quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Memórias de um Cafajeste- parte IV: Jece e a família Rodrigues



Por Jece Valadão

Dulce Rodrigues

A Dulce foi a pessoa mais pura que eu conheci.

Já eu, fui muito mal com ela. Fiz muita maldade que ela não merecia. Ela me amava demais.

O curioso é que até me conhecer pessoalmente, a Dulce tinha um ódio mortal de mim.

Herança

Nossa história começou quando a Dulce resolveu montar uma companhia de teatro com o dinheiro que ela havia recebido da indenização por causa do empastelamento do jornal do pai dela, o Mário Rodrigues.

O jornal tinha sido fechado pelo Governo em 1930. Logo depois a família entrou com um processo, mas só em 1957 recebeu a indenização.

Essa história do processo era uma coisa pública; todo mundo no Rio de Janeiro sabia disso, inclusive eu. Tanto é que, quando casei, acreditei estar dando o maior golpe do baú.

Só que, para minha decepção, era um baú furado!

A Mulher Sem Pecado

A primeira peça que a companhia da Dulce ia montar era A Mulher Sem Pecado, do Nelson Rodrigues, seu irmão.

Antes disso, a Dulce já tinha feito várias peças, inclusive Valsa Número 6, que o Nelson escreveu especialmente para ela.

Bem, para fazer A Mulher Sem Pecado ela alugou o Teatro Serrador, que na época era muito importante no Rio de Janeiro, contratou o diretor, o Rodolfo Mayer, e oa atores.

Só que estava faltando o ator que iria interpretar o Humberto, o motorista, que era o cafajeste da história.

Como eu tinha acabado de fazer o malandro do Rio 40 Graus, com muita repercussão, o Rodolfo me indicou para fazer o Humberto.

A Dulce, louca da vida, vetou totalmente meu nome, alegando que eu era cafajeste de verdade e ela não me queria de jeito nenhum.

O Rodolfo insistiu...e lá fui eu falar com ela.

Apesar de me olhar com desdém, ela teve que me engolir.

A Mulher Sem Pecado foi minha estreia no teatro.

O beijo

Tinha uma cena na peça em que eu dava um beijo na Dulce.

Só que a Dulce tinha tanto horror de mim que me obrigava a fazer um verdadeiro malabarismo, me entortar todo para fingir que a estava beijando, mas sem tocar a minha boca na dela.

Eu ficava de costas para a plateia; a minha boca a quilômetros de distância da dela.

Mas isso aconteceu só nos ensaios, porque, no dia da estreia, pensei: “Hoje eu vou pegar essa mulher”.

Meti-lhe um tremendo beijo de língua.

Ela ficou louca, quase morreu em cena. Perdeu o rebolado.

A Dulce era tão pura que, pelo fato de eu tê-la beijado, disse que queria casar comigo.

Para ela, aquele beijo era quase o mesmo que perder a virgindade. Uma declaração de amor total.

Golpe do baú

No dia seguinte, ela já me convido8u para ir conhecer o apartamento da família dela no Parque Guinle. A área mais nobre do Rio.

O apartamento era enorme, tinha 1.200 metros quadrados. Uma maravilha, com tapetes, quadros, mobílias caríssimas da Oca...Antes de a família Rodrigues mudar para lá, o apartamento tinha sido a sede da embaixada da Itália no Brasil.

Quando eu vi, levei um susto. Eu tinha vindo de Cachoeiro, filho de ferroviário, lutava como um louco para sobreviver no Rio de Janeiro, dava um duro danado para não morrer de fome...

Na hora decidi: era com ela que eu ia me casar.

Eu já tinha casado duas vezes, mais uma, não iria fazer mal.

Virgindade

Um dia antes do casamento no civil, a Dulce me chamou no teatro e disse que tinha uma coisa importantíssima para falar para mim.

Nós sentamos na plateia escura e ela falou que tinha de confessar uma coisa e que, se eu quisesse, depois de ouvir a confissão dela poderia desistir de tudo.

Depois desse suspense todo, ela me contou que não era mais virgem.

Eu, que nunca liguei para essas coisas, respondi que não tinha problema. Não ia desistir daquele “empreendimento” por tão pouco.

Mas pensei também que, se ela não era mais virgem, poderíamos dormid juntos antes do casamento no religioso. Pura ilusão.

Quinze dias

A Dulce e a família dela eram tão loucas, que durante os quinze dias entre o casamento no civil e no religioso, ela não dormiu comigo. Não deu nem a pau.

