Por Hiroito de Moraes
Joanides
Já no Nelson, o encargo
da violência lhe foi imposto, ironicamente, pela beleza, quando jovem, de suas
feições. Mal completara ele os seus dezoito anos, quando teve a desgraça de ir
parar na prisão por vadiagem. Isso numa época em que a antiga Casa de Detenção,
na Avenida Tiradentes, era a mais operante sucursal do Inferno na Terra. Ali, o
exótico lema que “mulher de preso é preso mesmo” era levado às suas últimas e
mais drásticas consequências, por meio da ameaça, da agressão, da tentativa de
morte, do estupro. Lutava-se, a mãos limpas, a faca, navalha ou porretadas,
matava-se e morria-se na disputa por um rapaz bonito que lá chegasse. A este,
vinha primeiro as propostas, promessas, favores, para depois, num crescendo, as
ameaças, as agressões, quando não a morte.
Em um tal ninho de
monstros aporta o nosso “Nelson-feições de querubim”...Que ele não possuía
qualquer propensão para este negócio de ser “mulher de preso” ele deixou bem
claro, em vermelho-vivo, através das muitas navalhadas que distribuiu entre os
seus “pretendentes”. Escrito em sangue, deixou firmado, nas carnes pederastas,
a sua condição de garoto bonito...e homem. A desmentir (ou comprovar, não sei
bem) essa história de que a honra não tem preço, pela manutenção da suam,
creditaram-lhe, à conta carcerária, uns bons pares de anos de prisão,
sobrando-lhe ainda, pelos feitos, o título de “honoris causa” de...valente.
Esse título, no futuro, por muitas e muitas vezes ver-se-ia ele forçado a pô-lo
em jogo, frente a um qualquer desafiante ansioso de subir ao ranking da Boca do Lixo.
O Nelson, no teatro do
crime, foi um grande aplaudido e consagrado ator. O difícil papel que no
roteiro da vida lhe coubera, ele o representou magistralmente. Pouquíssimos,
dentre os que melhor o conhecera, chegaram a penetrar, a apreender a sua real
personalidade. O Nelson foi sempre, e essencialmente, um menino. Pertencia
aquela classe de homens que crescem e se fazem adultos carregando dentro de si
a criança que foram e que se nega a abandonar seus seres.
Sempre que a carga da vida se lhe apresentasse como demais pesada, ou os sentimentos de cores mais escuras, de dor ou frustração, lhe estivessem a assolar o espírito, era a mim (para ele o japonês) que ele vinha. Não a lamentar-se ou procurar consolo, mas para divertir-se. Divertia-se tremendamente o “judeu”, que era como afetuosamente ou o chamava (mas que outros não o fizeram!...), com as minhas blagues, com a ironia e o sarcasmo que sempre surgem, por natureza, nas minhas conversações. O “humor negro” que me caracteriza nos seus momentos de irritação, faziam a delícia do Nelson. E para usufruí-lo, ladinamente tratava de levar-me à irritação extrema. Usava-me o “judeu”, muito descaradamente aliás, como uma espécie de “humorista particular”.
Era nessas ocasiões de
maior descontraimento que melhor podia eu flagar-lhe no semblante, em meio a
uma risada alegre, o ar travesso de um moleque arteiro. Chegasse porém quem
quer que fosse e o seu olhar se endurecia, e o sorriso, em aflorando, se
mostrava mau. Afinal, era o “durão”, o valente, o “dedo-mole” no gatilho,
havendo, portanto, que ser desempenhado o seu papel. Coisa que nunca aprendi a
fazer.
Mesmo nas últimas vezes
que nos vimos, na Casa de Detenção, em 1973, pude perceber que embora perto ou
já na casa dos quarenta, seguia sendo, o garotão de sempre. O menino que nele
havia tombou varado pelas mesmas balas que o vitimaram meses depois.
Trecho de Boca do Lixo (1977), por Hiroito de Moraes Joanides (1936-1992), um dos grandes bandidos da história de São Paulo cuja trajetória está sendo retratada no longa-metragem Boca.
2 comentários:
Bom livro. Recomendo.
Almir: também gosto bastante. Na sexta-feira teremos outro trecho publicado aqui. Agradeço a audiência privilegiada do blog.
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