Playboy entrevista Guel Arraes
(junho de 1998)
Uma conversa franca com o
diretor de núcleo da Rede Globo sobre TV e cinema, política com maconha, separações
e transas no primeiro encontro
Quais são os melhores
programas que a televisão brasileira produziu nas últimas décadas? Armação
Ilimitada (1985-1988), TV Pirata (1988-1990), Programa Legal
(1991-1993), A Comédia da Vida Privada (1995-1997), Brasil Legal
(lançado em 1994), O Alienista (1993), Lisbela e o Prisioneiro
(1993), Nunca Houve uma Mulher como Gilda (1993)... Se você não citou
nenhum desta lista, provavelmente não entende muito de televisão. E o que há de
comum entre esses programas todos? Guel Arraes. O diretor – o quarto rebento de
uma ninhada de dez filhos do três vezes governador de Pernambuco, Migues
Arraes, principal líder do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e ainda tido
como um dos bastiões da esquerda brasileira – é o cabeça do núcleo de
produtores da Rede Globo que realizou a proeza de conciliar alto padrão de
qualidade com bons índices de audiência.
Se fosse pouco a peculiar
condição de filho de político cassado pela ditadura – e, ele próprio, “exilado”
de 1969 a 1979, primeiro na Argélia e depois na França – trabalhando numa
emissora que tinha vínculos estreitos com o poder, Miguel Arraes de Alencar
Filho, 44 anos, é um diretor de televisão com outras singularidades. Mesmo
tendo aprendido seu ofício em Paris com os cineastas Jean Rouch, mitológico
documentarista do “cinema-verdade” francês e Jean-Luc Godard, papa da nouvelle
vague e diretor dos celebradíssimos Acossado (1959), O Demônio das
Onze Horas (1965) e A Chinesa (1967), ele raramente vai ao cinema. E
não hesita em revelar que não assiste televisão e não gosta de novelas,
principal produto de empregador.
Em tempos de vacas magras e
Ratinhos furiosos na televisão brasileira, Guel Arraes teve seu produto mais
sofisticado, a série A Comédia da Vida Privada, retirado do ar. O
programa é um caso único de adaptação de obra literária – as crônicas do gaúcho
Luís Fernando Veríssimo – que fez tanto sucesso que acabou dando nome a dois
livros publicados pela editora L&PM e à coluna do escritor no jornal O
Estado de São Paulo. Para que a Comédia não terminasse em drama
lacrimoso, Guel Arraes guardou o último roteiro que escreveu e negocia com a
Globo Filmes uma co-produção para dar fecho dourado à série nos cinemas do
país.
Enquanto não estreia nas
telas, este nordestino discreto e laborioso não para de produzir. Na Globo,
reveza-se com o diretor Jorge Furtado na produção de minisséries em quatro
capítulos, baseadas em adaptações literárias nacionais. Faz também sua primeira
incursão pelo teatro, em parceria com o diretor carioca João Falcão, e leva em
São Paulo a bem-sucedida montagem O Burguês Ridículo – baseada no texto O
Burguês Fidalgo, do dramaturgo francês Molière (1622-1673) -, com Marco
Nanini no papel principal.
A estreia esteve em risco
quando a peça literalmente pegou fogo, durante a temporada que, entre Rio de
Janeiro e São Paulo, já passe de dois anos. Em abril de 1997, o cenário e boa
parte dos figurinos da produção ficaram chamuscados por um incêndio que começou
na parte elétrica do Teatro Casa Grande no Rio. Mas a experiência nos palcos
esquentou mesmo foi a relação que Guel Arraes mantém há seis anos com a atriz
Virgínia Cavendish, dezessete anos mais nova que ele e que lhe deu a filha
Luisa, de 4 anos – um presente não planejado, mas bem-vindo. Com o papel de
destaque de O Burguês Ridículo, a vistosa Virgínia é protagonista de uma
mudança radical na vida do diretor, que até pouco tempo atrás admite, misturava
cenas românticas da vida privada com as da carreira.
Desde seu primeiro estágio na
emissora do Jardim Botânico, recém-chegado de Paris, aos 27 anos, Guel Arraes
foi casado com duas atrizes globais. Com Louise Cardoso provou das liberdades e
inseguranças de um casamento “à la Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir”,
sediado em casas separadas. Depois, viveu com Andréa Beltrão, estrela de seu
primeiro grande sucesso na TV, o programa Armação Limitada, uma relação
de passionalidade idem. Na separação tempestuosa, Guel teve que fazer terapia
para sair da crise de depressão e Andréa, tratamento para se livrar de dependência
química.
O diretor, que após onze anos
de exílio sempre se sentiu um desterrado, diz que, com a atual mulher,
Virgínia, “Os afetos foram para o lado certo”. Mas exatamente para os lados do
Recife, onde Guel nasceu e morou até o início da adolescência, e onde, antes de
completas 7 anos de vida, perdeu a mãe, Célia de Souza Leão, vítima de câncer.
Além do local de nascimento e da profissão, Guel e a mulher têm em comum até o
signo e o ascendente: Sagitário com Capricórnio. Para ele, que se estica no
divã da psicanálise há mais de uma década, não existem coincidências, mas
“fatos significativos”.
Agora avesso a badalações e
disciplinado como um monge budista, Guel Arraes trabalha cerca de 10 horas por
dia, a maior parte do tempo em casa, um arejado apartamento de quatro quartos
no Parque Guinle, zona sul do Rio. Seu escritório doméstico tem vista para o
Pão de Açúcar e, da janela da amplíssima sala, vêm-se o Corcovado e o Cristo
Redentor. “Como diz meu irmão Lula, só faltam a Torre Eiffel e a Estátua da
Liberdade”, brinca o diretor, que acorda diariamente às 7 horas da manhã, faz,
exercícios numa bicicleta ergométrica e, antes das 9, está sentado diante do
computador, do fax e do telefone para trabalhar.
Se Guel ainda não está rico
nem é chegado à gastança, leva uma vida pelo menos confortável de classe média
alta. Confessa ter o desejo – que qualifica de “pequeno-burguês” – de, um dia,
viver de rendas, escrevendo e produzindo o que lhe der na cabeça. Seu único
sonho de consumo, capitula o herdeiro do nome de Miguel Arraes, é ter um
apartamento em Paris. “Podia ser ali no número 3, perto do Beauborg”, imagina,
referindo-se ao 3e.arrondissement, um dos vinte distritos em que se divide a
capital francesa.
Na moldura do belo cenário
carioca, Guel recebe a reportagem de PLAYBOY para duas sessões de entrevista,
complementadas por três encontros em São Paulo no Hotel Brasilton, onde se
hospedava aos sábados e domingos durante a temporada paulistana de O Burguês
Ridículo. No total, foram 7 horas de conversa animada, como relata, abaixo,
o repórter Ivan Marsiglia:
“Logo entendi por que, apesar
de seus quase vinte anos de carreira na Rede Globo, há tão poucas reportagens
publicadas sobre Guel Arraes. Para marcar esta entrevista foram necessários
quase dois meses de negociações – durante os quais, para sensibilizá-lo, enviei
até a entrevista que seu pai, o na época ex-governador Miguel Arraes, concedeu
a PLAYBOY no exílio, em março de 1979. No entanto, depois que concordou, Guel
mostrou-se tão profissional e coorporativo quanto atestam seus colegas de
trabalho na Globo. Na verdade, sua relutância em falar com a imprensa é mais
uma questão de modéstia do que de desconfiança.
“Em primeiro lugar, ele achava
que sinceramente que não tinha nada de interessante a dizer – por mais que a
entrevista logo a seguir demonstre exatamente o contrário. Em segundo, fora
convencido por uma experiência desagradável de que a imprensa se alimenta
sobretudo da maledicência e polêmica fácil.
“Durante a conversa, ele se
mostrou mais aberto do que eu poderia esperar. Não se negou a falar de nenhum
assunto, mesmo com os mais delicados, com suas experiências com drogas, o
casamento conturbado com Andréa Beltrão e sua opinião sobre a saída das funções
executivas na Globo do vice-presidente de Operações José Bonifácio de Oliveira
Sobrinho, o Boni. E, se ao contrário da imagem um pouco sisuda que tem de
próprio, deixou claro, em vários momentos, que não carece de bom humor. Como em
nosso segundo encontro, quando respondeu à curiosidade do observador fotógrafo
Carlos Safker, autor das fotos desta matéria: ‘Desculpe a pergunta, mas já o
confundiram com o cantor Ney Matogrosso?’”
GUEL ARRAES –
Vááárias vezes (Gargalhadas.) Não só me confundiram como têm certeza de
que eu sou ele. O cara começa a conversa dizendo: “Você sabe que é meu
concorrente, né?” Eu digo de novo: “Você está me confundindo...” Me dizem:
“Não, porque eu canto e danço, não sei o quê...”. Se digo que não sou Ney
Matogrosso, ninguém acredita. Outros se aproximam, dizem “desculpa
perguntar...” e querem saber se o Ney é gay... (Risos.)
PLAYBOY – Você já comentou isso
com ele?
GUEL –
Nunca. (Ri.) Mas a história mais maluca é a do falso Guel Arraes que me
persegue há quinze anos.
PLAYBOY – Como é isso?
