sábado, 14 de setembro de 2013

Memórias de um Cafajeste- parte III: O início no cinema


Por Jece Valadão

Quando eu ainda era criança, em Cachoeiro do Itapemirim, fiz minhas primeiras experiências com “cinema”. Isso em 1940, 1941.

Eu pedia para um amigo meu, que era projecionista do cinema da cidade, pedaços de filmes. Aí eu pegava uma caixa de sapato, colocava uma lente na frente, uma lâmpada atrás e projetava para meus amigos dizendo que era “cinema”. Na verdade, era um protótipo de um projetor de slides.

Meus amigos pagavam com bala, dinheiro, qualquer coisa, para assistir às minhas projeções.

Além de fazer essas projeções, eu também ia assistir filmes, inclusive proibidos, na cabine de projeção, a convite do meu amigo.

Quer dizer, desde os dez anos de idade que eu tenho na cabeça o negócio de cinema.


ATLÂNTIDA

Estreei em cinema em 1952, quando ainda trabalhava como locutor na rádio Tupi.

Na época, a Atlântida era o grande estúdio do Brasil. Lá trabalhavam as grandes estrelas: Oscarito, Grande Otelo, Cyll Farney, Fada Santoro, Eliana; e os grandes diretores: José Carlos Burle, Watson Macedo, Carlos Manga, Jorge Yleli, Paulo Wanderley, Cajado Filho...Carlos Manga era o assistente de direção.

Obviamente entrar na Atlântida era a coisa mais difícil do mundo, para qualquer um; e muito mais para mim, que não tinha qualquer ligação com o cinema.


Primeiro trabalho em cinema.

Um dia me deu um estalo e pensei: “É hoje que vou entrar pro cinema”.

Cheguei na Atlântida com a maior cara de pau do mundo e disse que queria trabalhar como figurante.

Me deram um formulário para preencher com milhares de perguntas: nome, endereço, “sabe nadar?”, “sabe luta livre?”, “pilota avião?”, “pilota helicóptero?”, “fala inglês?”, “fala alemão?”, “tem smoking?”, “tem casaca?”, “sabe dançar?”...

Respondi tudo que sim e assinei.

Quando o responsável pelas contratações leu, deve ter pensado que eu era um gênio da raça ou um louco. Era simplesmente impossível saber tudo aquilo.

De qualquer jeito, deu resultado. Chamaram-me na Atlântida e fizeram várias perguntas para confirmar minhas respostas no questionário. E eu, com a mesma cara de pau, insisti que sabia tudo aquilo. Afinal, eu não sabia alemão; mas o cara também não. Como ele poderia comprovar se eu sabia ou não?


Também somos irmãos

Logo em seguida, me escalaram para trabalhar em um filme chamado Também Somos Irmãos.

Eu ia ser figurante numa cena em que se passava num bar, montado dentro do estúdio (na época era tudo rodado em estúdio), contracenando com o Jorge Dória e a estrela do filme, cujo nome não me lembro.

Meu papel era de um garçom que ia servir a mesa onde estavam o Jorge Dória e a estrela. Ele me chamava e pedia dois chopes. Eu vinha e botava os chopes na frente dele.

Eu não tinha que fazer nada além disso.

Quando estava tudo pronto para começar, olhei em volta...

Para mim ali era Hollywood. Um estúdio enorme, cheio de refletores gigantes, luzes, rebatedores, gente para todo lado...

O diretor do filme, José Carlos Burle berrou: “Atenção, silêncio!”. Comecei a tremer.

Silêncio total: não se ouvia uma mosca.

Aí o Amleto, diretor de fotografia, berrou, mais alto que o diretor: “Atencion! Meia Luce!”. E pruummmm, estourou a luz. Parecia o sol, porra.

Eu vi aquilo e não acreditei. Luz para tudo quanto era lado.

“Toda luce!”, berrou o Amleto. E apareceu mais luz ainda; o sol cresceu: “Meu Deus do céu, estou em Hollywood mesmo”.

“Som, câmera, ación”. Essa ación era para mim. Respirei fundo e pensei: “Seja o que Deus quiser”.

Entrei, o Dória pediu os chopes, saí, voltei com os chopes, coloquei um chope na frente da mulher e outro na frente dele.

“Porra! Desmanchou meu cabelo!”.

A manga do meu casaco tinha pegado o cabelo do Dória, desmanchado todo o penteado dele.

“Corta! Corta!”. Tremio nas bases.

Veio cabelereiro, maquiador, assistente; retocaram o Dória inteiro e começou tudo de novo, “Meia luce!”. O sol apareceu.

“Luce inteira”. O sol explodiu. “Ación”. Lá fui eu de novo.

Não deu outra. Desmanchei de novo o cabelo do Dória.

Sem saber o que fazer fui pedir desculpas para o Dória. “Que desculpa, o cacete!”. Ele não queria saber de conversa com figurante.

Fiquei em pânico de pensar que minha carreira ia acabar ali.

