segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Vidas dilaceradas

 

Vidas dilaceradas

 

Dois técnicos da Boca do Lixo e a Ditadura Militar

 

Por Matheus Trunk



Rua Tutóia, bairro do Paraíso. Toda vez que o avô Virgílio Roveda passa por esse endereço ele sente um estranho desconforto. Sua voz fica baixa e ele pode chegar a tremer. Aos 74 anos, o baixinho, bigodudo e falastrão Roveda foi um dos técnicos mais atuantes do cinema paulista entre as décadas de 1970 e 1980. Trabalhou em mais de 60 longas-metragens nas mais variadas funções desde eletricista, assistente de câmera, diretor de fotografia e até produtor. Seu apelido na área cinematográfica é Gaúcho. Esse cognome foi dado pelo ator e cineasta José Mojica Marins, o Zé do Caixão ainda nos anos 1960. Os dois atuavam profissionalmente numa região do centro de São Paulo conhecida como Boca do Lixo.

 

“Eu vim da minha terra natal (Vacaria, Rio Grande do Sul) e trouxe uma faca de presente pro Mojica. Mas ele ficou com medo e saiu correndo. Daí começaram a me chamar de Gaúcho, Gauchinho e fixou”, relembra rindo. Mesmo veterano, Roveda ainda busca novas oportunidades na sétima arte. Fotografa alguns trabalhos, mas sente dificuldade em se atualizar no atual momento do cinema brasileiro e da cultura nacional. Ele não tem encontrado muitas oportunidades. “Existem muitos preconceitos. Seja pela idade, pela gente ter militado na Boca ou mesmo porque esse negócio de editais é complicado”, diz ele com um sorriso amarelo e sem muito otimismo. Roveda é avô de três crianças: Mariana de nove anos, Murilo e da menorzinha Maria Luiza. Seus netos não sabem. Mas Gaúcho sobreviveu a um dos momentos mais difíceis da sua vida na rua Tutóia. Mesmo assim, ele continua correndo atrás de seus projetos profissionais e da vida pessoal. “Eu não gosto de falar disso. Não gosto mesmo”, fala ele tentando mudar de assunto. “Toda vez que aparece algo sobre isso na televisão, ele começa a passar mal. Tem vezes em que ele está dormindo e se movimenta todo, começa a suar”, conta Norma Guirado Roveda, esposa de Gaúcho há mais de quarenta anos.

 

O episódio que marcou Gaúcho aconteceu no segundo semestre de 1973. Mas ele conseguiu vencer o problema e seguir em frente. Já seu ex-sócio e amigo de todas as horas o montador Roberto Leme, o Robertinho (1942-2004) não teve a mesma sorte. “O Roberto foi o melhor amigo que tive dentro da profissão. Nós nos conhecemos no primeiro filme que fizemos juntos: O Diabo de Vila Velha, em 1965. Fomos de trem juntos da estação da Luz para Ponta Grossa (interior do Paraná) onde foi filmado essa produção. Ficamos amigos dali até eu segurar o caixão no velório dele”.

 

O magricela e boa-pinta Roberto Leme iniciou sua carreira no cinema naquele início da década de 1960. Tinha se formado como padre num seminário onde estudou filosofia e teologia. Mas não chegou a exercer o sacerdócio. “A irmã dele me contou que esse foi o primeiro baque dele. O Roberto foi dispensado porque achavam que ele não tinha vocação para ser padre. Isso o deixou profundamente chateado”, lembra Dalete Cunha, também montadora e viúva de Roberto. Ela ficou conhecida no meio da Boca paulista pelo apelido de Baixinha.

 

Mas Robertinho também tinha vocação musical. Ele estudou piano durante dez anos e conheceu canto gregoriano no seminário. “Eu não sabia que ele tinha tanta habilidade com piano. Só descobri isso na nossa lua de mel que foi num navio. Ele deu vários recitais chamando a atenção de todos. Aquelas músicas sobre o personagem do Zé do Caixão quem compôs foi o Roberto, mas nunca deram crédito ou pagaram algum direito musical”, rememora Dalete Cunha.