GUEL – Há
uns quinze anos recebi um telefonema dizendo que alguém estava fazendo passar
por mim. Estava começando a trabalhar na Globo. Fui ver no Departamento
Jurídico. Pegaram a ficha de um cara – não sei se é o mesmo agora, mas acho que
sim – que tinha noventa e tantas passagens pela polícia. Entre mil pequenos
trambiques, ele usava nomes de pessoas da televisão. Fazia-se passar por
pessoas de nomes conhecidos mas que não aparecem na tela.
PLAYBOY – Depois ele foi
preso?
GUEL – Foi.
Tenho uma matéria da Folha de S. Paulo. Uma vez uma repórter pegou ele.
O golpe é o seguinte: ele monta uma agência, como se fosse uma pequena
produtora, e faz testes. Às vezes chega a pôr anúncio nos jornais. Aplica o
chamado teste do divã. Parece que ele é meio voyeur. Não sei se transa com as
meninas ou só grava. E recolhe uma pequena quantia (em dinheiro) como
inscrição. Vez por outra me liga o pai de alguma menina, em geral de 16, 17
anos. É um troço perigosíssimo, além de ser muito desagradável. Ou liga a
própria menina: “Está lembrando de mim? A gente se encontrou em São Paulo...”
Mas durante anos não fui a São Paulo porque tinha medo de avião. O falsário tem
até filho registrado com nome Arraes!
PLAYBOY – Ele também é
pernambucano?
GUEL – Não.
É paulista, tem 50 e poucos anos, olhos claros, bem diferente de mim. Acho que
é meio desajustado. O dia em que a repórter da Folha flagrou o cara, ele
tinha uma estruturazinha, com telefone, secretária, gente esperando na sala e
tal (risos).
PLAYBOY – E o verdadeiro Guel Arraes,
recebe muita cantada de candidata a atriz nos testes de seleção?
GUEL – De
atriz? Não faço muito teste, né? Antes eu tinha muita vergonha de fazer. Mas
nunca dirigi pessoalmente um teste. Vejo as fitas de vídeo depois, um book,
coisa assim. Nunca aconteceu de darem em cima de mim. Só as atrizes com quem me
casei (risos).
PLAYBOY – Então o tal do teste
do sofá é lenda na Globo?
GUEL – É
engraçado porque às vezes me perguntam: “Pô, você come muita menina?” Fico com
vergonha de dizer que não como ninguém!
PLAYBOY – O Carlos Manga
contou, numa entrevista a PLAYBOY, que uma candidata a atriz, filha de um
político influente, lhe perguntou: “Quando vou ter que dar para você?” E tem a
famosa entrevista de Vera Fischer a PLAYBOY, em que ela diz que venceu na Globo
porque “deu” para as pessoas certas.
GUEL – É...
Onde há poder, dinheiro, há a utilização disso para sexo. Não há dúvida. Comigo
nunca aconteceu realmente. Até pelo meu perfil. Não que eu seja um santo, mas
não me sentiria bem. Minha fantasia não é comer alguém porque tenho poder ou
dinheiro. É alguém querer trepar comigo ainda que eu não tenha nada. O que
também é uma fantasia tão babaca quanto a outra (risos). Acho que levo
muita pouca vantagem com ela.
PLAYBOY – Como é dirigir uma
cena de sexo?
GUEL – Nunca
dirigi.
PLAYBOY – Ah, vá!
GUEL – (Risos.)
Eu fico absolutamente constrangido. (O ator) Pedro (Cardoso) me
imita dirigindo cena sensual, a atriz saindo de banho (vira de lado e faz ar
de constrangimento): “Então você... tira aqui a camisa ... (rápido)
Mas já pega a toalha e bota aqui!” (Risos.) Nunca dirigi cena de trepada
e acho que nunca mostrei um peito. Sempre brinco com o (diretor) Mauro
Mendonça: “Porra, trabalho com essa atriz há dez anos e você na primeira vez já
tira a roupa dela!” Ele é muito mais sem-vergonha que eu nesse sentido.
PLAYBOY – Muitas das garotas
que se intitulam “modelo e atriz” são criticadas por ter mais de modelo do que
de atriz. O que mais acha da qualidade de interpretação delas?
GUEL – Acho
que, na verdade, é uma coisa prática: é impossível fabricar tanto ator, tanta
história boa que ocupe todo o espaço. Não tem “modelo-e-atriz” escrevendo,
dirigindo e até produzindo. Tem improvisação para tapar buraco nessas áreas
todas.
PLAYBOY – Mas há modelos que
foram elogiadas como atrizes, como ocorreu com a Luana Piovani em dois
episódios de A Comédia da Vida Privada. Ela é boa atriz?
GUEL – Não
fui eu quem dirigiu aqueles dois episódios. Mas (o diretor) João Falcão
me falou bem dela, e ele entende tudo de televisão. Eu adorei. Quando o (diretor
de filmes publicitários) Fernando Meirelles foi dirigir o episódio dele (em
que um jovem vestibulando recebe a visita de uma prima escultural, vinda do
interior), fui eu quem propôs que ele fizesse o teste com a Luana. A prima
tinha que ser deslumbrante, né? Aquela menina com quem a gente sonha. E é
incontestável: ela se sai muito bem.
PLAYBOY – E a Xuxa? Ela tem
talento real ou, como se costuma ler até em tese acadêmica, é uma peça
eficiente num projeto de marketing bem pensado? Há uma teoria de que ela também
atrai o pai da criança, que é quem compra os produtos com a marca da Xuxa para
ela.
GUEL – A
Xuxa? (Pausa.) É difícil falar porque eu não vejo televisão. O tempo que
tenho uso para produzir. Sei quem é a Xuxa porque vi os primeiros programas
dela. Na TV nem todas as coisas são feitas pelos mesmos profissionais. Tem
pessoas que são simplesmente úteis para a televisão. Nem todo mundo que está
ali é ator mesmo.
PLAYBOY – Então quem é ator
mesmo e que não é, na Globo?
GUEL – (Constrangido)
Ih, rapaz! Olha, posso dizer que em geral trabalho com atores. Os textos dos
meus programas exigem realmente uma representação.
PLAYBOY – Você prefere, por
exemplo, atores com formação de teatro?
GUEL –
Prefiro. Até porque (pausa)... Não me considero um bom diretor de ator.
Na verdade, nem acho que existe esse negócio de “diretor de ator”. Porque não
precisa. Ator é bom ou ruim, basicamente. Eu falo sempre assim: “Minha direção
de ator dura 15 segundos. É o momento em que eu decido que ator vai fazer tal
papel” (risos).
PLAYBOY – Afinal de contas,
por que é que A Comédia da Vida Privada, tão elogiada, acabou?
GUEL – Na
verdade, o combinado era eu fazer mais cinco ou seis programas. Mas chegou uma
hora em que pedi arrego. Falei: “Olha, me libera esses seis programas, pelo
amor de Deus”. Tive uma crise de depressão quando vi que estava concorrendo com
o programa Márcia (do SBT). Pô, o Comédia nos dá um
trabalho desesperado!” O (diretor) João Falcão quando escreve, tem
úlcera, entendeu? É como uma peça de teatro. Então você não pode chegar assim e
dizer: “Me vê mais quatro desse negócio aí”. A gente não tem mais fígado para
dar. Alguma coisa está errada. Não adianta levar porrada, morrer, para chegar
lá e me dizerem simplesmente: “Perdeu tantos pontos”.
PLAYBOY – O programa Márcia
derrubou A Comédia da Vida Privada?
GUEL – Tomou
pontos do Terça Nobre, e do Comédia particularmente. O Márcia
devia dar 10, passou a dar 14, uma coisa assim. O Comédia dava 34 e caiu
para 25. E aí ficava chato você fazer aquele programa, com o trabalho que dava,
e concorrer com um negócio contra o qual, na minha opinião, não dava para
concorrer. A crise foi essa. Aí pensei: “Pô, parece uma derrota isso. Vamos
aproveitar a oportunidade que o (diretor) Daniel (Filho) nos deu
e levar o roteiro que já temos para a Globo Filmes”. Para não parecer derrota,
vamos fechar com chave de ouro o projeto, fazendo o filme A Comédia da Vida
Privada.
PLAYBOY – Esse é um roteiro
recusado pela Globo Filmes?
GUEL –
Recusado mesmo, não. O que começou a ser recusado foi o rumo que estava tomando
o Comédia. Eles chegavam e falavam: “Não deu audiência porque estava
muito complicado”. Acho que a gente tinha o problema de o público não entender
direito a data de exibição do programa, porque era uma terça-feira por mês,
ficava difícil de lembrar. Também não tinha personagem fixo, história fixa,
nada.
PLAYBOY – Quer dizer que o Comédia
na TV está descartado?
GUEL – Está.
PLAYBOY – Será que as
produções “artesanais” estão com os dias contados na Globo?
GUEL – Hoje
em dia sinto que a nossa maneira de produzir ficou meio dissonáurica na
televisão. Quando só existia a Globo, nela você podia fazer um pouco de tudo.
Tinha um pessoal que fazia coisa parecida com cinema, outro com teatro...
