se deve ao revival dos anos 80. Por que essa época voltou a ser um bom negócio?

NASI – Na verdade, os anos 80 não foram tão legais assim. Teve muita porcaria. Aliás, a maior parte das coisas conhecidas, como Abismo, Dr. Silvana, representavam tudo o que tem de descartável, de lixo. A ruindade dos anos 80 fica bem resumida no Ursinho Blau Blau. Mas o legal é que algumas bandas que não tocavam nas FMs estão sendo redescobertas, como Mercenárias e Akira S. Em termos de rock internacional foi pior ainda, brega mesmo. Daqui a pouco espero que comecem a puxar o saco da década de 90. Afinal, tem o É o Tchan e tanta coisa para ser ressuscitada para o bem do Brasil, né? (risos)

 

PLAYBOY – Mas a década de 80 não foi a época de ouro do rock brasileiro?

NASI - Os anos 80, apesar de serem a década do rock, fizeram muito mal para o rock por causa do saco de gatos que virou o cenário nacional. Se você pegar tudo que se fez, só 20% presta. Por isso que na década de 90 o rock afundou.

 

PLAYBOY – Onde é que o rock errou?

NASI – Os anos 80 também foram o início das FMs pop rock. Como é que as bandas se formavam? Com um grupo de jovens comprando discos. É muito difícil você encontrar na década de 80 bandas que sejam xerox uma da outra. Só no fim, na decadência. Porque não tinha esse padrão de rock de FM que tem agora. Hoje, um garoto que começa uma banda vai ouvir FM e falar: “Ó, isso é que pega. Vamos nessa”. Outro problema é que tem muita gente que se leva a sério e se julga gênio no rock.

 

PLAYBOY – Por exemplo?

NASI – Deixo pra vocês. É muita pretensão, sabe? Acho que o bacana da arte, na música, é ela ser com “a” minúscula. Música tem um valor de arte no sentido de fazer coisas levadas, do tipo “menino, para de fazer arte”. O rock é isso.

 

PLAYBOY – E qual foi a maior arte que você já fez em palco?

NASI – Eu tive uma fase meio Iggy Pop, em que quebrava copo, me cortava, enfiava a cabeça no bumbo. Quando parei com isso, comecei a ver que era um jeito de chocar as pessoas. Eu imaginava um cantor de rock como um performer. Eu me lembro de quando um amigo chegou e falou: “Adoro vocês, mas aquela fase em que você se cortava era mais legal”. Me senti um palhaço e pareio. Para mim era mais um barato e eu nem usava droga. Só tomava cerveja, mas liberava uma fera de dentro de mim.

 

PLAYBOY – O João Gordo disse que uma vez você o viu na plateia, se empolgou e começou a cuspir e a se cortar com uns cacos de vidro, e que no fim acertou uma catarrada numa japonesinha...

NASI – O clima era tão punk naquela época que era comum a plateia cuspir e te ofender porque estava gostando. A troca de insultos não era uma coisa tão pessoal. Durante uma fase do Ira!, a gente se vestia até com roupas de militar.

 

PLAYBOY – É daí que vem o apelido Nasi?

NASI – Não. Foi pelo meu mau comportamento no colégio que começaram a me chamar de Nasi. Na época passava a série Holocausto, sobre nazismo, e eu era o terror da escola. Nos dois primeiros discos do Ira!, eu assino Marcos Valadão. Te, gente que até hoje me pergunta: “Pô, quando você entrou no Ira!?” Tentei ver se Marcos Valadão pegava. Não pegou. Por causa do apelido, sofri assédio de skinheads e sempre tinha de mostrar que achava isso tudo um absurdo. Já vi gente fazendo suástica pra mim. Já fui ameaçado por eles. Isso foi durante a década de 80.

 

PLAYBOY – E esse visual de Wolverine, de onde foi que saiu?

NASI – Eu uso a costeleta há muito tempo, herança de roqueiro mesmo. Mas também gosto bastante de quadrinhos. Em 1990, conheci o Wolverine e os X-Men e comecei a colecionar. Acho o Wolverine um personagem complexo. Não é bom nem mau. É contraditório, solitário, individualista. É um personagem em busca de sua origem, que enfrenta tudo e é politicamente incorreto. E, o mais legal, ele se vale dos seus poderes de regeneração para fumar e beber o quanto quiser.