 

A paixão pela música levou Roberto para a carreira cinematográfica. Seu desejo inicial era ser ator. Mas acabou destacando-se na Boca por outra atividade profissional: a finalização, a montagem. “Dizíamos que a sala de montagem funcionava como sala dos milagres”, diz Gaúcho rindo. “A gente dizia que o Roberto não era um montador, mas sim um relojoeiro. Porque ele era extremamente concentrado e caprichoso no que fazia”, relembra o amigo. Os fatos comprovam isso. Roberto montou mais de 40 longas-metragens paulistas. “Ele era o melhor daquela geração de montadores”, opina Dalete Cunha.

 

Roberto Leme tornou-se um dos técnicos mais requisitados do cinema de São Paulo. Ele trabalhou diversas vezes com a produtora Cinedistri do produtor Osvaldo Massaini (1920-1994). “O seu Osvaldo não gostava de filme erótico. Para ele o cinema tinha que ser grande produção com bom acabamento e que conseguisse crítica e público”, me assegurou há anos atrás o assistente de câmera e eletricista Miro Reis. Com a erotização do cinema, Osvaldo Massaini conseguiu fazer algumas verdadeiras superproduções para a época: Independência ou Morte (1972) de Carlos Coimbra e O Marginal (1974) de Carlos Manga. Os dois tiveram participação direta de Roberto. “A verdade é que ele montou o Independência. Ele foi enviado para fazer essa montagem no Rio de Janeiro”, assegura Dalete que trabalhou ao lado do marido diversas vezes. Apesar dessa versão, Roberto aparece como assistente de montagem na ficha técnica da produção.



O Marginal foi um filme policial protagonizado por Tarcísio Meira e Vera Gimenez que conseguiu ser um sucesso de crítica e público. O argumento e roteiro foram assinados pelos dramaturgos Dias Gomes e Lauro César Muniz. A trilha sonora pela dupla de compositores Roberto e Erasmo Carlos. Já Roberto Leme foi o montador e editor desta produção. Os efeitos especiais ficaram sob a responsabilidade do norte-americano Edward Drohan que veio para o Brasil especialmente para participar do filme. “Pra você ter ideia o Sílvio de Abreu que depois dirigiu novelas na TV Globo era assistente de direção. Ele ficava no meu pé o tempo inteiro para fazer as explosões, os tiros, tudo. Mas o gringo (Drohan) sabia das coisas. Não ficamos devendo em nada o cinema americano. Seu Osvaldo (produtor) gostou tanto que me chamou dentro do carro dele para me cumprimentar”, relembra o assistente de câmera e eletricista Miro Reis. Ele auxiliou nos efeitos especiais.

 

Robertinho também montou duas produções do ator e produtor Amácio Mazzaropi: O Grande Xerife (1972) e Portugal...Minha Saudade (1973). “O Mazza era o único da época que trabalhava com o som direto. Mas ele só contratava os melhores técnicos”, garante Gaúcho que foi assistente de câmera em nove filmes do produtor. Dalete lembra-se que uma vez ela e Roberto encontraram-se por acaso com Mazzaropi na Praia Grande, litoral sul de São Paulo. “O engraçado é que na vida real o Mazzaropi era uma pessoa muito séria. Andava de terno, cabelo engomado com gel, carro de chofer. Foi muito simpático conosco e gostava do Robertinho”.

 

A carreira do montador poderia ter ido mais longe. Mas tudo mudou naquele segundo semestre de 1973. Nem Gaúcho nem Roberto tinham militância política ou eram de alguma organização contrária a Ditadura. Muito pelo contrário. Gaúcho e Roberto eram operários do cinema. Não tinham ideais políticos. Os dois moravam num apartamento alugado na rua Helena Zerrener, 104, Baixada do Glicério, centro de São Paulo. A região sempre foi habitada por uma classe média baixa. Historicamente, os cortiços foram comuns no bairro. O problema é que eles alugaram o apartamento de um jovem estudante de economia chamado Pedro Camargo.

 

“O Roberto tinha estudado na infância com esse rapaz. Então, um dia eles se encontraram na rua por acaso e o Pedro chamou os dois para morarem lá. Isso porque o Roberto contou que ele e o Gaúcho moravam nos estúdios de filmagem do Zé do Caixão. Dormiam dentro do caixão inclusive”, explica Dalete. Pedro estudava na USP (Universidade de São Paulo) e era suspeito de ter lutado contra a Ditadura Militar. Logo, todas as pessoas próximas a eles eram suspeitos de serem “subversivos” ou “terroristas”. Gaúcho e Roberto sabiam que essa possibilidade existia.

 

Mas a confirmação acabou acontecendo. Da pior maneira possível. Os dois amigos foram capturados por duas viaturas policiais. Foram encapuzados e levados inicialmente para as dependências do antigo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) localizado no largo General Osório, centro de São Paulo. Depois foram para o DOI-CODI, órgão de repressão localizado na rua Tutóia. Foi lá que ficaram presos. Gaúcho acredita que foram durante duas semanas. Dalete afirma que foi uma semana. “Eles perderam completamente a noção de tempo lá dentro. Isso fazia parte da tortura mental que fizeram com eles”.

 

As lembranças são as piores possíveis. “É um pavor total. Você não tinha noção de nada: tempo, futuro. Você só ouve gritos, gemidos. É terrível”. Nos interrogatórios, davam um pedaço de papel e uma caneta. A ideia era que os dois dessem nomes de pessoas que estivessem colaborando com movimentos comunistas ou esquerdistas. Mas Roveda afirma que não conhecia ninguém que estivesse engajado na luta política. “Eu ia colocar o nome de quem? Mazzaropi? Mojica? David Cardoso?”. Os interrogatórios diários eram acompanhados de tortura física (socos, pontapés, golpes, palmatória, cadeira do dragão) e morais (simulação de execução, ofensas de baixo calão, ameaça de torturas de familiares). “Aquilo que fizeram com eles foi brutal”, explica Dalete Cunha de maneira emocionada.

 

Roberto e Dalete eram noivos quando aconteceu a prisão. O montador foi detido com uma aliança com o nome da amada cravada no anel. “Os militares queriam saber quem era aquela Dalete da aliança. As torturas aumentaram e mesmo assim ele não revelou. O Roberto manteve-se firme”, relembra emocionada. Na época da prisão, os dois foram tidos como desaparecidos. Dalete foi atrás ao irmão de Roberto chamado Benedito que era despachante e eles passaram a correr pelos distritos policiais da cidade atrás dos dois. “Nós chegamos a ir no IML (Instituto Médico Legal) para abrir as gavetas atrás dos corpos deles”. A viúva afirma que a aliança e vários pertences dos dois amigos foram apreendidos pelas “autoridades” militares.

 

Dalete lembra que Gaúcho e Roberto foram soltos num domingo. “Eles estavam física e emocionalmente arrasados, destruídos. Acabaram indo pra casa dos meus pais onde ficaram meses dormindo em colchonetes. Não deixamos eles voltarem para o apartamento de jeito nenhum”. Roveda diz que a readaptação para a vida diária não foi nada fácil. “Você sempre fica suspeitando, olhando para os cantos. Com medo de te pegarem de novo, de viver aquilo tudo de novo. É terrível”.

 

Os nomes de Roberto Leme e Virgílio Roveda estão nos arquivos do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social). O boletim informa que os dois estiveram prestando depoimento no órgão entre os dias 3 e 4 de outubro de 1973 por terem ligações com Pedro de Camargo (vulgo “Fábio” Ou “Joel”). Existem diversos Pedro de Camargo citados nas fichas do DOPS.

 

Mas o único Pedro de Camargo que tem os codinomes Fábio e Joel tem uma ficha bem extensa. Segundo os documentos, ele nasceu em 9 de setembro de 1945 na cidade de Cerquilho, interior de São Paulo. O órgão informa que ele usava seis codinomes: “Fábio”, “Joel”, “Ângelo”, “Bruno”, “Magrela” e “Álvaro”. Em 27 de outubro de 1969, Pedro foi indiciado pela Lei de Segurança Nacional por “atividades subversivas terroristas da organização auto denominada ALIANÇA LIBERTADORA NACIONAL- ALN”. Em 1970, ele foi novamente indiciado três vezes tendo inclusive a prisão preventiva decretada. Ele acabou preso em 4 de novembro de 1973. No ano seguinte foi indiciado e condenado a quinze meses de reclusão por ter passagens por organizações militantes como VAR-Palmares e MR-8. Segundo o inquérito: “Em janeiro de 1973, voltou ao Chile de lá trazendo 250 mil dólares que lhe foram entregues pelo MR-8 chileno para financiar a subversão no Brasil. Dirigiu reunião do partido na Praia Grande, no carnaval do mesmo ano”.  Em 19 de dezembro de 1974 ele foi colocado em liberdade e dois anos depois julgado e condenado pelo Conselho Permanente de Justiça da 3º auditoria da 2º CJM em 1976. Ficou preso por dois anos e seis meses. O mandato foi cumprido e foi colocado em liberdade em 10 de abril de 1978.