Agora, por que fazer isso na televisão? Faço no teatro, no cinema. Talvez a
televisão não tenha mais essa função e essa possibilidade de ter produtos de
vanguarda. A Globo tinha uma coisa monopolista negativa, mas que permitia
arriscar.
PLAYBOY – Na Itália a
televisão obriga a financiar o cinema nacional. O que você acha desse
mecanismo?
GUEL – Acho
bom e acho complicado. Complicado pelo seguinte: na França o público francês
ama o cinema francês. O público italiano também se identifica com o cinema
italiano. No Brasil o público ama a televisão em primeiro lugar. Ama as suas
novelas. O cinema tem que tomar cuidado para não virar um intruso, para não
queimar o filme, literalmente. E é bom também não mistificar: “Ah, o cinema
nacional!” (em tom de louvação.) Boa parte dos filmes brasileiros são
muito canhestros, muito amadores. E não estou me referindo a filmes
experimentais como os do Júlio Bressane (cineasta carioca, autor, entre
outros filmes de Matou a Família e Foi ao Cinema e O Gigante da
América), porque este entende muito de cinema.
PLAYBOY – Você não curtiu
nenhum dos últimos filmes nacionais?
GUEL – Hoje
em dia espero sair em vídeo, sabe? Sou totalmente caseiro. Meus amigos ficam
loucos com isso. Filme brasileiro de que gosto é A Marvada Carne. O
Walter Salles Jr. foi de uma coragem enorme ao fazer Terra Estrangeira,
com o frescor de um primeiro filme, logo após aquele (baseado em uma
história) do Rubem Fonseca (A Grande Arte). E adorei Central do
Brasil. Fiquei chapado por finalmente alguém da minha geração ter feito um
grande filme. Na contramão de todo
mundo, que está em busca “do mercado”, o Walter Salles fez um filme sofisticado
e a serviço da classe popular. Já O Que É Isso, Companheiro?, que tem
Pedro (Cardoso e outros atores com quem trabalhou recentemente), ainda
não assisti!
PLAYBOY – Você acredita que o
aumento da oferta de canais, com as TVs por assinatura, vai permitir novas
linguagens na televisão?
GUEL – Acho
que, a médio prazo, é capaz até de nivelar pela média. Veja o que aconteceu com
o TV Pirata. Quando (a novela da Rede Manchete fez grande sucesso em
1990) Pantanal entrou no ar, com aquela audiência toda, o TV
Pirata rodou (em 1990). Por quê? Porque esse tipo de programa não dá
certo quando há um concorrente à altura. Então, a médio prazo, a tendência do
programador, me parece é botar um troço mais popularesco. Atualmente, estamos
num momento assim: a TV a cabo ainda não tem dinheiro para produzir coisas de
qualidade. Ou você faz na Globo ou não tem. Talvez passado o susto inicial dado
pelos programas popularescos, a coisa melhore. Mas a médio prazo a tendência é
dar uma nivelada.
PLAYBOY – Você acha que a
saída do Boni do comando da Globo é sinal dos tempos?
GUEL –
(Pigarreia.) Acho que, se significa alguma coisa, é isso.
Representa um pouco o fim da televisão pioneira. E aí, embora eu possa dizer
que me caracterizei como o escritor de um grupo marginal na Globo, de alguma
maneira me encontrava no espírito dos pioneiros. Aquela coisa do “deixa que eu
faço, vai lá, pega essa câmera”. Por isso digo que é a primeira vez em que me
senti reacionário. O Projac (sigla de Projeto Jacarepaguá, megacomplexo de
estúdios inaugurado pela Globo em 1996) é um grande negócio, estúdios com 1
000 metros quadrados, mas... Eles falavam assim: “Veja, desce o teto, as luzes
mexem, vocês vão ter supercondições de trabalho, pode fazer subir um balé e
tal”. Mas eu disse: “Olha, estou apavorado com essa perspectiva, porque vai
encarecer enormemente o que faço”. Eu era especialista em trabalhar num estúdio
simples, com um barraco atrás, que usava para montar outro cenário, adiantar
uma ceninha...
PLAYBOY – A saída do Boni,
então...
GUEL – É o
símbolo disso. Não que ele fosse contra o Projac. Também não sou. Mas acho que,
se fosse tirar alguma consequência mítica dessa história, seria essa. E, se
acabou a “era Boni”, não vai ter outra “era fulano”.
PLAYBOY – A Marluce Dias,
superintendente executiva da Globo, tem exercido sua autoridade também na área
de programação. Você acha que ela entende disso?
GUEL – Ela
está começando, né? Ainda não dá para saber se vai exercer mesmo uma autoridade
de dizer “isso vai ao ar, isso não vai”.
PLAYBOY – Mas ela entende de
programação?
GUEL – Não
sei. Acho que entende mais de finanças, né? Aí acho que ela sabe mesmo. Mas
quem vai ter que resolver isso é ela, provavelmente. Se vai trabalhar com
assessoria ou sem, ninguém sabe.
PLAYBOY – Quem é mais
competente: a Marluce ou o Boni?
GUEL – O
Boni é incontestavelmente o mais competente da rede toda. Acho que o Boni é um
dos poucos produtores brasileiros. Eu tenho uma certa função de produtor, né?
Mas sou um improviso rasteiro (risos). Como o Boni ou o (produtor)
Luiz Carlos Barreto, numa escala mais artesanal no cinema, são poucos. Eles têm
muito mais caldo.
PLAYBOY – E qual dos dois é
melhor para negociar projetos e salários?
GUEL – O
Boni ou a Marluce? (Sorri.) Realmente não sei. A Marluce é uma pessoa
afabilíssima, delicadíssima, uma lady. O Boni era o cara que me enfrentava de
pau, peitava mesmo, mas ao mesmo tempo tinha uma grande tolerância artística.
PLAYBOY – Você acha que boa
parte dos programas da TV aberta vai seguir então o caminho do Ratinho Livre,
da Rede Record?
GUEL – Acho
que o Ratinho nunca será um caminho dominante na televisão, né? Isso é uma
zebra que de aí. Mas, sem dúvida, pode comer muita coisa pelas beiras. O que
sinto é que o trabalho do grupo a que pertenço, com essa preocupação de ter
mais tempo para produzir, com o texto mais trabalhado, é um caminho que está se
esgotando. Nós éramos o que todo mundo almejava: “Ah, se a televisão toda
pudesse ser feita assim!” Mas esse não é o caminho da televisão. Não há como a
televisão toda ser feita assim. Mas também não estamos indo forçosamente para o
Ratinho, não.
PLAYBOY – Vamos supor que você
tivesse poder decisório sobre a grade de programação da Globo. O que tiraria do
ar?
GUEL – Eu me
tiraria da função! (Risos.) Tenho uma visão muito apaixonada da
televisão para poder assumir uma posição distanciada. Seria incapaz de
acompanhar uma novela, por exemplo. Então, não botaria novela. E estaria
errado, porque o que é legal num produtor é a visão geral. Mas de alguma maneira
ele tem que apreciar aquilo. Ele pode não achar novela a melhor coisa do mundo,
mas acha bacana o público se divertir com aquilo, tenta fazer a melhor novela
possível, passar alguma mensagem. Não me identificaria com coisa assim.
PLAYBOY – Com quem você
aprendeu a fazer televisão?
GUEL – Com o
(ator e diretor) Jorginho (Fernando) e com o (novelista)
Sílvio (de Abreu) numa primeira etapa. Com o (diretor de cinema e TV)
Jorge Furtado aprendi a coisa da dramaturgia. Ele é o melhor roteirista do
Brasil. Com o Sílvio e o Jorginho aconteceram uma coisa básica: perdi o
preconceito. Eu vinha de uma formação politicamente correta, sabe? O negócio da
liberdade, da igualdade, versus o iluminismo, Hollywood, a televisão. E eles me
botaram na gandaia, né? (Risos.) Era Oscarito, cinema americano.
PLAYBOY – Qual foi o melhor
ator e a melhor atriz com quem trabalhou?
GUEL – Os
que mais gosto são os do TV Pirata, que são da minha geração. Não existe
o melhor, existem os melhores. Então eu diria que são os atores do TV Pirata
(Luiz Fernando Guimarães, Pedro Cardoso, Débora Bloch, Marco Nanini, Cláudia
Abreu, entre outros) ou que estão dentro desse espírito, como a Andréa
Beltrão.
PLAYBOY – Não teria um lugar
para um Lima Duarte nessa lista?
GUEL –
Quando eu digo assim, pô (irritado), é para não dar a resposta que todo
mundo dá: “Fernanda Montenegro e tal”. Devo a minha carreira a esse tipo de
atuação, à galera que fazia o teatro besteirol, o grupo do Asdrúbal (Trouxe
o Trombone, trupe teatral que fez história no Rio de Janeiro nos anos 1970, de
onde saíram atores como Luiz Fernando Guimarães, Diogo Vilela e Regina Casé).
O Pedro é um dos atores de que mais gosto; ele “quebra”, representa de maneira
muito contemporânea. Ou o Luiz Fernando, o Nanini.
PLAYBOY – Isso não é
panelinha, não?
GUEL –
Estava pensando nisso outro dia. Porque as pessoas falam: “Ah, você só trabalha
com a turma”. Mas não existe nada melhor do que ter uma turma. Nada melhor.
