sábado, 21 de setembro de 2013

Memórias de um Cafajeste- parte V: Jece e Glauber Rocha


Por Jece Valadão

GLAUBER

A Idade da Terra foi o único filme que eu fiz com o Glauber Rocha.

O Glauber realmente era um gênio. Ele tinha uma maneira de dirigir diferente de todo mundo. E eu me dei muito bem com ele.

Improviso

O elenco do idade da Terra era muito grande. Tinha o Tarcisio Meira, Geraldo Del Rey, Norma Bengell, muita gente. E o Glauber só queria filmar comigo.

Nós morávamos todos juntos numa casa na Bahia. Então, o quê que aconteceia? Ele trazia a programação de manhã, mudando tudo que estava previsto, e me chamava para filmar.

Era uma maneira muito diferente de trabalhar. Não tinha roteiro. Ele chegava e falava: “O Jece, pega a Bíblia e lê João, capítulo 4, versículo 22”. E eu lia. “Em cima desse capítulo você vai chegar para aquele cara”, que era um negão grande que contracenava comigo, “e vai dizer o diálogo que você quiser, com o sentido tal e tal, assim, assim”. Completamente livre.

Eu dizia a minha fala e o cara respondia improvisando em cima do tema que o Glauber tinha dado.

Ele dava a chance de a gente criar; depois ele recriava em cima e filmava.

Era altamente excitante essa maneira de trabalhar.

Já com os outros atores, não tinha muita conversa, não. Eles não queria saber de improviso.

Por isso, o Glauber só queria filmar comigo.

CRISTO ÍNDIO

O Glauber foi o único cara que me botou de Jesus Cristo.

Era uma versão do Cristo, um Cristo índio, com cocar, colares, arco e flecha, aquele negócio todo.

O cara era gênio.

A procissão

Uma das cenas do filme se passava na procissão de Nossa Senhora “de não sei o quê lá” da Bahia, que era um negócio respeitadíssimo pelos baianos.

O baiano é muito rigoroso nessas coisas, nos seus eventos, nas suas crenças.

Bom, aí o Glauber me vestiu de Jesus índio, com cocar, arco e flecha e mandou eu entrar no meio da procissão, bem na frente, ao lado do andor; e ele ia num jipe, filmando.

E lá fui eu, ao lado da santa.

Chega um cara e fala que eu não podia ficar ali. Expliquei que eu estava trabalhando. Começou a maior discussão. “Pode”. “Não pode”. “tou trabalhando”. “Aqui não pode”.

Chega um segurança com um 38 e mande eu sair de lá.

Nessa altura o povo todo já estava revoltado contra mim. E eu lá, firme.

Quando eu já estava quase sendo linchado, o Glauber interviu, mandando eu correr.

Entrei no jipe correndo e o povo atrás.

Só depois fiquei sabendo que estava discutindo com o arcebispo da Bahioa.

E o Glauber, lá na frente, filmando tudo. Ele adorou toda aquela confusão. Morreu de rir.

(...)

O Glauber era muitio careta. Um cara muito quadradão. Não bebia, não fazia nada. A única coisa que ele fazia era fumar maconha...

Tem, inclusive, uma passagem engraçadíssima.

Todo dia de manhã bem cedo, a caminho da filmagem em Arembepe, o Glauber ia fumando um cigarro de maconha enorme. Era um charuto.

Ia eu, o Roberto Pires, que fazia a fotografia do filme, o Glauber e a Paula.

Quando ele dizia: “Jece, fecha o vidro”, eu já sabia. Ele ia acender aquele charuto de maconha.

Eu, em jejum, ficava doido só com a fumaça.

Até que um dia eu me invoquei e resolvi fumar também.

Dei duas tragadas no cigarro. Só acordei à uma hora da tarde; e olha que eu tinha fumado às seis horas da manhã.

Via tudo trocado. Uma loucura.

Havaí

Quando saltamos em Arembepe, o Glauber chamou um negão de dois metros de altura, que trabalhava comigo no filme, e falou para ele tomar conta de mim. “Eu vou filmando outras coisas; quando o Jece estiver bom, filmo com ele”.

O negão ficou tomando conta de mim.

Ficou sentado na praia e eu fui entrando mar adentro.

Comecei a nadar feito um desesperado. Nadava, nadava...Olhava para trás e a impressão que eu tinha é que estava lá no Havaí com aquelas ondas enormes, uma prancha vindo em direção à minha cabeça.

Como eu fui ver depois, na verdade eu estava nbo raso. Aquele mar é do tipo que você anda mais de um quilômetro com água no tornozelo para chegar no fundo.

Eu estava “loucão”. E o negão, assombrado, querendo saber que fumo era aquele.

“Eu fumei o fumo do Glauber”.  “Ah, mas com esse eu tou acostumadio. Então dá um pouquinho do seu sangue porque tá diferente”.

Uma hora da tarde eu fui comer um ovo mexido, que me pareceu completamente apimentado. Absurdo. O ovo estava normal.

Quer dizer, bagunçou com o meu coreto mesmo.

Não sei como o Glauber conseguia fumar aquele charutão. Ele chegava inteiro, filmava, entrava num processo de genialidade, de criatividade fora do comum.

Cinema

Para mim foi muito gratificante trabalhar com o Glauber. A gente conversava sobre tudo. Menos cinema. Ele falava: “Eu não quero conversar sobre cinema, eu quero fazer cinema”.

Só vi Idade da Terra uma vez. Não tenho cópia dessa fita, mas gostaria de revê-la.

Foi o último filme do Glauber.

Beijo na testa

O Glauber era um cara de uma doçura impressionante. Uma doçura de beijar na testa. Eu nunca vi o Glauber perder as estribeiras.

O fim

Logo depois de terminar o filme, o Glauber foi para a Europa. Nunca tive mais contato com ele. Infelizmente.

Originalmente publicado em: VALADÃO, Jece. Memórias de Um Cafajeste. São Paulo: Geração Editorial, 1996.

Nenhum comentário: