Por
Tony de Sousa
Um
amigo costumava dizer que a maior parte do desentendimento entre homem e mulher
acontece porque os homens dialogam com as mulheres usando os códigos masculinos.
E as mulheres possuem seus próprios códigos. Ele não era psicólogo, nem
psicanalista ou coisa parecida, mas um pesquisador do assunto.
“Ás
vezes a mulher está afirmando uma coisa e verdade está é negando. Um negócio
meio complicado, mas é assim que funciona”, me dizia.
Eu
estava namorando uma morena linda chamada Palmira Ribas, há pouco tempo, e
tentei colocar em prática a tese desse meu amigo. Ele adorava falar mal do
cinema brasileiro. Que os filmes só mostravam miséria e violência. Que eram mal
feitos, toscos, etc, etc.
“Palmeira
não é bem assim. Um grande intelectual brasileiro costumava dizer que qualquer
filme nosso, por mais tosco que seja, nos diz mais culturalmente do que um
filme estrangeiro”.
“Ah,
esses intelectuais! Eu vou ao cinema é para me divertir. Não é para ver coisa
triste, miséria, violência”.
“Ah,
mas os filmes estrangeiros também mostram essas coisas. Tem muito lixo, muita
porcaria”.
“Ah,
nas pelo menos são bem feitos. Tem mais variedade. Filme brasileiro é só isso.
Sexo, violência, miséria”.
“Eu
conheço um monte de filme brasileiro que não tem nada disso”.
“Ah,
mas eu gostaria de conhecer. Me mostre!”.
“Qualquer
dia trago uma seleção desses filmes pra você ver”.
Pela
tese do meu amigo, havia também as nuances a serem interpretadas. Não era só a
questão da negação versus afirmação. Era mais complexo. No caso em questão, eu
entendi claramente que Palmira Ribas estava querendo me dizer: “mostre-me o que
você fez no cinema”.
Eu
havia realizado uns curtas e em quase todos os personagens falavam muito
palavrão. Palmira detestava palavrão. Tinha os ouvidos muito sensíveis. No
duro. Não era frescura. Ás vezes eu soltava um sem querer e ela fazia uma
expressão de quem levou um tapa no rosto. Em compensação, ela tinha uma coisa
muito legal que era inventar uns programas diferentes.
“Ah,
vamos fazer um piquenique no Ibirapuera?”
“Com
você eu vou para qualquer lugar, Palmira”
“Sério!
Você topa?”
“Claro
que topo”.
“Vamos pegar onda na praia?”
“Vamos”.
“Vamos
num pagode?”.
“Vamos”.
“Vamos
ver o por do sol lá no alto de Pinheiros?”
“Vamos”.
“Vamos
fazer um passeio pelo centro de São Paulo?”
“Só
se for num final de semana. Num domingo. Durante a semana é impossível”.
“Concordo.
Então vamos num domingo. Que tal o próximo?”
E
no domingo lá estava eu plantado no lugar que marcamos de nos encontrar. O
Largo do Arouche. Eu estava super apaixonado, mas Palmira só naquela de
amizade. Entre nós só rolava uns amassos, uns beijos, uns passeios de mãos
dadas...sexo nem com camisinha.
Demorou
um pouco a aparecer, mas quando chegou, chegou com a corda toda. Abraçou-me,
beijou-me, olhava-me nos olhos e sorria e eu tive a sensação, que finalmente,
iria rolar alguma coisa entre nós.
“Você
sabe por que esse lugar se chama Largo do Arouche?”
“Não tenho a menor ideia”.
“Porque
essa região era propriedade do tenente general José Arouche de Toledo Rendon”.
“Ah,
que legal”.
Como
se fosse um guia turístico, ela começou a desfiar seu conhecimento sobre a
história das ruas do centro de São Paulo. Ia apontando os lugares como se
fossem íntimos dela.
“Toda
essa região aqui em volta, até a Praça da República, Vila Buarque, era
propriedade desse general Arouche. Ele nasceu aqui mesmo em São Paulo e estudou
direito na Universidade de Coimbra. Foi um cara muito importante. Um dos
maiores advogados de seu tempo. Foi deputado constituinte, diretor da Faculdade
de Direito de São Paulo, um monte de coisa. Pioneiro da cultura do chá em São
Paulo, inclusive. Tudo o que você vê aqui em volta era plantação de chá. Só
muitos anos depois é que ele permitiu que abrissem umas passagens na sua
propriedade, e uma delas virou essa rua, conhecida hoje como Rua do Arouche”.