Você não pode eleger todo mundo. O fato de eu já escrever o texto pensando nas pessoas
facilita, e não dá para negar que a amizade é uma etapa do trabalho. A turma é
ruim quando dizem (que se tornou uma) panela, que é um termo pejorativo,
(é ruim) quando começa realmente a se fechar, quando (nela) não
entra gente nova.
PLAYBOY – Não é o caso?
GUEL – Neste
momento me sinto um pouco “empanelado”. Acho que a última grande aquisição do
nosso grupo foi o João Falcão, como autor. Sinto falta de novos atores, gente
querendo fazer coisas.
PLAYBOY – Com que atriz, por
exemplo, você gostaria de trabalhar, mas ainda não teve a chance?
GUEL – Bom,
uma atriz que combinaria com isso tudo é a Marília Pêra.
PLAYBOY – Cuidando de projetos
tão importantes dentro da Globo, as pessoas devem procurá-lo o tempo todo e nem
sempre se pode usar a todos. Como você administra a fogueira de vaidades?
GUEL – Os
projetos que fiz até agora admitem muito pouco elenco. Por exemplo, quando o
Maurinho (diretor Mauro Mendonça Filho) dirigiu a minissérie Dona
Flor e Seus Dois Maridos, tinha vinte capítulos e uns trinta atores. Pô,
nunca fiz um programa com tanta gente. São sempre quatro, cinco. Trabalho muito
com as mesmas pessoas. E vou confessar lima coisa: às vezes, quando dirijo, me
sinto meio enganador. Acho que bom texto e bom elenco (é que) fazem os
programas.
PLAYBOY – Entre os diretores
de núcleo na Globo também há ciúme?
GUEL – Acho
que sim. Mas não chega a ser ruim, não. Rola não só em TV, não, mas entre os
diretores em geral. Tem um tipo de inveja boa, desde que você saiba
administrar. Se vou a uma peça do (diretor de teatro) Gabriel Vilela (autor
entre outros espetáculos A Falecida e Morte e Vida Severina), tenho inveja
boa. Minha maior culpa é não ter um trabalho ligado a minhas raízes
nordestinas. Quando vejo um cara que faz isso de maneira tão universal, sinto
inveja.
PLAYBOY – Por falar em raízes,
morando no Rio há quase vinte anos você ainda se considera nordestino?
GUEL – É
muito complicado. Tenho nostalgia e uma certa inveja de quem tem esse
sentimento de raiz. Por exemplo, o Caetano (Veloso). Mesmo sendo
totalmente cosmopolita, é alguém que continua pertencendo a Santo Amaro (da
Purificação), na Bahia. Isso dá uma base para a criação muito importante.
Eu não canto a minha terra, e me ressinto disso. Fico achando até que vem daí
essa minha falta de estilo como diretor. Vivi em Recife até os 15 anos, minha
família mora lá e volto frequentemente. Mas tenho um sentimento ambíguo de
pertencer e não pertencer ao lugar.
PLAYBOY – O também nordestino
Ariano Suassuna é um militante da cultura “de raízes” e um crítico feroz da
televisão. Você o conhece? O que ele acha do seu trabalho?
GUEL – O
Ariano elogia muito o (diretor) Luís Fernando Carvalho (que dirigiu
as novelas Renascer e O Rei do Gado) e já falou bem de mim duas vezes. De
algumas maneiras, nós o ajudamos a se reconciliar com a televisão. O Luís
Fernando, inclusive, adaptou peças dele para a Globo. Tenho vontade de adaptar
a (peça teatral O Auto da) Compadecida (obra mais popular de Ariano
Suassuna). Uma vez dirigi Lisbela e o Prisioneiro, que é um ensaio
da Compadecida. Escrevia com o Pedro (Cardoso) e o Jorge
(Furtado), que não são nordestinos. E me vinham expressões, histórias, foi
um mergulho. Acho o Nordeste um lugar extremamente bem-humorado.
PLAYBOY – O seu pai, o
governador Miguel Arraes, militante histórico da esquerda, nunca se incomodou
com o fato de você trabalhar na Rede Globo?
GUEL – Olha,
ele não manifestou o menor preconceito em relação a isso. Reagiu mais ao fato
de eu largar a universidade em Paris para fazer cinema do que quando fui para a
Globo. Ele até disse: “Finalmente meu nome vai aparecer na Globo” (risos).
PLAYBOY – Como foi aquele
episódio em que escreveram, por engano, o nome do seu pai nos letreiros de uma
novela?
GUEL – (Ri)
É. Saiu Miguel Arraes, sem a abreviação. Foi em Jogo da Vida
(1981-1982). Pedi para corrigirem e meu pai reclamou: “Pô, a primeira vez em
vinte anos que meu nome sai e você pede pra mudar!” O nome dos exilados era
proibido na televisão.
PLAYBOY – É verdade que você
chegou à Globo pelas mãos do Tarcísio Meira?
GUEL – É.
Conheci o Tarcísio numa filmagem em que eu trabalhava como segundo assistente
de câmera. Era num filme do Bruno Barreto, Beijo no Asfalto (1980). Foi
coincidência, porque o Tarcísio tinha acabado de chegar de Pernambuco e o
personagem dele na novela iria pra Argel, não sei por que cargas d´água.
Ficamos conversando e dias depois ele me ligou dizendo que gravaria naquele
país. Perguntou se eu não queria ir fazendo uma assistência. Não topei voltar
para lá, mas dei umas dicas à produção. Mais tarde, ele me apresentou ao Paulo
Ubiratan durante um jantar. Lembro que eu morava num conjugado na Glória (bairro
de classe média, situado na região central do Rio de Janeiro), longe,
longe. Mesmo para um filho de classe média, duro, como eu, a Glória não era pra
se morar (ri). Ele falou: “Te dou carona”. No caminho, fiquei com
vergonha e disse: “Pode parar aqui mesmo”. Desci no Aterro (do Flamengo)
e fui andando (risos). O Paulo acabou me chamando para fazer um estágio
com ele.
PLAYBOY – Qual foi seu
primeiro trabalho na TV?
GUEL – A
primeira cena que dirigi foi com o Tony Ramos, numa novela que tinha gêmeos, Baila
Comigo (1981). Eu nem assinava, nem nada, era estagiário, mas o Paulo me
deu essa cena para fazer. Era daquelas com trucagem, achei o máximo. Minha
grande criatividade foi botar o Tony Ramos no retrovisor conversando com ele
próprio no banco da frente. É um negócio difícil, você tem que passar o foco
para o fundo, quase que me fodo. Mas funcionou.
PLAYBOY – Depois você fez
novelas cômicas com Sílvio de Abreu e Jorge Fernando. Imaginou alguma vez na
vida que ia fazer comédia?
GUEL – (Rápido)
Jamais, jamais. Até hoje acho estranho. Tenho a impressão de que aprendi
comédia como quem aprende uma profissão. Ela tem uma parte meio de relojoaria.
Parece muito espontâneo, mas é talvez das mais precisas. Mas, definitivamente,
não sou um cara engraçado.
PLAYBOY – Você não é bom nem
para contar piada?
GUEL –
Péssimo! Tem gente que, logo se vê, nasceu para fazer comédia. O Jorge, que tem
um espírito cômico, o Pedro Cardoso (pausa)... (Quando faço comédia)
me pergunto: “O que é que eu estou fazendo aqui?” (Risos.)
PLAYBOY – Você consegue fazer
uma lista rápida das primeiras novelas em que trabalhou antes de chegar no
sucesso com o programa Armação Ilimitada?
GUEL –
Lembro. Foi Jogo da Vida (1981-1982) com o (diretor Roberto) Talma
e o Jorginho, Sétimo Sentido (1982), da Janete Clair, Sol de Verão
(1982-1983), de Manoel Carlos.
PLAYBOY – Você conheceu a
Janete Clair?
GUEL – Tive
alguns contatos. Tipo conferir os primeiros capítulos com ela, comentar uma
coisa ou outra, mas nada da intimidade que fui ter com outros autores mais
tarde. No início a novela não estava bem de audiência, tinha problemas. Eu
apenas começando, ia falar com o Jorginho: “Nós vamos ficar conhecidos na
televisão brasileira como os dois diretores que acabaram com a Janete!” (Risos.)
Um dia a gente entrou num táxi, os dois cansados, aquela rotina estafante. O
chofer falou: “Ah, vocês trabalham na Globo?” A gente: “Trabalhamos”. E ele:
“Mas está ruim essa novela das 8, hein?” (Risos.)
PLAYBOY – É verdade que, nessa
época, você e Jorge Fernando discutiam longamente os capítulos por causa de um
cameraman muito exigente que trabalhava lá?
GUEL – (Sorri)
Era. Esse câmera, o Custódio, faleceu há pouco tempo. Antes da primeira cena
que a gente ia dirigir, eu e Jorge ficamos a tarde inteira discutindo. Eram
umas cenas bestas, cenas de restaurante, como a gente diz. E não é que a gente
pensasse coisas complicadas, não. Era que o simples para nós já era difícil.
Chegava na hora, ele (Custódio) desdenhava: “Ih, já fiz isso mais de
cinquenta vezes”. Depois foi engraçado porque ele virou o maior defensor nosso.