 

PLAYBOY – Em 1981, você encontrou o Edgard Scandurra num ponto de ônibus e dali surgiu o Ira!. Você acordou um dia e falou “quero ser roqueiro”?

NASI – Na época eu nem pensava em ser cantor, mas estava montando uma banda. Eu cruzei com o Edgard, que eu conhecia do colégio. Ele estava voltando do serviço militar: “Vamos tocar uns covers do Clash, do Sex Pistols?” Foi quando rolou um festival na PUC. Era outubro de 1981, o primeiro show do Ira!, e só tinha punk. A música era detalhe. Naquela noite me deram Artani. Só depois descobri que era remédio para doente mental. Misturei com álcool e apaguei. Caí de cara. Estou falando o que me contaram. Era como uma televisão ligando e desligando. Acordei todo ensanguentado.

 

PLAYBOY – Depois do show na PUC, a carreira não engrenou...

NASI – Não. Dispensamos. Mas a gente considera essa data como o surgimento do Ira!. Mais tarde, o Edgard veio me procurar com outro baterista, o Victor Leite. Eu chamei o Adilson (Fajardo, baixista) e a gente começou a fazer shows, um até abrindo para a Gangue 90. Tocamos no teatro Lira Paulistana, reduto da MPB. Tinha uma sessão maldita, á meia-noite, que era mais para o rock. Ali se apresentaram pela primeira vez Titãs, Ultraje a Rigor, Inocentes e Kid Vinil.

 

PLAYBOY – Foi quando você decidiu ser músico?

NASI – Ser músico era um desgosto para a família. Eu cursava história na USP e ia largar pra virar cantor. Por mais que meus pais nunca tenham me proibido, dava pra sentir a preocupação. Era como se eu falasse: “Vou ser garota de programa”. Ninguém tinha ideia de que aquilo iria virar não só uma profissão, mas também um movimento musical. Comprei minha primeira guitarra, uma Giannini Supersonic – que depois eu dei para o Edgard -, escondido, com dinheiro que pedi para o meu avô. Hoje, o rock está tão estabelecido que o pai dá a guitarra pro filho e fala: “Toma. Vai ganhar dinheiro”.

 

PLAYBOY – Edgard disse que numa viagem duas garotas transaram com todo Ira!. Como é a vida sexual de um roqueiro?

NASI – Eu não sabia disso. Fui traído! (risos). Mas rola pra caralho. Afinal, estou mexendo com a emoção e com a sexualidade das pessoas por meio da minha música num ambiente onde as pessoas estão bebendo, dançando, se soltando. Só falta a panela do diabo. Rock serve pra isso. Agora, às vezes você está paquerando uma garota e ela vem: “Ah, você é roqueiro. Cada porta é uma mulher...” E você: “Não, veja bem...” (risos)

 

PLAYBOY – Uma das músicas do seu novo disco diz: “Eu acredito no amor/Nem que seja apenas uma noite de amor”. Foram muitas “apenas uma noite”?

NASI – A gente mitificava muito a palavra amor. Você pode viver em uma noite uma coisa muito intensa. Uma vez me relacionei com uma garota que no dia seguinte estava indo embora pra Alemanha. Ela gostava de meninas e fazia muito tempo que não transava com um homem. Foi tão intenso que até hoje, se eu respirar profundamente, sinto o perfume dela. Não posso reclamar da minha vida sexual. Gosto de transar com uma, duas, três...

 

PLAYBOY - Três?

NASI – Já cheguei a quatro. Um dia, uma ex-namorada que já tinha feito ménage a trois comigo foi a um show. Eu já estava com duas garotas bem perversas, que gostavam do babado, e com outra menina de Santos que estava muito interessada em conhecer esse outro lado da vida. E a gente já estava combinando: “Depois do show vamos lá pra casa ouvir um som, né?” Aí chegou essa ex-namorada. Eu já tinha tentado reconquistá-la, mas chegou uma hora que eu desencanei. Naquele dia, falei: “Fica á vontade”. Acho que isso a provocou. Fui pra casa com as outras três e, quando o bicho estava pegando, ela apareceu com uma garrafa de vodca na mão. Parei e disse: “Olha estou acompanhado. E ela (imitando a voz): “É nóis”.

