quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Tempo de iniciação I: Nelsinho da 45


Por Hiroito de Moraes Joanides

Já no Nelson, o encargo da violência lhe foi imposto, ironicamente, pela beleza, quando jovem, de suas feições. Mal completara ele os seus dezoito anos, quando teve a desgraça de ir parar na prisão por vadiagem. Isso numa época em que a antiga Casa de Detenção, na Avenida Tiradentes, era a mais operante sucursal do Inferno na Terra. Ali, o exótico lema que “mulher de preso é preso mesmo” era levado às suas últimas e mais drásticas consequências, por meio da ameaça, da agressão, da tentativa de morte, do estupro. Lutava-se, a mãos limpas, a faca, navalha ou porretadas, matava-se e morria-se na disputa por um rapaz bonito que lá chegasse. A este, vinha primeiro as propostas, promessas, favores, para depois, num crescendo, as ameaças, as agressões, quando não a morte.

Em um tal ninho de monstros aporta o nosso “Nelson-feições de querubim”...Que ele não possuía qualquer propensão para este negócio de ser “mulher de preso” ele deixou bem claro, em vermelho-vivo, através das muitas navalhadas que distribuiu entre os seus “pretendentes”. Escrito em sangue, deixou firmado, nas carnes pederastas, a sua condição de garoto bonito...e homem. A desmentir (ou comprovar, não sei bem) essa história de que a honra não tem preço, pela manutenção da suam, creditaram-lhe, à conta carcerária, uns bons pares de anos de prisão, sobrando-lhe ainda, pelos feitos, o título de “honoris causa” de...valente. Esse título, no futuro, por muitas e muitas vezes ver-se-ia ele forçado a pô-lo em jogo, frente a um qualquer desafiante ansioso de subir ao ranking da Boca do Lixo.

O Nelson, no teatro do crime, foi um grande aplaudido e consagrado ator. O difícil papel que no roteiro da vida lhe coubera, ele o representou magistralmente. Pouquíssimos, dentre os que melhor o conhecera, chegaram a penetrar, a apreender a sua real personalidade. O Nelson foi sempre, e essencialmente, um menino. Pertencia aquela classe de homens que crescem e se fazem adultos carregando dentro de si a criança que foram e que se nega a abandonar seus seres.

Sempre que a carga da vida se lhe apresentasse como demais pesada, ou os sentimentos de cores mais escuras, de dor ou frustração, lhe estivessem a assolar o espírito, era a mim (para ele o japonês) que ele vinha. Não a lamentar-se ou procurar consolo, mas para divertir-se. Divertia-se tremendamente o “judeu”, que era como afetuosamente ou o chamava (mas que outros não o fizeram!...), com as minhas blagues, com a ironia e o sarcasmo que sempre surgem, por natureza, nas minhas conversações. O “humor negro” que me caracteriza nos seus momentos de irritação, faziam a delícia do Nelson. E para usufruí-lo, ladinamente tratava de levar-me à irritação extrema. Usava-me o “judeu”, muito descaradamente  aliás, como uma espécie de “humorista particular”.

Era nessas ocasiões de maior descontraimento que melhor podia eu flagar-lhe no semblante, em meio a uma risada alegre, o ar travesso de um moleque arteiro. Chegasse porém quem quer que fosse e o seu olhar se endurecia, e o sorriso, em aflorando, se mostrava mau. Afinal, era o “durão”, o valente, o “dedo-mole” no gatilho, havendo, portanto, que ser desempenhado o seu papel. Coisa que nunca aprendi a fazer.

Mesmo nas últimas vezes que nos vimos, na Casa de Detenção, em 1973, pude perceber que embora perto ou já na casa dos quarenta, seguia sendo, o garotão de sempre. O menino que nele havia tombou varado pelas mesmas balas que o vitimaram meses depois.

Trecho de Boca do Lixo (1977), por Hiroito de Moraes Joanides (1936-1992), um dos grandes bandidos da história de São Paulo cuja trajetória está sendo retratada no longa-metragem Boca.

2 comentários:

Almir disse...

Bom livro. Recomendo.

Matheus Trunk disse...

Almir: também gosto bastante. Na sexta-feira teremos outro trecho publicado aqui. Agradeço a audiência privilegiada do blog.