Mesmo não sendo mais virgem.

“Graças” aos conselhos que recebeu da família.

O casamento

O casamento na igreja foi maravilhoso. Foi um dos casamentos mais badalados da época, com a presença de pessoas importantíssimas: gente como o ministro Galotti, o Grande Otelo, que era uma das estrelas dos anos 50, o Roberto Marinho, o Hélio Pellegrini, todas as pessoas que faziam notícia; e eram amigas da família Rodrigues.

Depois da cerimônia teve uma festa incrível, uma recepção enorme no Parque Guinle.

Baú furado

Os irmãos e a mãe da Dulce me olhavam sempre de esguelha. Diziam que eu estava dando o golpe do baú.

Só que, como eles sabiam melhor que eu, o baú era furado.

O dinheiro tinha acabado. E eu tive que trabalhar como um louco para sustentar a Dulce e meus filhos.

Casei pensando em melhorar de vida, mas depois, acabei gostando da Dulce. Era uma mulher maravilhosa e me deu dois filhos maravilhosos.

Em 58 nasceu o meu filho Alberto e logo depois a Stelinha. Duas pessoas que eu amo muito.

(...)

Família

Nessa época, o casamento já andava estremecido. Não por causa da Dulce, mas por causa da família que era contra o casamento.

A família inteira já sabia que eu tinha uma garçonière e várias amantes. Era uma loucura.  A Dulce me defendia com unhas e dentes e eles eram obrigados a me tratar bem por causa dela.

O Nelson também tinha amantes, mas ninguém sabia. Ele era muito mais discreto que eu.

(...)

NELSON RODRIGUES

O Nelson me considerava um excelente ator. Adorava que eu interpretasse os papéis que ele escrevia, achava que eu era um ator perfeito para o tipo de personagem que ele criava.

E eu realmente gosto muito dos diálogos que ele escreveu.

Mas como cunhado ele não me admitia não. Achava que eu era um cafajeste e que só queria o dinheiro. Um dinheiro que nem existia.

Uma incoerência que eu nunca consegui fazer a família entender.

O FIM

Meu casamento com a Dulce durou catorze anos. Terminou quando eu conheci a Vera Gimenez e fiquei completamente apaixonado por ela.

Aí cheguei para a Dulce e perguntei o que ela queria para eu ir embora. “Quero tudo”. Saí com a roupa do corpo.

Ela ficou louca; me amava demais.

Até a morte

Quando a Dulce era solteira, era muito bonita. Mas depois que teve filhos engordou e relaxou.

Mesmo depois de separada de mim, ela me defendia. Defendeu até morrer.

(...)

Fiz várias coisas assim para ela; coisas que ela não merecia.

Hoje eu reconheço que a Dulce era uma pessoa muito boa e peço perdão a ela. Espero que, onde ela estiver, me perdoe.

(...)

PAULINHO

Meu cunhado preferido era o Paulo Rodrigues, o Paulinho. Ele era o mais humilde e talentossísimo. Trabalhava como jornalista no Globo e escreveu vários livros.

A tragédia

O Paulinho morava com a mulher, Maria Natália, a sogra e os dois filhos, Ana Maria e Paulo Roberto, em um edifício de quatro andares, sem elevador, nas Laranjeiras.

Eu ia muito à casa dele; ia jantar, jogar baralho, fazer leituras, conversar; e ele ia muito ao meu apartamento.

Como era habitual, num final de semana que a Dulce viajou com as crianças e fiquei no Rio, combinei de ir jantar e jogar baralho na casa do Paulinho.

Peguei o carro- eu morava no Flamengo- e  fui para Laranjeiras. Eram mais ou menos sete ou oito da noite.

Quando cheguei na porta do edifício do Paulinho, olhei bem e desisti. Fiquei com preguiça de subir aqueles três andares de escada.

Dei marcha-ré e fui pro cinema. De lá fui para uma boate, onde fiquei até de madrugada.

Chegando em casa, o telefone toca. Por causa da chuva, o edifício do Paulinho tinha caído, exatamente na hora em que eu estava no cinema. Morreu a família inteirinha.

Era pra eu morrer junto.

Até hoje não sei porque desisti de jantar lá. Tinha combinado com ele era um hábito meu ir à casa dele.

Originalmente publicado em: VALADÃO, Jece. Memórias de Um Cafajeste. São Paulo: Geração Editorial, 1996.

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