sábado, 11 de março de 2017

A Ilha do Desejo no jornal Movimento

A moral da pornochanchada



A Ilha do Desejo. Direção de Jean Silva. Produção: David Cardoso. Com David Cardoso, Márcia Real, Fátima Antunes, Sonia Garcia, Helena Ramos.
           
Por Maria Lúcia Kahl

Meia dúzia de moças de São Paulo sobrevivem à custa de ilícitas atividades noturnas. Até que um mocinho bonito, no exercício de sua profissão ainda mais ilícita, convida as moças para um fim de semana numa ilha tropical. É uma armadilha: lá, a dona da ilha as mantém como escravas branca- afinal também ela precisa sobreviver. Acontece q         ue há um assassinato na ilha. A partir desse momento, o filme “A Ilha dos Desejos” passa a ser “sexo” e suspense até o caso ser desvendado pelo mocinho e pela polícia de Santos.

A estória, enfim, não interessa. Mas quem imaginar que o filme é inofensivo estará enganado: se as cenas de sexo fossem um pouco mais discretas (não que sejam ousadas), “A Ilha dos Desejos”, como a maioria das pornochanchadas nacionais, poderá ter sido financiada pela TFP. Como elemento de preservação da sagrada moral da classe média brasileira. As mocinhas são todas prostitutas, isto é verdade. Mas como são lindas e gostosas, seus sentimentos também puros e virginais. Todas aspiram casar-se, ter uma família, o conforto de um homem só e a paz de um lar. O mocinho também é engraçadinho, loiro, um boneco. Logo arrepende-se de sua vida de aliciador e apaixona-se pela mais casta das prostitutas (aquela que, chegando na ilha recusa o par que a escolhe e fica chocada diante do que vê) prometendo-lhe casamento (como garantia, a única válida, de seu amor) e começando imediatamente a agir para descobrir o assassino e libertar as meninas.

Os capangas da dona da ilha é que não poderiam ser lindos e loiros. Um é um mulato (violentamente repudiado ao tentar passar a cantada mais inocente do mundo numa das meninas). O outro é um chinês enorme, com cara de lutador de “telecatch”. E o assassino? Nem a madame, nem seu filho débil mental (elemento de expiação da culpa da madame, que assim, também sofre na vida) nem os capagandas. É a cozinheira da ilha, uma velha beata que vive horrorizada diante do pecado. E por isso vai matando as moças, uma a uma. É a figura da bruxa – velha, feia, pobre e má – que paga por todos os males. E já que todo o Mal contido no filme é depositado em sua figura, nada mais “justo” do que ela terminar morrendo queimada, em gritos e gargalhadas diabólicas, exorcizando o grupo todo – quem vai sentir pena dela?



Fora da ilha, o mundo volta a ser bom, girando no seu ritmo normal. As mocinhas, pudorosamente vestidas, vão depor numa delegacia. O mocinho casa-se com sua predileta. Tudo foi um lamentável engano. A ordem foi restabelecida, durmam bem senhoras (mas sonhem com o glorioso futuro, com o dia em que o mundo mudar e todos forem moças e moças lindos e gostosos, de biquíni o dia todo, queimados de sol).


Publicado originalmente no jornal Movimento, São Paulo, 11 de agosto de 1975.

2 comentários:

ADEMAR AMANCIO disse...

O artigo deve ser da Dahl e não kahl.Atriz do ramo.

ADEMAR AMANCIO disse...

''Os capangas da dona da ilha é que não poderiam ser lindos e loiros,um é mulato e o outro,um enorme chinês'',hoje ninguém escreveria uma frase assim,rs.