 

PLAYBOY – Foi difícil dar conta de quatro?

NASI – No sentido físico, não. Mas não acho quatro legal. O ideal é três, porque todo mundo transa ao mesmo tempo. Quatro acaba dividindo. E, no caso daquela noite, ainda teve um perrengue. Ela começou a passar mal e eu tive de ir cuidar dela, deixando as outras três no quarto. De vez em quando eu abria a porta e pensava: “Não é possível...” Aí ela capotou e as outras duas diabinhas deram área. Ficou só a menina de Santos e essa ex-namorada, que depois acordou com ideias. Aí rolou.

 

PLAYBOY – Em entrevista à PLAYBOY, o ex-jogador de futebol Paulo César Caju disse que já tinha transado com mais de mil mulheres. Qual é seu número mágico?

NASI – Resolvi contar há dois anos. Lembrei de pessoas que namorei, casos marcantes, grandes relacionamentos, encrencas, namorinhos, transas. Fiz disso um passatempo. No fim, passou de 1 150.

 

PLAYBOY – Qual foi a primeira?

NASI – Na zona, aos 14 anos. Era um lugar bem podreira. Foi com uma negra linda. Acho que ela percebeu que era a minha primeira vez e não foi profissional, foi uma rainha. Lembro de todos os detalhes. Senti a passagem: deixava de ser menino para virar “homem”.

 

PLAYBOY – Você é um solteiro convicto?

NASI Sim. Acho que casamento não tem nada a ver com amor. Eu acredito em relacionamento, não em casamento. Os casados são mais sem-vergonha. Talvez porque os solteiros estejam soltos e não precisem se lambuzar como alguém que tem só alguns momentos para uma escapadinha.

 

PLAYBOY – Uma banda também é um relacionamento e, no início dos anos 90, as coisas no Ira! não iam bem. O que rolou?

NASI – Foi uma fase que juntou decadência com excesso. Na década de 90 o ambiente estava ruim. Era um momento sem perspectiva no cenário do rock. Decadência mesmo. Nossa relação ficou muito agressiva por muito tempo. Ás vezes, pior do que sair na mão é ficar jogando indiretas um para o outro. Nós temos um relacionamento de 25 anos. Ainda não transamos, acho que nem vamos transar (risos).

 

PLAYBOY – Como vocalista, você aparece mais, mas é o Edgard quem escreve a maioria das letras. Como é a convivência entre vocês?

NASI – Na relação entre dois ícones de uma banda de rock – o herói da guitarra e o cantor – sempre há tensão. Mas ela pode ser boa. Se os dois estiverem em condições normais de temperatura e pressão, ela pode ser a eletricidade que vai mover a banda. Naturalmente eu tenho uma personalidade agressiva, sangue calabrês, e a cocaína só piorava isso. Mas eu e o Edgard nunca chegamos às vias de fato. A única vez que eu briguei com alguém da banda foi com o André (Jung, baterista), por causa de uma discussão de futebol. Muito loucos, nós começamos a discutir sobre São Paulo e Palmeiras e acabamos nos pegando.

 

PLAYBOY – Você sentia ciúmes ao ouvir coisas como “Edgard é o melhor guitarrista do Brasil”?

NASI – Muitas coisas me afetaram. Na imprensa você percebe que tem gente que, para tentar valorizar um determinado elemento da banda, despreza outro. E a coisa sempre pega entre cantor e guitarrista. Ninguém gosta de ler alguma coisa que desmerece você, mesmo quando a crítica é merecida. Como eu lidei com isso? Em um processo de desenvolver a minha musicalidade. Hoje, eu me senti mais seguro sabendo das minhas qualidades e dos meus limites. Sem a pretensão de ser o melhor.

 

PLAYBOY – É daí que vem o disco solo?

NASI – Acho que o trabalho solo traz problemas, encavala datas, mas esse disco marca uma fase mais completa do meu trabalho. Tenho outros três discos de blues. É um projeto que eu inventei, o Nasi e os Irmãos do Blues. Algumas pessoas pensam que é uma banda, mas não é. Os Irmãos do Blues é uma grife de blues, os músicos inclusive variam.

 

PLAYBOY – O que existe de diferente em Onde os Anjos não Ousam Pisar?

NASI – Nesse disco eu saio mais da ideia de banda fixa e estilo único. As faixas são universos completamente diferentes. Não é um disco de band leader, é um disco de intérprete e compositor. Demorei três anos para finalizá-lo. São os arranjos que eu conduzi, são as músicas que eu compus ou fiz em parceria.

 

PLAYBOY – O clipe da música Corpo Fechado está causando polêmica por causa das cenas de violência e sexo. De quem foi a ideia?

NASI – O Selton Mello (ator) me telefonou e disse: “Quero fazer o clipe dessa música”. Acho legal porque é uma das músicas mais fortes e é a que abre o CD Eu liguei pra ele e disse: “Faz o que você quiser”. A única coisa que eu coloquei foram uns elementos de candomblé, porque a letra fala de um fundamento do candomblé.

 

PLAYBOY – Esse guia que você tem no pescoço é de candomblé?

NASI – Meu pai sempre se ligou no kardecismo e foi daí que comecei e me interessar pelo espiritismo. Mas minha mãe, que era de família italiana e católica, manifestou dons mediúnicos durante boa parte da vida. Um preto velho que minha mãe incorporava descreveu exatamente como ela iria morrer. Foi um tumor na cabeça, desenvolvido em seis meses. Essa entidade falou comigo, com o meu pai e meu irmão. Eu me lembro da entidade apontando para a cabeça da minha mãe. Gosto do candomblé pela relação com a natureza, pela humanização e pelo jeito que mexe com a música e com a dança. Pô, todo católico gosta de ir a um terreirinho, gosta de um santinho, sempre tem um quebrantinho, um segredinho. Sou de um orixá forte: Oguim Xoroquê.

 

PLAYBOY – Como essa mudança de rumos, você pensa em sair do Ira!?

NASI – Nada dura pra sempre. O Ira! está há 20 anos em turnê. Acho que vai chegar uma hora que a gente talvez tenha que ter um distanciamento maior. Eu escolhi uma vida solteira, não desenvolvi essa verve de ser pai. Meus filhos são meus discos, minhas coisas, as pessoas de quem eu gosto. Eles ainda têm essa vida familiar tradicional, que deve ser uma alegria e um trabalho maior.

 

PLAYBOY – Mas você tem uma filha adolescente. Já foi a alguma reunião de pais e mestres?

NASI – Não, mas já me peguei em situações do tipo: “Olha, sua filha está colocando piercing, uma tatuagem. Você não vai fazer nada?” É claro que eu não vou fazer nada, eu sou um cantor de rock e vou dizer para ela não colocar um piercing? Eu mesmo não tinha nenhum piercing ou tatuagem. Como ela não foi fruto de um relacionamento, não a vi crescer, eu tenho um distanciamento que não me faz sentir como um pai que vai dar bronca. Mas eu já botei uns caras pra correr. Teve namorado da mãe dela que falou coisa pra minha filha e teve que escutar.

 

PLAYBOY – Você tem fama de brigão...

NASI – Outro dia achei meu boletim do segundo ano. São todas notas altas, só em comportamento é que não entendi se R é ruim ou regular. Nunca fui valentão. Me dou muito bem com as pessoas do meu condomínio, nos lugares que eu frequento, mas sempre acabo esbarrando com algum filho-da-puta. Acho que meu santo é forte. Eu dou muito trabalho, mas ele é muito competente.

 

PLAYBOY – Você esbarrou com o Haroldo Tzirulnik, empresário do Capital Inicial...

NASI – Eu fui pra delegacia com ele em 1994, época em que ele nem era empresário do Capital. Ele fez uma puta sacanagem comigo. Eu falei: “Estou indo aí com uma testemunha e quero ver você falar na cara dele o que você falou pra mim”. Cheguei lá e ele estava me esperando com outro cara e uma barra de ferro. Era o Milton Sales, que depois viria a ser o empresário dos Racionais. O cara veio pra cima, mas eu sou que nem o demônio-da-tasmânia e esquivei. Meu amigo acabou sendo atingido pela barra de ferro. Depois os anos passaram, a gente ficou numa boa.