Ficou com orgulho de a gente ter passado por uma espécie de iniciação com ele.
PLAYBOY – Na sequencia você
fez Guerra dos Sexos (1983-1984) e Vereda Tropical (1984-1985).
GUEL – Isso.
Em Vereda Tropical foi a primeira vez em que dividi autoria meio a meio
com o Jorginho. As outras era mais um aprendizado: a hegemonia ideológica era
do Sílvio, evidentemente, e o “primeiro cardeal” era o Jorginho. Até hoje eles
são uma dupla muito forte, têm o mesmo universo, jogam por música mesmo. No Vereda
Tropical eu já tinha um pouco mais de qualidade. Experimentei técnicas que
usei depois no Armação.
PLAYBOY – O projeto do Armação
Ilimitada não chegou pronto a você?
GUEL – O
primeiro capítulo estava pronto. A ideia vinha um pouco do (filme) Menino
do Rio (1981). Mas a série foi escrita por um quarteto da pesada,
que era o (escritor e diretor Antônio) Calmon, a (atriz) Patrícia
Travassos, o (produtor musical) Nelson Motta e (o escritor e
roteirista) Euclydes Marinho. Entrei para dirigir, produzir, ver elenco. O
primeiro capítulo tinha (os atores) André (Di Biasi) e Kadu (Moliterno).
A gente já chamou a Andréa (Beltrão) e o Jonas (Torres), que
tinha trabalhado comigo no Vereda Tropical.
PLAYBOY – O que a série tinha
de seu? Fala-se que aquele trabalho tinha qualidade técnica em razão
principalmente da edição rápida.
GUEL – O
cara que editou combinou comigo. Para mim é o melhor editor da televisão
brasileira. Chama-se João Paulo Carvalho. Ele é uma fera. E tinha também o
Nelsinho Motta, que sonorizava com a gente, escolhia as músicas. Lembro que no
segundo programa uma banda de rock tocava no final. A banda que vinha deu o
cano, alguém disse: “Tem uma banda que se chama Ultraje a Rigor”. Nunca tinha
ouvido falar. “Vai essa mesmo”. Eles cantaram Nós Vamos Invadir Sua Praia.
Quando o programa foi ao ar a música já tinha estourado. Foi um milagre, virou
uma onda. Eu tinha feito uma porrada de novelas e falei: “Estou com 30 anos,
nunca mais vou fazer novela”. Novela é pra garoto mesmo.
PLAYBOY – Por quê? É pauleira?
GUEL – É um
negócio chamado ofício, né? Bom pra aprender. Exige muita transpiração e
pouca... (corrigindo-se) menos inspiração. Hoje em dia se trabalha com
quatro diretores, mas naquela época éramos eu e Jorginho. A gente dirigia todo
dia. (Enfatiza) Todo dia. E me aparece o Armação, com
disponibilidade de doze, catorze dias para gravar 37 minutos. Fazia tudo com
uma câmera só, era uma maneira muito diferente de produzir. Saíamos no fim de
semana para ver locação. Eu e Andréa estávamos namorando.
PLAYBOY – Mesmo com produção
simples, você acha que dá pra fazer TV com qualidade e conquistar audiência?
GUEL – Acho
que é possível, sim. Pelo menos, pra gente a aposta é essa. O Armação
foi um grande estouro. Em geral os programas de que participei deram uma
audiência muito grande. No geral, se pego, por exemplo, a série Programa
Legal e me pergunto de quais mais gosto, são justamente os que deram mais
audiência. Tem exceções, né? Mas no geral, dá certo. Agora, é preciso vontade
do produtor. Porque um programa desses pode ser mal lançado, pode estar no
horário errado, pode precisar de um tempo, de um tipo de produção diferenciado.
O Armação era um programa que no início não tinha grande audiência, aí
pegou primeiro os jovens e as crianças, embora tivesse referências que visavam
o pessoal de mais de 30 anos. Acho que, se a melhor coisa na televisão for um
programa médio, a pior vai ser horrível. Fazer só novela é mais fácil do que
tentar outros caminhos. Novela você já tem a forma. Há um grande tabu sobre
fazer novela, e é muito cansativo mesmo, fisicamente cansativo. Mas falo assim,
pra provocar: “Gente, novela é mole!” A manutenção daquilo é uma maratona, mas
uma maratona com trilha certa.
PLAYBOY – Uma trilha bastante
original que você seguiu foi a do Programa Legal, com Regina Casé. Como
surgiu a ideia?
GUEL – Tem o Programa
Legal e o Brasil Legal que é um pouco filho do outro. A Regina e o
Hermano Vianna, que é antropólogo, costumavam ir a festas populares, casamento
cigano, não sei o quê. Um dia, ela me disse: “Adoro ir a lugares, me divertir
nos lugares. A gente podia fazer um programa de televisão!” A partir disso, o (humorista)
Hubert (Aranha), o Hermano, a Regina e eu nos reunimos e fizemos um
piloto, em cima de uma tese do Hermano sobre bailes funk. Para mim,
pessoalmente, foi um retorno ao cinema direto (gênero de documentário que se
desenvolveu na França na época da nouvelle vague, que se propunha a captar a
vida como ela é, com o mínimo de intervenção do diretor), ao cinema-verde,
à minha formação em Paris com o cineasta Jean Rouch.
PLAYBOY – Vamos falar disso,
então: como você começou a trabalhar com cinema em Paris?
GUEL –
Trabalhei quase um ano com filmes em formato Super-8 (pequenas câmeras de
cinema que foram as precursoras das videofilmadoras domésticas), com o Zé Joaquim
(produtor carioca José Joaquim Salles), que era um brasileiro lá, da
colônia brasileira. Fizemos um média-metragem de ficção, mudo, uma alegoria
política. Tinha um vampiro que simbolizava o capitalista e um cangaceiro que
chegava em Paris. A paixão pelo cinema começou a me pegar aí. Depois, no Comitê
do Filme Etnográfico (departamento do Museu do Homem, financiado pelo
governo francês), encontrei um mestre, o Jean Rouch. Mestre no sentido
genérico, porque ele era um cara que quase não tinha tempo pra mim. Mas o
espírito dele, a convivência, ver, montar e mixar os filmes dele, isso me
ensinou muito.
PLAYBOY – Por quê trabalhar
com documentários e não com cinema de ficção?
GUEL – Isso
tinha uma relação direta com a história do meu pai, né? Uma maneira de eu
continuar a ter uma função política. Tinha feito a minha cabeça política na
Argélia, achava que tinha que derrubar a ditadura, fazer algo pela justiça
social. O documentário parecia um caminho para você transformar a realidade.
PLAYBOY – E como pintou a
oportunidade de trabalhar com o cineasta Jean-Luc Godard?
GUEL – Foi
por meio do meu irmão (mais velho, empresário) Augusto e do patrão
francês dele, que era muito amigo do Jean-Luc. A empresa onde meu irmão
trabalhava tinha negócios em Moçambique e o Godard estava querendo ir pra um
país onde não houvesse televisão. O projeto dele era saber como nasce a imagem
numa nação: o retrato do presidente na parede, sua auto-imagem, prever como
viria a ser a televisão. Uma daquelas ideias poéticas dele sobre a comunicação.
E aí o chefe do meu irmão me indicou: “Fulano já morou na África, fala
português e mexe um pouco com cinema, pode ajudar”. A gente almoçou um dia e
combinou. O problema foi que na data que ele marcou eu não podia ir, já estava
compromissado com o Jean Rouch. Pensei: “Puta que o pariu, vou dizer não pro
Godard!” Fiquei passado, falei: “Que merda!”. Por sorte ele adiou a viagem e me
escreveu: “Agora está OK, se você ainda puder”. Ficamos uns dez dias e depois
fizemos uma segunda viagem. Minha função era carregar mala, né? Cuidar das
acomodações, levar aos lugares, entrevistar pessoas. Éramos só ele, a mulher
dele, Anne Marie, e eu.
PLAYBOY – O filme foi lançado?
GUEL – Não.
Saiu um negócio no Cahiers du Cinéma (mais prestigiada revista
francesa sobre cinema), uma espécie de relatório, numa edição dedicada ao
Godard.
PLAYBOY – Ele botou seu nome
lá?
GUEL – (Sorri.)
Tem foto. Não tem meu nome.
PLAYBOY – Quer dizer que você
já saiu no Cahiers du Cinéma?
GUEL – Já
sai no Cahiers du Cinéma, fotografado pela Anne Maria Meville, que é
companheira do Godard até hoje. Os dois tinham uma relação bem Simone e Sartre.
Moravam em apartamentos diferentes...
PLAYBOY – Como é o Gordard?
GUEL – (Pausa.)
Os atores sempre falam que ele é meio irascível. Mas gostei muito dele, tive
muita ternura (por ele). Acho que foi porque ele estava numa posição
meio diferente em Moçambique: não falava a língua, não conhecia o lugar, era
mais ou menos a “minha terra”. O Godard fala igual aos personagens dos filmes
dele. Você tem que ficar prestando muita atenção. O legal nele é isso. Ele é
coerente, se expõe nos filmes como é na vida.
PLAYBOY – Como era para você,
tão novo, estar na Paris do início dos anos 70?
