segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Grandes matérias esportivas do Jornal da República: “O coração luso bate de puro orgulho” (31/08/1979)

 INVENCIBILIDADE

O coração luso bate de puro orgulho

Mais uma rodada sem derrota. A Portuguesa renasceu em campo e na alma de algumas dezenas de Manueis e Joaquins

 


TONICO DUARTE

O Canindé é uma pequena fatia da zona norte da cidade, cheia de labirintos de ruas tortuosas, becos sem saída e poeira. Lá, os caminhões de fretes que seguem para todo país fazem entroncamento. O ar cheira a doce e pão fresco, aromas que vem das várias padarias e fábricas de doces, todas elas de portugueses. Eles se estabeleceram ali, a partir do começo do século, deixando a terrinha para fazer a América. E, nada mais natural, por aqueles lados acabou surgindo Associação Portuguesa de Desportos, conhecida na intimidade como “Lusa” ou “Burrinha”. A Portuguesa sempre quis assumir o status de time grande.

Bem, há pouco mais de um mês atrás ninguém era capaz de dar um centavo para ela. Era uma equipe a beira da indigência, apresentando um futebol combalido. Em campo, o amontoado de jogadores fazia lembrar o exército de Brancaleone. E, imaginem fez um longo jejum de vitórias, coisa de mais de quarenta jogos. Uma humilhação. Mas, a coisa mudou de repente. Há mais de um mês, exatamente onze jogos, a Portuguesa está invicta. Partiu para a façanha, fazendo com que os alegres patrícios levassem a mão ao coração...ai, Jesus!

Mineiramente. O responsável por tudo isso, dizem as boas e as más línguas, é João Avelino, 48 anos, mineiro. No caso, a mineirice significa mais uma virtude do que, propriamente um atributo geográfico. Ele tem um estilo, vamos dizer, caipiro-malandresco. De João, há histórias fantásticas: certa vez, treinando um time do Norte, mandou diminuir o gol onde ficaria o seu goleiro, ao mesmo tempo em que aumentava o adversário. Acredita em macumba e conhece, na palma da mão, todos os jogadores brasileiros, de norte a sul.

Na manhã de ontem fui falar com ele, tentar descobrir o segredo dessa Fênix-Portuguesa. João estava cansado da viagem de volta de Marília onde, na noite anterior, o time empatara sem gols. “Mas perdemos uma cacetada deles”. Baixinho, gordinho mas elegante, vai logo soltando uma das frases de efeito do seu repertório:

“O segredo é atacar em leque e defender em espinha de peixe”.

João me conta que, para fazer o time funcionar, teve um trabalho estafante. Buscou jogadores pelo país inteiro, uma cosmopolitice. E, dizem, acabou até rompendo com o “cumpade” Osvaldo Brandão, que abandonou a equipe por não acreditar na possibilidade de sucesso. O velho Brandão, todos sabem, nunca foi padeiro de fazer bom pão com farinha de qualidade inferior. João, ao contrário, está acostumado a montar times.

Migrantes. Primeiro foi preciso fazer uma devassa, mandar uns dez jogadores embora. Depois, foram chegando os outros, escolhidos à dedo por João e comprados com os parcos recursos do Departamento de Futebol profissional. Isto porque o presidente Osvaldo Teixeira Duarte, homem que passa da explosão para o choro compulsivo em segundos, tem a única preocupação de imortalizar-se através de um estádio faraônico, na boca do povo, o “Tamancão”.

A Portuguesa parece um autêntico escritório de migração. Chegaram jogadores de Minas, de Pernambuco, Sergipe, Rio de Janeiro até do Piauí, de onde vieram Cacá e Rui Lima. A timidez deste grupo, juntou-se a experiência dos veteranos Moisés e Luciano, além de ter surgido praticamente do nada, o artilheiro Caio. Mas, fundamentalmente, renasceu o futebol cheio de requinte de Enéas, atacante que, até bem pouco tempo, parecia não querer nada com nada. Um dos poucos jogadores deste país que utiliza bem palavras como “defasagem” ou “geopolítica”, Enéas está com sua eterna cara de sono:

“No momento atual, creio que não podemos nos deixar levar pela empolgação. O trabalho deve continuar de maneira tranquila porque, em paz, conseguiremos atingir os objetivos a que nos propusemos”.

Caravelas. Mas, junto com o futebol do time, renasceu o orgulho lusitano. No Canindé existem duas tribunas livres: o quiosque, dentro do clube e o bar do Abílio, fora. Ali são elogiados e esculhambados com igual desenvoltura os jogadores, o técnico, o presidente do clube, dona Pintassilgo, enfim, tudo. E também jogam sueca, coisa tão tipicamente portuguesa como o fado. O velho Bernardino Barrigana, homenzarrão que anda sempre de paletó, calças e chinelos, explica tão arraigado sentimento nativista: “Isto vem do tempo das caravelas, quando Cabral descobriu o Brasil e Colombo, a América Latina”.

Barigana é da Extremadura, Abílio, da Beira Alta, duas regiões distintas. Um torce para o Benfica, outro para o Porto e, invariavelmente, acabam discutindo. Mas comovem-se com programas como “A Grande Portuguesa”, na Rádio Jornal, onde o apresentador Wilson Brasil – na verdade, o descendente de árabes Wilson Reinak Miziara – faz longas dissertações sobre a terrinha. Coisa cheia de saudade. O ex-grumete artilheiro da Marinha Portuguesa e fadista ocasional Nicolau Marques Osório afirma que igual ao sangue lusitano só mesmo um bom vinho verde: “Os dois estão sempre a ferver”.

Apesar do “sangue a ferver”, e de sua sempre lembrada condição de ex-militar, Nicolau é um homem extremamente cordial. Viveu uns tempos em Lisboa, o que o acento alfacinha denúncia. Oferece a mim e ao fotógrafo João Bittar dois “papos-secos”, pãezinhos redondos que o fazem lembrar a capital da terra – “uma delícia, provem” mas diz que só canta os fados castiços depois de uma ou duas bagaceiras. Nicolau nos mostra, com muito orgulho, sua carteirinha de associado da Portuguesa – “esta equipe vai ser um espanto, oh pá”.

Com todo esse orgulho pelo time, digno das melhores tradições, ninguém mais liga para aquelas histórias folclóricas e humorísticas envolvendo portugueses. Como daquela motoniveladora que foi esquecida dentro do estádio, depois de concluído o primeiro anel da construção. Não havia por onde a geringonça pudesse sair e os patrícios fizeram longos conselhos de guerra: enterravam ou desmontavam o engenho para retirá-lo por partes? No fim, optaram pela segunda hipótese.

 

Publicado originalmente no Jornal da República em 31 de agosto de 1979, edição 5

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