 

PLAYBOY – E com os Titãs?

NASI – Imagina! Fui superamigo do Marcelo Fromer. Eu discotequei em show dos Titãs, jogamos muita bola juntos. O que aconteceu é que estávamos dentro de uma gravadora sujeitos aos tititis. No começo, éramos todos da cena ascendente. Só que num determinado momento a coisa estourou e estávamos dentro de uma grande corporação disputando o mesmo espaço. Eu procuro ficar alheio a isso, mas às vezes isso acaba sendo explorado pelas pessoas em volta e pela imprensa. Agora, estou respondendo por mim. Acho que isso faz parte um pouco de todo o molho que precisa ter na cena. Tem gente no mundo musical de quem eu não gosto mesmo. Alguns nem são músicos. Mas a minha maneira de agir não é pela imprensa, é pessoalmente mesmo.

 

PLAYBOY – Você teve muitos problemas com a polícia?

NASI – Eu tenho dificuldade de me relacionar com autoridade. Já fui levado à delegacia três vezes por desacato. Na última – e espero que tenha sido a última -, depois de um show, caí na besteira de ir tomando uma biritinha. Acabei batendo boca com um cara. Veio aquela turma do deixa-disso. Fui empurrado, fiquei puto, esperei o cara na saída e fui tirar satisfação. Nessa hora, um sujeito com roupa de segurança chegou: “Polícia”. E eu falei: “Cadê seu documento”. Ele tirou uma pistola automática, me imobilizou e botou a arma na minha cabeça. Depois eu descobri que era um tremendo de um filha-da-puta, suspeito de extermínio da região. Ele me levou pra delegacia e o delegado disse: “Pô, Nasi. Eu estava no seu show com meu filho. Desculpa pelo excesso...” Mas eu tenho uma ficha limpa. Nada de processos. Quem puxar meu DVC, minha capivara, vai ver que eu tenho passagens em delegacia como vítima de ameaças e depredação.

 

PLAYBOY – Que tipo de ameaças?

NASI – Namorada que eu defendi contra a família ou ex-namorado que veio encher o saco da minha namorada. Depredaram a minha casa de madrugada. Já tive que ir para a delegacia, por armarem emboscada para mim na rua. Em 1999, eu tive uma relação com uma menina e ela me disse que a mãe controlava uns bens dela. Não era grande coisa, meia dúzia de imóveis. A mãe era amasiada com um psiquiatra, que tinha esquemas de fraudar laudos de sanidade mental. Na época, ela parou de tomar remédios que o padrasto dava para ela ser considerada mentalmente incapacitada. Eu levei essa menina pra morar na minha casa, hoje somos amigos, ela está escondida. Eu sei onde ela mora, a família não sabe. O disco Isso É Amor eu gravei escondido em um flat, por causa dela. Um dia, eu quero transformar isso em um romance.

 

PLAYBOY – Por falar em romance, na sua estante tem a PLAYBOY da Marisa Orth. Como você conseguiu conquistar um mulherão daqueles?

NASI – Eu namorei ela em uma fase difícil, no início da década de 90. A Maria era de uma turma muito próxima da gente, a turma do Luni (um grupo musical paulista). Depois conheci a Marisa melhor, na época em que ela já era atriz lá na Globo e fazia a Nilcinha, na novela Rainha da Sucata. Uma vez, numa casa noturna, eu paquerei uma amiga dela, mas, de repente, eu estava com ela na pista de dança. 

 

PLAYBOY – E aí bateu a química?

NASI – Ela confessou que se interessava por mim. E sabe por quê? Cara, ela disse que eu nunca tinha dado bola para ela. Eu não dava bola pra ela porque achava que ela nunca daria bola pra mim! A Marisa é uma mulher marcante, forte, grande. Ela é uma mulher tão fogosa, que é impossível um homem chegar perto sem se render aos seus encantos.

 

PLAYBOY – Por que terminou?

NASI – Foi uma fase muito difícil. Eu não dava atenção pra ela. Tinha noites que ela estava dormindo na minha cama e eu estava na cozinha fazendo uma balada com uma moçada. Eu estava casado com uma mulher vestida de branco. Cocaína, entendeu? Mas lembro de várias coisas que ela falou: que daquele jeito eu iria morrer, que estava vivendo uma vida paralela. Depois que eu me recuperei, fui procurá-la para agradecer porque, diferentemente de outras pessoas que relacionaram comigo na época e embarcaram nessa onda, ela não entrou. Ela sempre procurou me resgatar. Qualquer homem daria tudo pra ficar de mão dada com ela no cinema. E quantas vezes eu não a deixei dormindo enquanto ficava até 5 da manhã falando as mesmas coisas, no mesmo lugar.

 

PLAYBOY – Como é que você se envolveu com drogas?

NASI – Só comecei a fumar cigarro aos 20 anos, porque fumava muita maconha. Queria diminuir. Resultado: comecei a fumar os dois pra caramba. Eu tive um momento sério com drogas no começo de carreira. Até que sofri um acidente de carro e acabei passando um tempo limpo. Quer dizer, fumava maconha, mas nada de heroína, cocaína e qualquer outra coisa por cinco anos. Depois, isso voltou como uma avalanche, coincidindo com um momento ruim da banda. Fumava muito e perdi a iniciativa. Na época achava que era crise existencial, artística. Foi assim que reencontrei a cocaína. No meu primeiro ano de uso de coca, eu dormia quando queria dormir, comia quando queria comer, transava muito bem. Olhava para quem tinha problemas e pensava: “Isso é um problema dele, não meu. Por que a pessoa usa se ela fica nesse estado? Eu me divirto, escuto as pessoas, não fico só falando”.

 

PLAYBOY – Depois isso mudou?

NASI – A euforia durou um ano. Depois, você desenvolve tolerância à droga e começa a sofrer de solidão, depressão, insônia e incapacidade sexual. Foi uma descida ao inferno. Eu já tinha perdido tudo: relacionamentos, a banda estava indo pro saco. Estava isolado e paranóico. Lembro que acordava com a planta do pé doente e não sabia por quê. É que eu ficava na ponta do pé vigiando, um quadro clássico de “nóia”. Meu sobradinho estava caindo nos pedaços e eu só não o cheirei porque não consegui vender. Não que não tenha tentado...Ficava em casa, enfurnado. Os shows eram um inferno. Tocava pra pagar a fornada. Cada um tem o seu poço, por isso é difícil tratar alguém que não queria. Por causa disso perdi várias mulheres lindas.

 

PLAYBOY – Como é estar em uma clínica de recuperação?

NASI – Eu me internei uma vez, mas sei que como dependente sou um vampiro com uma estaca no coração. Se eu tirar a estava, volto a ser vampiro. Parei no dia 26 de abril de 1997 e não tenho ilusão de que possa voltar a usar. Respeito a cocaína. Quando decidi me internar, ninguém acreditava mais em mim. Foi o meu irmão que me ajudou. Uma vez, ele mandou um psiquiatra lá em casa. Tocou a campainha, 3 da tarde e eu acordando de mau humor: “Quem é?” “O doutor Van Helsing”, o cara respondeu. Na clínica você fica 28 dias sendo tratado por ex-dependentes químicos, porque só um dependente sabe reconhecer os troques do outro. É foda. Não é fácil ficar limpo lá dentro, mas você fica; E na hora de voltar pra rua? Na frente da clínica tem uma bocada. Muitos já recaem ali mesmo. Sempre vai ser difícil se uma hora você relaxar e falar: “Essa estaca está me incomodando. Deixa eu tirar que o vampiro foi embora”.

 

PLAYBOY – Você chegou perto da morte por causa da droga?

NASI – Fisicamente, não. Outro dia fiz um check-up e, apesar do meu histórico, está tudo perfeito. Agora, se eu dirigisse, estaria morto. Meu anjo da guarda me tirou a paixão masculina por automóveis. Uma vez discuti na saída de um motel com o dono. O cara veio com uma arma, e eu fui pra cima dele: “Atira se você é homem”. E o coitado do taxista que trabalha comigo até hoje teve coragem pra levantar e me tirar de lá. Já tive até treta com quem vendia pó. De ficar devendo, de eu peitar, de fazer cagada. Por exemplo, uma vez eu não tinha mais dinheiro e estava devendo, o cara não quis mais me dar e eu fui onde ele morava, intimidando o porteiro. Conheci gente que por muito menos morreu. Você se mete com pessoas com quem a vida não é nada.