GUEL – Fui
para Argélia em 1969, com 15 anos. Em 1972 prestei vestibular e fui pra Paris.
Eu tinha a impressão de que maio de 1968 tinha acabado de acontecer. Era uma
época (pausa)... A ideologia que melhor resume o que se vivia por lá é a
anarquista: todo mundo era contra o poder, a favor do amor livre, contra o
casamento, a família e quem tivesse mais de 30 anos. E eu era bem o produto
daquele negócio ali. Com uma diferença: era do Terceiro Mundo e ligado a uma
esquerda contestatória que estava em grande moda.
PLAYBOY – E essa credencial de
terceiro-mundista ajudou você em alguma conquista amorosa?
GUEL – Deixa
ver se me lembro... (Pausa.) Provavelmente comi muito mais gente com
essas credenciais do que, anos depois, sento diretor da Globo (risos).
PLAYBOY – Como eram as festas
dessa época?
GUEL – Hoje
em dia vejo jovens falando assim: “Poxa, nunca transei com alguém na primeira
noite”. Eu transei (enfatiza nas palavras) várias vezes! Transei na
primeira noite e não encontrei nunca mais.
PLAYBOY – Conte pra gente
alguma dessas histórias!
GUEL – (Ri.)
PLAYBOY, né? Aconteceu uma vez, no fim de um casamento. Tinha uns 21, 22 anos,
e minha vida estava agitada: tinha acabado de fazer um filme que ia passar na
Cinemateca Francesa, tinha trabalhado com o Godard em Moçambique... Era uma
vida profissional cheiíssima pra idade que eu tinha. Estava me separando (da
professora de ioga Ruti Casoy) e disse: “Vou embora de casa”. Peguei um
poncho, minha lata de filme, a bolsa com uma muda de roupa e fui pra rua sem
saber onde ia dormir. Entrei num bar da Contrescarpe (praça do Quartier
Latin, o bairro boêmio-estudantil de Paris), pensando: “Vou ver o que
acontece”. Aí apareceu uma menina da Ilha de Reunião, que fica perto de
Madagascar. Eu já a conhecia de vista, mas nunca tinha rolado nada. Era uma
mulata francesa de nacionalidade (porque a ilha é um departamento
ultramarino da França). E aí, eu não só estava louco pela menina como tinha
que arranjar um lugar pra dormir (risos). Meu empenho foi redobrado e eu
ganhei ela essa noite. Foi a última noite em que a gente se viu.
PLAYBOY – Você tinha uma tia
que acolhia exilados em Paris, não?
GUEL – Minha
tia Violeta (Arraes Gervaiseau, irmã mais nova do governador Miguel Arraes)
era quase uma embaixadora informal do Brasil, uma agitadora cultural. Ela era
casada com um francês. Uma mulher muito interessante. Foi na casa dela que meu
pai conheceu a segunda mulher dele, anos antes. O lugar era animadíssimo. Lá,
conheci o Caetano (Veloso), que, junto com o Jean-Luc Godard, é meu
ídolo, a Dedé (Gadelha, mulher do Caetano na época), o (Gilberto)
Gil. Meu irmão Augusto era amigo do Gláuber (Rocha), que acabou indo
passar uns quinze dias no meu apartamento. Quem ia imaginar? Era quase que um
quarto-e-sala, apertado, e o Gláuber ocupava um espaço enorme! (Risos.) Ele
acordava cedíssimo. Não dormia. Eu levantava e ele estava lá na sala, pelado,
lendo um livro.
PLAYBOY – Vocês saiam juntos
em Paris?
GUEL – Teve
um negócio engraçado. O Gláuber tinha chegado a Paris com uma cubana, Teresa,
eu acho. Ele tinha feito o maior perrengue para tirar a mulher de Cuba, casar,
arrumar os papéis e tal. Chegou lá, resolveu se separar. Foi por isso que o
Gláuber desembarcou lá em casa. Ela ficou perdida! Um dia a Teresa disse que ia
fazer e acontecer se ele não fosse lá na casa dela. Ela queria ter uma
conversa, senão ia fazer uma loucura. Ele e meu irmão Augusto confabularam e
chegaram à conclusão de que ir não era bom negócio. Era melhor mandar um
emissário. E o mais isento era eu! (risos.) Eu, um garoto de 17, 18
anos, tendo que resolver aquela parada, morrendo de medo. Fui. Os dois ficaram
num bar perto porque se a bronca fosse grande eles me socorreriam (risos).
Era um estúdio, no Quartier Latin. Bati na porta, ela abriu e, quando viu que
não era o Gláuber, ficou puta: “Mas por que ele não veio?” (Reproduz os
gritos.) E eu fiquei tão desesperado, sem saber o que fazer, que ela passou
a me socorrer. Falava: “Ah, mas você não tem nada a ver com isso, coitado!” E
aí eu fui conversando, a gente virou amigo e ela se acalmou. Depois minha tia
Violeta – sempre ela! – deu um jeito de levar a Teresa numa viagem à Côte
d`Azur.
PLAYBOY – Levando-se em conta
a sua idade quando saiu do país, dá pra deduzir que sua iniciação sexual foi
fora do Brasil...
GUEL – Foi.
PLAYBOY – Na Argélia ou na
França?
GUEL – Na
França, com 17 anos. É até engraçado, porque no Recife os garotos se iniciavam
um pouco mais cedo. Meus colegas iam a puteiro com 13, 14 anos. Ou pelo menos
diziam que iam (risos). Minha primeira vez foi com minha primeira
namorada.
PLAYBOY – Quem era ela?
GUEL – Ela
se chama Sílvia (Alencar) e chega a ser minha parenta (hoje mora no
Rio de Janeiro). Prima em quarto grau, assim. Morava lá, falava francês...
Ficamos juntos um ano. Foi bacana. Lembro que, depois, eu falava assim para um
amigo: “Puxa, já me livrei da primeira vez. Agora vamos curtir!” (Ri.)
Até então, nunca ter trepado era um problema grande. Acho que pela minha
formação nordestina, o medo de não ser homem, não ser bastante macho. Primeiro
me deu um grande alívio. Depois pensava: “Mas é só isso? Foi tão fácil!”
PLAYBOY – Na França você
sentia que...
GUEL – (Interrompendo.)
Mas a Sílvia já tinha... Não era a primeira vez dela. E eu ali escondendo,
fingindo que não era virgem.
PLAYBOY – Contando com a sorte
de principiante...
GUEL – (Risos.)
É.
PLAYBOY – Você já falou em
entrevistas sobre o preconceito dos franceses contra imigrantes. Você foi
vítima de discriminação alguma vez?
GUEL –
Chamei gente para a porrada duas vezes lá. Uma foi um motorista de ônibus, numa
discussão qualquer por alguma besteira que não me lembro. Ele falou: “Se você
não está contente, retournez chez vous” (“volte para sua casa”). Já
tinha ouvido algumas vezes aquilo e me veio um reflexo absolutamente
cangaceiro, do âmago da minha terra: “Então o senhor desça que eu vou espancar
a sua cara” (risos). Ele ficou espantadíssimo. Na outra vez foi no
metrô: o meu tíquete estava amassado, não passava na máquina e eu quis trocar.
O cara falou alguma coisa sobre o meu sotaque.
PLAYBOY – Ele logo identificou
você...
GUEL –
Sotaque, cabelo grande, era bem isso. Até hoje, como me visto meio
desleixadamente (pausa).... No Brasil existe preconceito de classe
social, né? E, em geral, de uma provocação ruim vem um reflexo pior. Seja o
negócio de querer chamar o cara pra porrada, seja assim: você briga com um
segurança da Globo e vem aquele negócio do “você sabe quem eu sou? Eu sou muito
superior”. É muito difícil você sair elegantemente de uma situação de
humilhação. Mas, por um lado, as situações que vivi em Paris ajudaram na minha
formação. Saí de Pernambuco, onde eu era “filho de Arraes”, era o
revolucionário, um príncipe, digamos assim. E fui para um lugar onde era um
anônimo. Era menos que um anônimo, porque era estrangeiro.
PLAYBOY – Dá pra entender que
na pátria da Revolução Francesa um político como o extremista de direita
Jean-Marie Le Pen consiga 15% dos votos?
GUEL – Pois
é, o que torna os franceses simpáticos, a defesa que fazem de seus valores
culturais diante dos Estados Unidos, pode dar um troço (pausa)... Front
Nacional. Não é à toa que tem esse nome. Porque eles têm a grandeza francesa,
né? E se sentem ameaçados, seja pelo povo americano, seja pelo Terceiro Mundo.
Na França eu olhava os jovens de espírito anarquista, que queriam combater o
conservadorismo, e pensava assim: “Porra, mas é muito mais fácil pra mim!” Me
dava a impressão de que, para um francês usar aquele jeans e aquela camiseta,
ele tinha que se despir da roupa daqueles reis, sabe? Tinha que se livrar de
séculos de cultura. Não é como aqui, onde a gente pode partir quase do nada.
PLAYBOY – Que lembranças você
tem do início do exílio?
GUEL – Primeiro
meu pai tirou a família da sede do governo e mandou botar em outra casa. Eu o
via de maneira heroica, achava que nunca ia acontecer nada, nada iria atingi-lo.