Para
não ficar para baixo, puxei o assunto para área de arquitetura. Não é que eu
fosse um expert em arquitetura, mas tinha andado lendo umas coisas.
“Você
conhece o edifício Conde Matarazzo?”
“Não
é aquele que fica ali no começo da São João?”
“Não,
você está confundindo com o Martinelli. O Martinelli foi o primeiro edifício
alto da cidade de São Paulo. O Conde Matarazzo fica ali no final do viaduto do
Chá, próximo a Praça do Patriarca”.
“Ah,
sei. Sei qual é”.
“Sabia
que o arquiteto daquele prédio, Marcelo Piacentini, era um dos arquitetos
preferidos do Mussolini?”
“Lá
vem você meter política no meio”.
Ela
não gostava de conversar sobre política comigo, pois era um assunto que eu
dominava razoavelmente e ela acabava sempre perdendo a discussão.
“Tá
legal. O guia turístico aqui é você. Continue”.
Ela
ficou encabulada e se aquietou. Atravessamos a Praça da República, seguimos
pela Rua 7 de Abril, e para quebrar o gelo, falei:
“Eleja
as duas obras arquitetônicas que você mais gosta aqui no centro?”.
“Ah,
eu gosto de muitas. E você?”
“Minhas
preferidas são o teatro Municipal e o viaduto Santa Efigênia.”
“O
teatro Municipal tudo bem. Mas o viaduto Santa Efigênia? Que é que tem de
bonito ali?”.
“O
estilo art nouveau. Ele é lindo!”.
“Eu
prefiro a Escola de Comércio Álvares Penteado”.
“É.
Outro exemplo de art noveau”.
Quando
ela percebeu que eu também havia lido sobre a história do centro de São Paulo,
resolveu mudar de assunto.
“Que
trajeto a gente vai fazer?”.
“Que
seja. Vamos ver”.
“Você
tem certeza que quer ver essa porcaria?”.
Quem
assistiu ao filme Taxi Driver de Martin Scorsese deve se lembrar da cena em que
Robert de Niro leva inocentemente a namorada, Sybill Sheperd, para assistir a
um filme numa sala de cinema pornô. A cena nossa foi muito parecida. Só que
quem me arrastou para dentro do cinema foi a minha namorada. Quando viu as
cenas de sexo explícito na tela ficou horrorizada. E começou a gritar comigo:
“É
esse tipo de filme que você faz? Que horror! Que coisa mais nojenta! Nunca mais
fale comigo! Eu não te conheço”.
“Palmira,
espere. Esse filme não era isso. Era um filme sério! Te juro. O Dani Macú é até
filiado ao PT”.
“Que
Dani Macú, você tá me gozando? Por favor, não fale mais comigo. Agora descobri
porque você nunca quis me mostrar os filmes que você fez. Deve ser tudo assim
Que decadência! Um cara que se diz comunista, fazer uma coisa inominável dessa”.
“Palmira
não fui eu que fiz. Só trabalhei duas semanas como assistente, quando o filme
ainda era um filem sério. Eu não tenho culpa se Dani Macú transformou o filme
num filme pornô...”
Procurei
interpretar a reação de Palmira considerando aquela teoria do meu amigo que
dizia que, na maioria das vezes, quando uma mulher nega uma coisa na verdade é
afirmando. Por essa teoria a Palmira seria louca por filmes pornôs. Então
aluguei uns filmes pornôs e a convidei para vir ao meu apartamento. Ela
resistiu muito e eu disse que tinha algo para lhe mostrar. Ela pensou que fosse
os filmes brasileiros que fugiam dos temas miséria, violência, pobreza e tinha
bons roteiros e qualidade técnica. Ou os meus filmes. Quando mostrei os filmes
pornôs que tinha alugado, ela ficou mais furiosa ainda que o dia em que
entramos no cinema para ver o filme de Dani Macú. Deu um tapa no meu rosto e
saiu correndo. Nunca mais atendeu um telefonema meu. Contei essa história para
o meu amigo, autor da teoria sobre os códigos femininos e dele me confessou
desanimado:
“A
alma feminina é mesmo um mistério indecifrável. Desisti de compreendê-la”.
Tive
que concordar com ele. Palmira nunca mais quis saber de conversar comigo. Sumiu
da minha vida.
Retirado de O Perseguidor de Fantasmas de Tony de Sousa, publicado pela LCTE Editora em 2011.
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