 

PLAYBOY – Logo depois que você saiu da clínica de desintoxicação, o Ira! foi gravar um disco. Foi difícil não ter recaídas?

NASI – Eu acabei passando por uma mudança que meus amigos necessariamente não precisavam passar. Mesmo porque eles nem usavam drogas com a mesma intensidade que eu usava. Eles tinham uma vida menos doentia. A verdade é que, quando você sai de uma situação como aquela que eu estava vivendo, precisa do máximo de tranquilidade possível. É muito difícil porque você se sente inadequado. Você vai a um festa e se sente deslocado, já não se diverte como se divertia antigamente. Vai a um show de rock e parece que falta alguma coisa. Quando eu sai da clínica, fui direto fazer um disco (Você não Sabe Quem Eu Sou). Eu tinha duas opções: ou fazia o disco e me tratava, ou me tratava e ia fazer o disco. Foi um disco muito bom, mas também muito louco, de ruptura sonora. Isso mexeu comigo e testou muito a minha recuperação. É difícil sair de uma clínica onde você dá comigo para os músicos e faz terapia 12 horas por dia pra cair numa rotina de ver todo mundo em volta em um estado de rock and roll. Se eu tivesse gravado o disco e depois pensado em me tratar, talvez tivesse entrado em outro embalo e falado: “Ah, meu...”

 

PLAYBOY – O Psicoacústica é um dos discos do Ira! que mais têm experimentação. Ele teve ajuda da “lata” (carga de maconha despejada no litoral do Rio no verão de 1987)?

NASI – Teve. Todo mundo fumou da lata. Foi necessário para o disco. Por isso que ele é do jeito que é. A gente se trancou por três meses num estúdio para fazer um disco lisérgico mesmo. A gente colocava conhaque no narguilé e fumava. Tanto que o disco tem longos solos e músicas sem refrão. Foi o primeiro disco do Brasil a usar sampler, o primeiro a usar o toca-discos como instrumento. Foi a droga certa, no estúdio certo, na hora certa, com a banda certa. Mesmo assim foi mal recebido pela crítica. Mas, hoje, toda vez que eu abro uma biblioteca básica do rock nacional, o Psicoacústica está lá. Em nenhum momento a gente falava: “Estamos fazendo uma coisa de vanguarda. Vamos guardar como se fosse um vinho e lançar no mercado só daqui a dez anos”. Não existe coisa de querer ser vanguarda. A vanguarda simplesmente é. E você só percebe isso depois que foi.

 

PLAYBOY – Você foi vanguarda no rap.

NASI – Eu fui um dos primeiros a produzir rap no Brasil, em 1985, 86. O Thaíde e DJ Hum, por exemplo. Nessa época, todo mundo me olhava torto. Me perguntaram se eu não sofria preconceito do pessoal do rap. Muitas vezes, aquela garotada me olhava meio de soslaio, porque, pô, eu sou roqueiro, branco, o que é que eu estava fazendo lá? E eles têm toda razão, porque a história deles é de exploração do homem branco, né? Agora, o dia que eles chegaram na minha casa e viram a minha coleção do James Brown e os discos que eu tinha, falaram: “Pô, ó o cara”...

 

PLAYBOY – Foi nessa época em que você namorou a Marisa Monte?

NASI – Nos conhecemos em 1988 num show do Ed Motta em que ela cantou The Closer I Get to You. Fiquei apaixonado. Trocamos telefone e começamos a nos falar. Na primeira vez em que manifestei um interesse mais objetivo, ela foi clara: “Eu tenho uma relação meio mal resolvida. Melhor não”. A gente continuou a se ligar para falar amenidades. Começamos até a escrever cartas – que eu acho uma coisa muito legal – e a criar uma certa cumplicidade. Ela me disse que a relação que estava tendo não era uma coisa oficial e que queria se desprender. A coisa chegou a um ponto em a gente estava praticamente transando pelo telefone. Foram meses assim. Até chegou uma hora que o bicho pegou. Ficamos juntos um ano e meio.