 

Já Gaúcho e Roberto se tornaram sócios em 1974. Os dois fundaram a produtora Prodsul Cinema e Audiovisuais, empresa destinada a prestação de serviços dentro da especialização de seus sócios. Gaúcho atuava como assistente de câmera e diretor de fotografia e Robertinho como montador. O escritório da Prodsul era sediado num dos andares da rua do Triunfo, 173, na Boca paulista. Os dois chegaram a ser donos de uma sala de cinema chamada Cine São Paulo na cidade de Dourado, interior de São Paulo. Ambos também produziram dois longas-metragens (O Sexo e As Pipas de José Vedovato e A Opção: Rosas da Estrada de Ozualdo Candeias). Dalete e Roberto se casaram no civil e no religioso numa quinta-feira, dia 5 de dezembro de 1974, na paróquia de Santa Ifigênia, centro de São Paulo. “Foi um momento inesquecível. Casamos pertinho da Boca para os amigos irem direto dos bares para a cerimônia. Enchemos a igreja de gente do cinema”, lembra Dalete. Na ocasião, Gaúcho foi padrinho, fez as fotos da cerimônia e gravou o filme.

 

As sessões de tortura deixaram danos irreversíveis tanto em Gaúcho como em Roberto. O diretor de fotografia sulista sofre de uma deficiência no ouvido até hoje. Já o montador Roberto Leme sofreu alucinações e ficou com mania de perseguição. “O Robertinho virou outra pessoa. Ficou violento. Mudou a personalidade dele completamente”, garante Dalete emocionada. Tanto que o próprio casamento dos dois foi abreviado e acabaram se separando alguns anos depois. Roberto não tinha hábitos etílicos. Após o episódio da prisão começou a beber e atrasar-se para compromissos pessoais e profissionais. “Ele tornou-se alcoólatra. O Roberto bebia pinga pura. Tivemos duas filhas e aquilo foi me enchendo. Ele ficava muito desequilibrado e passou a ser um risco para as meninas”.

 

O montador chegou a se atrasar inclusive para o casamento de Gaúcho e Norma em 1979. Acabou perdendo a chance de ser padrinho. “A Dalete acabou atrasando para o casamento e os tios da Norma substituíram eles”, lembra Roveda rindo. Já Dalete Cunha conta outra versão. Ela garante que a culpa do atraso não foi dela. “O Roberto foi buscar uma câmera para gravar o casamento. Mas ele passou num boteco com um pessoal e atrasou tudo. Ele já não estava bem de cabeça”.

 

Compositor, maestro, poliglota, seminarista, montador cinematográfico. Roberto Leme acabou encerrando sua vida sendo porteiro de um prédio. “O Roberto poderia ter sido muito mais. Tudo acabou sendo sequela daquele triste episódio. Destruíram sua saúde, seus sonhos, sua família e sua vida”, lembra Dalete. Passados quase 47 anos da prisão dos dois, tanto Roberto como Gaúcho nunca receberam nenhuma indenização. Dalete entrou com um pedido num escritório de advocacia especializado em Direitos Humanos. “A advogada que cuida do caso afirma que os processos foram abertos. Mas até agora não obtivemos nenhuma resposta. Já fazem três anos que entregamos os documentos que nos pediram. Mas com esse governo infame que infelizmente está aí não tenho esperança de que aconteça alguma coisa”, lamenta Dalete.

 

Especializado em Direitos Humanos, o advogado Pablo Biondi é o encarregado do caso. Mas ele não tem grandes esperanças. “Infelizmente, os processos estão parados já que a Comissão de Anistia está trabalhando num ritmo decrescente. Aliás, sob o atual governo esse quadro se agravou muito. Sem nenhuma novidade ainda”.




Publicado originalmente no site de direitos humanos A Ponte: www.ponte.org.br 

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