Depois que ele saiu (Arraes foi depois no dia 1º de abril de 1964, ficou
preso oito meses em Fernando de Noronha e foi transferido para Recife e Rio de
Janeiro antes de seguir para o exílio na Argélia, no dia 16 de junho de 1965)
teve um momento muito forte, que foi quando minha irmã se casou. Deram
autorização para o casamento ser realizado na Base Aérea do Recife e meu pai
veio de Fernando de Noronha de avião. A gente entrou num ônibus, foi revistado,
um esquema de segurança supercontrolado mesmo. Todo mundo chorou. Lembro que
ele desceu com dois policiais em volta, foi do avião pra igreja. Ao lado dele,
o tempo todo, ficava um tenente desarmado. Estávamos só nós, os filhos, e
alguns parentes do noivo numa capela dentro da base. Um negócio arrogante.
PLAYBOY – O que você se lembra
do dia de sua saída do Brasil?
GUEL – A
gente começou a sair em 1969 (pouco depois da decretação do Ato
Institucional Número 5, de 13 de dezembro de 1968). Meu pai tinha que tomar
posições mais fortes (no exílio) e tinha medo de manter a família no
Brasil. Lembro que eu não queria sair do Recife de jeito nenhum. No dia pensei:
“Vou só um ano, por causa do meu pai”. Na minha cabeça era um gesto meu, mas é
lógico que teria de ir de qualquer jeito. Chegou lá (em Argel), ele teve
que me dizer que eu ficaria muitos anos. Lembro que chorei, ele chorou, foi um
momento difícil.
PLAYBOY – Hoje em dia você tem
bastante contato com seu pai?
GUEL – Em
1986, fiz a campanha dele (para governador) na televisão. Para mim foi
uma retomada desse negócio do documentário e, ao mesmo tempo, um reencontro com
a figura mítica dele, com esse super-homem. Era um encontro indireto, porque
mal falava com ele, ficava o tempo todo na ilha de edição. Foi a primeira vez
que senti... (hesita) senti que conversávamos “de homem para homem”. Eu
estava lá por causa da minha profissão. Não (enfatiza as palavras) por
causa dele. Nos nossos encontros... (pausa) Tenho uma certa timidez em
expressar afetividade e ele também.
PLAYBOY – Qual é a lembrança
mais antiga que você tem de seu pai?
GUEL – (Pausa.)
Tenho uma agonia muito grande porque me lembro pouco do passado. (Pausa.)
Por exemplo, minha mãe morreu quando eu tinha 7 anos e me lembro de
pouquíssimas coisas dela. Quando era pequeno, com menos de 5 anos, lembro-me de
ter tudo essa reflexão: “Quando eu passo, meu pai me abraça, quero sair e ele
não deixa”. (Sorri.)
PLAYBOY – Você não se preocupa
com o fato de ele, aos 81 anos, estar se envolvendo novamente numa campanha
eleitoral tão cansativa?
GUEL – Não.
Me preocupo com o dia em que ele parar de fazer política. A política dá um
vigor a ele, uma saúde enorme. Na última campanha eu o via em situações que eu
não aguentaria. Ficar 2 horas para atravessar uma multidão, debaixo de sol
quente no Recife. É incrível. No passado, havia um grande sonho, as utopias, e
hoje a gente vive numa época meio morna, do neoliberalismo, meio salve-se quem
puder. Evidentemente, mudaram-se os tempos, mudei eu e mudou ele, né? Então,
esse ajuste à realpolitik, à vida real, é o mais difícil. Misturar isso com
ressentimento, a sensação de que não se conseguiu coisa alguma (pausa)...
É uma embolação.
PLAYBOY – Em que medida suas
ideias se aproximam e se distanciam das do seu pai? Politicamente vocês têm
divergências?
GUEL – (Longuíssima
pausa.) Outro dia estava pensando: nesses anos todos depois da volta, votei
em todo mundo em que ele votou. E acho que ainda votaria. Mas durante um tempo
ser filho de Arraes bastava como currículo político. Hoje me sinto um pouco
perdido. Ele não é mais a única referência. Por um lado não ser tão claro
assim. Por outro, é uma perda muito grande.
PLAYBOY – Já que pode haver
uma nova eleição polarizada entre Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique
Cardoso, vale retomar a discussão. Você acha que a tal da edição do debate de
Lula e Collor feito pelo Jornal Nacional da Globo foi decisiva em 1989?
GUEL – Olha,
o debate foi uma coisa decisiva. Se tivesse sido um bom debate para o Lula, do
ponto de vista da comunicação, não teria edição que derrubasse. O debate não
foi equilibrado. Votei no Lula e posso dizer claramente. No primeiro debate,
ele arrasou. No segundo, não é dizer que o Collor se saiu maravilhosamente bem,
ele apenas se segurou. Agora, que os meios de comunicação em geral têm
influência nas eleições, disso não há dúvida.
PLAYBOY – Você pretende votar
no Lula de novo?
GUEL – Se
polarizar entre Lula e Fernando Henrique, voto no Lula.
PLAYBOY – Por quê?
GUEL – Não é
só uma escolha de nomes, né? Ainda acredito que exista ideologia, que as
pessoas representam as forças que as apoiam também. O Fernando Henrique deve
acreditar que está fazendo uma política realista de aliança com a direita. Mas
eu não vou votar no PFL, né? É dose, pô! Um partido que apoiou a ditadura. Não
consigo ser realista a esse ponto.
PLAYBOY – Ainda quanto à
influência da televisão sobre as pessoas: você concorda que deve haver um
mecanismo de controle sobre a programação ou acha que isso pode inibir a
criação artística?
GUEL – (Fica
em silêncio.) Em última instância, se o governo concede os canais, tem a
responsabilidade de controlar. No dia-a-dia você está sempre se perguntando
onde está sendo ousado e onde está só chocando, ferindo o direito do público.
Não é uma situação do tipo cada um faz o que quer. A imprensa, a sociedade
deveriam controlar. Censura é a pior coisa do mundo, mas algum mecanismo de
controle tem que ter.
PLAYBOY – Mas uma vez você não
“censurou” um quando do humorista Cláudio Paiva, no programa TV Pirata,
em que se pretendia mostrar uma plateia dormindo diante de uma placa escrita
“Festival Gláuber Rocha”?
GUEL – (Risos.) Acho
que sim. Era do pessoal do Casseta & Planeta. Mudei o nome para “Festival
Cinema Novo”. O nome Gláuber Rocha é tão conhecido quanto Cinema Novo, então a
piada passaria do mesmo jeito, né? Mudei um pouco porque era amigo dele, sim e
pouco pra que se respeitasse a verdade histórica (risos). Não quis
perder a piada nem o amigo.
PLAYBOY – No começo do TV
Pirata, houve uma briga entre você e Chico Anysio. O que aconteceu de fato?
GUEL – Briga
mesmo não teve. Ele sempre me tratou de maneira muito cordial. O que houve foi
uma espécie de esquizofrenia da direção da Globo. Eles queriam um programa
novo, investir em pessoas novas, e ao mesmo tempo ter uma certa segurança. A
“segurança” era uma supervisão do Chico Anysio. O Chico Anysio, até então, era
o cara que tinha feito a nossa cabeça, como humorista. Eu adorava os programas
dele quando era pequeno. Então, ser tutelado por ele... A gente queria
autonomia pra ver se chegava a algum lugar. Tínhamos segurança com o programa e
medo de que, depois, parecesse que aquilo não tinha sido feito pela gente.
PLAYBOY – Você acha que ele de
alguma maneira se sentiu ameaçado por aquela nova geração de humoristas?
GUEL –
Depois que a gente fez o primeiro programa a Globo relaxou. Teve até um
memorando do Boni: “Podemos dizer quer existe caminho para uma nova geração no
humor”. E a gente ganhou independência para fazer o negócio. Aí então ele (Chico
Anysio) foi “descamado” para o posto.
PLAYBOY – Você já sofreu algum
tipo de censura interna na Globo?
GUEL – Não.
Olha, não houve nada que quisesse fazer muito na televisão e que não tenha
feito. E não houve nada que eu não quisesse fazer de jeito nenhum e me tivessem
obrigado (Pausa.) Mas durante muito tempo eu tinha medo até de assinar
meu contrato. No início, o produtor permitiu que eu assinasse quando o ano
acabava. Ele dizia: “Ó, tá aqui na minha gaveta. Quando acabar o ano você
assina e a gente faz o próximo”. Era uma espécie de garantia: “Pra você ter a
certeza de que não será obrigado a fazer nada”.
PLAYBOY – Quem, é esse
produtor que permitiu esse privilégio?
GUEL – Não
posso dizer (ri). Mas era uma espécie de contrato de gaveta. Para eu ter
a certeza de que poderia sair da emissora na hora que quisesse.
PLAYBOY – Quanto da sua
própria comédia da vida privada bate com o que aparece na TV?
GUEL – Não
muito. Autobiográfica, mesmo, acho que tem uma cena ou outra. O que há é do
ponto de vista da fantasia: o ciúme que você já teve, a corneada que você já
levou, o desejo de comer a mulher de um amigo. Aí é meio tudo (ri).
PLAYBOY – Você já foi casado
com duas atrizes da Globo. Como foi que conheceu a Louise Cardoso?