 

PLAYBOY – O relacionamento dela era com o Nelson Motta. Você e ele chegam a se desentender?

 

NASI – Eu procurava não me envolver. Era ela quem tinha de resolver. Mas lembro que o Nelson escreveu um artigo – nunca referindo a mim nem ao Ira! – que caiu como uma bomba e era impossível não ser pessoal. Ele falava que o rock era aids - ou o câncer, sei lá – da música brasileira. Também saía muita fofoca. A Joyce (Pascowitch, então colunista da Folha de S. Paulo) soltava umas notinhas picantes, tipo: “Marisa Monte foi vista no colo do cantor Nasi no Circo Voador”. A Marisa se incomodava porque achava que era uma coisa pessoal. Eu não ligava, porque nunca frequentei coluna social.

 

PLAYBOY – Frequentou, sim. Você ameaçou processar a Folha de S. Paulo porque a mesma Joyce escreveu que você tinha declarado apoio ao Collor em 1989.

NASI – Um dia eu voltava de um show de Brasília e vi essa nota dizendo que eu estaria aderindo e que os meus amigos estavam pasmos. Na época eu era superbrizolista, achava o projeto educacional do Brizola incrível. Quando saiu a nota, minha primeira atitude foi procurar a redação. Eles disseram: “Estiveram no seu show e parece que você fez um manifesto ou falou alguma coisa”. Ninguém me procurou. Fiquei puto. Pensei em jogar tinta na cabeça dessa gente. Depois fui procurar o lado jurídico. Pedi por meio de uma notificação judicial o direito da réplica e uma retratação. Foi aí que a Folha lançou a figura do ombudsman. O Caio Túlio Costa, o primeiro ombudsman, foi nos arquivos e viu que essa notificação tinha sido recebida e arquivada pelo setor responsável ou irresponsável. A Folha fez uma retratação, mas não foi do jeito que eu queria.

 

PLAYBOY – Você é filiado ao PC do B. O que está achando da crise política?

NASI – A decepção não vem só por causa do mensalão. Claro que também é por causa disso, já que eu achava que o governo iria instaurar uma nova forma de fazer política. Mas, quando vi as políticas de alianças...Porra, não assinei um cheque em branco para o PP, PL, que representam o pior na política. Tem ainda as alianças artísticas. Quando vi o a trilha sonora da campanha do Lula: são artistas que estavam na casa da Dinda e que sempre fazem campanha para quem vai vencer. Estão ligados a grandes empresas de marketing e publicidade. E depois Zezé Di Camargo & Luciano vêm aparecer na mídia se pintando de Madalena arrependida. Como se eles tivessem algum comprometimento na vida que não fosse com os latifundiários e os empreiteiros. E ainda vêm cobrar dívida depois de fazer campanha com shows superfaturados.

 

PLAYBOY – Mas você já fez shows para o PT...

NASI – Já fiz muitos shows em campanhas do PT, muitos de graça. Inclusive me chamaram de novo, mas não aceitei. Falei: “Pô, vocês estão pagando o KLB e não vão me pagar? Estão superfaturando eles e não vão me pagar? Não estou nem pedindo pra me pagar mais do que receberia em qualquer outro lugar. Você está pedindo pra eu deixar de ganhar pra tocar”.

 

PLAYBOY – Você viu Dois Filhos de Francisco, do Zezé Di Camargo & Luciano?

NASI – Não. Mas vi que aquele anão de jardim, meia-foda do Luciano falou na PLAYBOY sobre o Lobão (na edição de novembro, Luciano disse que as drogas deixaram inúteis os poucos neurônios que restaram no roqueiro). Eles não tem história, estofo cultural pra falar coisa alguma de um artista que, além de compositor, é um dos maiores representantes da classe. Se fosse comigo, ele ia ver, se cruzasse nos bastidores.

 

Publicado originalmente na revista “Playboy” em janeiro de 2006

Um comentário:

Anônimo disse...

O que mais gosto no blog são as entrevistas da extinta revista Playboy no Brasil. Very Good!