sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Memórias do setorista da Boca IX: Francisco Cavalcanti







A primeira coisa que se via em Francisco Cavalcanti eram seus olhos. Eram olhos azuis, alegres e cheios de vida. A camisa bicolor era escolhido a dedo por dona Mada. O sorriso e a alegria eram onipresentes. Se o assunto fosse cinema melhor ainda. “Vou logo começar outra fita”. Era como Mojica: não usava o vocábulo “filme”. Era “fita”. “Essa fita vai ser revolucionária. Vamos fazer um negócio forte...”. Esses eram os lemas de Chico, o eterno Palhaço Goiabada. Conheci muito bem esse amigo na fase final de sua vida. Estivemos juntos diversas vezes num bar na galeria Boulevard, espaço no centro de São Paulo onde os veteranos do cinema se reuniam na década de 2000. Eles tomavam cerveja e discutiam cinema. Muitas vezes eu ficava na Coca-Cola ou também tomava cerveja. Os nossos objetivos eram pequenos. Apenas três coisas: mudar o panorama do cinema brasileiro, o político do Brasil e do Mundo. Parece que ainda não conseguimos realizar todos os nossos projetos. Mas continuamos na luta.

Essas reuniões aconteciam sempre no final de tarde no primeiro bar que na época localizava-se em frente ao antigo Cine Dom José na rua Dom José de Barros. O cinema continua lá exibindo filmes de sexo explícito. Nos encontros eu sempre fui o mais novato entre todos eles, o garoto, o neto, o sobrinho. Daí me chamavam de "menino dos velhos", o "filho da Boca". Isso tem o lado bom e o lado ruim também. As presenças praticamente diárias eram de José Lopes (Índio), Pio Zamuner, Éder Mazini, Tony Ciambra, Mário Vaz Filho, Chico Cavalcanti, Fabrício Cavalcanti, Jorge Santos, Nabor Rodrigues, Walter Wanny, Castor Guerra, Clery Cunha, Luiz Gonzaga dos Santos. Outros que de vez em quando apareciam lá eram Rodrigo Montana, Rubens da Silva Prado, Virgílio Roveda (Gaúcho), José Mojica Marins, David Cardoso, Alfredo Sternheim, José Adalto Cardoso. Cada vez mais esse pessoal foi morrendo ou piorando de saúde e esse estabelecimento parou de ser ponto de encontro do povo do cinema. Me dói muitíssimo escrever isso. Mas a verdade é essa. Quando liguei pro Mário Vaz Filho no final do ano passado ele me falou exatamente isso: "Acabou aquilo. Quem não morreu tá f...".

Chico quase sempre estava com o seu filho Fabrício. Muita gente até podia não gostar dos seus filmes (eu adoro). Mas não tinha quem não gostasse da pessoa dele. Isso porque ele era uma pessoa especial. Nunca vi ele triste ou depressivo como muitos de seus contemporâneos. Não. Parece que as dificuldades deixavam ele mais animado ainda. "Na próxima fita vou improvisar com isso e aquilo. Vai ser algo acima da média".


Francisco de Almeida Cavalcanti nasceu em Cabrália Paulista, interior de São Paulo. Mas sua infância, adolescência e juventude foram nos municípios do Alto Tietê: Ferraz de Vasconcelos, Poá e Mogi das Cruzes. Nessa última começou sua carreira no rádio. Chico também trabalhou no circo como o Palhaço Goiabada. O rádio e o circo marcaram profundamente a sua obra. Mas existe um fato que talvez seja mais importante: Chico viveu um tempo numa fundação de menores, tipo Febem. Tudo isso está nos seus trabalhos. Principalmente no “Ivone, a Rainha do Pecado”. Cavalcanti fundou a Platéia Filmes. Era ator, diretor e produtor. Seus filmes eram extremamente populares. Tinham apelo erótico e temas policiais. Tudo com muito humor, herança do circo. A crítica o massacrava. De sua obra destaco “Mulheres Violentadas”, “O Porão das Condenadas”, “Almas Marginais” e sobretudo “O Cafetão”, sua obra-prima. O personagem principal Pedro era o próprio Chico em carne e osso. Cavalcanti foi um homem muito amado e teve vários filhos. “Eu não consigo gostar de um filho diferente do outro. Amo todos do mesmo jeito”. Aprendi a ser homem com pessoas como o Chico. Gosto tanto dele que fiz minha dissertação de mestrado apresentada na Universidade Anhembi Morumbi em 2018 sobre sua obra. O título foi "Deus Não Perdoa os Malditos: Francisco Cavalcanti e o cinema da Boca do Lixo". Obtive o dez da banca. Mas melhor que qualquer nota ou aprovação acadêmica foi o que aquelas tardes na galeria Boulevard. Aquilo me marcou tanto que posso dizer que aquele foi o melhor curso que tive. Francisco de Almeida Cavalcanti e os outros veteranos do cinema paulistano foram os melhores  professores que tive na vida.

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