Tomei coragem e fui falar com o diretor: “O senhor me desculpe, mas toda vez que eu for servir o Dória, vou desmanchar o cabelo dele, porque com a marcação que o senhor fez, quando eu passar por trás dele a manga do meu casaco, que tá enorme, vai esbarrar no cabelo dele”.

Resultado: na terceira vez que eu desmanchei o cabelo do Dória ele se enfureceu: “Ou ele, ou eu, Burle”.

É claro que entre um galã e um figurante, era ele que ia ficar.

Arrasado, resolvi ir embora. Fui saindo, pensando no fracasso da minha carreira no cinema, quando o diretor disse: “Ei, onde você vai? Volta aqui”.

Não acreditei. (...)

Com isso, em vez de figurante tive um papel no filme, numa cena com diálogo. E com isso, espacei de começar como figurante.

A experiência me mostrou mais tarde: quem nasce figurante, morre figurante.

(...)


Nem Sansão Nem Dalila

Logo depois fiz Nem Sansão nem Dalila, dirigido também pelo Burle, com o Grande Otelo, o Oscarito, Cyll Farney e a linda Fada Santoro.

O curioso é que o diálogo do meu personagem nesse filme é o único de que me lembro até hoje. Nunca esqueci. Hoje eu decoro um diálogo, gravo e já esqueço.


Diálogo inesquecível

O filme se passava numa corte da Arábia Saudita. A Fada Santoro era uma princesa e eu, vestido com roupas árabes- com turbante, colares e um bastão -, tinha que entrar e falar: “Sua Alteza Imperial, Davi Abrãao Levi Ebensalamão, Telaviv, Sabah, príncipe de Judá, descendente de Salomão”. Em seguida entrava o Oscarito vestido de Príncipe de Judá.

Isso no meio de milhares de figurantes.

Mas o diretor, o mesmo de Também Somos Irmãos, que queria me proteger, fazia eu repetir tudo de novo, em close, para o personagem ficar bem marcado.

Ficou engraçadíssimo. Duas vezes seguidas essa frase: “Sua Alteza Imperial, David Abrãao Levi Ebensalão, Telaviv, Sabah, príncipe de Judá, descendente de Salomão”. Foi o diálogo mais importante da minha vida. Nunca esqueci...

Depois disso fiz vários outros filmes ainda na Atlântida.


Watson Macedo

Em frente à Atlântida tinha um barzinho, que era onde acontecia o ti-ti-ti da cultura cinematográfica carioca. Era um botequim mesmo.

Ia todo mundo lá; era só atravessar a rua.

Um dia chego lá e vejo o Watson Macedo sentado em uma mesa com a Fada Santoro e o Cyll Farney, tomando café com leite.

O Watson era o diretor mais famoso da época; era ele quem dirigia os filmes mais sofisticados. (...)

Bom, chego eu lá e vejo ele. Vou até a mesa onde ele está e falo humildemente: “Seu Watson, o senhor dá licença; eu queria que o senhor me desse uma oportunidade em um filme seu, que estou louco para desenvolver minha carreira”.

Ele olhou para mim e disse: “Ô meu filho, você tem que ter as características de um Cyll Farney, que sai na rua e as mulheres saem correndo atrás”.

Sem perder o rebolado, falei que se ele me desse a oportunidade que ele havia dado para o Cyll, as mulheres iriam sair correndo atrás de mim também.

E ele, inacreditavelmente, respondeu que assim não adiantava, as mulheres tinham que correr atrás de mim antes de eu fazer um filme com ele. “Só se eu xingar a mãe delas”. Ele falava e eu respoondia na lata.

Nunca mais o cara falou comigo, porque eu ousei responder para ele.

Anos depois, tive uma ótima oportunidade para me vingar, do jeito que ele merecia.

PRIMEIRO CONGRESSO DE CINEMA

Paralelo aos filmes da Atlântida, participei ativamente do Primeiro Congresso de Cinema Brasileiro. E foi aí que eu conheci o Nelson Pereira dos Santos e o Hélio Silva, que estavam chegando da França, onde os dois tinham estudado: o Nelson, direção, e o Helio, fotografia.

Nós defendíamos basicamente as mesmas teses, como a reserva de mercado, apoio logístico, financeiro. Ideias que resultaram na Embrafilme e no Concine.

Rio 40 Graus

Logo depois do Congresso, “filmei” Nobreza Gaúcha e depois me juntei ao Nelson e ao Hélio para fazer Rio 40 Graus.

MUDANÇAS NO CENÁRIO
Nessa mesma época estava ocorrendo uma mudança no cenário cinematográfico nacional. O Anselmo Duarte tinha acabado de largar a Atlântida para ir trabalhar na Vera Cruz, em São Paulo.

Na Vera Cruz estavam tentando fazer uma indústria de cinema, enquanto na Atlântida continuava a mesma sacanagem de sempre.

Fizeram excelentes filmes na Vera Cruz: O Cangaceiro, Tico-Tico no Fubá, filmes que não davam dinheiro; ao contrário do cinema feito na Atlântida, que rendia os tubo
s.

Originalmente publicado em: VALADÃO, Jece. Memórias de Um Cafajeste. São Paulo: Geração Editorial, 1996.

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