GUEL –
Conheci na casa da Denise Bandeira, que foi casada com meu irmão (mais novo)
Maurício (Arraes), em 1982, por aí. Tenho muita identificação com a
preocupação ética da Louise, a maneira como ela vive, a postura. Eu me
identificava muito. Até demais, por isso que não (pausa)... Hoje em dia
a gente nem se vê tanto, mas sei que é uma pessoa em quem posso acreditar
piamente.
PLAYBOY – Por que não deu
certo?
GUEL – Acho
que a gente tinha umas ideias muito preconcebidas. Por exemplo: “É preciso
preservar a liberdade do outro”. Morávamos em casas separadas e tal. Esses
princípios são legais, você não interferir demais na vida do outro. Mas
terminam afastando um do outro. Às vezes, na relação é preciso ser incoerente.
Você é contra regular o outro, mas uma hora tem que ter ciúme, né? Não é legal
ficar dependente do outro, mas uma hora tem que dizer: “Não estou aguentando,
tô aqui fodido”.
PLAYBOY – E a Andréa Beltrão?
Como foi a armação de um casamento do Armação Ilimitada?
GUEL – O Armação
foi muito entusiasmante para nós, uma espécie de lançamento profissional dela e
meu. Tinha essa euforia de a gente estar conquistando um sucesso... de sermos
jovens e talentosos...
PLAYBOY – A Andréa é uma
pessoa muito diferente da Louise?
GUEL –
Totalmente diferente.
PLAYBOY – E, com ela, o ciúme
estava liberado?
GUEL – Bom,
a relação com a Louise era aparentemente sem conflitos. Você se separa e nem
sabe por quê. Já com a Andréa era mais tumultuada, tinha esse lado empolgante,
profissional. Com a Andréa, foi a primeira vez que tive uma relação que nasceu
do trabalho...
PLAYBOY – E como administrou
os dramas e comédias privados na vida profissional?
GUEL –
Não foi tão fácil. Eu tinha muita dificuldade em misturar as duas esferas. Foi
uma experiência boa nesse sentido. Hoje em dia, você vê, a Virgínia faz a peça O
Burguês Ridículo, que eu dirijo. Você trabalhar junto não pode ser condição
para um casamento, mas também não pode ser um problema, né? Mas com a Andréa...
Se a gente brigava, eu ficava deprimido, ia trabalhar mal. Misturava demais.
PLAYBOY – O casamento
sobreviveu ao fim do programa?
GUEL –
Sobreviveu. Teve uma grande crise quando terminou o Armação, mas depois
a gente voltou. Mas acho que o casamento serviu para a gente se modificar
muito. Até mesmo em coisas concretas (pausa)... Parei de fumar maconha
nessa época... (interrompe) Acho que pode falar disso, né?
PLAYBOY – Claro.
GUEL –
Quando comecei, em Paris, era um símbolo daquela revolta da juventude. Era
talvez minha maior heresia do ponto de vista católico como social, de ir contra
o sistema. Fumar maconha, nem o pessoal de esquerda admitia. Depois foi virando
um hábito, uma atrapalhação. Algumas pessoas com quem convivi tiveram que parar
de beber, ia aos AA (Alcoólicos Anônimos, grupo de apoio a dependentes da
bebida), e acho que essas drogas meio que se interligam. Comecei a me
sentir prisioneiro mesmo, senti que poderia ser um viciado.
PLAYBOY – Você experimentou
outras drogas?
GUEL –
Experimentei cocaína. Mas isso não dá.
PLAYBOY – Acha que maconha
vicia mesmo?
GUEL –
Psicologicamente vicia. Eu pelo menos achava que era (viciado). É
pessoal, mesmo. Tem gente que aguenta e gente que não aguenta. Fiquei achando
que a maconha me desarticulou, que estava perdendo a concentração e a memória.
Entrei nessa paranoia. Quando saí dessa, passei a ter uma relação de euforia
com a caretice. Inverteu, assim. Ficar animado porque podia escrever sem fumar
maconha, dirigir, pensar. Era mais eu quem fazia as coisas. Porque antes era
uma espécie de viagem.
PLAYBOY – Andréa também teve
problemas com drogas no fim do casamento e chegou a se internar. Você se sente
à vontade para falar disso?
GUEL – Não
sei se posso falar por ela. Como é isso eticamente... Mas eu, pelo menos, parei
por causa dela. Claro, também por mim, mas meio nessa onda. A gente se separou,
ela foi namorar outro cara, fiquei (pausa)... De alguma maneira revivi
uma depressão que já tinha tido na primeira separação, lá em Paris. Percebi que
era um troço que se repetia e resolvi fazer análise. Faço há dez anos. A Andréa
foi uma relação muito gratificadora, que marca o início de me assumir como
artista, de fazer um trabalho sozinho. Mas, ao mesmo tempo que houve esse
entusiasmo todo, pensei: “Isso não vale nada”. Fiquei fodido durante anos.
PLAYBOY – O envolvimento de
vocês era só com maconha?
GUEL – Eu só
fumava maconha. E bebia um pouquinho. Mas, na verdade, era mais maconha.
PLAYBOY – Para encerrar o
capítulo casamentos, como é que você chegou no atual, com a Virgínia?
GUEL – Com
Virgínia tem coisas simbólicas. Ela é pernambucana, me deu uma filha... É
psicanálise de botequim, mas no fundo nunca vivi direito a perda da minha mãe.
Então essas depressões após meus casamentos eram um luto mesmo. Um negócio
assim: “Sou muito pequeno diante da morte da minha mãe, viu fingir que isso não
aconteceu”. Com Virgínia tenho a impressão de que tenho menos medo e uma
relação mais de igual para igual.
PLAYBOY – O medo das mulheres
foi superado, então. E o de avião, que impedia você de voar para São Paulo?
GUEL – Se
balançar muito tenho medo, mas pego avião normalmente agora. O Pedro (Cardoso)
não pega. Não pega. Por que é que você acha que não foi a festa do Oscar? (Risos.)
Agora ele vai ter que ir para a Inglaterra participar de um festival de
Shakespeare. Estou curiosíssimo pra ver (risos).
PLAYBOY – Hoje você concilia
bem trabalho e vida pessoal? Por exemplo: tem tempo para ir à reunião de pais e
mestres da escola de sua filha?
GUEL – Tenho.
Não teria há quatro anos. Achava que minha vida privada não deveria interferir
na carreira. Mas essa família me fez entender que é bacana você renunciar,
parar um pouco. Por exemplo, agora no teatro eu trabalho que nem um filho da
mãe, mas tem a minha filha pequenininha correndo pelas cadeiras e a Virgínia no
palco. Realiza um pouco daquela fantasia da família mambembe, que eu admirava
no Godard e na Anne Maria.
PLAYBOY – Você se considera um
workaholic?
GUEL – Olha,
sou um pouco. Mas tenho a impressão de que não vou ter um ataque do coração por
saber que a vida também é importante, porque trabalho com pessoas de que gosto
e por ter uma dose de prazer grande no meu trabalho. Sou um cara preguiçoso
naturalmente e isso faz muito esforço pra vencer isso. De certa maneira, é essa
preguiça que me salva.
PLAYBOY – Qual foi a sua
reação quando soube da morte do Paulo Ubiratan?
GUEL –
Quanto ao Paulinho, teve um lado meio simbólico, já que ele foi a primeira
pessoa que me convidou oficialmente para fazer um trabalho na Globo. A morte
dele me deu uma certa depressão profissional. Acho que o fato de eu ser mais
regrado, fazer um pouco de exercício, dieta, trabalhar em casa, isso me salva.
Posso ter muito problema, gastrite, mas tenho a impressão de que isso não vai
me matar do coração. Mas o Paulinho vai fazer falta. Parece que esse peso que
ele carregava vai passar um pouco para a gente. Isso me assustou. Fico
pensando, será que é preciso que alguém carregue esse peso na televisão?
PLAYBOY – Vale a pena pôr em
risco a própria saúde para fazer TV?
GUEL – Não
vale. Televisão é brincadeira. Um dia eu estava fazendo uma cena no Armação
e vi um dublê distraído passar a 2 palmos da hélice de um helicóptero. Cara,
aquilo me deu um negócio! Falei: “Nada vale a pena, isso é uma
brincadeira, é para fingir que é de verdade”. Não vale uma gota de
sangue, não vale matar um passarinho.
PLAYBOY – Falando em valer a
pena, quando estávamos marcando esta entrevista, você me avisou de que não iria
gostar porque você não fala mal de ninguém. Por que essa política?
GUEL – É que
eu não resolvo problema pessoal através do trabalho ou da imprensa. Existe uma
certa irresponsabilidade o Brasil e, como a imprensa se presta à polêmica, isso
acontece. Coisas pessoais se resolvem cara a cara. Uma vez, depois de uma
entrevista, o repórter de uma revista carioca me pediu pra falar mal de alguém,
porque “é preciso que haja alguma polêmica, senão eles criam uma na redação”.
PLAYBOY – Qual é a revista?
Quem disse isso?
GUEL – Não
vou dizer. (Pausa.) Eu avisei que não ia falar mal de ninguém (risos).
Publicado originalmente na revista “Playboy” em junho de 1998
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